Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1001/05.8PBFIG-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: TELEMÓVEL
TELEFONE
FACTURAÇÃO DETALHADA
Data do Acordão: 12/06/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº.S 187º A 190º DO C. P. PENAL; ARTº 2º, AL. D) DA LEI 41/2004, DE 18-08
Sumário: 1. A informação sobre se determinado e identificado telemóvel está a ser utilizado e qual o número do cartão que lhe está associado integra-se no conceito de dados de base.

2. Consequentemente, tal informação não está sujeita ao regime legal previsto nos artigos 187º a 190º do C. P. Penal.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

Relatório

Por despacho de 7 de Julho de 2006 , proferido no inquérito em que é queixosa A..., a Ex.ma Juiz de Instrução no 3.º Juízo do Tribunal da Figueira da Foz indeferiu o requerimento do Ministério Público em que este solicitava ao abrigo do art.174.º do C.P.P. a emissão de mandados de busca às residências de B....

Inconformado com o despacho de 7 de Julho de 2006 dele interpôs recurso o Ministério Público, concluindo a sua motivação do modo seguinte:
1. Ao indeferir os requeridos mandados de busca domiciliária, entendeu o despacho recorrido que a informação prestada a fls. 28 pela OPTIMUS e que permitiu obter a informação necessária para que tais mandados fossem promovidos, é nula por violar o disposto nos arts. 187.º, 189.º e 190.º, todos do Cód. Proc. Penal.
2. E isto porque, ainda que não se encontre junta aos autos qualquer facturação detalhada, a operadora móvel para prestar tal informação teve de aceder a dados de tráfego/conteúdo, uma vez que um cartão de acesso telefónico apenas passa a estar associado ao IMEI do telemóvel em que é utilizado após a efectivação da sua ligação à rede mediante a realização de um contacto telefónico.
3. Ou seja, o despacho recorrido enquadrou a informação de fls. 28, onde se refere que o telemóvel furtado funcionou a partir de 13.06.05 por referência ao cartão de acesso ao serviço telefónico móvel 93.2441030, titulado por B..., com endereço aí identificado, no conceito de dados de tráfego/dados de conteúdo.
4. Contudo, tal informação enquadra-se ainda no conceito de dados de base, uma vez que não se solicita informação sobre as comunicações estabelecidas, mas apenas sobre quem utilizou e utiliza o aparelho furtado, estando, pois, salvaguardada a confidencialidade das comunicações e a esfera privada íntima do utilizador, posto que nunca se saberá que chamadas foram realizadas, para quem, por quanto tempo, de onde e para onde, ou seja, com tal informação não se conseguirá saber nem a direcção, nem o destino nem a via ou trajecto, ou seja, a informação em causa não permite saber qual o relacionamento directo entre uns e outros através da rede, a localização do chamador e do chamado em dada comunicação, a frequência de tais chamadas, a data, a hora e a duração da comunicação.
5. Assim, o despacho recorrido interpretou mal o disposto no art. 190.º do Cód. Proc. Penal, posto que não se está perante qualquer “conversação” ou “comunicação”.
6. Termos em que deverá ser substituído por outro que determine a emissão dos promovidos mandados de busca domiciliária.
Termos em que assim se decidindo se fará a tão costumada Justiça!


A Ex.ma Juiz de Instrução sustentou a manutenção da sua posição em despacho de 27 de Julho de 2006.

O Ex.mo Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido do provimento do recurso.

Colhidos os vistos , cumpre decidir.

