Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4056/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: COELHO DE MATOS
Descritores: DIVÓRCIO POR MÚTUO CONSENTIMENTO
RELAÇÃO DE BENS
CASO JULGADO
Data do Acordão: 02/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 1419.º N.º 1, AL. A) DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1. A junção da relação de bens em acção de divórcio por mútuo consentimento, exigida pelo n.º 1, a) do artigo 1419.º do Código de Processo Civil, constitui mera condição de prosseguimento da causa;
2. O caso julgado da sentença que decreta o divórcio, em acção de divórcio por mútuo consentimento, não cobre a titularidade dos bens aí relacionados, pelo que não obsta a que no futuro inventário para separação de meações se possa questionar se algum, ou alguns, desses bens são comuns ou propriedade de um só dos cônjuges.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

1. A... requereu, na comarca de Leiria, inventário para separação de meações nos bens do casal, dissolvido por divórcio, com seu ex-marido B..., cabendo-lhe a ela o exercício do cargo de cabeça de casal.
Prestadas as respectivas declarações, juntou relação de bens a partilhar, na qual consta apenas a casa onde ambos viviam.
O interessado B... reclamou, alegando que o imóvel lhe pertence em propriedade exclusiva, uma vez que foi ele quem o construiu antes do casamento, em terreno por si herdado.
Admite tão só que alguns trabalhos de acabamento foram já efectuados após o casamento e nessa medida haverá uma parte, que avalia em 2.500,00€, a considerar como benfeitorias comuns. Todavia, como a cabeça de casal também levantou 2.500,00€, de uma conta bancária comum, deve considerar-se que já nada há a partilhar.

2. Processado o incidente, o sr. juiz considerou que a complexidade da questão da propriedade do imóvel pressupõe uma indagação processual que se não compagina com os limites de exigência do processamento incidental e remeteu as partes para os meios comuns, nos termos do artigo 1350.º do Código de Processo Civil.
É desta decisão que o interessado B... nos traz o presente agravo, em cuja alegação conclui:
1) Recorrente e recorrido requereram e obtiveram o divórcio por mútuo consentimento que transitou em julgado;
2) Entre os acordos elaborados e assinados, consta o da relação de bens que considerou como património comum do casal o prédio urbano inscrito na matriz sob o art° 4.724;
3) A questão suscitada pelo recorrido de que o prédio não é bem comum do casal, não pode ser apreciada e discutida pelo Tribunal, uma vez que os acordos e divórcio transitaram em julgado;
4) Ao decidir, como se decidiu, violou a douta sentença o disposto nos art°.493, n.º 1 e 2, 494.º, a..i), 497.º, n.º. 1 e 2, 498.º, 336, n°.2, 1 350.º (a contrario), 664.º e 668.º, no. 1, al.c) e d), do CPC.

3. Não foram apresentadas contra-alegações. Foi proferido despacho de sustentação. Estão colhidos os vistos. Cumpre decidir.
Os factos a ter em conta são os que constam do ponto 1. supra e ainda que da relação especificada de bens comuns na acção de divórcio consta sob o título de “verba um benfeitoria”, a seguinte descrição: “casa de rés do chão com cave ampla, cozinha, sala, 3 quartos, 2 casas de banho, com área coberta de 143,64m2, sita na Rua Porto da Sebe em Cavalinhos, inscrita na matriz predial urbana, freguesia de Maceira, sob o n.º 4724/Maceira, omissa na Conservatória de Registo Predial de Leiria, edificada sobre o artigo rústico n.º 14427 da mesma freguesia, descrito na Conservatória de Registo Predial de Leiria sob o n.º 7583/Maceira, com o valor patrimonial de”

