Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
82/17.6GAPCV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: INTRODUÇÃO EM LUGAR VEDADO AO PÚBLICO
TIPO OBJECTIVO
Data do Acordão: 05/15/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE PENACOVA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA, PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ART. 191.º DO CP
Sumário: I – O tipo de crime do artigo 191.º do CP visa salvaguardar a inviolabilidade dos espaços a que se reporta, garantindo a sua privacidade, exigindo para o efeito que se trate de espaços vedados, isto é, claramente definidos por uma barreira física, requisito que visa obstar à punição de situações em que a privacidade do espaço não esteja claramente definida e em que seja dúbia a faculdade de a ele aceder livremente.

II – A circunstância de uma porta ou portão destinados à entrada e saída de pessoas ou veículos se encontrar aberta ou, ainda que fechada, não estar fechada à chave, é totalmente indiferente para o funcionamento do referido normativo.

Decisão Texto Integral:



Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO:

Nos autos de processo comum (tribunal singular) supra referenciados, que correram termos pelo Juízo de Competência Genérica de Penacova,        por despacho exarado em acta, na sessão de 15/02/2018, procedeu-se à comunicação de alteração não substancial dos factos decorrente da produção da prova que já tivera lugar, tendo a ilustre mandatária da arguida declarado não prescindir do prazo de defesa, pelo que lhe foi concedido para o efeito o prazo de oito dias.

            Mediante requerimento ulteriormente apresentado, a arguida requereu a produção de prova, consubstanciada na audição de duas testemunhas.

            Este requerimento veio a ser indeferido por despacho de 26/02/2018, notificado à ilustre mandatária da arguida na data designada para a continuação da audiência, segundo o alegado, apenas momentos antes de entrar na sala de audiência para ouvir a leitura da sentença.

            Este despacho tem o seguinte teor:

Tendo sido comunicada alteração não substancial dos factos descritos na acusação (cfr. acta de fls. 132), a arguida requereu prazo para defesa e juntou aos autos o requerimento com a Refª 3984662, onde alega, em síntese, que da prova produzida não resulta demonstrada a prática do crime de coacção na forma tentada, porquanto mesmo na forma tentada, não se dispensa a demonstração de que, no caso concreto, foi causado receio ao visado, o que não sucedeu. Para tanto, requer novamente a inquirição da testemunha (…) e arrola uma outra testemunha (…).

Cumpre apreciar.

Analisados os argumentos expendidos pela arguida no seu requerimento e as razões da sua discordância quanto à alteração não substancial dos factos, verificamos que os mesmos serão argumentos a utilizar num eventual recurso que possa interpor da sentença proferida nos autos, uma vez que, por um lado, se relacionam com a valoração que o Tribunal possa ter dado às suas declarações e aos depoimentos prestados pelo Assistente e mulher e cuja fundamentação constará da sentença que se irá proferir e, por outro, trata-se de matéria de direito relativa ao preenchimento dos elementos objectivos do tipo legal de crime em causa.

Acresce que a mesma vem requerer que seja novamente inquirida uma testemunha que já foi ouvida em sede de audiência de julgamento e cujas declarações foram já avaliadas por este Tribunal e indica uma outra testemunha, cuja indicação deveria ter sido feita no momento em que apresentou a contestação, dado que os factos a que se reporta a alteração não substancial, foram já apreciados em sede de audiência, pois a arguida vinha acusada da prática do crime na forma consumado e a convolação será para a forma tentada do mesmo tipo legal de crime.

Acresce que, o facto de não se ter considerado a versão por si apresentada é matéria que fará parte da fundamentação da sentença a proferir nos autos, sendo certo que, caso a arguida não concorde com a mesma, poderá reagir, nomeadamente pela via da interposição de recurso, como já se disse.

Com efeito, a prova para preparação da defesa mencionada no artigo 358º, nº 1 do Cód. Processo Penal, destina-se a organizar a defesa quanto à alteração não substancial dos factos constantes da acusação operada pelo Tribunal, não se configurando como uma defesa à acusação já constante dos autos, e para a qual o arguido já teve oportunidade de se pronunciar e requerer as diligências de prova que tivesse por convenientes, motivo pelo qual se indefere o requerido.

Acresce que a mencionada alteração não importará a imputação de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos da sanção aplicável.

Assim, e pelo exposto, se indefere o solicitado no requerimento em apreciação.

Notifique.

Na sentença que seguidamente foi proferida decidiu-se nos seguintes termos:

(...)

            Pelo exposto, decide-se:

a) Absolver a arguida A., da prática de um crime de coacção agravada, na forma consumada, p. e p. pelos artºs 154º, nº 1 e 155º, nº 1, línea a), ambos do Cód. Penal;

b) Condenar a arguida A., pela prática de um crime de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. pelo artº 191º, nº 1 do Cód. Penal, na pena de 40 (quarenta) dias de multa, de um crime de coacção agravada, na forma tentada, p. e p. pelos artºs 22º, 23º, 154º, nº 1 e 155º, nº 1, alínea a), todos do Cód. Penal, na pena de 12 (doze) meses de prisão, substituída por 360 (trezentos e sessenta) dias de multa e de um crime de injúria, p. e p. pelo artº 181º, nº 1 do Cód. Penal, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, todos à taxa de € 7,00 (sete euros) por dia;

c) Operando o cúmulo jurídico das penas aplicadas à arguida (…), decide-se condenar a mesma na pena única de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros), o que perfaz o total de € 700,00 (setecentos euros) pelos crimes de introdução em lugar vedado ao público e de injúria e 12 (doze) meses de prisão, substituída  por 360 (trezentos e sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros), o que perfaz o total de € 2.520,00 (dois mil quinhentos e vinte euros) pelo crime de coacção agravada na forma tentada;

d) Julgar parcialmente procedente por provado o pedido de indemnização cível e, em consequência, condenar a demandada (…) a pagar ao demandante (…) a quantia de € 600,00 (seiscentos euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data de notificação do pedido de indemnização ao demandado, absolvendo-se do que demais havia sido peticionado;

            (…)

           

Inconformada tanto com o despacho que indeferiu a produção de prova como com a sentença, de ambos recorre a arguida, no que tange à sentença, tanto da matéria de facto como de direito, retirando da motivação as seguintes conclusões:

            I. A Arguida vem recorrer do despacho de 27/02/2018 que lhe indeferiu a inquirição de testemunhas na sequência de alteração não substancial dos factos através da qual a arguida que se encontrava acusada da prática de um crime de coação agravada, na forma consumada, seria acusada pela prática do dito crime, na forma tentada.

