Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2/11.1GDCNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALCINA DA COSTA RIBEIRO
Descritores: CRIME HABITUAL
CRIME DE TRATO SUCESSIVO
PLURALIDADE DE INFRACÇÕES
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
VIOLAÇÃO
Data do Acordão: 04/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALCINA DA COSTA RIBEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 164.º E 171.º, DO CP
Sumário: I - Não é a unidade de resolução que pode conferir a uma reiteração de actos homogéneos o cariz de crime habitual ou de trato sucessivo; somente a estrutura do respectivo tipo incriminador há-de pressupor a reiteração.

II - Tanto o tipo de crime de abuso sexual de crianças, como os tipos de abuso sexual de menores dependentes e de violação, não contemplam a «multiplicidade de actos semelhantes» inerente à figura do crime habitual ou de trato sucessivo.

III - No caso dos autos, cada um dos vários actos do arguido foi perpetrado num diverso contexto situacional, necessariamente comandado por uma diversa resolução, e traduziu-se numa autónoma lesão do bem jurídico protegido. Consequentemente, por referência a cada grupo de atos, existe pluralidade de sentidos de ilicitude típica e, portanto, de crimes - de abuso sexual de crianças e de violação - cometidos.

Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

1 - Em processo comum e com intervenção do tribunal colectivo, o Ministério Público deduziu acusação contra A... , divorciado, trabalhador indiferenciado, nascido em 11 de Fevereiro de 1972, filho de (...) e de (...), natural de (...), e residente na Rua (...),

imputando-lhe a autoria material, e em concurso real, de 208 crimes de violação agravada, p. e p. nos termos conjugados dos art.s 164º, n.º 1 e 177º, n.º 5, ambos do Código Penal, 25 crimes de violação agravada, p. e p. nos termos conjugados dos art.s 164º, n.º 1 e 177º/n.º 6 e um crime de sequestro, p. e p. no art. 158º, n.º 1, do Código Penal.

2 – O Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, E.P.E. (melhor identificado nos autos) deduziu pedido de reembolso contra o arguido, por via do qual impetrou a condenação deste no pagamento da quantia de € 147, acrescida de juros moratórios à taxa legal, a partir da notificação até efectivo e integral pagamento, devido à assistência prestada à queixosa B... em consequência da actuação do arguido.

3 - Por seu turno, C..., em representação legal da sua filha menor B... (todos melhor identificados nos autos), deduziu pedido de indemnização cível impetrando a condenação do arguido no pagamento da quantia total de € 1.500.000,00, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a notificação até efectivo e integral pagamento, a título de compensação pelos diversos danos não patrimoniais sofridos em consequência da conduta de tal arguido, consubstanciadora dos crimes de que o mesmo é acusado pelo Ministério Público.

4 - Realizada a audiência de discussão e julgamento, veio a acusação ser julgada parcialmente procedente, por provada, e em consequência, decidiu-se:

a) Condenar o arguido A..., como autor material de 104 (cento e quatro) crimes de violação agravada, p. e p. nos art.s 164º/n.º 1-a) e 177º/n.º 6, ambos C.P., na pena de 5 (cinco) anos de prisão por cada um desses crimes;

b) Condenar o arguido A..., como autor material de 12 (doze) crimes de violação agravada, p. e p. nos art.s 164º/n.º 1-a) e 177º/n.º 5, ambos C.P., na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão por cada um desses crimes;

c) Condenar o arguido A..., como autor material de um crime de sequestro, p. e p. no art. 158º/n.º 1 C.P., na pena de 9 (nove) meses de prisão;

d) Operando-se o cúmulo jurídico pertinente, de acordo com os critérios dos art.s 30º/n.º 1 e 77º/nºs 1 e 2 C.P. (tomando-se em conta, em conjunto, os factos e a personalidade revelada pelo mesmo), condenar o arguido A... na pena única de 9 (nove) anos de prisão.

5 – No que toca aos pedidos cíveis, decidiu o tribunal de primeira instância:

a) Julgar o pedido cível formulado pela demandante, B..., representada pelo seu pai C..., parcialmente provado e procedente, condenando o demandado A... a pagar àquela demandante a quantia de € 70.000 (setenta mil euros), acrescida de juros, à taxa legal, contados da presente decisão até efectivo e integral pagamento, absolvendo o demandado do demais contra si peticionado.

b) Julgar o pedido cível de reembolso formulado pelo demandante Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, E.P.E. provado e procedente, condenando o demandado A... a pagar àquele demandante a quantia de € 147 (cento e quarenta e sete euros), acrescida de juros, à taxa legal, contados da notificação do pedido ao demandado até efectivo e integral pagamento.

6 - Inconformado com estas condenações, delas recorre o arguido, formulando as Conclusões que, a seguir, se sintetizam:

1ª – O Acórdão de que ora se recorre formou a sua convicção no depoimento da menor B..., os quais não forma coerentes nem verosímeis.

2ª – Existem inúmeras imprecisões e falta de rigor na descrição dos factos, sendo na sua generalidade vagos e inconsistentes.

3ª – A menor ao ser inquirida não responde com convicção ao que lhe é perguntado, sendo muitas das suas respostas simplesmente “sim” e “não”, não contando por sua iniciativa e de forma continuada qualquer descrição dos factos, o que põe em causa a autenticidade dos depoimentos.

4ª – Não é credível que a ofendida não se recorde sobre a data do início concreto em que alega ter sido vitima dos abusos, nomeadamente, a hora, ou a altura do dia, não precisando se foi de manhã, à tarde ou à noite, e, ainda em que ano tal começou a ocorrer e que idade tinha.

5ª – Além das declarações da menor sobre os factos dados como provados nos nºs 4 a 26, não há outras testemunhas a comprová-los.

6ª – As testemunhas ouvidas sobre tal matéria, limitaram-se, algumas delas, a dizer que suspeitavam, ou desconfiavam, sem que dessem uma justificação plausível para tais suspeitas.

7ª – Existindo, assim, uma nítida contradição nos seus depoimentos, uma dizendo que tais suspeitas se baseavam pelo seu “ar triste” e outras dizendo que não suspeitaram de nada, face ao comportamento alegre da menor.