4. Temos que, a considerar o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (artigos 684.º e 690.º do Código de Processo Civil), a questão que se nos coloca é a de saber se a sentença que decretou o divórcio por mútuo consentimento entre os aqui agravante e agravada constitui caso julgado relativamente à questão que neste inventário os opõe. Ou seja, saber se o facto de se ter incluído a casa de habitação na relação de bens comuns referida no artigo 1419.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Civil, o caso julgado da sentença que decretou o divórcio cobre a propriedade comum desse imóvel, de forma a que, por força da autoridade do caso julgado, seja vedado a que, no processo de inventário para separação das meações, se discuta se tal imóvel é propriedade comum ou só de um dos ex-cônjuges.
É óbvio que se a autoridade do caso julgado formado com a sentença que decretou o divórcio e homologou os eventuais acordos sobre alimentos, casa de morada de família e poder paternal de filhos menores abranger a titularidade dos bens relacionados, não será possível noutra acção entre os mesmos interessados discutir-se a questão da titularidade desses bens. Se foram relacionados como comuns, são comuns e acabou-se.
Mas seguramente que não é assim. Mesmo sem aprofundar a questão salto-nos logo à vista que o caso julgado, por definição, tem a ver com uma decisão e esta pressupõe um litígio. Se não houve um litígio entre as partes com a titularidade da casa, não faz sentido falar-se de caso julgado sobre essa mesma titularidade.
De resto a relação especificada de bens comuns, com a indicação dos respectivos valores, não é senão um documento com que deve ser instruído o requerimento para o divórcio por mútuo consentimento, nos termos do artigo 1419.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Civil. Trata-se de uma condição de prosseguimento da acção e nada tem a ver com o objecto da acção. Não se forma caso julgado sobre o direito de propriedade dos bens relacionados, na medida em que nem sequer por aí passa o pedido.
A excepção do caso julgado (é isso que o agravante faz) pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário (artigo 497.º, n.º 1 do Código de Processo Civil), que tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir a decisão anterior (n.º 2 do mesmo artigo).
E a causa repete-se quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir; há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de visa da sua qualidade jurídica; há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico; e há identidade e causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico (cfr. artigo 498.º, 1, 2, 3 e 4 do Código de Processo Civil).
Como escreveram Antunes Varela, J.M. Bezerra e S. Nora ( Manual de Processo Civil, 2.ª edição, págs. 710 e seguintes)”para haver caso julgado é necessário que haja repetição da causa. E a repetição da causa pressupões, além da identidade dos sujeitos, e identidade do pedido e também da causa de pedir.”
“O caso julgado forma-se directamente sobre o pedido, que a lei define como o efeito jurídico pretendido pelo autor (ou pelo réu através da reconvenção). A ordem pela qual, compreensivelmente, a lei enumera as três identidades caracterizadoras do caso julgado (a identidade do pedido antes da identidade da causa de pedir) mostra que é sobre a pretensão do autor, à luz do facto invocado como seu fundamento, que se forma caso julgado. É a reposta dada na sentença à pretensão do autor, delimitada em função da causa de pedir, que a lei pretende seja respeitada através da força e autoridade do caso julgado”.
No nosso caso nada disto se passa. Para além da identidade de sujeitos, nem existe identidade de pedidos entre a acção de divórcio e a de inventário, nem identidade de causa de pedir. Na primeira o pedido é a dissolução do casamento e a causa de pedir o mútuo consentimento, enquanto na segunda se pede a partilha de bens comuns, que tem na dissolução do casamento a respectiva causa de pedir. Logo não há claramente caso julgado entre a acção de divórcio e o inventário para partilha dos bens comuns.

5. Já num passado recente se decidiu nesta Relação, a propósito de um caso semelhante ( Acórdão de 16-10-2001, www.dgsi.pt , JTRC1404) que “a sentença que decretou o divórcio não constituiu caso julgado, relativamente á questão dos bens comuns do casal, ou à declarada falta deles, pois nada decidiu quanto a estes, não tendo fundamento legal concluir-se tal, a propósito da homologação dos acordos, nomeadamente, do que se refere à declaração especificada sobre a existência ou inexistência de bens comuns do casal”.
E noutro aresto também desta Relação ( Acórdão de 12-12-2000, www.dgsi.pt, JTRC1235) decidiu-se que “a incorporação da coisa acrescida no terreno alheio em que a acessão se traduz é um facto jurídico cuja demonstração material - fáctica - se reveste as mais das vezes de indiscutível dificuldade, implicando a produção de provas sem cabimento num simples processo de inventário para separação de meações. Assim, se essa questão for suscitada por um dos cônjuges, o juiz deverá, em princípio, abster-se de decidi-la, mesmo provisoriamente, e remeter as partes para os meios comuns.”
Ora, sendo o objecto do agravo obstar à decisão que remete os interessados para a acção comum a fim de aí se decidir o litígio que os opõe quanto à titularidade (comum ou só do ex-cônjuge marido) do imóvel relacionado, teremos de convir, por um lado, que o caso julgado não é o caminho certo e, por outro, que a natureza e complexidade da questão aconselham o recurso aos meios comuns.
Concluindo, então: i) a junção da relação de bens em acção de divórcio por mútuo consentimento, exigida pelo n.º 1, a) do artigo 1419.º do Código de Processo Civil, constitui mera condição de prosseguimento da causa; ii) o caso julgado da sentença que decreta o divórcio, em acção de divórcio por mútuo consentimento, não cobre a titularidade dos bens aí relacionados, pelo que não obsta a que no futuro inventário para separação de meações se possa questionar se algum, ou alguns, desses bens são comuns ou propriedade de um só dos cônjuges.
Por conseguinte devem improceder as conclusões, por não resultarem violadas com a decisão recorrida as disposições legais citadas ou outras.

6. Decisão
Por todo o exposto acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao agravo, para confirmarem, como confirmam, a decisão recorrida.
Custas a cargo do agravante.
Coimbra,
[Relator: Coelho de Matos; Adjuntos: Ferreira de Barros e Helder Roque]