Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
14/12.8TBSEI.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
DECISÃO DA AUTORIDADE ADMINISTRATIVA
FUNDAMENTAÇÃO
ELEMENTO SUBJECTIVO DA INFRACÇÃO.
Data do Acordão: 10/03/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE SEIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 58º, DO D.L. N.º 433/82, DE 27/10
Sumário: No processo de contra-ordenação, em sede de fundamentação da decisão administrativa não é de exigir o rigor formal nem a precisão descritiva que se exige numa sentença judicial.

Em matéria contra-ordenacional, o elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo, coloca-se em moldes substancialmente distintos dos que revestem a mesma problemática no domínio penal, já que estamos num domínio de ilícitos axiologicamente neutros, podendo o agente não ter conhecimento da proibição abstractamente aplicável, na sua descrição jurídica e contudo possuir a consciência do ilícito relevante para efeitos de culpa.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:



I – RELATÓRIO:

Por decisão da Câmara Municipal de W... proferida nos autos de contra-ordenação nº 206/2010 foi a arguida A... condenada no pagamento de coima no montante de € 500,00 pela prática de uma contra-ordenação, p. e p. pelos art. 98.º, n.º 2, do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação.
A arguida interpôs recurso de impugnação judicial para o Tribunal Judicial de Seia, que ali correu termos pelo 1º Juízo.
O recurso foi decidido por despacho que o julgou procedente, declarando nula a decisão administrativa e absolvendo a arguida da contra-ordenação pela qual havia sido condenada, dando sem efeito a sanção que ali lhe foi aplicada.
Inconformado, recorre o M.P., retirando da motivação do recurso as seguintes conclusões:
I - Na decisão administrativa não têm, obrigatoriamente, de constar factos alusivos ao elemento subjectivo da infracção imputada.
II - Com efeito, a culpa nas contra-ordenações não se baseia em qualquer censura ético - penal, mas tão só na violação de certo procedimento imposto ao agente, bastando-se por isso com a imputação do respectivo facto ao agente.
III - Assim, a decisão administrativa aqui em causa não sofre de qualquer vício, porquanto da mesma resulta suficientemente descri ta a factual idade integradora do fundamento de facto - e de direi to - do ilícito contra-ordenacional.
IV- Acresce que, o elemento subjectivo da infracção pertence à vida interior do agente, mostrando-se consequentemente insusceptível de directa apreensão, retirando-se a forma/motivação como o agente actuou dos factos objectivos.
V - A lei não define qual o âmbito ou rigor da fundamentação da decisão administrativa, mas tem-se entendido que não se impõe aqui uma fundamentação com o rigor e exigência que se impõem no art.º 3740/2 do C.P.Penal, pelas seguintes razões: por um lado, porque esta é uma decisão administrativa, que não se confunde com a sentença penal, como o ilícito contra-ordenacional não se confunde com o ilícito criminal; por outro lado, porque aquela decisão administrativa, quando impugnada, converte-se em acusação, passando o processo a assumir uma natureza judicial.
VI - Essa fundamentação, tal como é estabelecida no artº 58º do R.G.C.O., será suficiente desde que se justifique as razões pelas quais é aplicada esta ou aquela sanção ao arguido, de modo que este, lendo a decisão, se possa aperceber, de acordo com os critérios da normalidade de entendimento, das razões pelas quais é condenado e, consequentemente, impugnar tais fundamentos, o que no presente caso ocorre.
VII - Com efeito, constam da decisão administrativa todos os elementos exigidos pelo art. ° 58°/1, sendo clara a razão pela qual veio a ser a arguida condenada com coima (constando também na parte decisória as normas jurídicas que pela mesma foram violadas e o montante da coima em que a mesma foi condenada, por violação das normas que ali são indicadas, e a forma como foram cometidas, ou seja, todos os elementos necessários para que a arguida pudesse exercer, como exerceu, o seu direito de defesa, tendo-se, até, pronunciado, como adiante referiremos, sobre o elemento subjectivo).