8ª – Estes depoimentos contraditórios devem ser valorados de igual forma.

9ª – A menor referiu que, quando o Recorrente a obrigava a ter relações sexuais, gritava e chorava muito, fazendo-o quando a sua tia-avó estava em casa.

10ª – Esta tia-avó declarou nunca ter ouvido gritos nem choros.

11ª – Não tendo sido provada a surdez desta testemunha, a única conclusão a tirar é de que não houve gritos.

12ª – A menor diz que só contou o sucedido a uma única amiga, D....

13ª – Esta amiga não foi ouvida no processo, quando o devia ter sido.

14ª – Relativamente ao episódio de 3 de Janeiro de 2011, além das declarações prestadas pela menor, nenhuma prova foi feita, quer nos autos, quer no julgamento, sobre a veracidade de tal depoimento.

15ª – O depoimento da jovem mostra-se absurdo, se comparado com a carta que, um mês antes, aquela tinha enviado ao professor W..., acusando o arguido de a ter agredido por uma ou duas vezes, devido a um namorico que ela tinha na internet, com o qual a sua mãe não estava de acordo.

16ª – É estranho que, sentindo medo do agressor, tenha tido a coragem de escrever tal carta.

17ª – As testemunhas ouvidas sobre tal episódio nada provaram, quanto ao declarado pela menor, pois o depoimento de S... é mais que confuso e contraditório e o segundo nada sabe e nada lhe foi referido pela menor.

18ª – Deveria ter sido valorado o depoimento prestado pelo arguido.

19ª - Donde os factos sob os nºs 17º a 21º, foram indevidamente julgados como provados.

20ª - Os factos provados sob os nºs 4º a 26º não têm qualquer sustentação face aos depoimentos e declarações atrás referidos.

21ª - O exame pericial realizado em 5 de Janeiro de 2011, é inconclusivo sobre a violação da vítima.

22ª – A prova produzida nos presentes autos impunha ao tribunal recorrido uma decisão diferente, considerando que o Recorrente não praticou os factos que lhe foram imputados na acusação e sentença, devendo, por isso ser absolvido.

23ª – A fundamentação do Acórdão recorrido não assenta em quaisquer factos que possam ser considerados provados.

24ª – A condenação do arguido é consequência de uma construção, aparentemente lógica-dedutiva, completamente desfasada e inclusive contrária à realidade.

25ª – Mas, mesmo que o arguido tivesse praticado tais factos, deveria o arguido ter sido condenado por único crime continuado – de violação agravada – e não em 116 crimes em concurso efectivo.

26ª – Das declarações da menor, não resulta, no que toca à quantidade, número, donde se possa concluir, que existiram 116 violações.

27º - As penas parcelares e pena única mostram-se excessivas, devendo esta última, situar-se nos 5 anos de prisão, suspensa na sua execução.

7 – O Ministério na primeira instância, apresentou a sua resposta, como consta a fls. 1101 a 1111, concluindo:

1ª Ao dar-se como provado que, pelo menos, uma vez por semana, durante o período compreendido entre Dezembro de 2007 e inícios de 2010, o arguido mantinha relações de cópula completa, com fricção repetida e ejaculação dentro da vagina da menor, mantendo-se o hímen da menor intacto, não obstante isso, constituiu-se o acórdão em erro notório na apreciação da prova, que resulta do texto da própria decisão recorrida [art. 410º, nº 2, al. c) do Código de Processo Penal].

2ª – Na verdade, os próprios peritos referem na conjugação do relatório médico-legal com as suas declarações já transcritas prestadas em audiência de julgamento, que a complacência do hímen não se coaduna com relações de cópula tão frequentes como as provadas com um adulto.

3ª – Aliás, um aspecto que retrata ainda com maior acuidade esse erro notório na apreciação da prova resulta do facto de em casos de relações sexuais apressadas, em que a lubrificação não é a ideal, é mais fácil o rompimento do hímen, película dérmica presente na entrada da vagina.

4ª – Ora, tendo-se dado como provadas, pelos menos 104 relações de cópula completa com ejaculação até a menor completar 14 anos de idade, relações não consentidas, em circunstâncias de “stress” físico, uma vez que não consentidas, acompanhadas por vezes de agressões, não se vê como compatibilizar isto com a integridade do hímen.

5ª – Assim e na impossibilidade de quantificar as vezes em que ocorreu cópula através da introdução do pénis ou de parte do mesmo, na vagina da menor, e não se provando outro tipo de introdução, não resta senão concluir pela obrigatoriedade de aplicar aqui a interpretação mais favorável ao arguido, ou seja, dar como provado que o arguido penetrou totalmente a menor uma única vez, ejaculando no seu interior, e, quanto às demais vezes, provando apenas que se despia, apalpava os seios da menor e o seu corpo e se colocava em cima dela, estando esta nua, e ainda que o pénis contactava com a vagina da menor, mesmo sem que se prove a penetração parcial ou total.

6ª - E, quanto à ejaculação, na falta de descrição de ejaculação exterior, não resta senão circunscrever a prova da mesma a uma única vez, a da penetração.

7ª – Em função disto, ter-se-á de alterar a qualificação jurídica, provando-se a autoria material, sob a forma consumada e em concurso efectivo real de:

- um crime de sequestro p. p. pelo art.º 158º, nº 1 do Código Penal;

- um crime de violação agravada p. p. pelos art.s 164º, nº 1 e 177º, nº 6, ambos do Código Penal;

- 103 crimes de abuso sexual de criança p.p pelo art. 171º, nº 1 do Código Penal;

- 12 crimes de coação sexual p. p. pelo art. 163º, nº 1 e 177º, nº 1, do Código Penal, (cometidos após os 14 anos da menor).         

8ª – Em alternativa, aderir-se à tese do Acórdão do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.11.2012, no sentido de que se está perante um crime prolongado, protelado, protraído, exaurido ou de trato sucessivo, ou seja, há só um crime apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime – tanto mais grave (no quadro da moldura penal), quanto mais repetido.

9ª – Optar-se-ia pela punição de um «crime sexual violento ou análogo, enquanto o crime contra a criança, qua tale, se transmuda em uma agravação daquele». Ou seja, teríamos um único crime de violação agravada, de trato sucessivo, p. p. pelo art. 164º, nº 1, al. a) e 177º, nº 6, ambos do Código Penal.

