Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
856/22.6T8GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: RUI MOURA
Descritores: DETENÇÃO DE CÃES EM PRÉDIOS URBANOS
DIREITO AO SOSSEGO
À TRANQUILIDADE
À SAÚDE E AO SONO
Data do Acordão: 12/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DA GUARDA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGO 70.º, N.ºS 1 E 2, DO CÓDIGO CIVIL, E ARTIGOS 18.º, 25.º, N.º 1, 65.º E 66.º, TODOS DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
Sumário: I – O alojamento de cães em prédios urbanos não pode ameaçar o direito ao sossego, à tranquilidade, à saúde e ao sono dos vizinhos.

II – Provando-se que o cheiro da urina e das fezes dos animais é sentido no prédio vizinho e que aí são ouvidos os ruídos e latidos dos cães e que, em consequência, o proprietário do prédio vizinho passa várias noites acordado ou entre sonos intermitentes e pouco reparadores e sente-se triste, desanimado, deprimido e com falta de descanso, há fundamento para ordenar a retirada dos animais da casa onde vivem, no âmbito da tutela do direito ao sossego e à tranquilidade do proprietário do prédio vizinho.

III – Provando-se que a concretização da medida pode prejudicar a saúde da esposa do requerido, pessoa doente que carece da companhia dos cães para melhorar a autoconfiança e a estabilidade emocional, é de conceder um prazo razoável – nas circunstâncias, de três (3) meses -, improrrogável, a contar do trânsito em julgado da decisão, para a concretização da medida decidida.

Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes na 2ª Secção Judicial do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - RELATÓRIO

1)-

AA, viúvo, aposentado, residente na Rua ..., ... ..., veio em 6 de Junho de 2022 interpor acção especial de tutela da personalidade - arts. 878.º a 880.º do NCPC  - contra BB, residente na Rua ... ... ..., pedindo:

- seja ordenado ao Requerido que proceda à retirada dos animais do imóvel em que reside,

- em consequência, seja fixada sanção pecuniária compulsória no valor de 200,00 € (duzentos euros) por cada dia de atraso no cumprimento da decisão.

Alega, em síntese, - socorrendo-nos com a devida vénia do bem conseguido relatório da sentença recorrida -, que tem 79 anos de idade e reside sozinho, na fracção do rés-do-chão do prédio urbano sito na Rua ... e que também confronta com a Rua ..., em ....

Tal fracção situa-se, em parte, por baixo do terraço cujo acesso se faz através da Rua ... e outra parte por baixo do primeiro andar, propriedade da sua irmã CC.

Em data que o Requerente não pode precisar, mas que terá sido no ano de 2020, o Requerido passou a residir no andar existente imediatamente por cima da habitação do Requerente, sendo que já na segunda metade do ano de 2021 a companheira do Requerido mudou-se também para aquela habitação, juntamente com dois cães de médio porte, de raça “pitbull”, que ali passaram também a residir.

Mais alega que desde que os animais passaram a viver no imóvel que a vida do Requerente se tem vindo a degradar, devido aos ruídos e odores que estes produzem, impedindo-o de dormir durante a noite e o cheiro a urina tornou impossível a vida com dignidade e em boas condições de salubridade.

Juntou documentos e procuração.

*

Procedeu-se à realização de audiência final – artigo 879º, 1 do CPC- , tendo o Requerido apresentado contestação, procuração e feito juntar documentos. Beneficia de protecção jurídica.

*

O Requerido defendeu-se por excepção invocando que não demonstrou o Requerente que o Requerido tenha praticado qualquer acto voluntário ilícito passível de ameaçar ou de ter ofendido qualquer direito de personalidade do Requerente.

Mais se defendeu por impugnação alegando que o Requerido reside na referida fracção, por contrato de arrendamento (acordo verbal) celebrado com a proprietária, tendo informado esta aquando do acordo, de que a sua companheira viria, posteriormente, residir com ele e com elas viriam dois cães de raça “bulldog americano”, sendo que a aceitação, por parte da senhoria, de que os animais habitariam na fracção constituiu condição essencial para que o Requerido tenha optado por ali ficar a residir.

Mais alega ser falsa a afirmação segundo a qual os animais urinam no interior da habitação, e quando tal acontece, na zona do terraço, o Requerido e seu cônjuge limpam o espaço. Por outro lado, confessa que os cães ladram, no entanto, são animais calmos, sendo raras as vezes em que ladram durante a noite, bastando uma simples repreensão dos donos para que imediatamente parem de ladrar.

*

Produziram-se as provas. Gravaram-se os trabalhos da audiência final.

2-

Com a ref. citius 29548897 e em 15 de Julho de 2022 lavrou-se douta sentença.

Nela foi julgada improcedente a excepção invocada pelo Requerido.

Explicou-se: não está em causa nos presentes autos apurar da eventual responsabilidade civil por parte do Requerido, mas tão só apurar se deve ser decretada providência adequada às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida, tal como refere o n.º 2 do citado artigo.

Importa nesse âmbito determinar se o direito do Requerido em residir com os seus cães naquela fracção (direito de propriedade) colide com os direitos de personalidade do Requerente, nomeadamente direito ao descanso ao repouso e à saúde.

 

*

O processo foi saneado.

*

Nela deu-se como provado o seguinte complexo de factos:

1. O Requerente reside sozinho numa casa sita na Rua ... em ..., nomeadamente, na fracção sita no rés-do-chão do prédio urbano sito naquela Rua ... e que também confronta com a Rua ....

2. A fracção correspondente ao rés-do-chão do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...78, encontra-se registada em nome do Requerente.

3. É nesta habitação que o Requerente vive diariamente, e já há largos anos, ali dormindo, descansando, tratando da sua higiene pessoal e fazendo as suas refeições.

4. É ali que o Requerente recebe amigos e familiares.

5. É ali que o Requerente tem o centro da sua vida pessoal e onde passa a grande parte do seu tempo.

6. O terraço localizado a nascente do prédio urbano melhor descrito em 2. é comum às fracções ... e ....

7. A casa do Requerente, e todo o prédio urbano, foi construído, essencialmente, com madeira e caibros, não tendo entre os pisos placa de betão.

8. As divisões entre andares foram construídas em madeira, não tendo a casa placa de betão a separar os andares.

9. Assim, o soalho de madeira que constitui o teto da casa do Requerente é o soalho do chão do primeiro andar.

10. A casa do Requerente situa-se, em parte, por baixo do terraço cujo acesso se faz através da Rua ... e outra parte por baixo do primeiro andar.

11. Em data não concretamente determinada, mas no ano de 2020, o Requerido passou a residir no andar existente imediatamente por cima da habitação do Requerente, ali dormindo, fazendo as suas refeições, recebendo amigos e familiares.

12. O Requerido passou a habitar naquele andar, ali fazendo a sua vida, sem que, inicialmente, tal causasse qualquer incómodo ao Requerente.

13. Em data não concretamente determinada, mas entre finais do ano de 2020 e início do ano de 2021, o (*) cônjuge do Requerido passou a residir junto do seu marido.

14. Com o (*) cônjuge do Requerido chegaram também dois cães de raça “bulddog americano-misto”, que ali passaram também a residir.

15. Naquele imóvel, para além do Requerido e seu (*) cônjuge, residem também quatro animais de companhia, dois cães e dois gatos.