VIII - Analisada a decisão administrativa consta-se que nela, além do mais, consta, desde logo, a expressão “sem que possua licença, emitida pelos Serviços de Obras Particulares deste Município” (cfr. fls. 43), a qual tem um sentido naturalístico e corresponde a dizer que a construção em causa foi levada a cabo desrespeitando o licenciamento prévio por parte da Câmara Municipal.
XIX - Acresce que na decisão administrativa se diz expressamente que a arguida agiu livre e conscientemente (cfr. fls. 46), pelo que não restam dúvidas de que aquela decisão aludiu ao elemento subjectivo da contra-ordenação imputada.
X - Assim, a descrição contida na decisão administrativa é suficiente para que a Recorrente pudesse exercer, como efectivamente exerceu, o seu direito de defesa, não se verificando, pois, a alegada nulidade.
XI - Aliás, tanto assim é que, um dos aspectos que a Recorrente pôs em causa na impugnação judicial por si apresentada foi, precisamente, ter-se considerado que ela agiu culposamente, o que ela rebateu, e de que é paradigmática esta sua afirmação "Refuto em absoluto qualquer comportamento doloso ... " (cfr. fls. 54); o que significa que a própria Recorrente não teve dúvida do tipo de imputação subjectiva que lhe foi feito, relativamente à contra-ordenação que lhe foi assacada.
XII - No processo contra-ordenacional previsto no R.G.C.O não se indicam quais os casos de nulidade, pelo que será aplicável o regime previsto no Código de Processo Penal, por força do disposto no artigo 41° R.G.C.O., que estabelece uma remissão global para as normas do processo criminal que, por esta via, se constituem genericamente em normas integradoras do processo contra-ordenacional, pelo que considerando o disposto no artigo 118º n01 do C.P.P. - assim subsidiariamente aplicável - na violação ou inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei.".
XIII - Assim, para que algum acto processual, relativamente ao qual tenha havido violação ou inobservância das disposições legais do processo penal, padeça do vício da nulidade é necessário que a lei o diga expressamente; de outro modo, o acto viciado sofrerá do vício menor da irregularidade, submetido ao regime do artigo 123°, mas não será nulo (cf. artigo 118º, nº 2, do CPP) .
XIV - A inobservância dos requisitos estabelecidos no artigo 58º, nomeadamente no seu nº 1 - não é sancionado como nulidade (neste sentido António Beça Pereira, in "Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas", 3a ed., p. 104 e 105), podendo, quando muito, existir uma irregularidade, e será seguindo o regime do artigo 123° do Código de Processo Penal, que se apurará da possibilidade de aproveitamento (ou não) do processado desde a decisão administrativa (inclusive) (cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 5.2.97, proferido no recurso nº 5583, Acórdão da Relação do Porto de 19.2.97, proferido no recurso nº 40009; Ac. da Relação do Porto de 19 de Fevereiro de 1997, sumariado no BMJ 464-614 e Ac. da Relação de Coimbra de 7 de Julho de 1998, sumariado no BMJ 479-723).
xv - Assim, e de acordo com o princípio da legalidade, expressamente previsto no artigo 43° do R.G.C.O., a decisão da autoridade administrativa que viole o artigo 58º desse diploma legal, não será nula, mas apenas padecerá de irregularidade, a qual, nos termos do artigo 123º do C. P. P. (dispositivo aplicável por não colidir com nenhuma das normas constantes do DL nº 433/82, de 27 de Outubro), nunca foi arguida no presente caso, pelo que a existir estaria sanada.
XVI - Ainda que a decisão administrativa fosse nula a consequência nunca poderia ser a simples absolvição da arguida, com o consequente arquivamento dos autos.
XVII - Na verdade, existindo tal nulidade ela teria como consequência a remessa do processo de contra-ordenação para a autoridade administrativa, pois o art. 122.°, nº 2, do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do art. 41.°, n.º 1, do R.G.C.O., assim o impõem, pelo que qualquer nulidade de que a decisão administrativa padeça, sempre determinaria o reenvio dos autos para a entidade administrativa, com a subsequente prolação de nova decisão administrativa expurgada daquele vício, e não o arquivamento dos autos, como sucedeu neste caso.