10ª – Mantendo-se, no entanto, seja qual for o entendimento que o tribunal da Relação venha a adoptar a pena de prisão efectiva, ainda que reduzida, por força da alteração da qualificação jurídica a operar.

8 – O Digno Procurador Adjunto, nesta instância, no douto parecer de fls. 1150 a 1157, defendeu a improcedência do Recurso.

9 – Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, foi designado e realizada a audiência, nada obstando ao conhecimento de mérito do Recurso.

II – O ACÓRDÃO RECORRIDO

A primeira instância julgou a matéria de facto da seguinte forma:

1 - Sobre os factos provados, deu como assente o seguinte:

1 – B... nasceu no dia 11 de Janeiro de 1996 e encontra-se registada como filha de C... e de E...;

2 – desde o ano de 2007 a B... viveu com a sua mãe, o arguido, companheiro desta, e ainda uma tia-avó, em uma residência sita na Rua (...), área da comarca de y(...);

3 – o arguido nasceu no dia 11 de Fevereiro de 1972;

4 – em dia não concretamente apurado, mas situado no final do ano de 2007, aproveitando o facto de se encontrar sozinho com a B... na referida residência, o arguido dirigiu-se ao quarto da mesma, deitou-se na cama, tirou-lhe a roupa que envergava e abriu-lhe as pernas à força;

5 – como a B... se recusou a ter relações sexuais com o arguido, o mesmo desferiu-lhe várias bofetadas;

6 – após, o arguido colocou-se em cima da B... e introduziu o pénis erecto na vagina da menor, aí o friccionando até ejacular;

7 – em virtude de a B... ter começado a gritar e chorar, o arguido obrigou-a a calar-se e, após, retirou o seu pénis;

8 – em consequência do descrito, a B... sofreu fortes dores e sangramento;

9 – a partir do dia mencionado no ponto 4 (desta factualidade provada) e até aos inícios de Junho de 2010, o arguido, em número de vezes não concretamente apurado, mas, pelo menos, uma vez por semana, quando se encontrava sozinho com a B..., na aludida residência, aproveitando-se das ausências da mãe da menor, sua companheira, dirigia-se ao quarto de dormir da B..., colocava-lhe a mão na barriga e nos seios e beijava-lhe o pescoço;

10 – após, o arguido despia a B..., deitava-a na cama e colocava-se em cima da mesma, introduzindo o seu pénis erecto na vagina da menor, aí o friccionando até ejacular;

11 – nas referidas ocasiões, como a B... se recusasse a manter relações sexuais com o arguido, o mesmo dizia “Cala-te ou mato-te!”, batia-lhe na testa, nas ancas, no tronco, apertava-lhe o pescoço, tapava-lhe a boca quando tentava gritar, ameaçando ainda que caso contasse o sucedido a mataria;

12 – em outras ocasiões, o arguido dizia à B... para se dirigir ao seu quarto, ameaçando-a de que lhe bateria caso o não fizesse;

13 – uma vez aí, o arguido deitava a menor na cama, despia-a, e, colocando-se em cima dela, introduzia o seu pénis erecto na vagina da mesma, aí o friccionando até ejacular;

14 – em data não concretamente apurada, mas situada no período aludido no ponto 9 (destes factos provados), o arguido transportou a B... no seu veículo automóvel até um pinhal, localizado nas proximidades da residência de ambos, e, fazendo uso da força, manteve relações de cópula completa com a menor;

15 – à data da prática dos factos que vêm sendo descritos, a B... tinha entre 11 e 14 anos de idade, o que era do conhecimento do arguido;

16 – durante o mencionado período, o arguido e a B... mantiveram relações de cópula completa com uma periodicidade mínima de uma vez por semana, em número não concretamente apurado mas não inferior a 104 vezes até a menor completar 14 anos, e não inferior a 12 vezes após ter completado 14 anos;

17 – no dia 3 de Janeiro de 2011, cerca das 9 horas, o arguido foi incumbido pela mãe da B... de a transportar no seu veículo automóvel até ao estabelecimento de ensino (...), na vila da (...), área da comarca de y(...), que a menor frequentava;

18 – ao chegar ao cruzamento que dá acesso à aludida escola, o arguido, ao invés de deixar a B... nesse local, seguiu com o veículo na direcção de Tentúgal-Montemor-o-Velho;

19 – apercebendo-se de que o arguido não a deixara na escola, a B... começou a gritar e a chorar e pediu, por diversas vezes, ao arguido que parasse o automóvel, mais o questionando para onde se dirigia;

20 – o arguido disse à B... que a iria levar a uma clínica a Coimbra, para fazer uma reconstituição do hímen, e que tal seria para o bem da menor, da sua mãe e do arguido;

21 – em face da afirmação do arguido, e desesperada, quando circulavam na Estrada Nacional n.º 111, na localidade de x(...), área da comarca de Coimbra, a B... desligou o veículo na ignição, puxou o travão de mão, abriu a porta do seu lado (lugar do “pendura”) e saiu do mesmo em movimento, caindo ao solo;

22 – actuando da forma descrita nos pontos 1 a 16 (dos presentes factos assentes), o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito – concretizado – de satisfazer os seus instintos libidinosos, bem sabendo que no período temporal a B... tinha entre 11 e 14 anos de idade;

23 – decidiu o arguido praticar os actos sexuais supra descritos com a B..., sabendo que as aludidas condutas, atenta a sua idade, punham em causa o desenvolvimento da personalidade da menor na esfera sexual;

24 – por outro lado, ao actuar do modo descrito nos pontos 17 a 21 (desta factualidade provada), agiu também o arguido livre, voluntária e conscientemente, sabendo que, contra a vontade da mesma, privava a B... da sua liberdade de movimentação;

25 – não obstante, decidiu o arguido actuar das formas supra relatadas;

26 – em todas as ocasiões referidas agiu sempre o arguido com a noção de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal;

27 – o arguido é divorciado e vive actualmente em casa da sua mãe;

28 – é o mais velho de dois irmãos, dedicando-se a sua mãe a tarefas agrícolas e sendo o pai empresário da extracção de resina;