II. O Tribunal a quo indeferiu a inquirição de duas testemunhas porquanto uma delas já havia sido ouvida em sede de audiência de julgamento e as suas declarações avaliadas, (o que não corresponde à verdade, pois tal testemunha nunca foi ouvida) e que a outra testemunha indicada devia ter sido apresentada na contestação.

III. A Recorrente só teve acesso a tal despacho momentos antes de entrar na sala de audiência para ouvir a leitura da sentença que a condenou pela prática do crime de coação agravada, na forma tentada, de um crime de injúria e de um crime de introdução em lugar vedado ao público.

IV. Considera a Recorrente que os meios de prova que foram requeridos eram necessários para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, devendo o Tribunal a quo ter ordenado a produção de toda a prova requerida.

V. Pelo que, despacho recorrido é nulo, nos termos da alínea d) do n.º 2 do artigo 120.º do Código de Processo Penal (CPP), por omissão de diligências probatórias que podem ser essenciais para a descoberta da verdade e por violação do n.º 1 do artigo 340.º do CPP e é ainda inconstitucional por violação do princípio do contraditório em processo penal e consequentemente do direito de defesa da Arguida, consagrados pelo n.º 2 e n.º 5 do artigo 32.º da C.R.P., devendo ser ordenada a produção de prova pelo Tribunal a quo (neste sentido o Acordão do TRL de 13/03/2013 in Proc. 33/01.0GBCLD.L1-3).

VI. Esses requerimentos só podem ser indeferidos com fundamentos nos n.ºs 3 e 4 do artigo 340.º do Código de Processo Penal, o que não se verificou no presente caso.

VII. Vem igualmente a Recorrente recorrer da douta sentença proferida a 27/02/2018 quer em matéria de facto quer em matéria de direito.

            VIII. Entende a Recorrente que o Tribunal “a quo” errou na apreciação da matéria de facto e fez errada aplicação do direito, por isso não pode concordar com a sentença em apreço, nem com a fundamentação nela invocada.

IX. A prova produzida em audiência impõe a absolvição da arguida pelos crimes de introdução em lugar vedado ao público e de coação agravada, na forma tentada, havendo, salvo o devido respeito, um erro notório na apreciação da prova feita em sede de audiência de discussão e julgamento, por parte do Tribunal a quo e na sua subsunção ao direito.

X. 2) A sentença recorrida violou entre outros preceitos os arts. 22º, 23º/2, 41º/1, 71º/2, 73º/1 al. b), 77º/1, 154º/1 e 2, 155º/1 al. a) e 191º todos do Código Penal, bem como o artigo 32º/2 da CRP e o art. 127º do CPP.

XI. Uma correcta aplicação analítica das regras de apreciação aos testemunhos prestados em audiência impunha que o tribunal tivesse dado como não provados, desde logo, os PONTOS 2, 3, 4, 6, 7 e 13 dos FACTOS PROVADOS.

XII. Relativamente ao crime de introdução em lugar vedado ao público, o Tribunal a quo considerou que o Assistente se encontrava “no interior da residência” (PONTO 1 dos factos provados) para no PONTO 3 considerar provado que o mesmo “entrou para a sua propriedade, fechando o portão da mesma”, havendo aqui uma clara contradição insanável entre ambos os factos provados.

XIII. Impugna-se ainda o facto provado no PONTO 4 na parte “(…) a arguida, por duas vezes, abriu o portão da habitação e introduziu-se no interior do pátio da mesma” pois que nada ficou inequivocamente provado que demonstrasse o meio utilizado pela arguida para se introduzir no pátio da habitação, havendo insuficiência da matéria de facto bem como da fundamentação.

XIV. Mais se impugna o PONTO 6 dos factos provados na parte: “(…)tratava de um espaço vedado e que não era de livre acesso” e o PONTO 13 na parte: “(…) não a havia convidado ou tão pouco facultado o livre acesso”, pois que não corresponde à verdade.

XV. O próprio Assistente referiu nas suas declarações que sempre esteve no interior da residência, junto ao portão das três folhas, e nunca na via pública, bem como não fechou o portão da mesma, apenas o encostou, pelo que, nem se tratava de um espaço vedado e fechado, assim como foi facultado o livre acesso à mesma pelo Assistente, ao contrário do que consta dos Pontos 3, 4, 6 e 13 dos Factos Provados, na parte já acima concretizada.

XVI. É pressuposto do tipo objectivo de ilícito do crime de introdução em lugar vedado ao público que os espaços anexos à habitação estejam fechados, o que, não sucedendo no presente caso, pois que o portão estava aberto, conforme o Assistente o refere bem como a testemunha (…), sempre teria a arguida, ora Recorrente, de ser absolvida da prática deste crime, havendo assim uma clara violação ao disposto no artigo 191º do Código Penal e ao Princípio da Legalidade.

XVII. Ainda que se considerasse que o portão foi efectivamente fechado pelo Assistente, não ficou demonstrado, inequivocamente, a forma pela qual, teria a arguida entrado pelo portão, devendo a Recorrente ter sido absolvida, respeitando-se assim o princípio “In Dubio Pro Reo”, bem como o princípio da presunção de inocência previsto no art. 32°/2 da CRP.