XVIII - Violou, assim, a decisão recorrida o disposto nos art ° s. 32º, 41º, nº 1 e 58º do R.G.C.O. e o disposto nos arts . 118°; 122°, nº 2 e 123° do C.P. Penal.
TERMOS EM QUE,
deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, uma vez que a decisão administrativa não evidencia nenhuma nulidade nem padece de qualquer outro vício, e ser designada data para realização de audiência de discussão e julgamento, com a produção da prova indicada pelo Ministério Público e pela arguida no recurso da decisão da entidade administrativa, ou, caso assim não se entenda, o reenvio do processo para a autoridade administrativa, a fim de a decisão administrativa ser expurgada de qualquer nulidade, assim se fazendo justiça

A arguida respondeu, formulando inúteis conclusões, já que verdadeiramente o não são por se limitarem a reproduzir o teor do que alegou no corpo da resposta.
Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, sufragando a posição assumida pelo M.P. em 1ª instância, pronunciando-se pela procedência do recurso.
Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, as questões suscitadas são as segintes:
- Terá a decisão administrativa que conter obrigatoriamente factos alusivos ao elemento subjectivo da infracção?
- A decisão administrativa que não observe integralmente os requisitos previstos no art. 58º, nº 1, do RGCOC, será nula ou meramente irregular?
- Se porventura se concluísse pela nulidade dessa decisão, a consequência, em sede de recurso de impugnação judicial, seria a absolvição da arguida e o arquivamento dos autos, ou o reenvio dos autos para a autoridade administrativa, visando a prolação de nova decisão expurgada daquele vício?

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II - FUNDAMENTAÇÃO:

A decisão recorrida tem o seguinte teor:
A..., arguida em processo de contra-ordenação, foi condenada no pagamento de uma coima de 500,00 euros, pela prática de uma contra-ordenação, p. e p. pelos art. 98.º, n.º 2, do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação.
A arguida foi ainda condenada nas respectivas custas processuais, no montante de €51,00.
Inconformada, veio impugnar judicialmente a decisão administrativa, defendendo que deve a mesma ser revogada.
Cumprido o disposto no art. 64.º/2 do DL 433/82, de 27 de Outubro (Regime Geral das Contra-ordenações), não foi apresentada oposição pela arguida e pelo Magistrado do Ministério Público a decisão por mero despacho.
A instância mantém-se válida e não há quaisquer nulidades, excepções ou questões prévias que se imponha conhecer.
Cumpre decidir.
Nos termos do disposto no art. 58.º, n.º 1, do DL 433/82, de 27 de Outubro (Regime Geral das Contra-ordenações) da decisão que aplique uma coima deve constar: “a identificação dos arguidos; a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas; a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão; a coima e as sanções acessórias.” (sublinhado nosso).
Os requisitos consignados no citado art. 58º visam claramente assegurar ao arguido a possibilidade de exercício efectivo dos seus direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão.
Ora, a decisão administrativa objecto de recurso não obedece aos apontados pressupostos legais.
Nos factos provados enunciados na decisão administrativa objecto de recurso, apenas constam factos que preenchem o tipo objectivo da contra-ordenação em causa.
Com efeito, a decisão administrativa não indica, desde logo, factos concretos de onde se possa concluir que a arguida tenha agido com culpa designadamente negligente.
Ali não se faz qualquer referência a factos concretos que integrem o elemento subjectivo da prática da alegada contra-ordenação.
Ora, decorre do artigo 8º, nº1 do D.L. 433/82 de 27 de Outubro que “Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”.
O conceito de dolo está definido no artigo 14º do C.Penal.
Decorre de tal disposição legal que:
“1. Age com dolo quem, representando-se um facto que preenche um tipo de crime, actua com a intenção de o realizar.
2. Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta.
3. Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como uma consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização”.
Por sua vez, decorre do artigo 15º do C.Penal que:
“Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.”