29 – os pais divorciaram-se quando o arguido contava 18 anos de idade;

30 – completou o 6º ano de escolaridade básica, e começou depois a trabalhar com o pai, com quem manteve, de um modo geral, uma relação difícil e de genérica submissão;

31 – trabalhou posteriormente em uma empresa de produção hortícola, e continua a desempenhar algumas actividades na exploração de resina do seu pai, auferindo rendimentos variáveis, embora a rondar os cerca de € 100 por cada serviço prestado, a que acresce todo o apoio monetário que o pai lhe vai dispensando sempre que necessário;

32 – desde há alguns anos que vem sendo o arguido acompanhado em consultas de psiquiatria do Hospital Sobral Cid, em Coimbra, mantendo apoio psicoterapêutico e farmacológico devido a alguns quadros depressivos;

33 – é por vezes também acometido por problemas gástricos;

34 – é tido por pessoa tímida, introspectiva e com hábitos de trabalho;

35 – o arguido já foi julgado e condenado criminalmente, por decisão de Novembro de 2009, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, em uma pena de multa, a cujo pagamento procedeu;

36 – em consequência dos factos praticados pelo arguido (e acima descritos), a B... passou a viver em estado de agitação psicológica permanente, muito sobressaltada e assustada;

37 – tornou-se uma jovem bastante fechada sobre si mesma, desconfiada e com baixos níveis de auto-estima;

38 – sente-se complexada em relação ao seu próprio corpo;

39 – a propósito dos factos ora em análise nos autos surgiram diversos rumores no estabelecimento de ensino frequentado pela menor, que a envergonharam e fizeram sentir enxovalhada;

40 – apoderou-se da menor uma sensação de vergonha por tudo aquilo que consigo se passou, o que a leva a não se relacionar de modo aberto e descomplexado com as outras pessoas;

41 – com os tratamentos médico-hospitalares dispensados à B... no dia 3 de Janeiro de 2011, em consequência da saída forçada da mesma do automóvel do arguido (pontos 17 a 21 dos presentes factos provados), teve o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, E.P.E. uma despesa de € 147.

2 -  Como não provados, julgou os seguintes factos:

Não há outros factos provados com relevo para a decisão da causa.

Assim, e designadamente, não se provou:

- que a circunstância de a mãe da menor se encontrar, entre 2 de Dezembro de 2008 e 12 de Janeiro de 2009, de baixa médica para o trabalho, a tenha feito permanecer sempre em casa, impedindo-a de daí sair em diversas ocasiões;

- que no dia 3 de Janeiro de 2011 a B... tenha querido, de modo voluntário, acompanhar o arguido a uma consulta a que este se dirigia nos Hospitais da Universidade de Coimbra.

           

3 – Com fundamento na seguinte Motivação

O Tribunal alicerçou a sua convicção na análise crítica, ponderada e maturada do conjunto dos elementos probatórios produzidos, “peneirados”, nos termos do art. 127º do Código de Processo Penal (C.P.P.), à luz das regras normais da experiência da vida.

Diga-se que este foi um dos julgamentos em que se fez sentir, de forma evidente, a necessidade de adopção de um especial senso crítico na depuração dos contributos processuais prestados em sede de audiência, maxime para efeitos de determinação da factualidade praticada pelo arguido.

Portanto, o ditame do art. 127º C.P.P. – com o seu apelo às regras da experiência e à livre convicção da entidade julgadora – revelou-se de uma clara acuidade e oportunidade na apreciação da prova produzida (e, também, não produzida), por forma a, de modo realista e convincente, edificar a estrutura sustentadora de uma ciência minimamente “resistente” a dúvidas, incertezas e aporias.

Tudo o que acaba de ser dito é enquadrável, no entanto, na ideia geral de que a verdade judicial não é (nem pode ser) uma verdade “absoluta”, no sentido de uma verdade “ontologicamente” indestrutível. A verdade judicial alicerça-se em factos alcançados – e alcançáveis – através da interpretação e depuração dos diversos elementos probatórios produzidos e analisados em audiência de julgamento (quando a mesma ocorra) ou relativamente aos quais as partes estão de acordo quanto à significação e valoração próprias. A convicção do julgador baseia-se, pois, em tal conjunto de elementos, mediante a produção do dito juízo de verosimilhança, a que as normais regras da experiência comum não poderão ser alheias.

Posto isto, o que temos nós in casu?

