Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3030/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: GARCIA CALEJO
Descritores: PROCEDIMENTOS CAUTELARES
RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
Data do Acordão: 11/09/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2º JUÍZO - TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 393º DO CPC .
Sumário: I – O requisito da violência é imprescindível para a concessão do procedimento cautelar de restituição provisória de posse .
II – Para que tal requisito se preencha é necessário que se concretize a violência sobre a pessoa do possuidor ou do detentor da coisa .
III – Em casos em que o esbulho não seja violento, o artº 395º do CPC permite ao possuidor a defesa da sua posse mediante o procedimento cautelar comum .
Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I- Relatório:
1-1- No Tribunal Judicial de Leiria, A... e mulher B..., residentes em Bajouca Centro, Leiria, intentaram uma providência cautelar de restituição provisória de posse, contra C... e mulher D..., residentes na Av. Voluntários 25 de Novembro, Bajouca Centro, Leiria, pedindo se defira a restituição provisória de posse sobre os direitos de servidão referidos na petição que consistem no acesso ao poço localizado no extremo norte/nascente do prédio identificado e bem assim à exploração da água dessas nascentes, sua captação, uso e fruição e canalização dela, desde o prédio dos requeridos até aos prédios deles, requerentes.
Para tanto alegaram, em súmula, que são donos e legítimos proprietários do prédio que identificam, sendo que o abastecimento de água ao prédio se faz com origem num poço de águas nativas através de canalização subterrânea desde o prédio dos requeridos, razão por que este prédio está onerado com esta servidão. Porém no início de 2004 os requeridos retiraram a dita canalização, concretamente o motor, as torneiras e todas as instalações visíveis dessa estrutura, tendo ainda destruído a cabine do motor, razão por que o seu prédio se encontra desprovido do normal abastecimento de água, circunstância que lhes tem causados prejuízos. Os requerentes foram esbulhados da canalização na sua ausência em França.
1-2- Designado dia para a inquirição das testemunhas indicadas pelos requerentes, procedeu-se à diligência, finda a qual foi proferida decisão, na qual se julgou a providência improcedente por não provada.
1-3- Não se conformando com esta decisão, dela vieram recorrer os requerentes, recurso que foi admitido como agravo, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
1-4- Os recorrentes alegaram, tendo dessas alegações retirado as seguintes conclusões úteis:
1ª- Nos termos do art. 690º A impugna-se a decisão sobre a matéria de facto dada como não provada, designadamente:
a) Que a casa referida em 5) da sentença é a residência familiar dos requerentes, já que isso resulta da matéria indiciariamente assente na sentença ( pontos 19 e 21 ) e de todos os depoimentos prestados em audiência, concretamente da testemunha Maria Madalena da Mota Oliveira, ouvida na cassete 265 lado A, de 000 a 331.
b) Que o terreno que serve de logradouro à casa tem cerca de 5680 m2, já que isso resulta da certidão fiscal junta à p.i., doc. nº 3.
c) Que as produções agrícolas definham por falta de água, visto é do senso comum que um terreno com as dimensões assinaladas, com a fauna e flora que se indicia, privado da sua habitual fonte de abastecimento de água, definhe, além de que isso foi assinalado por todas as testemunhas, tendo a testemunha Maria Madalena da Mota Oliveira, ouvida no início da cassete lado A, afirmado “as árvores existentes já secaram quase todas por falta de água”.
2ª- Mostram-se verificados os fundamentos e pressupostos respectivos, pelo que a providência requerida deve ser decretada.
3ª- Através de presunções judiciais é mais que legítimo concluir dos danos que já estão, afinal, cabalmente demonstrados para os requerentes.
4ª- Com violência ou sem violência, a providência deve ser decretada, ou por força do art. 1279º do C.Civil ou ainda de harmonia com o disposto nos arts. 394º, 395º e 392º nº 3 do C.P.Civil, cujos comandos foram violados.
Termos em que deve a decisão ser revogada.
1-5- O Mº Juiz manteve a sua decisão.
Corridos os vistos legais há que apreciar de decidir:
II- Fundamentação:
2-1- Na douta decisão recorrida, deu-se como assente a seguinte matéria de facto:
1- Por escritura pública lavrada no dia 21 de Janeiro de 1975 na Secretaria Notarial de Leiria, Samuel Martins da Cruz e mulher declararam vender e o requerente declarou comprar o prédio rústico sito na Capela da Bajouca, inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Monte Redondo sob o art. 13.102.