16. Os animais passam a maior parte do seu dia no interior da casa em que vivem.

17. Os animais, em determinadas ocasiões, urinaram na habitação que o Requerido ocupa.

18. Atentas as características construtivas do imóvel, na habitação do Requerente são sentidos fortes cheiros a urina e fezes dos animais que provêm do andar de cima e que se infiltram para a sua casa.

19. Em determinadas ocasiões, a urina dos animais já se infiltrou pelo soalho da habitação onde o Requerido vive vindo a aparecer no teto da casa do Requerente.

20. Em determinadas ocasiões, a urina dos animais chegou a pingar no quarto de dormir do Requerente, pingando em cima de móveis e acumulando-se no chão da divisão.

21. Por vezes, o Requerido solta os cães no terraço de acesso à sua fracção e ali urinam.

22. Em determinadas ocasiões, a urina dos animais fica concentrada nos caleiros do terraço.

23. Os cães ladram em determinadas ocasiões, do dia e da noite, o que acontece quase diariamente.

24. Também devido ao ladrar dos animais durante a noite, o Requerente passa várias noites acordado ou entre sonos intermitentes e pouco reparadores.

25. O Requerente sente-se triste, desanimado, deprimido e nervoso, sentindo-se ansioso e com falta de descanso.

26. O Requerido e seu (*) cônjuge reprimem o comportamento dos animais sempre que estes ladram.

27. O Requerido e seu (*) cônjuge nutrem grande afecto pelos seus animais.

28. Os cães do Requerido obedecem aos seus donos.

*

Nela deram-se como não provados os seguintes factos:

1. O Requerente nasceu a .../.../1943 na freguesia ..., concelho ..., localidade de que é natural.

2. Com a companheira do Requerido chegaram também dois cães de médio porte, de raça “pitbull”, que ali passaram também a residir.

3. Que a urina dos animais fica concentrada nos caleiros do terraço ali permanecendo sem que o Requerido tenha qualquer tipo de cuidado em limpar.

4. Que ao Requerido esteja vedada a utilização do terraço.

5. São frequentes as correrias nocturnas descontroladas dos animais pelo andar de cima da casa do Autor e o arranhar do chão de madeira a altas horas da madrugada.

6. Que os cães sejam passeados, em regra, uma média de uma hora por dia, em dois passeios diários.

7. Que os cães ladram raras vezes durante a noite.

*

*

Proferiu-se decisão de mérito que, a final, julgou procedente o pedido e, por isso, foi o Requerido condenado a:

- no prazo de 5 dias, proceder à retirada dos animais (cães) do imóvel em que reside;

- pagar a quantia de € 150,00, a título de sanção pecuniária compulsória, por cada dia de atraso no cumprimento desta providência.

As custas ficaram pelo Requerido.

*

Fixou-se o valor da causa em € 30.000,01.

3-

Inconformado recorre o Requerido, recurso admitido como de apelação a subir imediatamente, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

Alega o Apelante, e a final – em síntese - conclui:

A. Impugnação da decisão proferida em matéria de facto

1 - As declarações do Apelado, o testemunho de CC, e do testemunho de DD, gravados nos ficheiros n.º (…), a passagens (…), permitem conjuntamente considerar como provado que entre as habitações do Apelado e do Recorrente existe o soalho e madeira da casa em que o Recorrente habita, um forro de madeira que constitui o teto da sua casa e entre o soalho e o forro, encontra-se caibros de madeira, pelo que, a Sra. Juiz “a quo” ao considerar provado no ponto 9 dos facto provados, que “o soalho de madeira que constitui o teto da casa do Requerente é o soalho do chão do primeiro andar”, cometeu um erro na apreciação da prova, que carece de correcção, mediante revogação da respectiva decisão proferida sobre a matéria de facto, a qual deve ser substituída por outra que considere provados os factos ali em causa.

2 - As declarações do Apelado, as declarações do Recorrente, o testemunho de CC, testemunho de DD, o testemunho de EE, o testemunho de FF, o testemunho de GG, e o testemunho de HH, gravados nos ficheiros n.ºs (…), a passagens (…), permitem conjuntamente considerar como não provados os pontos 17 a 20 dos factos provados, encontrando-se a decisão da Sra. Juiz “a quo” de os considerar provados assente em presunções judiciais que não podem persistir, atenta a respectiva inadmissibilidade, pelo que ao considera-los provados cometeu um erro na apreciação da prova, que carece de correcção, mediante revogação da respectiva decisão proferida sobre a matéria de facto, a qual deve ser substituída por outra que considere como não provados os factos ali em causa.

3 - As declarações do Apelado, as declarações do Recorrente, o testemunho de CC, o testemunho de DD

Aldeia, o testemunho de EE, o testemunho de FF, o testemunho de GG, e o testemunho de HH, gravados nos ficheiros n.ºs (…), a passagens (…), permitem conjuntamente considerar não provados os pontos 23 e 24 dos factos provados nos termos admitidos pela Sra. Juiz “a quo”, encontrando-se o ponto 23 dos factos provados assente numa presunção judicial inadmissível e, por conseguinte, não podendo persistir, devendo em sua substituição considerar-se como provado que os cães ladram durante a noite, ocasionalmente, decorrente de fortes barulhos ocorridos no exterior da casa em que o Recorrente habita, e o ponto 24 dos factos provados incorrectamente considerado como provado, atento que a respectiva fundamentação se encontra em clara contradição com os factos constantes neste ponto 24, devendo por conseguinte considerar-se em sua substituição, que, apesar dos latidos ocasionais dos cães à noite importunarem o Apelado, não são causa única das perturbações do respectivo sono, concorrendo antes com essas em igualdade de circunstâncias quanto às causas que perturbam o sono do Apelado, sendo, pois, irrelevantes na perturbação do sono do Apelado, atento a que os latidos ocorrem em consequência e como reacção a fortes barulhos que, de qualquer maneira, perturbariam o sono do Apelado.

B. Impugnação da decisão proferida quanto à matéria de Direito

i. Da excepção peremptória inominada de direito material

4 - O Recorrente requereu na sua contestação que fosse o pedido do Apelado considerado improcedente, atento a que o mesmo no seu requerimento inicial não apontou qualquer acto voluntário ilícito cometido pelo Recorrente, pressuposto da acção especial de tutela da personalidade, tendo a Sra. Juiz “a quo”, considerado improcedente semelhante requerimento do Recorrente, justificando que na acção não se tratava de averiguar a eventual responsabilidade civil extracontratual do Recorrente, decisão essa errada, atento o disposto no artigo 878.º do Cód. Proc. Civil, bem como no disposto no n.º 1 do artigo 70.º do Cód. Civil, onde se menciona como pressuposto que a ofensa ou ameaça a direito de personalidade seja ilícita, pelo que deveria ter sido o pedido do Apelado declarado improcedente atenta a falta de preenchimento dos pressupostos necessários à apresentação da acção especial de tutela da personalidade.