O arguido negou, na totalidade, os factos que lhe são imputados na acusação pública, dizendo, de uma forma absolutamente desconexa, pobre e tergiversante, que tudo não passa de uma enorme “mentira”, certamente derivada de um plano maquiavélico do pai da menor B... e da influência que nesta última vinha exercendo um namorado por ela “arranjado” via Internet (e que motivara até uma ida do arguido e da sua companheira à esquadra policial para ali verem o que poderia ser “feito” para a libertar de tal nefasta influência…). Questionado, no entanto, sobre os motivos pelos quais a eventual existência de um namorado via Internet poderia ter causado na B... a “vontade” de o incriminar, o arguido não conseguiu, pura e simplesmente, articular qualquer resposta, vindo mais tarde, já na parte final da audiência de julgamento, a dizer que agora que tem novamente uma boa relação com o seu pai (dele, arguido), estaria muito mais protegido de qualquer plano que a B... e o seu progenitor quisessem arquitectar… Mas a insubsistência e a vaguidade do discurso do arguido e respectivas afirmações vão muito mais longe: verdadeiramente reveladora, segundo se crê, é a explicação (se de explicação se trata…) veiculada a propósito do episódio ocorrido no dia 3 de Janeiro de 2011, na Estrada Nacional n.º 111, em x(...), quando a B..., pondo em evidente risco a respectiva integridade física (ou mesmo a vida) saiu em andamento do automóvel conduzido pelo arguido em direcção a Coimbra. Tratando-se de dia normal de aulas (rectius, de normal recomeço de aulas, após as férias do Natal), o arguido referiu ser habitual conduzir a B... ao estabelecimento de ensino por ela frequentado, na vila da (...), mas que na ocasião se dirigia aos Hospitais da Universidade de Coimbra, pois encontrava-se “aflito” do estômago, e a menor fez absoluta questão de o acompanhar, apesar de, como se percebe, dever retornar nesse dia às suas aulas. No entanto, a dado momento, e sem nada que o fizesse prever, a B... já não queria acompanhar o arguido ao referido estabelecimento hospitalar e obrigou-o, por todos os meios, a parar, ferindo-o até em uma mão com um “xis-acto” para que este imobilizasse então o automóvel. Perante o espanto do declarante, a menor “jogou-se” da porta do automóvel para fora, quando este se encontrava ainda em andamento. E foi por isto que o arguido escreveu, depois, no dia seguinte, e enviou à sua companheira a missiva cuja cópia consta de fls. 100 dos autos, e na qual refere, além do mais, «Eu estou com um depressão sem controlo, desde ontem não paro de chorar. Mas tudo acaba hoje para mim vou pôr termo a minha vida não aguento mais. Só queria que mandasses a guarda dar a notícia ao meu pai a minha mãe não lhe digas nada enquanto ela estiver sozinha durante o dia». Ou seja, tamanho desespero – que se encontra em consonância com a “volatilização” que o mesmo então protagonizou durante uns dias (e que levou a que a sua companheira recorresse às autoridades policiais a fim de aí ser lavrado o auto de denúncia de desaparecimento junto a fls. 99 dos autos) – teria, segundo o arguido referiu em audiência, apenas e só na sua base a circunstância de a B... haver saído do seu automóvel em andamento e se recusado a nele voltar a entrar, encontrando-se o arguido com a mão ensanguentada e o estômago “maltratado”…, e não, de todo, o facto de a partir desse momento a B... não mais estar sob a “alçada” do arguido e passar a viver com o seu pai, “arqui-inimigo” daquele.

As explicações para o que acaba de ser exposto não lograram convencer minimamente o Tribunal, sobretudo quando um conjunto de elementos apontou para uma direcção bem diversa da ensaiada pelo arguido e coincidiu, ao invés, com o essencial da tese factual delineada na acusação pública (e ainda que não no exacto quantum de ocasiões de envolvimento sexual de que a menor foi vítima).

Assim, contrariamente à prestação processual do arguido, atribuiu-se credibilidade ao conjunto das declarações prestadas pela menor B..., quer em sede de memória futura (que foram lidas em audiência), quer por via dos esclarecimentos que o Tribunal entendeu por bem tomar no decurso do julgamento (e mediante o acompanhamento à menor na ocasião efectuado pela profissional da área da psicologia U..., com quem a B... havia tido já, em ambiente escolar, encontros terapêuticos). Concretizando, a menor (que conta actualmente 17 anos de idade) relatou – de um modo que ao Tribunal se afigurou sincero, globalmente coerente e verosímil (em um “discurso credível”, para utilizar a expressão do relatório pedopsiquiátrico forense de fls. 251 a 254 dos autos) – o “inferno” por ela passado ao sofrer as incidências dos diversos comportamentos perpetrados pelo arguido, que então a ameaçava de morte (durante e após os actos, sobretudo para poder continuar a usufruir da margem de liberdade então evidenciada). Não teve dúvidas, em sede de audiência, em assegurar haver sido obrigada, vezes sem conta (pelo menos uma ocasião em cada semana), a suportar os actos de cópula completa empreendidos pelo arguido, que amiúde lhe batia (em zonas “estratégicas” como as ancas, a testa e o tronco) para que a mesma não opusesse qualquer resistência às suas investidas. E tudo sempre em ocasiões nas quais a mãe da menor – então gasolineira de profissão – não se encontrava em casa, estando a tia-avó, idosa, entregue a si mesma, do outro lado da habitação. Não obstante o seu (natural) estado de alguma ansiedade e fragilidade emotiva, soube ainda a B... explicar também o clima de alheamento de sua mãe, quando a menor tentava dar-lhe a entender a insuportável proximidade do arguido, que praticamente a seguia para todo e qualquer local e não a deixava um só momento entregue a si mesma. Era, aliás, a sua mãe que amiúde a instava a acompanhar o arguido (quando, por exemplo, este pretendia deslocar-se ao pinhal para “apanhar pinhas” e solicitava a presença da menor para o auxiliar…). Referiu também o período de relativa acalmia das investidas do arguido, logo a seguir ao desaguisado ocorrido em Junho de 2010, quando o pai da menor agrediu aquele, por desconfianças surgidas em relação ao comportamento que o mesmo (arguido) mantinha para com ela… E contou, por último, o pânico que sentiu, no dia 3 de Janeiro de 2011, quando percebeu que o arguido pretendia levá-la para uma clínica em Coimbra, ao invés de, como seria suposto, a deixar na escola, decidindo então, no contexto de tanto nervosismo, libertar-se daquela situação por qualquer meio.

Em consonância com o acabado de referir, maxime no tocante às arremetidas sexuais do arguido em relação à menor, tomou ainda o Tribunal em consideração o relatório médico-legal de fls. 66 a 69 (referente à perícia de natureza sexual realizada à B...), o qual, no seu conteúdo aparentemente “seco”, acabou por ser “descodificado” em audiência pelos Srs. Peritos subscritores ( P...e Q...), sobretudo na parte das respectivas conclusões. Com efeito, ficou bem clara a ideia de que a ausência de lesões visíveis ao nível genital ou anal não exclui de todo a possibilidade de ter havido a prática de relações sexuais forçadas na pessoa da menor, tanto mais que o exame pericial a esta última foi realizado em 5 de Janeiro de 2011 [com o natural esbatimento – ou mesmo desaparecimento – dos sinais inerentes às relações sexuais havidas, pela última vez, em Junho de 2010; por outro lado, foi também relevante a explicação de que não é tão incomum quanto isso, e perante a sua elasticidade, observar-se um hímen complacente, que pode ter permitido cópula sem se lacerar, em uma menor na fase de transição (precisamente entre os 11 e os 14 ou 15 anos) para uma idade de maturidade física]. Aliás, neste domínio «há, no entanto, que se ser prudente com o diagnóstico de crime sexual apenas através de evidências físicas e biológicas, uma vez que num elevado número de casos os exames são negativos, não significando isso que o crime não possa ter acontecido. A negatividade destes exames (…) relaciona-se com a tardia revelação ou denúncia dos casos, com a destruição dos vestígios pelas vítimas ou abusadores (através de lavagens, por exemplo), ou com o facto de grande parte das práticas sexuais não deixarem vestígios (a cicatrização das lesões anogenitais é rápida e muitas vezes total; (…) no caso de jovens e adultos a penetração não causa necessariamente lesões; a ejaculação acontece, muitas vezes, fora das cavidades ou com uso de preservativo)» (Prof. Teresa Magalhães, “Clínica médico-legal”, pág. 60, disponível na Internet, no site da Delegação do Porto do Instituto Nacional de Medicina Legal).