Fundamentação

O despacho recorrido tem o seguinte teor:

« Apesar de em outras situações se ter tomado uma posição diversa do que se vai tomar presentemente, tal deve-se apenas à circunstância de se ter feito um estudo mais profundo sobre a questão, tendo também em consideração a frequência com que tais questões são colocados e os direitos afectadas com as mesmos.
Compulsados os presentes autos verifica-se que nos mesmos apenas se investiga a prática de um crime de furto simples, p. e p. pelo art. 203.º, n.º 1 do C.P.
O Digno Magistrado do Ministério Público a fls. 53 veio solicitar a emissão de mandado busca à residência de B... porquanto este deterá em seu poder o telemóvel furtado.
Ora, compulsados os autos verifica-se que tal conclusão foi retirado na sequência da obtenção de informação solicitada à operadora de telefones móveis Optimus.
Analisada a informação prestado a fls. 28, verifica-se que a partir de 13.06.2005 o cartão de acesso telefónico registado em nome de João Morais passou a estar associado ao telemóvel subtraído.
Importa, então, apreciar, da validade da obtenção de tais dados no caso em análise, atento a moldura penal abstracta e o tipo de crime investigado de modo a assim aferir da legitimidade da utilização de tais dados.
Ora, conforme é já entendimento pacífico a obtenção de facturação detalhada relativa à utilização de um n.º de telefone está sujeito ao regime processual penal dos intercepções telefónicas.
Face ao exposto, a obtenção de dados de tráfego ao abrigo de tal regime não está previsto para os crimes de furto simples .
Em nossa opinião não obstante do informação prestada a fls. 28 não constar qualquer facturação detalhada o certo é que a operadora móvel para prestar tal informação teve que aceder a dados de tráfego uma vez que um cartão de acesso telefónico apenas passa a estar associado ao IMEI do telemóvel em que é utilizado após a efectivação da sua ligação à rede mediante a realização de um contacto telefónico .
Pelo exposto, é nosso entendimento que, não sendo a obtenção dos dados prestados a fls. 28 admissível nos presentes autos e verificando-se que o requerimento para emissão de mandados de busca se baseia única e exclusivamente naqueles, é de indeferir tal pretensão o que agora se faz.
De referir ainda que não se poderá alegar em caso algum indiciar-se aqui também a prática de um crime de receptação dolosa, crime que, atento a sua moldura abstracto sempre poderia implicar a admissibilidade de tais dados uma vez que aquando do obtenção destes não havia, como ainda não há, indícios da prática de tal crime.
Notifique.».
*