C. Da decisão final

i. Da medida restritiva do direito do recorrente

5 - A Sra. Juiz “a quo” determinou o deferimento do requerido pelo Apelado, determinando que o Recorrente retire os dois cães que detém da casa em que habita, considerando não ser uma medida intolerável, contudo, a mesma não tem em atenção a relevância que os cães têm para a cônjuge do Recorrente, pelo que a prevalecer e entendimento de manutenção da medida, a mesma peca por ser desproporcional, visto que existem outras medidas possíveis de serem adoptadas, que determinariam a cessação da ofensas que, por via de presunções legais inadmissíveis, se entendeu existirem, nomeadamente a intervenção em termos físicos sobre o edifício, capazes de impedir que ocorram mais alegadas infiltrações ou propagação de som entre pisos.

ii. Da sanção pecuniária compulsória

6 - A Sra. Juiz “a quo” mais determinou que o Recorrente, por cada dia de atraso na adopção da medida determinada, deverá ter de pagar € 150,00, montante esse claramente excessivo, atento que o Recorrente aufere cerca de € 800,00 por mês, que, se dividido por 30 dias, resulta um montante igual a € 26,67 por dia, representando os referidos € 150,00, um montante 5 vezes e meio superior ao por aquele auferido, pelo que, pela aplicação analógica do n.º 2 do artigo 812.º do Cód. Civil, deve a sanção pecuniária compulsória ser reduzida para € 50,00 por cada dia de atraso no cumprimento da/s medida/s que se entenderem determinar, que, mesmo assim, representa quase o dobro de rendimento auferido pelo Recorrente.

Nestes termos – termina -, deve considerar-se verificada a excepção peremptória inominada de direito material em razão de não ter o Apelado apontado qualquer acto voluntário ilícito cometido pelo Recorrente do qual ocorra a ofensa aos direitos de personalidade dos quais se pretende tutela;

em alternativa, deve alterar-se a decisão sobre a matéria de facto e o pedido improceder;

ainda em alternativa, rever-se a medida restritiva do direito do Recorrente, para outra que efectivamente restabeleça o equilíbrio dos direitos em alegada colisão, bem como a revisão da sanção pecuniária compulsória para um valor proporcional e compatível com o montante auferido pelo Recorrente,

assim se fazendo a devida JUSTIÇA.

Contra-motiva o Apelado, rematando:

A. Analisadas as conclusões de recurso apresentadas pelo Recorrente, constata-se que das mesmas não constam as indicações constantes do artigo 637.º n.º 2 e do n.º 2 do artigo 639.º do C.P.C. pelo que deve ser rejeitado o recurso apresentado pelo Recorrente, por violação das mencionadas disposições legais.

B. A douta sentença a quo julgou e interpretou correctamente a douta sentença recorrido, não existindo motivos para que a mesma seja alterada, devendo manter-se a condenação proferida nos presentes autos.

C. O facto provado 9. foi bem julgado porquanto a existência de um forro entre os caibros e soalho da casa de cima não afasta a conclusão que tal o soalho da casa de cima é o tecto da casa de baixo;

D. Os factos provados 17 a 20 devem ser mantidos, resultando os mesmos, em especial das declarações de parte do Recorrido e dos depoimentos das testemunhas DD, CC e EE, prestados no dia 07.07.2022 e gravados aos minutos (…).

E. De todos os depoimentos, bem como da restante matéria dada como provada, em especial o facto provado n.º 16 e o não provado 6 é possível concluir conforme se conclui de factos provados 17 a 20, devendo manter-se a douta sentença recorrida.

F. Os factos provados 23 a 24 devem ser mantidos, resultando os mesmos, em especial das declarações de parte do Recorrido, e dos depoimentos das testemunhas DD, CC e EE, prestados no dia 07.07.2022 e gravados aos minutos (…).

G. Deverá manter-se, na íntegra, a matéria de facto provada apurada em sede de sentença.

H. Não se verifica qualquer excepção peremptória pelo que deve ser julgada improcedente a sua invocação;

I. Não se verifica qualquer desproporcionalidade na decisão proferida, tanto mais que não é objecto dos autos o apuramento de quaisquer medidas que pudessem limitar a violação dos direitos e personalidade do Recorrido, pelo que não tinha o Douto tribunal a quo qualquer obrigação de se pronunciar quanto a tal;

J. A sanção pecuniária compulsória é adequada e deverá ser mantida.

Pugna pela manutenção do julgado.

*

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

*

II- ENQUADRAMENTO JURÍDICO

Pelas conclusões das alegações do recurso se afere e delimita o objecto e o âmbito do mesmo.

III – OBJECTO DO RECURSO

As questões que se colocam ao julgador através da presente apelação são:

I – saber quais os factos a ter em conta;

II- decidir da verificação ou não da excepção peremptória invocada;

III- decidir do mérito da causa.

IV- mérito do recurso

1ª questão

*

Previamente

- da junção do documento de fls. 147-148

O Apelante junta com as suas alegações de recurso o documento de fls. 147-148.

O Apelado opõe-se.

Trata-se de um documento técnico relativo à explicação da interacção da propagação do som quando interage com os materiais, sobretudo se paredes lisas ou paredes rugosas.

É um documento que explana comparativamente os resultados da transmissão, difusão, refracção e dispersão do som, quando este esbarra com paredes de vidro, alvenaria, madeira dura, madeira aglomerada, lã de vidro, espuma, borracha porosa, cortiça, ar, etc.

Trata-se de um parecer técnico que pode ser junto na 1ª instância em qualquer estado do processo – cfr. artigo 426º do CPC.

A junção é de manter.

*

Previamente:

O Apelado sustenta que o Apelante não cumpre o ónus do artigo 639º, 2 do CPC, uma vez que, versando o recurso sobre matéria de direito, não se indicam essas especificações.

Porém sem razão.

Com atinência à excepção peremptória, o Apelante indica o disposto nos artigos 70º, 1 do CC e 878º do CPC, de que, se não preenche o pressuposto da ilicitude da actuação.

Com atinência à medida aplicada de retirada dos cães o Apelante sustenta ser a mesma violadora do princípio da proporcionalidade, visto que existem outras medidas susceptíveis de serem tomadas: intervenções no próprio edifício capazes de impedir que ocorram mais alegadas infiltrações ou propagação de som entre pisos.

Acusa a medida de imponderada por alegadamente não ter considerado a relevância dos aludidos animais para a estabilidade emocional da sua esposa.

Com atinência à sanção pecuniária compulsória aplicada defende para o seu quantitativo a aplicação analógica do disposto no artigo 812º do CC, uma vez que pugna pela sua diminuição.

Improcede a pretensão do Apelado em ver com estes fundamentos rejeitado o recurso do ora Requerido.

*

Volvemos um olhar à prova oral produzida

Foi ouvido em declarações de parte o Requerente, AA.

Em resumo disse:

Vive na casa dos autos há 4 anos, por via de não poder subir escadas. A casa fica ao nível da estrada.

Descreve as divisões da fracção onde vive.

Indica o terraço, com entrada por outra rua. O terraço é comum às 3 fracções do prédio urbano.

Uma sua irmã vive no r/c, o prédio tem dois andares, que são propriedade dos irmãos.

A casa foi construída há 60 e poucos anos. Tem paredes de tijolo. Tem vigas de cimento onde estão apoiadas as paredes. O chão é em madeira, desde o ... piso ao sótão.

O Sr. II (Requerido) foi viver para o prédio há certa de dois anos. Depois veio a companheira.

Enquanto o Sr. II viveu sozinho não houve problemas.

O Sr. II entra para a fracção onde habita – designada pela letra ... – pelo terraço. A irmã do depoente entra pelo terraço. Só o depoente, embora usufrua do terraço, entra pela rua.

Tem 2 cães e dois gatos.