O depoimento da mãe da menor, E..., foi a confirmação do evidente alheamento por que terá a mesma sempre (ou quase sempre) pautado a sua atitude ao longo do período de tempo em que o arguido “interagiu” com a menor. Com efeito, começou por dizer que após alguma dificuldade de relacionamento inicial, a menor “adaptou-se” bem ao arguido, não percebendo a testemunha por que razão o pai da menor lhe disse, por mais do que uma vez, ter sabido que o arguido abusava da B... e que, se assim fosse, ele o mataria. No mais, asseverou a depoente não acreditar haver o arguido feito alguma vez o que quer que fosse à sua filha, embora tenha ficado a mesma testemunha sem qualquer explicação para o desaparecimento do seu companheiro, no dia 3 de Janeiro de 2011, após a cena ocorrida em x(...). Deixou ainda a depoente “escapar” dois ou três pormenores curiosos: em primeiro lugar, o de que efectivamente trabalhava ela, como gasolineira, por turnos (como, aliás, o atesta a declaração de fls. 346 da sua então entidade patronal), ficando amiúde arguido e menor em casa nas suas ausências (quer por motivos profissionais quer por outras razões); em segundo lugar, o de ser habitual exigirem que a menor tomasse banho de porta aberta porque uma vez caíra ela na banheira, tornando-se, portanto, essa (a porta aberta) a melhor forma de a socorrer em caso de necessidade…; em terceiro lugar, o de que no dia 3 de Janeiro de 2011 o arguido saiu de casa para ir aos Hospitais da Universidade de Coimbra e levou a B... consigo para a deixar na escola…

C... é o pai da menor, e mostrou, sobretudo, evidente revolta pela circunstância de as coisas terem chegado ao ponto a que chegaram. Referiu ter o arguido proibido a sua filha de falar consigo, em uma atitude de clara prepotência favorecida pela circunstância de então viver ela sob o “jugo” do arguido e passividade da mãe. Tudo isto ao mesmo tempo que o declarante ia ouvindo avisos de diversas pessoas (familiares e vizinhos) que lhe diziam para não deixar a menor entregue ao arguido, e notava também, quando com ela estava, aos fins-de-semana, uma tristeza, um nervosismo e determinadas manifestações de choro que não eram habituais no seu modo de ser. Após o incidente de 3 de Janeiro de 2011 passou o declarante a tomar de novo a menor a seu cargo, situação que ainda se mantém actualmente.

O essencial do acabado de referir foi de algum modo confirmado por Z... e K..., respectivamente avó paterna da B... e seu companheiro de há cerca de 14 anos, que focaram sobretudo a diferença de comportamento que a dada altura a menor ia evidenciando, sem, contudo, se abrir e lhes relatar o que quer que fosse. A testemunha Z... foi mais longe no seu depoimento e referiu ter sido avisada, por algumas pessoas (como, por exemplo, o seu irmão Y..., que vivia próximo da casa então ocupada pela mãe da B..., esta, o arguido e a tia-avó), não se revelar nada normal a constante presença do arguido na “sombra” da menor, quer de dia quer de noite, passeando constantemente de motorizada com ela…).

V... é a tia-avó da B... e com quem esta menor, a sua mãe e o arguido viviam à época dos factos. Começando por dizer não ter qualquer razão de queixa do arguido, sempre acrescentou não lhe parecer adequado que “desafiasse” este tanto a menor para ir ao pinhal “apanhar caruma”. Em tal conspecto, entendeu então a depoente, por mais do que uma vez, ser sua obrigação dizer à mãe da B... que não permitisse tantas idas ao pinhal, ao que a progenitora da menor invariavelmente lhe respondia que não se preocupasse…

Particularmente importante se mostrou o depoimento de R..., auditor financeiro, residente em (...), que no dia 3 de Janeiro de 2011 foi surpreendido, quando circulava na zona de x(...), por uma menor que saiu do interior do automóvel que seguia à frente da testemunha e se lançou para a beira da estrada, pedindo depois socorro, de modo extremamente nervoso, no meio da faixa de rodagem. O depoente imobilizou o seu veículo, amparou a menor e ligou do respectivo telefone móvel para o número 112, apercebendo-se que o condutor do automóvel da frente ainda parou e chamou a jovem, respondendo esta última que a sua mãe sabia que aquele (condutor do automóvel da frente) a ia levar à clínica…

S... é amigo e vizinho da B..., para além de frequentarem ambos a mesma escola, e, com interesse para a causa, relatou apenas ter-se apercebido de que por ele passaram a menor e o arguido, na referida manhã do dia 3 de Janeiro de 2011, não tendo então parado no estabelecimento de ensino em causa. Acrescentou, depois, algumas referências ao comportamento da sua amiga a partir de determinada altura, atentos sobretudo a tristeza e o fechamento evidenciados, em contraste com a boa disposição de antigamente.

Também acerca do modo de ser actual da menor falou a companheira do pai desta, CC..., que disse, no essencial, ser relativamente habitual acompanhá-la à escola, perante a insegurança que a mesma patenteia no relacionamento com os outros. Mais acrescentou tratar-se a B... de pessoa muito traumatizada e intranquila, que durante os últimos dois anos foi beneficiando de ajuda psicológica regular.