XVIII. Já no que respeita ao crime de coação agravada, na forma tentada, o depoimento da única testemunha alegadamente presente, a esposa do Assistente, não foi consistente com o que já havia declarado em sede de inquérito, aqui referindo que a arguida ameaçou o marido dizendo-lhe: “Eu mato-te! Tenho lá uma arma e é com ela que te vou matar!”, o que configuraria um crime de ameaça agravada e não de coação agravada.

XIX. O depoimento desta testemunha foi parcial, inquinado de contradições, às quais a livre apreciação da prova pelo julgador, não poderia ter sido alheia, daí resultando uma clara violação ao artigo 127º do CPP.

XX. Em face do exposto, o PONTO 2 dos Factos Provados na parte: “Se apareceres em x (...) eu mato-te” e o PONTO 7 na parte: “A arguida quis obrigar o (…) a deixar de se deslocar até à localidade de x (...) dizendo que o matava se o fizesse(…)” deverá ser considerado não provado, devendo a Arguida ser absolvida em face do princípio penal, In Dubio Pro Reo ou, quando muito, condenada pela prática do crime de ameaça agravada p. e p. pelos artigos 153º/1 e 155º/1 alínea a) do Código Penal e nunca pelo crime de coação, ainda que na forma tentada.

XXI. A admitirem-se os factos provados, os mesmos não são susceptíveis e suficientes para integrar o crime de coação na forma tentada p. e p. pelos artigos 22º, 23º e 154º/1 e 2 do Código Penal, pois que a forma tentada não dispensa a demonstração de que foi causado receio no visado, o que não se verificou.

XXII. Não estão assim, preenchidos todos os elementos que integram o crime de coação, na forma tentada, havendo uma clara contradição entre a fundamentação e a decisão que imporia uma absolvição da Arguida, por falta do preenchimento dos elementos do tipo objectivo de ilícito.

XXIII. Ainda que seja mantida a douta sentença da qual se recorre, sempre se dirá que as penas parcelares aplicadas à ora Recorrente pela prática de cada um dos crimes em causa nos presentes autos são manifestamente excessivas e não respeitam a moldura penal abstracta prevista legalmente, nem os artigos 71º/2 e 77º/1 do Código Penal, devendo aproximar-se do seu limite mínimo legal.

XXIV. Quanto à pena aplicada à prática do crime de coação agravada, na forma tentada, considerando a moldura penal abstracta (errada diga-se) de 1 ano a 3 anos e 4 meses de prisão, determinada pelo Tribunal a quo, foi aplicada a arguida a pena de um ano de prisão a que correspondia ao mínimo legal previsto determinado por aquele tribunal, pelo que, salvo melhor opinião em contrário, atenta a correcta moldura penal abstractamente aplicável a este crime de 1 mês a 3 anos e 4 meses de prisão, a pena a aplicar à arguida deverá corresponder ao mínimo legal de um mês.

XXV. A moldura penal abstracta fixada pelo douto Tribunal a quo no que ao crime de coacção agravada, na forma tentada, respeita, violou os artigos 23º/2, 73º/1 alínea b) e 41º/1 do Código Penal.

XXVI. O ilícito global agora julgado é o resultado de uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade da arguida, sendo diminutas as exigências de prevenção geral e especial.

XXVII. Em face de tal deverá ser determinada uma pena inferior a 100 dias de multa resultante do concurso dos crimes de introdução em local vedado ao público e de injúria aproximando-a do limite mínimo da moldura penal.

XXVIII. Também o quantitativo diário da multa fixado em 7,00€ (sete euros) deverá ser reduzido.

Nestes termos (…), deve ser dado provimento ao recurso, ordenando-se a produção de prova e revogando-se a douta Sentença proferida, nos termos expostos, (…)

            O M.P., na sua resposta, pronunciou-se no sentido da parcial procedência do recurso.

Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer pronunciando-se pela total improcedência do recurso, admitindo, quando muito, ligeira redução da pena.

Foram colhidos os vistos legais e teve lugar a conferência.

Cumpre conhecer do recurso, cujo âmbito, segundo jurisprudência constante, se afere e delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo do que deva ser oficiosamente conhecido.

No caso vertente, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, há que conhecer do seguinte:
-O despacho que indeferiu a inquirição de testemunhas após a notificação da alteração não substancial de factos enferma de nulidade por dele decorrer omissão de diligências probatórias essenciais para a descoberta da verdade?
-Sendo ainda inconstitucional por violação do princípio do contraditório em processo penal?
-O tribunal a quo incorreu em erro de facto no julgamento efectuado?
-Ocorrendo, de todo o modo, erro notório na apreciação da prova?
-E insuficiência de fundamentação?
-Bem como violação do art. 127º do CPP?
-Não estão verificados os requisitos do tipo legal de crime de introdução em lugar vedado ao público?
-Não estão verificados os requisitos do crime de coacção agravada na forma tentada?
-Ocorrendo contradição entre a fundamentação e a decisão?
-As penas parcelares são excessivas?
-Sendo excessivo o montante diário da multa?

                                                           *          *          *         

II – FUNDAMENTAÇÃO:

           

            O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:

            1. No dia 24 de Abril de 2017, pelas 13h15m, o ofendido (…) encontrava-se no interior da residência situada na Rua (…), nº (…), (…), que lhe pertencia e estava delimitada em toda a sua extensão por parede e portão, a executar reparações em portas e fechaduras.

2. Nessa altura, a arguida (…) aproximou-se do portão e disse ao ofendido (…) as seguintes palavras: “És um ladrão, és um corno, és um filho da puta”, “Se apareceres em x (...) eu mato-te! Tenho lá uma arma e é com ela que te mato!”.

3. Perante tal comportamento por parte da Arguida, o Assistente, não pretendendo ter problemas ou entrar em discussões com a mesma, entrou para a sua propriedade, fechando o portão da mesma.

4. De seguida, a arguida, por duas vezes, abriu o portão da habitação e introduziu-se no interior do pátio da mesma, sem que o ofendido (…) tivesse autorizado ou consentido a sua entrada.