Hoje à noite ladraram durante uns segundos. Os donos mandam-nos calar e eles calam-se. O depoente acorda e custa a retomar o sono. Ouvem-se barulhos de coisas a arrastar.

Os cheiros e os barulhos.

Uma vez caiu um líquido no quarto, vindo de cima. Por causa do cheiro, era urina dos animais.

Foi em cima da cómoda do seu quarto de dormir.

Pôs uma caleira nova no terraço, daqui a pouco, por causa da acidez do xixi, tem a caleira toda podre.

Os animais já lá estão há um ano.

Os animais vieram dos EUA.

Durante o dia vê os animais, no terraço. Os cães não saem dali.

O Requerido e esposa naquele cantinho de terraço já lá plantaram vasos de flores. Só resta lugar para a passagem. Os cães estão no terraço a espaços de 15 minutos e voltam para casa.

A maior parte do tempo os animais estão fechados, porque os donos trabalham.

Incomodam o barulho durante a noite. Tanto é às duas ou três da manhã. Todas as noites. Uma, duas ou três vezes por noite. Durante o dia não incomodam. Por vezes reagem a qualquer cão que passa.

Não disse nada ao Sr. II sobre os cães.

O depoente tem uma empregada de limpeza.

Rara a noite em que pode dormir a noite toda.

Os quartos da casa do Requerente ficam debaixo da casa onde vive o Requerido.

Arrastar de móveis (ou coisa parecida) às 23h, meia-noite.

O Requerido e esposa lavam o terraço para limpar as sujidades dos cães.

O Requerido ou a esposa fumam. Algumas beatas vão para a caleira. Se verificar isso in loco tira uma fotografia e “manda para a Câmara” – tempo – final do depoimento.

*

*

Foi ouvido em declarações de parte o Requerido.

JJ, técnico de construção civil por conta de outrem, faz igualmente trabalhos por conta própria.   

Em resumo disse:

Celebrou contrato de arrendamento verbal com a Dona DD, a filha, uma vez que ambas têm nomes semelhantes.

Tem dois cães bulldogue-americano não puros (mistos) e dois gatos.

Para o arrendamento daquela fracção foi essencial o facto de haver terraço, de ter espaço para exercício dos cães.

A esposa veio dos ... em Nov. de 2021 (mais à frente, confrontado com os documentos emenda para 2020), os cães vieram duas semanas antes. Sofre de lúpus, não pode trabalhar. Vai começar a ter apoio da Segurança Social

A esposa passeia os cães fora do terraço pelo menos uma vez por dia. Ou a esposa ou uma pessoa amiga passeiam os cães na rua.

Os cães são altamente sociáveis. Os cães não estão sem pessoas perto por mais de 10, 15 minutos. Voltam para junto das pessoas.

Foi um drama quando o depoente colocou flores e plantas no terraço.

Com os demais utilizadores do terraço não houve qualquer problema com a colocação das floreiras.

Com o Requerente é que ouve algum confronto. O depoente colocou no terraço um toldo para permitir que a esposa apanhasse sol, algo muito importante para que se sinta melhor da doença.

Mas o Requerente foi pedir satisfações à esposa do depoente, por via do toldo. A esposa não fala língua portuguesa. A esposa ficou muito atrapalhada.

O depoente avisou o Requerente de que não permitia esse tipo de intervenção.

Tem carpetes em casa.

Tem uma máquina a limpar permanentemente o ar.

Os cães são impecáveis não sujam, não estragam. O dia em que o depoente veio a tribunal foi o primeiro dia em que os cães ficaram sozinhos sem pessoas.

95% da casa do Requerente tem placa em betão. Esta placa de betão é a do terraço do imóvel. O resto da casa do Requerente fica por baixo da sala da fracção onde o depoente vive.

Não há cheiros dos bichos.

O local ( terraço onde os cães por vezes estão ) está altamente exposto. Quem vai para a Pensão Estrela, ou à Missa passa por ali e vê. Se os cães estivessem maltratados ou houvesse qualquer problema de ruído, já havia queixas na CM de .... O habitual é a ... ir aos locais com um veterinário e o Sr. Delegado de Saúde e averiguar o que se passa quando há queixas sobre bichos, ruídos, insalubridade.

A única zona onde vê que a água pode entrar para a casa do Requerente tem uma área de 2 m2, e é onde há isolamento de silicone. O resto é placa.

Lavam todo o terraço com lixívia.

A cadela não ladra. Pode estar dois meses sem ladrar.

O macho é o que ladra mais, mas não tem medo. Não precisa de correr atrás de outros animais. Tem confiança, é contido

São cães silenciosos. Concorda que se passa uma carrinha ou um avião, o cão ladra.

De noite dormem. Só ladram com um ruído grande lá fora. A rua tem movimento igualmente de noite.

Fala dos cães

São os cães mais silenciosos de ...- diz.

Estes cães ficaram a um preço elevadíssimo, mas são cães que não correm mais do que 10 minutos. São cães de sofá.

Se ladram à noite, é de vez em quando, uma vez por semana. 

Esta noite não ladraram. O depoente não dormiu esta noite, nervoso com a vinda a tribunal.

Teve conhecimento do desconforto do Requerente com o barulho dos cães e os odores, com o presente processo.

Entrou em conflito com o senhorio em Dezembro de 2021/Janeiro de 2022.

A senhoria não quer o depoente no andar.

A questão é que o depoente paga quantias excessivas de electricidade.

O diferendo com a senhoria não tem a ver com os animais.

O Requerente não teve qualquer influência ou relevo nas negociações sobre o arrendamento da fracção onde vive.

*

Diz que foi diagnosticado Lúpus à esposa. Esclarece que sofre de artrose e de asma, que é medicada regularmente com antidepressivos e ansiolíticos.

Fala das divisões e das dimensões da casa onde vive. 60m2. A casa tem 3 quartos.

 

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Foram ouvidas ainda outras testemunhas: CC, dona da casa habitada pelo Requerido e esposa e irmão da ora Requerente; DD, filha da anterior; EE, FF; HH.

Este último disse em resumo: ser solteiro, fiel de armazém. Conhece o Requerido. É seu colega de trabalho. Deslocou-se à casa do Requerido por duas vezes em dias distintos. Nega a existência de urina e de fezes dos animais na casa do Requerido. Nega a existência de cheios a cães e urina destes na casa do Requerido.

Foi ouvida também como testemunha a esposa do Requerido, de nome GG.

Em resumo disse:

É profissional de desenho gráfico e marketing.

Nega a existência de urina e de fezes dos animais na casa do Requerido. Nega a existência de cheios a cães e urina destes na casa do Requerido. Nega que façam barulho, designadamente de noite. São cães silenciosos.

Fala de um vídeo junto aos autos em que os cães presenciam a passagem de uma banda de música.

Diz que se calam ao sinal dos donos. Estão treinados, obedientes.

Os cães representam muito para a testemunha. Fizeram-lhe companhia nos EUA. Aqui fizeram-lhe companhia durante o covid-19. São essenciais para o seu equilíbrio emocional.

Este processo judicial trouxe-lhe ansiedade. Foi ao hospital perdeu cabelo.(tempo 10-11 minutos)

Sofre de lúpus, uma doença inflamatória e autoimune. A ansiedade é, na testemunha, um factor agravante da doença.

Passeia os cães. Quando não se sente bem pede a uma amiga que os vá passear.