Na negligência há uma omissão de um dever de cuidado ou diligência, a qual torna a conduta censurável.
A única referência ao elemento subjectivo na decisão administrativa é feita na parte do direito (parte IV), no ponto 2, onde se refere “Analisados os factos à luz dos normativos legais, uma primeira conclusão se impõe: a de que a arguida agiu livre e conscientemente bem sabendo que à sua conduta estava necessariamente ligada a um facto ilícito”.
Ora, tal é manifestamente insuficiente, uma vez que a conclusão de que a arguida actuou a título de dolo ou negligência sempre deveria ser minimamente sustentada através de concretização factual.
No entanto, tal consideração é uma mera conclusão, que não tem qualquer sustentação. Aliás, face aos factos apurados e descritos na parte III, não é possível retirar qualquer conclusão quanto a uma eventual acção livre, voluntária e consciente da arguida.
Assim, não resultou provado qualquer facto no sentido de que a arguida tenha agido com conhecimento da ilicitude da sua conduta.
Nos termos do artigo 62º, nº1 do DL 433/82, de 27 de Outubro, se o arguido interpuser recurso da decisão administrativa condenatória esta converte-se em acusação, ao serem apresentados os autos ao juiz, decorrendo do artigo 283º, nº3, al. b) do C.P.P., por remissão do artigo 41º do D.L. aludido, que a acusação contém, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança.
Assim sendo, visto que a decisão em apreço não obedece aos mencionados pressupostos legais, omitiu-se uma formalidade essencial do procedimento contra-ordenacional, geradora de nulidade insuprível da inerente decisão aplicadora da coima.
DECISÃO:
Nestes termos, atentos os fundamentos expostos, julgo procedente o recurso interposto pela arguida, pelo que declaro nula a decisão administrativa objecto de recurso e, em consequência, absolvo a arguida A... da prática da contra-ordenação pela qual foi condenada, dando sem efeito as sanção que ali lhe foi aplicada.
Sem custas.
Notifique.
Comunique à entidade administrativa”

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Vejamos então a primeira das questões que acima enunciámos, que consiste em saber se a decisão administrativa tem que conter obrigatoriamente factos alusivos ao elemento subjectivo da infracção.
O tribunal a quo considerou que a decisão da autoridade administrativa não contem todos os elementos que dela necessariamente deveriam constar, decorrentes do disposto no art. 58º, nº 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas (diploma a que se reportam todas as demais disposições citadas sem menção de origem), nomeadamente por dela não constarem factos concretos de onde se possa concluir que a arguida tenha agido com culpa, ainda que na modalidade de negligência, portanto, factos integradores do elemento subjectivo da infracção. No desenvolvimento da decisão em recurso diz-se, a dado passo, que «a única referência ao elemento subjectivo na decisão administrativa é feita na parte do direito (parte IV), no ponto 2, onde se refere “Analisados os factos à luz dos normativos legais, uma primeira conclusão se impõe: a de que a arguida agiu livre e conscientemente bem sabendo que à sua conduta estava necessariamente ligada a um facto ilícito”./Ora, tal é manifestamente insuficiente, uma vez que a conclusão de que a arguida actuou a título de dolo ou negligência sempre deveria ser minimamente sustentada através de concretização factual. / No entanto, tal consideração é uma mera conclusão, que não tem qualquer sustentação. Aliás, face aos factos apurados e descritos na parte III, não é possível retirar qualquer conclusão quanto a uma eventual acção livre, voluntária e consciente da arguida. / Assim, não resultou provado qualquer facto no sentido de que a arguida tenha agido com conhecimento da ilicitude da sua conduta.».
Nos termos previstos no diploma a que nos reportamos, compete à autoridade administrativa proceder à investigação e instrução do processo (art. 54º, nº 2), devendo, no decurso da instrução, dar cumprimento ao disposto no art. 50º, assegurando o direito de audição e defesa do arguido, como de resto sucedeu no caso dos autos. Registe-se, já agora, que a arguida se prevaleceu desse direito, tendo apresentado oralmente a sua defesa (cfr. fls. 25).