O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , o Ac. do STJ de 19-6-96 , no BMJ 458º , pág. 98 ).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar , sem prejuízo das de conhecimento oficioso .
No caso dos autos , face às conclusões da motivação do recorrente Ministério Público a questão a decidir é a seguinte:
- se a informação da operadora de comunicações móveis junta a folhas 28 não é admissível por configurar a obtenção de dados de tráfego fora da previsão do regime processual penal das intercepções telefónicas .
Passemos a conhecer da questão.
A Constituição da República Portuguesa depois de proclamar , no seu art.1º , a dignidade da pessoa humana como valor no qual se funda a República Portuguesa , declara no seu art.26.º, n.º1 , como expressão directa da dignidade da pessoa humana que « A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade , à capacidade civil , à cidadania , ao bom nome e reputação , à imagem , à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.».
A interferência no direito à reserva da intimidade da vida privada pode resultar de uma violação de domicílio ou do segredo da correspondência ou das comunicações.
Porquanto a garantia de inviolabilidade da correspondência ou de outras comunicações proporciona a garantia de que a vida privada se pode exprimir através destes meios de comunicação , o n.º1 do art.34.º, da C.R.P. estabelece que “ o domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis”.
No âmbito desta protecção da intimidade da vida privada o n.º 4 deste art.34.º declara que “ é proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência , nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação , salvo os casos previstos na lei em matéria de processo criminal.”.
Os Prof.s Gomes Canotilho e Vital Moreira defendem que a garantia do sigilo das comunicações abrange não apenas o conteúdo das comunicações , mas o próprio “tráfego” como tal ( espécie , hora, duração, intensidade de utilização). Aqui as restrições estão autorizadas apenas em processo criminal ( n.º4) , e estão igualmente sob reserva de lei ( art.18.º- 2 e 3 ) , só podendo ser decididas por um juiz. – cfr. Constituição da República Portuguesa anotada, 1993, pág. 212.
A garantia da reserva da vida privada resulta , igualmente, da proibição de utilização de provas obtidas com violação do segredo da vida privada , sendo que para o processo penal a C.R.P. prevê no seu art.32.º , n.º 8 , que « são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção , ofensa da integridade física ou moral da pessoa , abusiva intromissão na vida privada , no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.».
O art.126.º, n.º 3 do Código de Processo Penal considera ,ainda, por sua vez , que « ressalvados os casos previstos na lei , são igualmente nulas as provas obtidas mediante intromissão na vida privada , no domicílio , na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular. ».
Em matéria de processo criminal o art.269.º , n.º 1 , al. c) , do Código de Processo Penal estatui que durante o inquérito compete exclusivamente ao juiz de instrução ordenar ou autorizar a « intercepção , gravação ou registo de conversações ou comunicações , nos termos dos artigos 187.º e 190.º » .
O art.187.º do C.P.P. estabelece as condições de admissibilidade da intercepção e da gravação de conversações ou comunicações telefónicas , especificando os crimes relativamente aos quais é possível efectuar escutas telefónicas.
O art.190.º, do mesmo Código , prevê a extensão do regime previsto nos artigos 187.º, 188.º e 189.º a comunicações efectuadas por meio técnico diferente do telefone, designadamente correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática , bem como à intercepção das comunicações entre presentes.
No parecer n.º 16/94 da Procuradoria Geral da República , citando-se Yves Poullet e Francoise Warrante , distinguiram-se nos serviços de telecomunicações fundamentalmente três espécies ou tipologias de dados ou elementos: “ os dados relativos à conexão de rede , ditos dados de base ; os dados funcionais necessários ao estabelecimento de uma ligação ou comunicação e os dados gerados pela utilização da rede ( por exemplo, localização do utilizador, localização do destinatário, duração da utilização , data , hora , frequência) , dados de tráfego; dados relativos ao conteúdo da comunicação ou da mensagem , dados de conteúdo).” - ( cfr. Pareceres , Vol. VI , pág. 546).
Enquanto os dados de base , de ligação à rede , são elementos prévios e instrumentais de qualquer comunicação, os dados de tráfego são já elementos inerentes à própria comunicação , permitindo em tempo real ou a posteriori identificar os utilizadores , o relacionamento directo entre uns e outros através da rede , a localização , a frequência , a data , a hora e a duração.
Os “dados de tráfego” são actualmente definidos no art.2.al. d) da Lei n.º 41/2004 , de 18 de Agosto – que transpõe para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2002/58/Código da Estrada , do Parlamento Europeu e do Conselho , de 12 de Junho , relativa ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas - como “quaisquer dados tratados para efeitos do envio de uma comunicação através de uma rede de comunicações electrónicas ou para efeitos da facturação da mesma”, enunciando o n.º2 do art.6.º, desta Lei alguns dos elementos que integram aquele conceito.