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Há igualmente prova documental, nomeadamente fotográfica.

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Apreciando:

O núcleo fundamental da factualidade apurada é-nos trazido pelas declarações de parte do Requerente e do Requerido e bem assim pelo depoimento da testemunha GG, esposa do Requerido.

Os depoimentos das restantes pessoas ouvidas são contraditórios alinhando ora no sentido da factualidade alegada pelo Requerente, ora no sentido da defesa da factualidade invocada elo Requerido. Não se revelam abertamente convincentes.

O Requerente reitera ser afectado no sono e na saúde pelo ruído, pelo ladrar, pelo cheiro a fezes e urina dos cães do Requerido.

É algo estranho o comportamento do Requerente quando espera participar do Requerido e esposa pelo comportamento destes enquanto fumam cigarros no terraço do prédio.

Algo estranho uma vez que, sentindo-se afectado pela existência dos animais no piso superior à fracção onde vive, não foi em primeiro lugar abordar o assunto com o Requerido, nem foi ao hospital consultar um clínico sobre o que poderia estar menos bem, sobre o possível tratamento, sobre as causas (eventualmente diversas) da sua dificuldade em conciliar o sono, tendo antes ido procurar um Senhor Advogado, tendo deste comportamento brotado esta acção especial.

O Requerente parece ter muita dificuldade em compreender que o Requerido e esposa ocupam o andar superior ao seu alojamento, com base num alegado contrato de arrendamento, cuja génese, existência, clausulado e vicissitudes, aqui não estão em causa. Exercerão estes, portanto uma posse em nome de outrem. Nada há que nos digam serem esbulhadores. 

Certo é que o Requerente verbaliza dificuldades no sossego e sono imputando-as à existência dos canídeos do Requerido.

Não arrepia aceitar essas queixas ou pelo ruído, ou pelo ladrar mesmo que espaçado, dos aludidos animais. Trata-se de uma questão de sensibilidade, de humor, do Requerente.

Já da parte do Requerido avulta perante a prova produzida que o Requerido e esposa tratam esmeradamente os animais que têm consigo a viver – agora em foco os cães.

Trata-se evidentemente de animais sociáveis, meigos e carinhosos, a ver face aos resultados dos estudos comportamentais da raça.

A casa onde vivem insere-se no casco de ..., a escassos metros da igreja, onde igualmente toca o sino da torre.

Como se viu, é servida por ruas por onde circulam pessoas e veículos automóveis, de dia ou de noite, regularmente.

O Requerido depõe de forma muito serena, elevada, revelando constantes firmeza e doçura de carácter.

É consensual face à prova produzida ser a casa do Requerido revestida com um tecto em madeira, que impede que se vejam os caibros e o soalho da fracção onde vive o Requerido. Há, assim que rectificar a redacção do ponto 9 dos factos provados em conformidade.

De 17 a 20 deu-se como provado que:

17. Os animais, em determinadas ocasiões, urinaram na habitação que o Requerido ocupa.

18. Atentas as características construtivas do imóvel, na habitação do Requerente são sentidos fortes cheiros a urina e fezes dos animais que provêm do andar de cima e que se infiltram para a sua casa.

19. Em determinadas ocasiões, a urina dos animais já se infiltrou pelo soalho da habitação onde o Requerido vive vindo a aparecer no teto da casa do Requerente.

20. Em determinadas ocasiões, a urina dos animais chegou a pingar no quarto de dormir do Requerente, pingando em cima de móveis e acumulando-se no chão da divisão.

Fundamentou-se assim a resposta positiva desta factualidade:

Pelo Requerente foi referido que em determinadas ocasiões, que não foi capaz de concretizar, a urina dos animais chegou a pingar no seu quarto, pingando em cima de móveis e acumulando-se no chão da referida divisão. Tal cenário foi corroborado pelas CC, DD e EE, tendo sido as duas últimas testemunhas quem procedeu à limpeza do quarto do Requerente, tendo as mesmas peremptoriamente afirmado trata-se de urina dos animais, o que era evidenciado quer pelo cheiro, quer pelo facto desta surgir na zona do tecto vindo a acumular-se no chão, afectando alguns móveis do quarto do Requerente.

Ora, não obstante não ter sido realizada qualquer análise ao líquido encontrado no quarto do Requerente que comprove tratar-se de urina de cão, a verdade é que decorre das regras de experiência comum que, em função da cor visível nos elementos fotográficos juntos aos autos, do cheiro descrito pelas testemunhas que procederam à limpeza, provindo o referido líquido da zona do tecto, é razoável assumir que se tratará de urina cuja origem provém do andar superior, ou seja, o andar habitado pelo Requerido e pelos seus animais e não de água como alega o Requerido, uma vez que tanto a diferente consistência como o cheiro são, com relativa facilidade, distinguíveis a olho nu.

Importa ainda realçar que pela testemunha FF, directamente confrontado, referiu não sentir qualquer cheiro a urina na casa do Requerente, que este frequenta semanalmente, contudo a mesma testemunha esclareceu que o seu olfacto se mostra bastante afectado, fruto de anos enquanto fumador. Mais referiu a testemunha ter visualizado gotas a pingar do tecto do quarto do Requerente, não sabendo qual a sua origem.

A presunção acontece quando de um facto conhecido se retira um desconhecido.

Apurou-se que a maior parte da área da casa do Requerente é coberta por uma placa, a qual acabará precisamente a meio do quarto de dormir do Requerente.

Essa placa é a do terraço do imóvel.

O terraço é comum às três fracções do imóvel.

No terraço há plantas ornamentais e outras em vaso. Circulam os cães e gatos do Requerido e eventualmente acontecerão por lá factos de que este não pode na totalidade conhecer.

É preciso muita quantidade de urina de cão para atravessar o soalho, o forro, eventualmente a placa, e se acumular nas paredes e até poder pingar sobre a cómoda!

Se isso é assim, certamente por muito mais vezes terá de haver infiltrações e escorrências de outros líquidos como água das chuvas, lixívias da lavagem do terraço, água da rega dos vasos, e outros. 

Sem análises ao líquido que apareceu na casa do Requerente, cheiro, composição, cor; sem estar provado que as escorrências têm mesmo origem no fogo imediatamente superior ao do Requerente, com exclusão de qualquer outro e sem estar provado que os únicos líquidos que ali são vertidos são a urina dos cães do Requerido, não é seguro presumir como se presumiu.

Não é razoável falar-se de um ou dois episódios de escorrência de urina, quando os cães urinam algumas vezes ao dia e quando, certamente, o terraço e habitação do Requerido são lavados diariamente com água, detergentes e até lixívia, todos os dias. Teria de haver notícia de outras escorrências de outros líquidos que não apenas urina.  

A factualidade em causa carece de um acerto, uma vez que não se presume como no 1º grau vem presumido.

Nos pontos 23 e 24 dos factos deu-se como provado que:

23. Os cães ladram em determinadas ocasiões, do dia e da noite, o que acontece quase diariamente.

24. Também devido ao ladrar dos animais durante a noite, o Requerente passa várias noites acordado ou entre sonos intermitentes e pouco reparadores.

O Apelante insurge-se contra o considerar-se provada esta factualidade. Mas sem razão.

Os cães ladram de dia e de noite. Poucas vezes, mas ladram. Ao passar um veículo automóvel mais barulhento, ao passar um avião no silencia da noite, quando o bulício do dia não se faz sentir. O próprio Requerido o admite, com naturalidade.