2- O prédio urbano de rés do chão para habitação sito na Av. Voluntários 25 de Novembro, em Bajouca, a confrontar do norte e sul com Manuel de Mota Oliveira, do nascente com Júlio Fernandes Pedrosa e do poente com serventia fazendeira e outros, está inscrito na respectiva matriz sob o art. 3.753.
3- Os pais do requerente e do requerido faleceram, em 27-8-85 e 3-10-85.
4- Na partilha por óbito dos pais, os requeridos adquiriram o prédio referido em 2.
5- Em 1976, os requerentes construíram no prédio referido em 1, uma casa a qual se encontra inscrita na matriz predial urbana da freguesia de Monte Redondo sob o art. 1989.
6- No terreno sobrante da casa, os requerentes construíram instalações para o gado e aproveitaram o restante para o cultivo de vários produtos agrícolas, tais como couves, feijão, batata, milho e árvores de fruta.
7- Desde a data referida em 1 que os requerentes vêm exercendo sobre o prédio aí mencionado, os actos referidos em 5 e 6 à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém na convicção de serem donos do prédio.
8- Desde a data referida em 1 que os requerentes vêm criando porcos, galinhas e carneiros e desenvolvendo actividade agrícola no prédio referido em 1.
9- O abastecimento de água ao prédio referido em 1 para alimentação dos animais, rega e consumos domésticos, faz-se com origem num poço situado na extrema norte/nascente do prédio referido em 2, através de canalização subterrânea que liga ambos os prédios.
10- A canalização e o respectivo aproveitamento de águas foi feito em 1976 quando o prédio referido em 2 e as respectivas nascentes pertenciam a José da Silva Oliveira e mulher, de quem o requerente e o requerido marido são filhos.
11- Os requeridos sabem da existência das canalizações descritas em 9) e 10) desde há mais de 20 anos.
12- Os requerentes construíram as canalizações descritas em 9) e 10) e exploram a água desse poço com a autorização dos seus falecidos pais.
13- Ao estabelecerem a canalização e o aproveitamento das águas, os requerentes e seus pais assumiram que aqueles têm o direito a usar as águas provenientes da nascente daquele poço e aí acederem para fazer a manutenção, limpeza a assistência do poço e canalizações.
14- Desde 1976 até finais de 2003, os requerentes vêm consumindo água do poço para uso do prédio referido em 1), à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.
15- Os requerentes têm vindo a utilizar e zelar pela conservação e manutenção do motor de rega, das torneiras e das tubagens, abrindo e fechando torneiras, substituindo-as e aos canos, à vista de todos e sem oposição de ninguém.
16- No início de 2004, os requeridos fizeram desaparecer o motor e as torneiras da estrutura que canalizava a água e destruíram a cabine do motor.
17- Actualmente o prédio referido em 1 encontra-se desprovido de abastecimento de água para os animais, consumo doméstico e rega.
18- Actualmente os requerentes têm que transportar a água para os animais e para utilizações prementes.
19- Os requerentes residem em França.
20- Em virtude do facto referido em 17, os requerentes não podem ocupar a casa referida em 5, quando vêm a Portugal.
21- Em Julho, os requerentes vêm a Portugal com os filhos e necessitam da casa referida em 5.---------------------------------------------
2-2- Na douta decisão recorrida e para o que aqui interessa, considerou-se que a restituição provisória de posse, enquanto providência especificada, depende da verificação dos requisitos da posse, do esbulho e da violência. No caso vertente, pese embora ocorram os pressupostos da posse e do esbulho, não se verifica o requisito da violência, razão por que a providência foi indeferida. Acrescentou-se que o art. 395º do C.P.Civil confere ao possuidor esbulhado ou perturbado no exercício do seu direito, não ocorrendo as circunstâncias da restituição provisória de posse, a possibilidade de recurso ao procedimento cautelar comum. Sucede porém que este procedimento cautelar está sujeito aos respectivos pressupostos que no caso se não verificam na sua totalidade. Concretamente in casu não ocorre o requisito da existência de lesões graves e dificilmente reparáveis. Por isso, se considerou não existir lugar à concessão do procedimento cautelar comum, para onde remete o dito art. 395º.
Significa isto que o Mº Juiz indeferiu, a providência de restituição provisória de posse, por falta do requisito da violência e o procedimento cautelar comum, à míngua de indiciação do pressuposto da existência de lesões graves e dificilmente reparáveis.