5. O ofendido mantém com familiares da arguida uma divergência relativamente à titularidade do direito de propriedade sobre alguns terrenos situados na localidade de x (...) .

6. A arguida quis introduzir-se no pátio da habitação do ofendido (…) bem sabendo que não tinha autorização nem o consentimento daquele para ali entrar e permanecer, não desconhecendo ainda que se tratava de um espaço vedado e que não era de livre acesso.

7. A arguida quis obrigar o (…) a deixar de se deslocar até à localidade de x (...) dizendo que o matava se o fizesse, bem sabendo que as palavras que dirigiu ao ofendido lhe causariam medo, insegurança e intimidação e que eram susceptíveis de levá-lo a abster-se de ir até aquele local contra sua vontade e, que ao fazê-lo, limitava a capacidade e liberdade de decisão e do (…), o que contudo não logrou.

8. Ao proferir as expressões mencionadas em 2., quis a arguida atingir o assistente na sua honra e consideração, o que logrou conseguir.

9. A arguida agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

10. A demandada, ao impetrar ao demandante as expressões supra mencionadas, nas circunstâncias de tempo e lugar descritas, fez com que este se sentisse humilhado.

11. Tanto mais que as expressões supra mencionadas foram proferidas pela demandada em local público, em plena rua, em alta voz e, como tal audível, por todos.

12. Viu, assim, o demandante a sua vida ser comentada pelos seus vizinhos e conhecidos, sem que nada tivesse feito para isso ou pretendido que assim fosse, apenas devido aos factos praticados pela demandada.

13. Ao entrar em propriedade do demandante sem autorização ou simples consentimento deste, a Demandada revelou um profundo desrespeito pela propriedade

privada do demandante, arrogando-se ao direito de se introduzir na mesma propriedade ainda que tal fosse contra a vontade do demandante que não a havia convidado ou tão pouco facultado o livre acesso.

14. A arguida está reformada, auferindo uma pensão mensal de € 1.000,00 (mil euros).

15. Vive em casa própria com o marido que está também reformado, auferindo uma

pensão mensal de € 1.000,00 (mil euros).

16. Tem como habilitações literárias a 4ª classe.

17. A arguida não tem antecedentes criminais.

            Relativamente ao não provado, consignou-se na sentença o seguinte:

            Da audiência de julgamento não se provou qualquer outra matéria, nomeadamente:

- que a residência mencionada em 1. estava delimitada em toda a sua extensão por um muro;

- que a divergência mencionada em 4. seja com a arguida;

- que após as palavras que a arguida lhe dirigiu e, receando pela sua vida, o ofendido deixou de se deslocar à localidade de x (...) ;

- que a arguida conseguiu obrigar o (…) a deixar de se deslocar até à localidade de x (...) ;

- que a demandada ao proferir as expressões supra fez com que o demandante se sentisse profundamente enxovalhado, amargurado e revoltado;

- que o demandante é pessoa séria, honrada, respeitada e respeitadora;

- que sendo, aos olhos de quem o conhece quer na sua terra, quer nas localidades vizinhas, tida como uma pessoa de bem e que não tem conflitos com ninguém;

- que esta consideração social foi profundamente abalada pelos factos praticados pela demandada;

- que as palavras dirigidas ao demandante pela demandada, pondo em causa o seu bem vida, que se encontram reportadas na Acusação Pública, foram de tal forma graves e sérias que lançaram no demandante o receio da sua concretização por parte da demandada;

- que tanto mais que demandante e demandada se encontram amiúde no seu dia-a-dia, fruto de residirem no mesmo espaço territorial;

- que tal medo do demandante existiu não só em relação a ele, como também em relação à sua esposa, sendo que tal situação levou a que o demandante passasse a tomar cuidados redobrados quer na sua vida profissional, quer nas suas deslocações, quer na sua vida familiar;

- que sendo que qualquer deslocação à rua, por mais simples que fosse, levava o demandante a sentir insegurança e fazia-o andar sempre a “olhar por cima do ombro”, com receio que a demandada concretizasse algum dos actos que disse realizar;

- que o demandante viu a sua vida condicionada, deixando de se deslocar à localidade de x (...) algo que realizava com frequência.

            O julgamento de facto foi fundamentado nos seguintes termos:

(…).

            Apreciando e decidindo:

            Sustenta a arguida que o despacho que indeferiu a inquirição de testemunhas após a notificação da alteração não substancial de factos enferma de nulidade por dele decorrer omissão de diligências probatórias essenciais para a descoberta da verdade, preenchendo-se assim a previsão da al. d) do nº 2 do art. 120º do CPP e 340º, nº 1.

            Como é sabido, as restrições e exigências relativas à alteração não substancial prendem-se directamente com o chamado princípio da vinculação temática do tribunal, decorrente da estrutura acusatória que conforma o processo penal, a implicarem que o thema probandum se mantenha essencialmente o mesmo, não podendo o tribunal condenar por factos distintos fora dos casos previstos.

            Em causa, na alteração introduzida, está o teor do nº 7 da acusação deduzida pelo M.P., que tem o seguinte teor:

            A arguida quis e conseguiu obrigar o (…) a deixar de se deslocar até à localidade de x (...) dizendo que o matava se o fizesse, bem sabendo que as palavras que dirigiu ao ofendido lhe causariam medo, insegurança e intimidação e que eram susceptíveis de levá-lo a abster-se de ir até aquele local contra sua vontade e que ao fazê-lo limitava a capacidade e liberdade de decisão e acção do (…).

            No despacho em crise foi comunicada alteração decorrente da prova produzida, indicando-se facto assim conformado (sublinhado nosso no segmento que traduz inovação):

            A arguida quis e conseguiu obrigar o (…) a deixar de se deslocar até à localidade de x (...) dizendo que o matava se o fizesse, bem sabendo que as palavras que dirigiu ao ofendido lhe causariam medo, insegurança e intimidação e que eram susceptíveis de levá-lo a abster-se de ir até aquele local contra sua vontade e que ao fazê-lo limitava a capacidade e liberdade de decisão e acção do (…), o que contudo não logrou.