A propósito da avaliação psicológica efectuada no âmbito dos presentes autos à menor, e a que se refere o relatório de fls. 245 a 250, a Sra. Perita T... concretizou em audiência o que já constava relativamente evidente de tal relatório, a saber, uma jovem com claras dificuldades de aprendizagem, dotada de uma personalidade desconfiada, defensiva, em sofrimento psicológico, e a quem a proximidade física causa retracção, mostrando ser uma pessoa com mau relacionamento com o seu corpo. A marca fulcral é, pois, a da inibição, amargura e dificuldade em confiar nos outros. Ou seja, trata-se de algo mais sério e profundo do que a ideia de criança desde sempre fechada que a ex-companheira do pai da menor, F..., pretendeu transmitir (sendo, além do mais, relativamente evidente a “bílis” por esta mesma testemunha revelada em relação ao ex-companheiro)…

As dificuldades de integração da menor na escola foram referidas, no essencial, pela sua directora de turma AA....

X.... pertence à Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de y(...) e contou as impressões colhidas por esta entidade a propósito de uma carta que a B... redigira, em Dezembro de 2010,e na qual referia que a sua mãe e o arguido a não deixavam namorar, mais acrescentando que o arguido lhe batera. Só a partir do episódio de 3 de Janeiro de 2011 tudo se precipitou e a menor foi então viver com o pai, por acordo de todos os interessados.

BB... é o elemento da Polícia Judiciária que relatou alguns aspectos da investigação conducente à detecção do arguido enquanto presumível autor dos factos ora sujeitos a julgamento.

Depois, para a percepção da personalidade do arguido e suas condições económico-vivenciais valeram, para além das declarações do próprio, os depoimentos das testemunhas G..., H..., I..., J..., L..., M..., N... e O... (pai e irmã do arguido, respectivamente, os dois primeiros, e ex-colegas e amigos, os restantes, focaram, sobretudo, a sua habitual pacatez comportamental e o seu ensimesmamento, muito compenetrado na imagem pública que transmitia como que de uma proximidade “parental” em relação à menor), e ainda o teor dos documentos de fls. 442 a 459 e 473 a 500 (referentes a ocasiões da convivência da menor com a sua mãe e o arguido, a elementos relativos a períodos de emprego deste último, e ao acompanhamento do mesmo no Hospital Sobral Cid, em Coimbra), e do relatório social de fls. 591 a 593 (do qual parece resultar uma certa marca do arguido em consequência da sua difícil relação paterna).

Por último, tomou-se também em consideração o conteúdo de fls. 326 a 328 (certificado do registo criminal do arguido) e 376 (documento comprovativo de gastos hospitalares no episódio de urgência da menor, em 3 de Janeiro de 2011).

Os factos dados como não provados resultam da falta de produção de elementos sérios o bastante que pudessem conduzir à demonstração daquela factualidade. 

 

III – QUESTÕES A DECIDIR

Delimitado o objecto do recurso, pelas Conclusões do Recorrente, são as seguintes as questões sub judice

- Impugnação da matéria de facto;

- Erro notório na apreciação da prova;

- Os actos praticados pelo arguido integram um crime continuado, um crime de trato sucessivo ou crimes em concurso efectivo:

- Penas parcelares;

- Pena única;

- Montante de Indemnização civil

IV – APRECIAÇÃO DO RECURSO

1Impugnação da Matéria de Facto

Negando o Recorrente a prática de todos os factos que lhe são imputados, impugna a matéria factual descrita nos pontos de facto provados sob os nºs 4 a 26, insurgindo-se contra a circunstância do tribunal a quo ter acreditado nas declarações da B... e não nas suas.

Para tanto, realça imprecisões, inconsistências e contradições, sejam no próprio depoimento da jovem, sejam em relação a outros meios de prova, que justificam que se retire a credibilidade que o tribunal a quo deu ao depoimento da jovem.

1. 1 - As imprecisões, contradições e inconsistências das declarações da vítima

Depois de ouvirmos toda a prova oral prestada em audiência bem como as declarações para memória futura da jovem e de as conjugar com os documentos juntos aos autos – v.g. de fls. 93 a 101 – e com os relatórios periciais, podemos adiantar, que, na reanálise da prova, não tivemos dúvidas de que a jovem B..., ao contrário do arguido, contou a verdade dos factos.

E isto, porque, subscrevemos, na íntegra, as razões que, para esse efeito, foram invocadas pelo tribunal a quo e que acima se transcreveram.

Acresce que, do que ouvimos da voz da jovem – os seus silêncios em relação a algumas das perguntas não podem, aqui, ser valorados, por falta de imediação, onde se incluem  alguns “sim”  e “não”  – num tom baixo, pausado – denotando algum cansaço – e sofrido, mas claro e explicativo sobre o que viveu com o arguido, não deixam dúvidas quanto à sua autenticidade, mostrando-se, contrariamente ao que afirma o Recorrente, coerente, preciso e  credível.

Note-se que, tal como consta do relatório de exame pedopsiquiátrico forense, de fls. 253, em 24 de Outubro de 2011, cerca de 6 meses depois, das declarações que prestou para memória futura, a jovem, a sós com a Sra. Perita, revelava, ainda:

«uma grande emoção relativamente à narração dos acontecimentos que constam do processo. Foi reenviada às memórias dum passado recente tendo apresentado sintomas de traumatismo psicológico. O enquadramento da narrativa foi vivido com muita intensidade».

Estes sentimentos vivenciados pela B..., quando confrontada com o reviver do que lhe aconteceu, justificam, assim, não só,  algumas das respostas por monossílabos -  “sim”, “não”, referidos pelo Recorrente -  ou silêncios, como também, a falta de precisão do dia, hora ou altura do dia em que tudo começou.

Mas uma coisa é certa e foi dito pela jovem com clareza:

Tudo começou, pouco tempo depois do companheiro da mãe ter ido viver lá para casa – cerca de um ano após eles namorarem, «quando ele veio viver connosco (…) mais ou menos no final do ano», tinha a B..., 11 anos de idade.

E, nessa altura, diz a jovem «ele chegou ao pé de mim (…) agarrou-me (…) deitou-me na cama, abriu-me as pernas à força (…) Forçou (…) bateu-me» e «sim»  responde à pergunta do juiz, «penetrou-te em termos (…) vaginal?».

«Andei uma semana inteira a sangrar», diz mais adiante a B....