No recurso os agravantes, como se vê pelas conclusões das suas alegações ( que recorde-se balizam o âmbito objectivos dos recursos - arts. 690º nº1 e 684º nº 3 do C.P.Civil - ) começam por se insurgir em relação à matéria de factual que foi dada como não provada, já que, no seu entender, deveria também ter sido dado como demonstrado, que a casa referida em 5) é a residência familiar dos requerentes, que o terreno que serve de logradouro à casa tem cerca de 5680 m2 e que as produções agrícolas definham por falta de água.
Diga-se desde já que esta sua posição é destituída de interesse para a questão que deve ser debatida neste recurso, que é, como é óbvio, da verificação ou não dos pressupostos já ditos acima, ou seja, o requisito da violência em relação à requerida restituição provisória de posse e o pressuposto da existência de lesões graves e dificilmente reparáveis no toca ao procedimento cautelar comum. É que, mesmo a serem dados como assentes os factos que os agravantes sustentam, porque os mesmos são, patentemente, alheios aos requisitos em causa, em nada iriam contribuir para a modificação da decisão proferida em 1ª instância.
Daí que consideremos escusado debruçarmo-nos sobre a problemática de se saber se os mesmos deverão ser dados como provados, modificando a posição que sobre ele se tomou na decisão recorrida.
Entrando na problemática que o presente recurso levanta, começaremos por dizer que os requisitos de que depende a concessão da providência cautelar requerida foram correctamente definidos na decisão recorrida.
Contra o que defendem os agravantes na sua 4ª conclusão, parece-nos absolutamente pacífico que o requisito da violência é imprescindível para a concessão da providência ( vide art. 393º do C.P.Civil ). É por isso que, em casos em que o esbulho não é violento, o art. 395º ( que estabelece que “ao possuidor que seja esbulhado ou perturbado no exercício do seu direito, sem que ocorram as circunstâncias previstas no artigo 393º, é facultado, nos termos gerais, o procedimento cautelar comum ) permite ao possuidor a defesa da sua posse mediante o procedimento cautelar comum.
No que toca ao requisito da violência, os agravantes nas suas alegações sustentam a sua verificação no caso dos autos, já que a destruição de uma construção é um acto violento se não for acompanhado do consentimento do possuidor. Tendo os requeridos destruído a cabine do motor contra a vontade dos requerentes ( que se encontravam ausentes em França ), tal é suficiente, no seu entender, para se considerar que os requeridos actuaram com violência.
Sobre o mesmo elemento da violência, na decisão recorrida considerou-se que só o esbulho que atinja de algum modo a pessoa do possuidor ou de quem defenda a coisa, ou seja, esbulho que seja acompanhado de ameaças ou de outro comportamento susceptível de afectar a segurança de quem possui ou detém a coisa, é que pode ser entendido como violento.
Quer dizer estamos perante duas posições ou concepções em relação ao elemento da violência. Segundo os agravantes o requisito preenche-se com a mera violência sobre a coisa. No entender da decisão recorrida para ocorrer tal pressuposto é necessário que se concretize a violência sobre a pessoa do possuidor ou do detentor da coisa.
Diga-se desde já que a jurisprudência não tem sido unânime sobre o tema, existindo decisões que aderem à tese dos agravantes ( v.g. Ac. da Rel. de Coimbra, BMJ 377, 568 ) e outra jurisprudência, que consideramos maioritária, que entende a problemática do modo como o Mº Juiz o fez. Em relação a esta tese salientaremos o Ac. desta Relação de Coimbra de 3-12-98 publicado na Col. de Jur. 1998, Tomo V, pág. 37 em que foi adjunto o presente relator. É este entendimento que perfilhámos neste acórdão e que entendemos manter.
Nos termos do art.1261º nº 2 do C.Civil a posse é considerada violenta quando para obtê-la, o possuidor usou de coacção física ou coacção moral nos termos do art. 255º. Nos termos deste art. 255º, diz-se coacção moral a declaração negocial determinada pelo receio de um mal de que o declarante foi ilicitamente ameaçado com o fim de obter dele a declaração, sendo que o nº 2 da disposição menciona que a ameaça tanto pode respeitar à pessoa como à honra ou fazenda do declarante ou de terceiro.
Daqui resulta à saciedade que, na formulação legal, só a violência sobre as pessoas é que tem relevância jurídica. De resto, só uma pessoa pode ser objecto de coacção moral. A ameaça tem sempre que se dirigir a uma pessoa. Só uma pessoa pode ser, através de ameaça à sua integridade física, à sua honra ou à sua propriedade ou de terceiro, constrangida a fazer ou deixar de fazer qualquer coisa.