O Requerido verbaliza dificuldades no sono e desassossego com o ruído e ladrar dos cães.

Estes factos são de manter.

Com espontaneidade e fundamento as declarações do Requerido e o depoimento da sua esposa coincidiram, límpidas e sem contra-argumentação no sentido de que a esposa do Requerido sofre de lúpus, uma doença inflamatória e autoimune, sendo por isso medicada regularmente. A companhia dos animais de que se faz rodear em casa – 2 cães e dois gatos – é um pilar de relevo para a estabilidade emocional de que carece.      

Cabe aditar esta factologia aos factos provados uma vez que ampla e abertamente perguntada, debatida e esclarecida em audiência, ao abrigo do princípio da aquisição processual, por se revelar com interesse para a decisão da causa.

Considerando o que vai dito, atenta a globalidade da prova oral e documental produzida, elencamos assim os factos provados:

 

1. O Requerente reside sozinho numa casa sita na Rua ... em ..., nomeadamente, na fracção sita no rés-do-chão do prédio urbano sito naquela Rua ... e que também confronta com a Rua ....

2. A fracção correspondente ao rés-do-chão do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...78, encontra-se registada em nome do Requerente.

3. É nesta habitação que o Requerente vive diariamente, e já há largos anos, ali dormindo, descansando, tratando da sua higiene pessoal e fazendo as suas refeições.

4. É ali que o Requerente recebe amigos e familiares.

5. É ali que o Requerente tem o centro da sua vida pessoal e onde passa a grande parte do seu tempo.

6. O terraço localizado a nascente do prédio urbano melhor descrito em 2. é comum às fracções ... e ....

7. A casa do Requerente, e todo o prédio urbano, foi construído, essencialmente, com madeira e caibros, não tendo entre os pisos placa de betão.

8. As divisões entre andares foram construídas em madeira, não tendo a casa placa de betão a separar os andares.

9. A casa do Requerente possui ainda um teto constituído por revestimento em madeira. (alterado)

10. A casa do Requerente situa-se, em parte, por baixo do terraço cujo acesso se faz através da Rua ... e outra parte por baixo do primeiro andar.

11. Em data não concretamente determinada, mas no ano de 2020, o Requerido passou a residir no andar existente imediatamente por cima da habitação do Requerente, ali dormindo, fazendo as suas refeições, recebendo amigos e familiares.

12. O Requerido passou a habitar naquele andar, ali fazendo a sua vida, sem que, inicialmente, tal causasse qualquer incómodo ao Requerente.

13. Em data não concretamente determinada, mas entre finais do ano de 2020 e início do ano de 2021, o (*) cônjuge do Requerido passou a residir junto do seu marido.

14. Com o (*) cônjuge do Requerido chegaram também dois cães de raça “bulddog americano-misto”, que ali passaram também a residir.

15. Naquele imóvel, para além do Requerido e de seu (*) cônjuge, residem também quatro animais de companhia, dois cães e dois gatos.

16. Os animais passam a maior parte do seu dia no interior da casa em que vivem.

17. Os animais, em determinadas ocasiões, urinaram na habitação que o Requerido ocupa.

18. Atentas as características construtivas do imóvel, na habitação do Requerente são sentidos fortes cheiros a urina e fezes dos animais que provêm do andar de cima e que se infiltram para a sua casa.

19. (alterado)

20. (alterado)

21. Por vezes, o Requerido solta os cães no terraço de acesso à sua fracção e ali urinam.

22. Em determinadas ocasiões, a urina dos animais fica concentrada nos caleiros do terraço.

23. Os cães ladram em determinadas ocasiões, do dia e da noite, o que acontece quase diariamente.

24. Também devido ao ladrar dos animais durante a noite, o Requerente passa várias noites acordado ou entre sonos intermitentes e pouco reparadores.

25. O Requerente sente-se triste, desanimado, deprimido e nervoso, sentindo-se ansioso e com falta de descanso.

26. O Requerido e seu (*) cônjuge reprimem o comportamento dos animais sempre que estes ladram.

27. O Requerido e seu (*) cônjuge nutrem grande afecto pelos seus animais.

28. Os cães do Requerido obedecem aos seus donos.

29. A esposa do Requerido padece de doença inflamatória e autoimune, sendo por isso medicada regularmente. (aditado)

30. A companhia dos animais de que se faz rodear em casa – 2 cães e dois gatos – é um pilar de relevo para a estabilidade emocional de que carece. (aditado)     

*

Como factos não provados são dados os que já vinham do 1º grau, a que se aditam os factos dos pontos 9, 19 e 20, na redacção inicial, agora alterados.

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Procede, portanto, em parte a pretensão do Apelante em ver alterada a matéria de facto a considerar.

2ª questão

O Requerido invoca uma excepção peremptória inominada alegando em suma que não leva à condenação do Requerido a simples alegação dos comportamentos naturais praticados por animais de companhia, no caso cães-, como sejam ladrar, correr, fazer necessidades fisiológicas; essa factualidade não pode ser considerada per si um acto ilícito imputável ao Requerido, tanto mais que, nos termos do DL nº 314/2003, de 17 de Dezembro, na sua mais recente redacção, o Requerido pode deter na fracção autónoma onde reside no máximo quatro animais, entre cães e gatos.

Vejamos.

O Requerente vive certa factualidade da vida real, e situa-se nela como lesado. Situa nela o Requerido como lesante.

O Requerente pretende que na situação concreta da vida real se tutelem civilmente os direitos de personalidade de que é titular como pessoa humana.

Na verdade, no campo da tutela civil são vários os instrumentos de que se pode lançar mão. Com efeito, o n.º 1 do art. 70.º do CC prevê que a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral. Estabelecendo o n.º 2 do mesmo art. 70.º que independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida. Assim sendo, e à partida, podemos desde logo extrair deste normativo três formas de tutela dos direitos de personalidade, sendo elas a responsabilidade civil, o decretamento de providências preventivas e o decretamento de providências atenuantes.

A responsabilidade civil extracontratual (ressarcitória) efectiva-se nos termos do disposto nos arts. 483.º e 484.º do CC, enquanto que o decretamento das providências, quer preventivas quer atenuantes, concretiza-se através do processo especial de tutela da personalidade previsto nos arts. 878.º a 880.º do CPC.

Em termos de direito adjectivo, não está também afastado o recurso ao procedimento cautelar não especificado nem o recurso à acção declarativa de condenação.

O Requerente optou pelo processo especial de tutela da personalidade previsto nos arts. 878.º a 880.º do CPC.

O Requerente traz essa factualidade aos autos.

Em causa o direito à saúde, ao repouso, com tutela constitucional.

O Requerente queixa-se da urina dos cães, do cheiro a urina, das escorrências da urina que vindos do piso imediatamente superior ao da fracção onde habita, se fazem sentir nas paredes, tecto e móveis do seu quarto. Queixa-se dos latidos, correrias e barulho dos animais, que, alega, têm vindo a destruir a qualidade de vida do Requerente.

Em causa portanto o comportamento permissivo do Requerido às emissões de odores, secreções e ruído dos seus animais – cães – com quem coabita e que alegadamente prejudicam substancialmente o uso do fogo destinado à habitação do Requerente.