Se no âmbito do recurso de impugnação judicial em matéria contra-ordenacional algum paralelismo pode ser estabelecido com a acusação em processo-crime é precisamente na apresentação dos autos de contra-ordenação ao juiz (portanto, contendo já a decisão administrativa proferida nos termos do art. 58º), que equivale à acusação, como expressamente o dispõe o art. 62º, nº 1, sendo, pois, esta apresentação, que fixa o objecto do processo, ainda assim, em termos algo distintos dos previstos no processo criminal. Com efeito, impugnada judicialmente a decisão de autoridade administrativa em processo de contra-ordenação, o tribunal de 1ª instância conhece de facto e de direito, não estando vinculado aos factos tidos como provados na decisão impugnada, e isto quer o juiz decida através de simples despacho, quer mediante audiência de julgamento. É o que resulta da interpretação conjugada das normas constantes do nº 4 do art. 64º, do nº 2 do art. 72º e da al. a) do nº 2 do art. 75º do DL nº 433/82. Compete, pois, ao juiz, valorar todos os factos relevantes para a decisão, independentemente da sua proveniência (poderão decorrer da acusação - valendo como tal a apresentação dos autos ao juiz, nos termos do art. 62º, nº 1, poderão ser factos resultantes da participação, das diligências efectuadas ou da decisão administrativa - das alegações de recurso ou da discussão da causa), desde que se enquadrem no âmbito do objecto do processo e sejam relevantes para a caracterização da contra-ordenação e das suas circunstâncias juridicamente relevantes [Neste sentido, o Ac. da Relação do Porto, de 11/06/97, proc. nº 40337]. O que o tribunal de recurso não pode é violar a proibição da reformatio in pejus, modificando a sanção anteriormente imposta em prejuízo de qualquer dos arguidos [É assim desde a entrada em vigor das alterações introduzidas pelo DL nº 244/95, de 14 de Setembro, que introduziu o art. 72º-A, proibindo a reformatio in pejus. O regime anterior não só não tinha esta limitação, como expressamente a excluia - al. c) do nº 2 do art. 58º, revogada pelo DL nº 244/95]. Aliás, o sentido útil da não vinculação do tribunal de recurso ao texto da acusação é precisamente o de permitir a este uma apreciação que esteja de acordo com a verdade material, sem as limitações decorrentes de uma decisão administrativa frequentemente deficiente, como decorrência da impreparação das autoridades administrativas para a apreciação de questões de natureza eminentemente jurídicas, por vezes de grande complexidade. Claro que essa não vinculação não é ilimitada. O tribunal não pode, nomeadamente, entrar em linha de conta com factos que permitam a imputação de uma contra-ordenação diversa da considerada pela autoridade administrativa ou que tenham como consequência a imputação de uma conduta mais grave, pois que aí estaríamos já no domínio da violação do direito de defesa do arguido, que seria confrontado com uma imputação inovadora e da qual não havia podido defender-se. Não é esse, no entanto, o caso em apreço, em que a recorrente, através da defesa que expendeu na fase administrativa, teve ocasião de se defender dos factos que lhe eram imputados.