A equiparação de dados de conteúdo , que são o núcleo mais fundamental da própria comunicação , aos dados de tráfego , para efeitos de protecção do sigilo das telecomunicações não é de todo pacífica na jurisprudência , designadamente quando está em causa a obtenção e junção aos autos da facturação detalhada.
Uma vez que dados da facturação detalhada são gerados por uma ligação telefónica e são susceptíveis de revelarem ou identificarem uma comunicação , o Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 17 de Maio de 2006 , subscrito pelo actual relator e adjuntos, decidiu que a facturação detalhada contém dados de tráfego e que estes merecem a mesma garantia no âmbito das comunicações que os dados de conteúdo , pelo que a competência do juiz de instrução é extensiva à requisição ou obtenção dos dados constantes da facturação detalhada, nos termos dos art.s 187.º e 190.º do Código de Processo Penal – cfr. proc. n.º 1265/06 , in www.dgsi.pt.
Sendo possível detectar uma diferença de grau entre a protecção de dados de conteúdo e de tráfico , por um lado, e a dos dados de base , por outro, uma vez que estes são apenas os elementos prévios e instrumentais de qualquer comunicação, em resultado de um contrato com a operadora da rede de telecomunicações, entendemos que estes não estão sujeitos ao regime dos art.s 187.º e 190.º do Código de Processo Penal .
No presente caso , resulta dos autos que , 25 de Agosto de 2005, a ofendida A.... apresentou queixa na PSP , contra desconhecidos, pelo furto do seu telemóvel de marca Motorola, com o n.º de série 355886003531723.
A Ex.ma Juiz de Instrução, a requerimento do Ministério Público, solicitou às operadoras de comunicações móveis , designadamente , que informassem se o telemóvel com o IMEI n.º 355886003531723 estava a ser utilizado desde o dia 25 de Agosto de 2005 e qual o número de cartão que lhe está associado.
A operadora Optimus respondeu ao solicitado através do ofício de folhas 28 do inquérito.
Na sequência desta informação o Ministério Público requereu a emissão de mandados de busca às residências do João Morais para apreensão do telemóvel com o IMEI n.º 355886003531723.
No despacho recorrido , que indeferiu o requerido pelo Ministério Público , ao considerar-se que a informação da operadora não é válida por configurar obtenção de dados de tráfego relativos a um crime de furto , não previsto no catálogo de crimes do art.187.º do C.P.P. , escreveu-se que “ Analisada a informação prestado a fls. 28, verifica-se que a partir de 13.06.2005 o cartão de acesso telefónico registado em nome de João Morais passou a estar associado ao telemóvel subtraído” e que , para a operadora móvel prestar a informação , “ teve de aceder a dados de tráfego uma vez que um cartão de acesso telefónico apenas passa a estar associado ao IMEI do telemóvel em que é utilizado após a efectivação da sua ligação à rede mediante a realização de um contacto telefónico.”
Salvo o devido respeito , não nos parece correcta esta interpretação do ofício de folhas 28.
Se o telemóvel com o IMEI n.º 355886003531723 só foi furtado em 25 de Agosto de 2005 , seria estranho ali dizer-se que a partir de 13.06.2005 o cartão de acesso telefónico registado em nome de João Morais passou a estar associado ao telemóvel subtraído.
O que se diz no dito ofício é que o João Morais é cliente da Optimus , tendo activado o serviço na operadora em 13/06/2005 e que o IMEI n.º 355886003531723 operou na rede através do cliente a partir do dia 26 de Agosto de 2005.
O ofício da Optimus não dá informações sobre as comunicações estabelecidas pelo utilizador do telemóvel com o IMEI n.º 355886003531723, pelo que está salvaguardada a confidencialidade das comunicações e a esfera privada íntima do utilizador, posto que nunca se saberá que chamadas foram realizadas, para quem, por quanto tempo, de onde e para onde.
Quanto à afirmação de que a operadora para dar a informação solicitada acedeu à facturação detalhada, e assim a dados de tráfego, não vemos a mesma minimamente demonstrada nos autos.
O que temos como demonstrado é que as informações constantes de folhas 28 dos autos inquérito foram obtidas em face de solicitação da Ex.ma JIC , mediante requerimento do Ministério Público , e são elementos prévios e instrumentais da comunicação, enquadrando-se no conceito de dados de base.
A obtenção e junção aos autos dos dados relativos à conexão de rede , permitindo saber que cartão funciona associado ao IMEI n.º 355886003531723 e a data de activação do serviço pelo titular do cartão na operadora não está , assim, sujeita ao regime legal previsto nos art.s 187.º a 190.º do Código de Processo Penal.
Consequentemente, o documento junto pela operadora a folhas 28 dos autos de inquérito não viola esse regime legal, nada obstando a que o mesmo seja valorado pelo tribunal.
Pelo exposto deve ser dado provimento ao recurso.

Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso do Ministério Público e revogar o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que , analisando os fundamentos da pretensão do Ministério Público constantes de folhas 53 dos autos inquérito e tendo em vista os pressupostos legais de admissibilidade da busca , decida em conformidade .
Sem custas.