É certo que só a verificação de um facto humano, voluntário e ilícito que ofenda ou ameace os direitos fundamentais do Requerente (direito à saúde e o repouso) é susceptível de fundamentar a condenação do Requerido.

As providências do n.º 2 do art. 70.º do CC não serão de decretar nos casos de responsabilidade pelo risco ou de responsabilidade por factos lícitos, precisamente pela ausência de ilicitude na actuação do agente. Cfr.  Capelo de Sousa, in O Direito Geral de Personalidade, p. 473, e Alexandra Filipa da Silva Duarte, in O Processo Especial de Tutela da Personalidade, Algumas questões Pertinentes, FDUC, 2014, p. 24, acessível na net.   

A questão dos autos consiste em aquilatar, face às circunstâncias particulares do caso, se estamos perante um conflito de relações pessoais de vizinhança a dirimir nos termos do art.º 335º do CC, ou se a ilicitude dos factos ultrapassa este patamar, envolvendo a tutela dos direitos de personalidade.

Como a protecção destes direitos – direito ao descanso, à tranquilidade, ao sono, ao ambiente e à qualidade de vida – é constitucional e intangível – cfr. artigos 25º, 1 e 66º da CRP -, se acontecer estar em causa a ofensa a estes direitos, então não interessa saber se se respeita o nível de ruído permitido, ou se o número de animais de  companhia é o permitido por lei, porque o facto de se respeitar a lei do ruído e do número de animais permitido ter em companhia, não quer dizer seja permitido afectar os direitos ao repouso e à saúde de terceiros.

Neste sentido o Ac. TRG de 29-10-2003 prolatado no p. nº 1620/03 (Relator Manso Raínho), acessionável no site da dgsi. net, onde se judicou: Condição necessária mas também suficiente para que se possa tomar medida judicial cautelar destinada a salvaguardar o direito ao descanso e ao sono ameaçado pelo ruído causado, é que o descanso e o sono estejam a ser prejudicados e não já que o ruído ofenda os limites máximos impostos por lei.

Estão alegados pelo Requerente factos que, a provarem-se, permitem eventualmente o decretamento das providências requeridas.

Improcede, por isso, por não provada, a excepção invocada.

3ª questão

O Requerente deduziu contra o Requerido a presente acção com processo especial previsto nos artigos 878.º a 880.º do CPC.

Voltemos à lição de Alexandra Filipa da Silva Duarte, in O Processo Especial de Tutela da Personalidade, Algumas questões Pertinentes, FDUC, 2014, p. 9 e ss, acessível na net, agora seguida de perto, para perceber a natureza e a funcionalidade do presente expediente adjectivo.   

O processo especial de tutela da personalidade revela-se o meio idóneo para requerer as providências adequadas a evitar a consumação de ameaça ou atenuar os efeitos de ofensa já cometida aos direitos de personalidade

O processo especial de tutela da personalidade surge ainda como concretização da imposição constitucional prevista no n.º 5 do art. 20.º da CRP.

De facto, a lei deve assegurar aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo que lhes seja possível obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou mesmo violações dos direitos, liberdades e garantias pessoais. Tendo em conta tal exigência o legislador ordinário consagrou no CPC revogado e mantém no NCPC o processo especial de tutela da personalidade.

O processo em causa não é uma inovação da reforma operada em 2012/2013 no CPC. Na realidade, este processo especial já se encontrava consagrado no Código de Processo Civil de 1961, nos arts. 1474.º e 1475.º. De facto, o processo especial de tutela da personalidade foi introduzido no nosso Código de Processo Civil pelo Decreto-Lei n.º 47690, de 11 de Maio de 1967. A reforma agora operada no processo especial de tutela da personalidade visou conferir-lhe maior celeridade e eficácia no que concerne à tutela da personalidade dos entes singulares. Para tanto operaram-se profundas modificações na caracterização e nos trâmites processuais a que obedecia este processo especial. A mais visível, que facilmente se constata apenas com uma análise superficial do NCPC, é a alteração da sua inserção sistemática: o processo especial de tutela da personalidade não é mais um processo de jurisdição voluntária.

Encontra-se consagrado nos arts. 878.º a 880.º do NCPC. É o primeiro dos processos especiais que este NCPC prevê. Foi assim excluído do leque de processos de jurisdição voluntária, tornando-se num processo especial autónomo, auto-suficiente e com características de tramitação próprias que o afastam do regime da jurisdição voluntária a que anteriormente se encontrava submetido.

Agora a fls. 24 e 25.

No que diz respeito aos pressupostos para o decretamento de tais providências, não se confundem com os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual previstos no art. 483.º do CC.

Quanto à ilicitude não restam dúvidas: exige-se que a actuação seja ilícita. É o próprio n.º 1 do art. 70.º do CC que o estabelece, exigindo que seja ilícita quer a ofensa quer a própria ameaça de ofensa à personalidade física ou moral.

Por sua vez, a ilicitude encontra-se relacionada com uma acção. Assim, exige-se a verificação de um facto humano, voluntário e ilícito, ou seja, «um facto dominável ou controlável pela vontade, um comportamento ou forma de conduta humana – pois só quanto a factos dessa índole têm cabimento a ideia da ilicitude».

Todavia, não é mister que se verifique a culpa na actuação por parte daquele que lesa ou ameaça lesar o direito de personalidade de outrem para que seja decretada uma providência ao abrigo do processo especial de tutela da personalidade. Ao invés do que sucede na responsabilidade civil, onde para que exista obrigação de indemnizar se exige que o lesante tenha actuado com dolo ou mera culpa.

Também não se exige que da ofensa ou da simples ameaça tenham resultado danos para que seja possível o decretamento de uma providência. Já não será assim na responsabilidade civil extracontratual onde a obrigação de indemnizar resulta dos danos causados.

Em síntese, para que seja decretada uma providência (preventiva ou atenuante) no âmbito do processo especial de tutela da personalidade, exige-se que o facto seja voluntário e ilícito, mas não se exige que seja culposo ou sequer danoso, uma vez que o legislador não incluiu estes dois pressupostos nem no art. 70.º do CC nem nas disposições do CPC dedicadas a este processo especial.

No tocante à concreta providência a adoptar, estabelece o art. 878.º do CPC que deve ser decretada a providência concretamente adequada a evitar a consumação de qualquer ameaça ou a fazer cessar os efeitos da ofensa já cometida. Destarte, e apesar de já não estarmos perante um processo de jurisdição voluntária, é deixada ao julgador uma larga margem de discricionariedade que lhe permite decretar a providência que considere mais adequada para o caso sub judice, mas nunca ultrapassando o necessário para acautelar o direito de personalidade em questão, lesando o menos possível terceiros. É a própria letra da lei que estabelece que deve ser decretada a providência adequada, excluindo, assim, o excesso. De acordo com Pedro Pais de Vasconcelos, in Direito de Personalidade, p.127. «há que encontrar, caso a caso, um equilíbrio entre o mínimo possível de lesão ou incómodo a terceiros e a eficácia necessária».

O decretamento das providências no âmbito deste processo especial não é cumulável com a tutela indemnizatória.

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Voltando ao caso dos autos.

Vem provado que desde finais de 2020, início de 2021 o Requerido passou a viver com seu cônjuge.

14. Com o cônjuge do Requerido chegaram também dois cães de raça “bulddog americano-misto”, que ali passaram também a residir.