Claro que nos termos do art. 8º, nº 1, do RGCOC, só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência, o que significa que o legislador não descurou o princípio da culpa como fundamento da imputação contra-ordenacional. Relembraremos, no entanto, o que vimos afirmando em recursos similares por nós relatados: “(…) as contra-ordenações não respeitam à tutela de bens jurídicos ético-penalmente relevantes, mas apenas e tão-só à tutela de meras conveniências de organização social e económica e à defesa de interesses da mais variada gama, que ao Estado incumbe regular através de uma actuação de pendor intervencionista, que nos últimos anos se vem acentuando com progressiva visibilidade, impondo regras de conduta nos mais variados domínios de relevo para a organização e bem-estar social. Estas normas, ditas de mera ordenação social, têm a sua tutela assegurada através da descrição legal de ilícitos que tomam o nome de contra-ordenações, cuja violação é punível com a aplicação de coimas, a que podem, em determinados casos, acrescer sanções acessórias. A execução da vertente sancionatória pressupõe um processo previamente determinado, de pendor não tão marcadamente garantístico como o processo penal (que por força da gravosa natureza das sanções que por seu intermédio podem ser aplicadas, exige a observância de apertadas garantias de defesa) mas que assegure, ainda assim, os direitos de audiência e de defesa (arts. 32º, nº 10, da CRP e art. 50º do RGCO). Para essa finalidade, o legislador adoptou um procedimento consideravelmente mais simplificado e menos formal do que o processo penal, cujo quadro geral consta dos arts. 33º e ss. do RGCO. Retenha-se, desde já, que contrariamente ao que muitas vezes se pretende fazer crer, não são aplicáveis ao processo de contra-ordenação todas as normas processuais penais que regulam matérias não especificamente reguladas no âmbito deste último domínio, mas apenas e tão só os preceitos reguladores do processo criminal (que até poderão não ser do Código de Processo Penal) que não colidam com o que resulta do RGCO. Isto é, que não colidam com as normas deste diploma nem com os princípios que lhe estão subjacentes. É esta a leitura ajustada do nº 1 do art. 41º do RGCO, em cujos termos, “sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal”. Trata-se, por outro lado, de um processo que no seu início é meramente administrativo e que só se torna judicial se o arguido pretender impugnar a decisão proferida na fase administrativa” - Cfr. Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 21/11/2007, proc. nº 0744369, disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jtrp. Acresce que a Constituição da República Portuguesa, no próprio artigo em que consagra as garantias do processo criminal (art. 32º), “(…) se limita a referir, sob o nº 10, que nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa, abrindo campo a uma regulamentação do direito de mera ordenação social menos garantística do que a do processo criminal, tendo, no entanto, o legislador ordinário, optado por incluir no âmbito do respectivo regime legal um quadro de garantias que excedem largamente aquele mínimo constitucionalmente imposto. (…) De resto, o processo de contra-ordenação não é, nem na sua estrutura, nem na sua dignidade, um processo equivalente ao processo criminal, não está sujeito aos mesmos imperativos constitucionais e o simples facto de a lei não prever para este processo uma estrutura em tudo idêntica àquele nem a intervenção de autoridades judicias na fase administrativa, não faz claudicar as garantias de defesa, asseguradas pelos princípios do contraditório e da audiência prévia e pela admissibilidade de recurso dos despachos e das decisões administrativas, nos termos do art. 55º do RGCO e da própria decisão judicial proferida em impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa, nos casos acautelados no art. 73º do mesmo diploma” - Ac. do TRP, de 11/03/2009, proc. nº 0843225, disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jtrp .
Claro que de todo o modo, por força dos direitos de audiência e de defesa que assistiam à arguida, esta sempre teria que ser elucidada relativamente a todos os aspectos relevantes para a decisão a proferir. E como se verifica através dos elementos constantes do processo, a autoridade administrativa notificou a arguida para prestar declarações, remetendo-lhe cópia da participação, da qual, por seu turno, consta a referência à contra-ordenação imputada à arguida na sua forma dolosa, pelo que a única conclusão a retirar dessa notificação é a de que a autoridade administrativa imputava à arguida a prática da contra-ordenação a título de dolo. A arguida teve, pois, na fase administrativa, a possibilidade de se defender da contra-ordenação pela qual veio a ser efectivamente sancionada.
A questão controvertida, contudo, é a de saber se a mera indicação da norma aplicável na vertente dolosa da infracção era, só por si, para se ter por cumprida a exigência de transmissão dos elementos necessários para a defesa da arguida ou se seria necessário ainda dar-lhe conhecimento da factualização do elemento subjectivo.
O elemento subjectivo, na imputação a título de dolo, pressupõe a indicação da actuação livre, deliberada e consciente; e na imputação negligente, pressupõe a indicação de que o agente actuou sem o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigado e de que era capaz, actuando sem se conformar com a realização do facto, apesar de o ter representado como possível, ou não chegando sequer a representar a possibilidade da sua realização.