            Tal facto, que veio a ter-se como provado, determinou uma alteração da qualificação jurídica do crime de coacção agravada, pelo qual a arguida estava acusada, para crime de coacção agravada na forma tentada.

            Ora, esta convolação de um crime consumado para um crime meramente tentado traduz apenas e tão só a ausência de prova de um dos elementos constantes da acusação, a saber, a obtenção do resultado visado ou pretendido pela arguida com a sua conduta. A arguida teve conhecimento de todos os factos que lhe eram imputados, foi-lhe facultado contraditá-los e, de todo o modo, o crime tentado pelo qual veio a ser condenada encontra-se num âmbito que é consumido pelo crime inicialmente imputado. Nessa medida, oferece-se como evidente que a arguida não foi de modo algum surpreendida com factos novos e imprevisíveis, pelo que não houve qualquer prejuízo para a defesa decorrente do indeferimento da prova complementar pretendida na sequência da comunicação da alteração não substancial. De resto, tal prova não só não era essencial para a descoberta da verdade, como verdadeiramente se apresentava como irrelevante, se não mesmo dilatória, abrindo-se caminho para o seu indeferimento por força do disposto no art. 340º, als. a), b) e d) (ocorrendo, pois, fundamento legal, ainda que o tribunal não tenha mencionado expressamente a norma em que se fundava o indeferimento). Irrelevante, também, é o facto de o tribunal mencionar como já ouvida uma testemunha que na verdade apenas tinha sido arrolada, mas não ouvida, visto tratar-se de testemunha que a arguida se comprometera a apresentar e de que prescindiu. De todo o modo, ainda que houvesse que considerar cometida a nulidade do art. 120º, nº 2, d), do CPP, com sustenta a recorrente, tal nulidade deveria ter sido de imediato arguida, até ao encerramento da audiência, não colhendo o argumento de que só teve acesso ao despacho momentos antes de entrar na sala de audiências para a leitura da sentença. Na verdade, ainda que por essa razão não tivesse podido ler o despacho – o que a recorrente nem sequer afirma expressamente, mas parece pretender com os termos da sua alegação – sempre se tem de considerar que iniciada a leitura da sentença se tornou óbvio para que não iam ser inquiridas as testemunhas que complementarmente arrolara.

            Também se não verifica a inconstitucionalidade invocada, por violação do art. 32º, nºs 2 e 5 da CRP, visto não ocorrer preterição do princípio in dubio pro reo consubstanciado na presunção de inocência, assim como não foi beliscado o princípio do contraditório. O julgamento observou todas as garantias de defesa e a alteração não substancial de factos e a subsequente alteração da qualificação jurídica dos factos foram precedidas de comunicação à arguida, tendo-lhe sido facultada a possibilidade de se pronunciar.

            Vejamos de seguida o recurso da sentença, que a recorrente impugna tanto no que concerne ao julgamento de facto como no tocante ao julgamento de direito.

            Entrando na apreciação da prova gravada, começa a recorrente por aludir a diversos segmentos da gravação referentes a declarações do assistente e depoimento da testemunha (…) das quais resulta que a arguida terá entrado no pátio da residência do assistente através de um portão que não estava fechado à chave, apenas encostado ou fechado no trinco (assistente: “abriu o portão, eu não fechei o portão à chave, só o encostei”; (…): “o meu marido fechava, encostava a porta e ela abria e entrava para lá”). Com base nestes segmentos sustenta a recorrente que estando o portão meramente encostado havia um consentimento presumido para aí poder entrar e, por outro lado, procura descortinar contradição nos factos que se tiveram como provados.

            Ora, afirmar-se que alguém que acaba de ser “posto na rua”, como a própria arguida reconhece, pode presumir um consentimento para entrar no local de onde acaba de ser expulsa pelo facto de o portão não ter sido fechado à chave é, no mínimo, absurdo, tanto mais que o acto de fechar o portão, no contexto em que ocorre, visa, numa lógica e racional interpretação, vincar a privacidade do espaço que acaba de ser encerrado. E não é pelo facto de o portão ter sido meramente encostado ou fechado no trinco que deixa de se considerar fechado para o efeito que aqui releva. Tanto do depoimento da testemunha (…) como das declarações do assistente resultou com clareza que a arguida persistiu na entrada na propriedade sem que lhe tivessem dado permissão para tal e apesar de o portão ter sido fechado.

Há que convir, é certo, que a linguagem utilizada na descrição dos factos, tal como ficaram vertidos no provado, sob os nºs 1 e 3, é pouco rigorosa e potencialmente geradora de equívocos, na medida em que primeiro se diz que o ofendido se encontrava no interior da residência quando a arguida se aproximou, para em seguida se afirmar que para evitar discussões entrou para a sua propriedade, fechando o portão. O que está a mais é a referência ao ter entrado para a sua residência, uma vez que no decurso do episódio relatado na matéria de facto nunca esteve fora da sua propriedade, como claramente resulta do conjunto da prova produzida sobre o tema e é assumido na fundamentação da matéria de facto. A audição da prova gravada confirma que assim foi. Trata-se, pois, de imprecisão que só por si não tem a virtualidade de fazer claudicar a matéria de facto provada, na exacta medida em que os factos com relevo para a incriminação não são contaminados pelo que acabou de se expor, não ocorrendo a contradição insanável pretendida pela recorrente. Não vemos, à luz dos depoimentos prestados, razão para questionar o bem fundado da matéria de facto assente, assim como não se descortina erro de julgamento neste particular aspecto.

            O mesmo se dirá relativamente à afirmação alternativa de o assistente estar na sua residência ou estar no pátio da residência. O que resulta à saciedade da prova produzida em audiência é que o assistente se encontrava no pátio da sua residência, tendo o termo “residência” sido assumido e utilizado na sentença em sentido amplo, com o intuito de vincar que se encontrava num espaço fisicamente delimitado e de natureza privada. Trata-se de um espaço delimitado por muros altos que nem sequer permitem a visibilidade para o interior, como se afere pelas fotografias constantes dos autos.