16. Os animais passam a maior parte do seu dia no interior da casa em que vivem.

17. Os animais, em determinadas ocasiões, urinaram na habitação que o Requerido ocupa.

18. Atentas as características construtivas do imóvel, na habitação do Requerente são sentidos fortes cheiros a urina e fezes dos animais que provêm do andar de cima e que se infiltram para a sua casa.

21. Por vezes, o Requerido solta os cães no terraço de acesso à sua fracção e ali urinam.

22. Em determinadas ocasiões, a urina dos animais fica concentrada nos caleiros do terraço.

23. Os cães ladram em determinadas ocasiões, do dia e da noite, o que acontece quase diariamente.

24. Também devido ao ladrar dos animais durante a noite, o Requerente passa várias noites acordado ou entre sonos intermitentes e pouco reparadores.

25. O Requerente sente-se triste, desanimado, deprimido e nervoso, sentindo-se ansioso e com falta de descanso.

Cremos que, atenta a idade do Requerente - nascido em 1943 -, o facto de habitar uma fracção situada por baixo da fracção habitada pelo Requerido; as características edificativas do edifício; o facto de os cães estarem na casa do Requerido e no terraço, área comum às restantes fracções do edifício, é de aceitar existir uma relação de causalidade adequada, que não absoluta, pelo menos em parte, entre, por um lado, os latidos dos cães do Requerido e os cheiros das urinas e fezes destes, que se propagam na casa do Requerido, e, por outro, a diminuição da qualidade de vida deste, quando se sente triste, desassossegado e com dificuldade em dormir.

Os cães são ali mantidos pelo Requerido, facto este ao Requerido imputável.

Há várias normas no direito infra-constitucional que vedam a emissão de cheiros e ruídos de uma propriedade sobre outra, quer provenham de coisas, animais ou de actividades. São exemplos os artigos 1346º, 1422º e 493º do CC.

Mas independentemente disso e mesmo – como dissemos - para além disso, existe um núcleo de direitos fundamentais com assento constitucionais e cujas normas são de aplicação imediata e directa, não carecendo da mediação de direito substantivo de natureza infra-constitucional.

É a situação em que o presente litígio se insere.

A sentença recorrida esmiuça bem o que se passa. Transcrevemos assim:

  

Determina o art. 70.º do Código Civil, incluído na Secção II – Direitos de Personalidade, que “A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral” (n.º1).

“Independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os feitos da ofensa já cometida” (n.º2).

Como é referido por Carlos Mota Pinto (in Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 3.ª edição), toda a pessoa jurídica é titular de alguns direitos e obrigações, sendo titular de um certo número de direitos absolutos que se impõem ao respeito de todos os outros, incidindo sobre os vários modos de ser físicos ou morais da personalidade, são os chamados direitos de personalidade, os quais são gerais, extra-patrimoniais e absolutos. Tais direitos incidem sobre a vida da pessoa, a sua saúde física, a sua integridade física, a sua honra, a sua liberdade física e psicológica, o seu nome, a sua imagem, a reserva da intimidade e da vida privada.

Todos têm direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover (art. 64.º, n.º 1 da CRP).

Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar (art. 65.º da CRP).

Todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender (art. 66.º da CRP).

O descanso, a tranquilidade e o sono são direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, que se inserem no direito à integridade física, preceituado no art. 25º, nº 1, da CRP.

Este núcleo de direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas, nos termos do art. 18.º da CRP.

No campo da lei ordinária, o direito ao repouso é, ainda, um direito de personalidade que beneficia da tutela do art. 70º, nºs 1 e 2, do Código Civil.

O Requerido pode ser dono dos dois cães e de mantê-los a viver consigo na habitação onde reside, da qual tem posse em nome alheio.

Porém, o direito de propriedade sobre os animais e o direito de uso e fruição da fracção onde vive não podem ameaçar o direito ao sossego e à tranquilidade do lar do Requerente, o direito à saúde e ao sono do Requerente, pois a este é concedido meio para requerer se apliquem as medidas que se mostrem adequadas às circunstâncias do caso e que tenham por objectivo evitar a consumação ou, nos casos em que a ofensa já se mostre concretizada, atenuar os efeitos da mesma.

E, no caso, o cheiro da urina e fezes dos animais e os ruídos e latidos destes, atentam contra estes direitos concedidos ao Requerente, ameaçando-os ou violando-os.

Por isso que a medida necessária com vista a evitar ou atenuar os efeitos da ameaça consiste em retirar os animais, no caso, os cães da casa do Requerido.

Mostram-se verificados os pressupostos para a aplicação de tal medida.

Não se mostram provadas a eficácia e a necessidade de proceder a obras de impermeabilização do terraço e da fracção habitada pelo Requerido, bem como a insonorização desta.

Ademais não está demandada a dona da fracção em que o Requerido habita.

Vem ainda provado que:

 

27. O Requerido e seu (*) cônjuge nutrem grande afecto pelos seus animais.

28. Os cães do Requerido obedecem aos seus donos.

29. A esposa do Requerido padece de doença inflamatória e autoimune, sendo por isso medicada regularmente. (aditado)

30. A companhia dos animais de que se faz rodear em casa – 2 cães e dois gatos – é um pilar de relevo para a estabilidade emocional de que carece.

A concretização da medida em causa pode prejudicar a saúde da esposa do Requerido, pessoa doente que carece da companhia dos cães para melhorar a autoconfiança e a estabilidade emocional.

A ligação do Requerido aos animais, bem como da sua esposa a estes, é enorme e não pode ser desconsiderada.

Neste contexto é de conceder ao Requerido um prazo razoável – nas circunstâncias, de três meses -, improrrogável, a contar do trânsito em julgado do acórdão, para a concretização da medida decidida.

Na sentença recorrida foi aplicada uma sanção pecuniária compulsória, ao abrigo do disposto no artigo 879º, 4 do CPC, de cujo montante discorda o Apelante, e concorda o Apelado.    

O regime da sanção pecuniária compulsória está previsto no art. 829.º-A do CC.

A lei permite aplicá-la no campo dos direitos de personalidade.

O Requerente peticionou-a.

É equilibrada.

Serve para desincentivar o obrigado de incumprir a obrigação de prestação de facto, positivo ou negativo, infungível a que está adstrito.

Só tem aplicação depois de a obrigação estar em condições de ser cumprida.

É de manter a mesma, na medida em que foi aplicada, depois de decorrido o prazo referido de três meses. 

*

Procede em parte a apelação.

V-DECISÃO:

Pelo que fica exposto, acorda neste Tribunal da Relação em julgar procedente em parte a apelação, indo alterada a sentença recorrida que passa a dispor como segue:

julgo procedente o pedido e, por isso, vai o Requerido condenado a:

- no prazo de 3 (três) meses, improrrogável, depois do trânsito em julgado da decisão, proceder à retirada dos animais (cães) do imóvel em que reside;

- pagar a quantia de € 150,00, a título de sanção pecuniária compulsória, por cada dia de atraso no cumprimento desta providência.

Custas pelo Requerido.

Na Relação, custas pelo Apelante, ora Requerido, em ¾ e pelo Requerente, ora Apelado, em ¼..

Valor da causa: € 30.000,01.

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(*) “a cônjuge”, “ a sua cônjuge” no original.

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Coimbra, 13 de Dezembro de 2022.

(Rui António Correia Moura)                                

(João Moreira do Carmo)

(Fonte Ramos)