Visto o teor da decisão administrativa, verifica-se que dela consta, na parte de discussão de direito, a referência à circunstância de a arguida ter agido livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta estava necessariamente ligada a um facto ilícito.
É certo que esta é já uma conclusão jurídica, não estando factualizada na parte dos elementos de facto narrados na decisão. Mas, como tivemos ensejo de referir, em sede de decisão administrativa não é de exigir o rigor formal nem a precisão descritiva que se exige numa sentença judicial. Certo é que a decisão administrativa em causa contém todos os elementos que dela necessariamente devem constar e portanto não ocorre justificação para a absolvição nos termos que vieram a ser decretados pelo tribunal recorrido. Na verdade, como se refere no recentíssimo Acórdão desta Relação de Coimbra, de 03/07/2012, trata-se de “(…) uma fase administrativa, sujeita às características de celeridade e simplicidade processual, pelo que o dever de fundamentação deverá assumir uma dimensão qualitativamente menos intensa em relação à sentença penal. Por seu turno, tal como advoga António Beça Pereira, in Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas Anotado, 6.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2005, pg. 109 e António Leones Dantas, in Revista do Ministério Público, n.º 61, pgs. 118 e seguintes, também não se deve recorrer ao disposto no artigo 283.º, n.º3, al. b), do Código de Processo Penal, (requisitos da acusação) visto que, se não for interposto recurso da decisão condenatória, esta não chega, sequer, a assumir a natureza de acusação. (…) O que deve resultar claro para a arguida são as razões de facto e de direito que levaram à sua condenação por forma a que a mesma possa fazer um juízo de oportunidade sobre a conveniência da apresentação da impugnação judicial e, posteriormente, caso tal aconteça, permitir ao Tribunal conhecer, sem se substituir na investigação do ilícito àquela entidade administrativa, do processo lógico da formação da decisão. Tal fundamentação será suficiente desde que a entidade administrativa justifique as razões pelas quais, atentos os factos descritos, as provas obtidas e as normas violadas, é aplicada a sanção à arguida, de modo que esta, após uma leitura da decisão, de acordo com os critérios de normalidade de entendimento, perceba as razões pelas quais é condenada e, consequentemente, possa impugnar tais fundamentos” - Proferido no Proc. nº 1337/11.9TBVNO.C1, disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jtrc.
A decisão recorrida refere que dos facto apurados « (…) não é possível retirar qualquer conclusão quanto a uma eventual acção livre, voluntária e consciente da arguida. Assim, não resultou provado qualquer facto no sentido de que a arguida tenha agido com conhecimento da ilicitude da sua conduta». Contudo, o elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo, em matéria contra-ordenacional, coloca-se em moldes substancialmente distintos dos que revestem a mesma problemática no domínio penal, já que estamos num domínio de ilícitos axiologicamente neutros, podendo o agente não ter conhecimento da proibição abstractamente aplicável, na sua descrição jurídica e contudo possuir a consciência do ilícito relevante para efeitos de culpa. Sendo irrelevante neste domínio o desconhecimento da lei, o que verdadeiramente importa é que a arguida tivesse a noção empírica de que não poderia efectuar obras na sua residência sem o seu prévio licenciamento, facto do domínio do subjectivo e que portanto não pode ser alcançado através de prova directa, antes impondo o recurso à presunção judicial, diluída naquilo que constitui a livre convicção do tribunal. Mas esse, é facto a apurar em audiência, após produção da prova que ao caso couber, uma vez que se evidencia que o recurso não pode ser decidido por mero despacho.
Resultam prejudicadas as demais questões suscitadas no recurso.

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III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, concede-se provimento ao recurso, determinando-se que o tribunal a quo designe data para audiência com produção da prova que entender necessária, nos termos previstos no art. 72º do RGCOC, proferindo depois sentença em conformidade com a prova produzida.
Sem tributação.

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Coimbra, ____________
(texto processado e revisto pelo relator)




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(Jorge Miranda Jacob)




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(Maria Pilar de Oliveira)