            Como nota final relativa a estes particulares aspectos, retenha-se que a valoração dos depoimentos prestados em audiência não depende de uma semântica sincrónica. A riqueza natural da linguagem já por si confere a muitas palavras um sentido variável dentro de determinados parâmetros. O que efectivamente releva e há que transmitir na sentença é o real significado daquilo que foi verbalmente transmitido em audiência, analisando e depurando o teor das afirmações dos vários intervenientes à luz da compreensão das variáveis presentes.

            Também não ocorre qualquer insuficiência da matéria de facto ou da fundamentação decorrente da afirmação de que a arguida por duas vezes abriu o portão da habitação e introduziu-se no respectivo pátio. O tribunal explicou coerentemente as razões que o levaram a considerar tal matéria como provada e não tinha que dizer mais do que disse relativamente ao processo de introdução naquele espaço.

            A recorrente invoca violação do disposto no art. 127º do CPP, centrando-se na circunstância de ter sido dada credibilidade a testemunha casada com o assistente em detrimento das declarações da própria arguida, sustentando que o respectivo depoimento foi parcial e inquinado por contradições. Não lhe assiste razão, na medida em que o princípio da livre apreciação da prova previsto no art. 127º do CPP, que impõe, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, obsta a que a mera valoração da prova pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador – e verdadeiramente, é isso o que a recorrente pretende – não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação, tanto mais que sendo a apreciação da prova em primeira instância enriquecida pela oralidade e pela imediação, o tribunal de 1ª instância está obviamente mais bem apetrechado para aquilatar da credibilidade das declarações e depoimentos produzidos em audiência, razão pela qual quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum. Este é, aliás, um dos pontos habitualmente descurados na impugnação da matéria de facto, em que vem alegada a violação das regras da experiência comum sem que se explicite quais as regras que concretamente foram violadas, como sucede no caso de que agora cuidamos. E tenha-se em atenção, já agora, que não constitui regra de experiência comum uma qualquer dedução mais ou menos lógica, mas apenas aquele princípio ou raciocínio reiteradamente confirmado por uma muito frequente verificação. De outro modo, teríamos na chamada "regra da experiência comum" uma porta aberta para a total arbitrariedade.

            Prossegue a arguida alegando não estarem verificados os requisitos do tipo legal de crime de introdução em lugar vedado ao público, sustentando-se no facto de o portão estar aberto.

            A formulação do tipo em apreço, com previsão no art. 191 do Código Penal, tipifica como crime a actuação de “quem, sem consentimento ou autorização de quem de direito, entrar ou permanecer em pátios, jardins ou espaços vedados anexos a habitação, em barcos ou outros meios de transporte, em lugar vedado e destinado a serviço ou empresa públicos, a serviço de transporte ou ao exercício de profissões ou actividades, ou em qualquer outro lugar vedado e não livremente acessível ao público (...)”.

            Esta incriminação visa salvaguardar a inviolabilidade dos espaços a que se reporta, garantindo a sua privacidade, exigindo para o efeito que se trate de espaços vedados, isto é, claramente definidos por uma barreira física, requisito que visa obstar à punição de situações em que a privacidade do espaço não esteja claramente definida e em que seja dúbia a faculdade de a ele aceder livremente. Exige-se ainda que a entrada seja abusiva ou arbitrária, sem consentimento, ou que o agente recuse retirar-se depois de intimado a fazê-lo.

            A circunstância de uma porta ou portão destinados à entrada e saída de pessoas ou veículos se encontrar aberta ou, ainda que fechada, não estar fechada à chave é totalmente indiferente para o funcionamento do tipo legal em apreço. Não há, pois, qualquer dúvida de que a actuação da arguida, tal como ficou descrita na factualidade provada preenche os elementos objectivos e subjectivos deste tipo legal de crime.

            A arguida sustenta ainda não estarem verificados os requisitos do crime de coacção agravada na forma tentada.

            O crime de coacção pode realizar-se tanto através de violência como através da ameaça com mal importante, consistindo em constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade. É, essencialmente, um crime contra a liberdade de acção ou a liberdade de decisão e a liberdade de movimento [1], sendo a tentativa punível, como expressamente se consagra no nº 2 do art. 154º do Código Penal.

            A punibilidade da tentativa basta-se com a prática de actos de execução que sejam idóneos a produzir o resultado típico (cfr. art. 22º, nºs 1 e 2, b), do Código Penal), sendo esse manifestamente o caso dos autos. A expressão proferida pela arguida, afirmando que matava o ofendido se este aparecesse em x (...) acrescentando que tinha lá uma arma, é objectivamente idónea para o levar a abster-se de se deslocar a esse local. É irrelevante, para a verificação da tentativa, que o ofendido não tenha omitido a conduta visada. Desde que a conduta do agente, através de violência ou de ameaça com um mal importante, seja objectivamente apta a levar outrem a praticar um acto, a omiti-lo ou a suportar uma determinada actividade, estão verificados os pressupostos do crime tentado [2]. É esse, precisamente, o caso dos autos, na medida em que a arguida ameaçou o ofendido de morte, afirmando que lá tinha uma arma, pretendendo com essa actuação impedir que este se deslocasse à localidade de x (...) sendo certo, aliás, que tais afirmações tinham conteúdo para serem tomadas como sérias pelo ofendido, que tinha efectivamente conhecimento de que a arguida tinha uma arma, como expressamente resulta do teor das declarações que prestou em audiência. Trata-se, de resto, de crime tentado na medida em que a arguida não logrou o desiderato por si pretendido, prova que determinou a comunicação de alteração de factos efectuada em audiência.