Sucede que, por vezes, a violência pode exercer-se sobre uma coisa e reflexamente atingir uma pessoa. Neste caso, porque se estabelece uma relação entre a coacção e a pessoa, a violência é juridicamente relevante. O acto de violência sobre a coisa é aqui instrumento de coacção sobre uma pessoa. Também aqui o objecto de coacção acaba por ser uma pessoa, se bem que indirectamente. Como se refere no dito acórdão “os danos ou as ameaças sobre coisas, para este efeito - preenchimento de noção de violência no esbulho - configuram-se sempre como um meio, não um fim; um meio, precisamente de obter uma posse”.
Não haverá, neste perspectiva, violência relevante, quando o acto praticado o for apenas sobre a coisa, não produzindo no esbulhado qualquer constrangimento psicológico no sentido de afectar a sua liberdade, a sua segurança e tranquilidade.
Obviamente que para existir violência no sentido que vimos falando, pode-se não se exigir a presença do esbulhado no momento da sua prática, se bem que, na prática, será difícil arquitectar o correspondente constrangimento moral na ausência do esbulhado. De qualquer modo tudo vai em ajuizar-se se, pelas circunstâncias concretas, se poderá ou não entender que o desapossado sofreu, pessoal e psicologicamente com o acto de esbulho, uma coacção que o afectou na sua liberdade.
Colocando as coisas sobre este prisma, vejamos se poderemos aceitar que os agravantes sofreram a violência de que vimos falando.
Provou-se que no início de 2004, os requeridos fizeram desaparecer o motor e as torneiras da estrutura que canalizava a água e destruíram a cabine do motor. Desconhece-se se na altura destes actos os requerentes se encontravam presentes, pois nada nesse sentido foi alegado. Pelo contrário parece-nos ver indícios da sua ausência no estrangeiro nessa altura, visto que ficou também assente que os requerentes residem em França e que, em virtude do acto de corte de água efectuado pelos requeridos, não podem ocupar a sua casa quando vêm a Portugal. Assim, parece-nos lícito poder concluir que a violência não se exerceu contra eles, já que de forma alguma se poderá defender que o esbulho os afectou na sua liberdade. A violência, que se concretizou através da destruição da cabine do motor, incidiu, tão só, sobre a coisa. Daí que não seja relevante para que possa considerar concretizado in casu o requisito da violência de que vimos falando.
Quer isto dizer que a decisão recorrida foi correcta neste ponto.
Como se disse acima que o art. 395º do C.P.Civil confere ao possuidor esbulhado ou perturbado no exercício do seu direito, não ocorrendo as circunstâncias da restituição provisória de posse, a possibilidade de recurso ao procedimento cautelar comum. Mais se disse que a decisão recorrida entendeu assim as coisas, mas que por falta do requisito da existência de lesões graves e dificilmente reparáveis, considerou não existir lugar à concessão do procedimento cautelar comum.
Sobre a questão os agravantes nada mencionam em contrário à posição assumida pelo Mº Juiz na sua douta decisão, razão que nos leva a concluir que se conformaram com essa posição.
De qualquer forma vejamos:
O art. 381º nº 1 do C.P.Civil ( para onde remete o mencionado art. 395º ) fala expressamente no “perigo de lesão grave e dificilmente reparável daquele direito” para que se possa requerer o procedimento cautelar comum. Evidentemente que dada a formulação legal, o decretamento da providência depende cumulativamente da ocorrência ( para além doutros requisitos ) de lesão gravosa e dificilmente reparável.
Em relação a prejuízos derivados do esbulho, provou-se no presente caso que em virtude do corte da canalização efectuada pelos requeridos, os requerentes têm que transportar a água para os animais e para utilizações prementes e além disso não podem ocupar a sua casa quando vêm a Portugal.
Evidentemente que estes factos denunciam patentes prejuízos para os requerentes. Porém não se encontra provado que esses prejuízos sejam em montante elevado ( nem sequer isso foi alegado ) e muito menos se encontra demonstrado que os danos sejam de difícil reparação ( factualidade igualmente não alegada ), circunstância que tem a ver com a capacidade de solvência dos requeridos e que é totalmente desconhecida.
Quer isto dizer que foi certo o juízo feito pelo aresto recorrido, da falta, quanto ao procedimento cautelar comum, do requisito do perigo de lesão grave e dificilmente reparável do direito.
A douta decisão recorrida merece pois inteira confirmação.
III- Decisão:
Por tudo disposto, nega-se provimento ao agravo, mantendo a douta decisão recorrida.
Custas pelos agravantes.