            Numa outra perspectiva, insurge-se a arguida contra as penas parcelares que lhe foram impostas, considerando-as excessivas, afirmando ainda que é ilegal a moldura abstracta considerada pelo tribunal a quo para o crime de coacção agravada na forma tentada, indicada na sentença recorrida como sendo de prisão de 1 ano a 3 anos e 4 meses.

            Importa desde já alertar para a circunstância de no direito penal português contemporâneo, sobretudo desde a revisão do Código Penal operada pelo DL nº 48/95, de 15 de Março, o fundamento legitimador da pena, qualquer que ela seja, residir na prevenção. Este diploma abraçou decididamente finalidades exclusivamente preventivas para aplicação das penas e das medidas de segurança, deixando à culpa o papel de pressuposto da pena e de limite máximo da sua medida, consagrando assim uma concepção preventivo-ética da pena (preventiva, por ser a prevenção o fim legitimador da pena; ética, por esse fim preventivo ser condicionado e limitado pela exigência da culpa) [3].

            Em consonância com essa opção, dispõe o art. 40º, nº 1, que a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

A determinação da medida da pena, por força do estatuído no art. 71º, há-de fazer-se dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, com ponderação de todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, todavia depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram, as condições pessoais do agente e a sua situação económica, a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

As exigências de prevenção afirmam-se numa dupla vertente, as de prevenção geral e as de prevenção especial, assumindo cada uma delas uma específica função.

Destinatários da prevenção geral são todos os membros da comunidade jurídica, (excluído o arguido, especificamente visado pela prevenção especial) e é por recurso às exigências decorrentes da prevenção geral positiva[4] que se determina o limite mínimo da pena admissível para o caso concreto, visto que a garantia da manutenção da confiança da comunidade na validade da norma (a sua eficácia para salvaguardar os bens jurídicos que tutela) e a dissuasão de potenciais infractores exige um mínimo de punição[5], variável em função do contexto e do momento histórico, capaz de satisfazer aquela dupla função.

Por seu turno, a prevenção especial, respeitante ao próprio arguido, acumula uma função de ressocialização do delinquente a uma outra, de dissuasão da prática de futuros crimes[6]. Intervém na graduação da pena, funcionando entre o mínimo reclamado pelas exigências de prevenção geral e o máximo consentido pela culpa (cfr. arts. 40º, nº 2 e 71º, nº 1), como factor de determinação do quantum [7] de pena necessário à ressocialização (entendida como adesão do agente aos valores comunitáriamente postergados) e à prevenção da reincidência (que se atinge através duma pena doseada em moldes de representar um sacrifício de tal forma penoso que o agente não quererá repetir).

A arguida foi condenada pela prática de um crime de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. pelo artº 191º, nº 1 do Cód. Penal, na pena de 40 (quarenta) dias de multa, de um crime de coacção agravada, na forma tentada, p. e p. pelos artºs 22º, 23º, 154º, nº 1 e 155º, nº 1, alínea a), todos do Cód. Penal, na pena de 12 (doze) meses de prisão, substituída por 360 (trezentos e sessenta) dias de multa e de um crime de injúria, p. e p. pelo artº 181º, nº 1 do Cód. Penal, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, todos à taxa de € 7,00 (sete euros) por dia.

            O critério legalmente fixado para a escolha da pena no art. 70º do CP aponta para a preferência pela pena não privativa da liberdade sempre que, prevendo a lei a opção entre esta e a pena de prisão, a primeira realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Retenha-se que “são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam (e impõem) a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição e a sua efectiva aplicação” [8], escolha que dependerá essencialmente de considerações atinentes às necessidades de prevenção especial de ressocialização e de prevenção geral sob a forma de satisfação do «sentimento jurídico da comunidade».

Com utilidade para a ponderação das exigências preventivas que ao caso cabem, a matéria de facto provada diz-nos que a recorrente, reformada, não tem antecedentes criminais. Da sua identificação resulta que nasceu em Dezembro de 1951, pelo que teria 66 anos de idade à data dos factos. É de admitir que os factos em análise terão constituído incidente isolado no seu percurso de vida, pelo que não haverá grandes imperativos de ressocialização a acautelar, sendo assim reduzidas as exigências de prevenção especial que no caso se verificam. As exigências de prevenção geral de reprovação não excedem a mediania, porventura mais acentuadas no crime de injúria, dada a sua frequência. Actuou com dolo intenso, por forma reiterada no que tange ao crime de introdução em lugar vedado ao público.

Por expressa remissão do nº 1 do art. 47º [9], o critério de fixação da pena de multa é o previsto no nº 1 do art. 71º, donde resulta a necessidade de recurso aos dois vectores fundamentais apontados na norma - a culpa do agente e as exigências de prevenção - com ponderação ainda de todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, todavia deponham a seu favor ou contra ele, tendo-se ainda presente que a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (cfr. art. 40º, nºs 1 e 2).

À culpa é cometida a função de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena.

A prevenção geral (dita de integração) fornece uma moldura de prevenção cujo limite é dado, no máximo, pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos - dentro do que é consentido pela culpa - e no mínimo, fornecida pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico.

Por seu turno, à prevenção especial cabe a função de encontrar o quantum exacto da pena, dentro da referida função, isto é, dentro da moldura de prevenção que melhor sirva as exigências de socialização [10].

O crime de introdução em lugar vedado ao público é punível com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 60 dias (art. 191º do Código Penal).

            O crime de coacção agravada na forma tentada é punível com pena de prisão de 1 mês a 3 anos e 4 meses, sendo a pena em concreto fixada passível de substituição nos termos gerais (arts. 154º, nºs 1 e 2, 155º, nº 1, al. a), 23º, nº 2 e 73º, nº 1, als. a) e b), e nº 2, todos do Código Penal).

            O crime de injúria é punível com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias (art. 181º, nº 1, do Código Penal).

            Mencionou-se no corpo da sentença recorrida, a propósito da determinação da pena concreta aplicável, que o crime de coacção agravada na forma tentada tinha como mínimo 1 ano de prisão. O equívoco, face ao regime legal, é manifesto. Em abstracto, poderemos admitir que se tratou de lapsus calami e que se escreveu “ano” onde se queria escrever “mês”; em concreto, nada, no texto da sentença, permite confirmar que assim foi, pelo que há que ter por verificado um erro de direito na determinação da medida da pena parcelar relativa a este crime, inquinada pela moldura penal para ele considerada.

            Relativamente à pena de multa imposta ao crime de introdução em lugar vedado ao público, actuação acintosamente repetida pela arguida na ocasião dos factos, a pena é ajustada.

            O mesmo se dirá relativamente ao crime de injúria, cuja medida concreta encontra justificação no modo de execução do crime, com a publicidade que a matéria de facto evidencia por se tratar de imputações gravosas proferidas na via pública e em alta voz.

            Por conseguinte, mantê-las-emos inalteradas.

            Já no que concerne ao crime de coacção agravada na forma tentada, com a pena balizada nos termos que apontámos, tratando-se do mais grave dos crimes praticados, reclama uma pena mais severa. A lei comina pena de prisão, que para o crime consumado se baliza entre 1 e 5 anos de prisão (art. 154º, nº 1, 155º, nº 1, al. a), do Código Penal); a tentativa é punida com a pena prevista para o crime consumado, especialmente atenuada (art. 23º), sendo o limite máximo da pena de prisão reduzido de um terço o limite mínimo, por inferior a 3 anos, reduzido ao mínimo legal de 1 mês de prisão (art. 73º, als. a) e b). A pena ajustada ao caso, vistos todos os elementos apurados, é de fixar ajustadamente em 6 meses de prisão, substituída por 180 dias de multa.

            A arguida insurge-se contra o quantum diário da multa, fixado em € 7, mas sem razão. Conforme resulta do nº 2 do art. 47º do Código Penal, a quantia correspondente a cada dia de multa é fixada pelo tribunal, dentro dos limites legais, entre 1 € e 498,80 €, em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.

A amplitude estabelecida neste preceito quanto ao quantitativo diário da multa teve em vista eliminar ou, pelo menos, esbater, as diferenças de sacrifício que o seu pagamento implica entre os arguidos possuidores de diferentes meios de a solver, realizando assim o princípio da igualdade de ónus e de sacrifícios [11].

É pacífico que o montante encontrado para a multa não deverá esvaziar a noção de pena, que enquanto censura social de um comportamento desconforme com o pressuposto pela ordem jurídica, há-de implicar necessariamente um sacrifício para o condenado, de forma a fazê-lo sentir esse juízo de censura, cumprindo assim a função preventiva que qualquer pena envolve, sob pena de se desacreditar esta pena, os tribunais e a própria justiça [12], sem que se deixe de atender, por outro lado, às necessidades de sobrevivência do condenado, garantindo-lhe um mínimo de rendimento para que possa fazer face às suas despesas correntes e às suas responsabilidades para com o seu agregado familiar.

Vista a matéria de facto provada e tendo presentes as considerações que antecedem, há que concluir que a taxa foi criteriosamente fixada pelo tribunal de 1ª instância.

III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, acordam nesta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em revogar parcialmente a sentença recorrida no que tange à condenação pelo crime de coacção agravada na forma tentada, reduzindo a pena nos termos apontados supra, ou seja, condena-se a arguida, pela autoria de um crime de coacção agravada na forma tentada, p. e p. pelos artºs 22º, 23º, 154º, nº 1 e 155º, nº 1, alínea a), todos do Cód. Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão, substituída por 180 (cento e oitenta) dias de multa à taxa diária de € 7 (sete euros), num total de € 1260 (mil duzentos e sessenta euros).

Em tudo o mais, nega-se provimento ao recurso.

Coimbra, 15 de Maio de 2019

(texto processado pelo relator e revisto por ambos os signatários)

Jorge Jacob (relator)

Maria Pilar de Oliveira (adjunta)

                       


[1]             Para desenvolvimento, cfr. A. Taipa de Carvalho, anotação ao art. 154º do CP in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I
[2]             Cfr., no sentido apontado, o Acórdão desta Relação de 20/05/2009, Proc nº 5/07.0PAPBL.CF1, in www.dgsi.pt
[3]      - Cfr. Américo Taipa de Carvalho, «Direito Penal - Parte Geral», pág. 66
[4]      - Cfr. Figueiredo Dias, «Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime», págs. 110-111.
[5]      - Assim se revelam as duas vertentes da prevenção geral: uma vertente de prevenção geral positiva, de integração ou de socialização, vocacionada para permitir a interiorização ou aprofundamento dos bens jurídico-penais; e uma vertente de prevenção geral negativa ou de dissuasão. Sobre o tema, Cfr. Taipa de Carvalho, ob. cit., págs 63-69.
[6]      - Evidenciando também duas vertentes distintas, uma de prevenção especial positiva e uma outra de prevenção especial negativa
[7]      - Sobre a relação da prevenção especial com o quantum da pena, cfr. Anabela Miranda Rodrigues, «O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena Privativa de Liberdade», in Problemas Fundamentais de Direito Penal - Homenagem a Claus Roxin, pág. 206.
[8]             - Figueiredo Dias, “Direito Penal Português”, pág. 331
[9]             - Remissão introduzida pela revisão do Código Penal operada pelo DL nº 48/95, de 15 de Março, se bem que já antes se entendesse ser este o critério a aplicar, por interpretação da norma na harmonia do sistema.
[10]            - Cfr. o Ac. do STJ de 10 de Abril de 1996, C.J.- Acórdãos do S.T.J., ano IV, tomo 2, pág. 168 e ss.
[11]            - Cfr. Maia Gonçalves, ob. cit., págs. 198/199 e Figueiredo Dias, “Direito Penal Português”, pág. 126 e ss.
[12]            - Cfr. Ac. da Relação de Coimbra, de 13/07/95, in C.J., ano XX, tomo 4, pág. 48.