Mas a acção do arguido não se ficou por aqui. Continuou, diz a B..., quando «a minha mãe saía  (…) uma vezes para trabalhar, outras vezes não (…) era conforme o horário da minha mãe», ou mesmo quando a «a minha avó estava em casa (…) que não se apercebia de nada», «às vezes mais do que uma vez por semana (…)» sendo  que não havia «uma semana em que isso não acontecesse», desde final de 2007 até Junho de 2010, altura «em que consegui fugir mais dele (…) Também aconteceu no carro».

Para conseguir os seus intentos, afirma a jovem «Batia-me, apertava-me o pescoço e tapava-me a boca quando eu tentava gritar (…) ameaçava-me que se eu contasse alguma coisa, que  me matava…e eu acreditava… batia-me com a mão …nas ancas, na cara…Uma vez fiquei com marcas e com um inchaço». Tentava «retrair», «às vezes ainda empurrava… era quando fazia pior».

À pergunta se ele ejaculava no interior ou no exterior da vagina, responde a B...: « no interior ».

Sem que o arguido usasse qualquer protecção na relação sexual e sobre a «sorte» de não ter ficado grávida, diz a jovem: «eu acho que ele não consegue ter filhos (…) era o que ele dizia (…) era o que  a minha mãe também dizia, quando eles falavam eu ouvia».

Esta versão dos factos é corroborada pela alteração que, naquela data, o comportamento da jovem revelou, alteração essa visível por algumas das testemunhas inquiridas, quais sejam:

S..., colega e amigo da jovem, há mais de 5 anos - que assistiu à cena de 3 de Janeiro de 2011 (de falaremos mais adiante) - já andava desconfiado que se passava alguma coisa, «porque ela não se abria com ninguém, sempre reservada (…) Ela era uma miúda super simpática, divertida e desde a altura em que isto sucedeu (…) há muito tempo (…) ela já não se divertia, mudou para tristeza, sofrimento (..) via-se nos olhos dela, triste de sofrimento (…)».

A mesma desconfiança foi sentida por C..., pai da B..., depois de ter sido alertado pelos seus «tios que viviam lá perto», que a filha andava muito tempo com o arguido.

V... , tia avó da jovem, que com ela vivia na mesma casa, chegou «a avisar a mãe para não a deixar andar com ele»,  porquanto « via que ele desafiava muita vez a menina e senti logo a menina a ficar com raiva com ele eu disse assim para a mãe “oh E... não me deixes a menina muito junto do A... (…) e ela respondeu para mim “você não se preocupe porque a menina anda bem guardada (…) Só via que ele desafiava a menina para os pinhais para ir buscar lenha eu não gostava nada dessas coisas porque a menina era muito viçosa e muito jeitosa». Além de que « de uma altura para cá ela esmoreceu muito foi onde eu descobri certas coisas, na carinha dela (…)  sempre triste (…)  a chorar».

AA..., directora de turma da B..., descreve-a como uma «aluna introvertida (…) não muito comunicativa (…) não era capaz de se abrir, falar do que se passava com ela».

T...., psicóloga, na avaliação que realizou à jovem, opina que: «na altura, já a podemos considerar uma adolescente tinha 14 anos, era extremamente inibida, muito desconfiada (…) estaria em sofrimento psicológico  (…) tinha alguma preocupação com o seu corpo (…) existia dificuldade com o toque dificuldade em que lhe toquem

K..., companheiro da avó da B... e que a conheceu com 3 anos idade, descreve que, à data de divórcio dos pais, era «alegre (…) extrovertida (…). Hoje a B... é uma moça que parece que está com um problema qualquer …está traumatizada».

Todos estes depoimentos não foram contraditados pelas testemunhas indicadas pelo Recorrente: F... e E....

A primeira, ex companheira do pai da jovem que com esta convivia «aos fins-de-semana e nas férias», também a descreve, como uma pessoa «muito fechada» «ela não se abria comigo» «num domingo, ela vinha alegre e bem disposta era alegre e bem disposta, mas às vezes isolava-se no quarto e eu também não queria adiantar mais».

Já quando às declarações da segunda testemunha – mãe da jovem – não é de admirar que não admita, sequer, a possibilidade de ter visto a alteração do comportamento da filha. Tal admissão faria cair por terra o estado de negação que, desde o início assumiu e assume em relação aos factos imputados ao arguido.

Desta feita e perante a evidência do probatório não nos restam quaisquer dúvidas que a versão relatada pela jovem B... não contém as discrepâncias, imprecisões ou contradições que lhe são apontadas pelo Recorrente, nas conclusões sob os nºs 6 a 12.

1.2As contradições das declarações da B... e outros testemunhos

Mais invoca o Recorrente – Conclusões 13 a 18 - que, as declarações prestadas pela jovem estão em contradição com outros depoimentos e regras de experiência comum,  a saber:

- A jovem não podia ter gritado, aquando do acto sexual com o arguido, pois a tia-avó que, também estava na mesma casa, não ouviu tais gritos;

- Deveria ter sido ouvida a única testemunha a quem a B... terá contado o sucedido;

-  O Inspector da Policia Judiciária referiu que os abusos que a menor tinha sido vítima por parte do padrasto decorriam há cerca de um ano e mais tarde, sem sede de julgamento, a jovem, refere dois ou 3 anos.

- É, no mínimo estranho que ninguém tenha notado os sinais das agressões.

Vejamos

No que toca à circunstância da tia-avó da B... não ouvir os gritos, a explicação foi dada pela própria testemunha, quando lhe perguntam se ouvia barulho:

 «Não, então se lá falavam eu andava na minha vida e eles na deles, eu tava numa repartição e eles noutra, não andava a preocupar-me (…) com as discussões deles».

  É, assim, de todo plausível que os gritos e choros emanados da jovem, num acto de resistência às investidas sexuais do arguido, não fossem ouvidas por uma senhora, com cerca de 83/84 anos de idade, que se encontrava numa outra divisão da casa.

No que toca à omissão da inquirição da D..., amiga da B... e única pessoa a quem esta terá contado o sucedido, apenas se dirá, que em face da prova existente e da ausência de dúvidas sobre a actuação do arguido, aquele depoimento não se mostrou, nem mostra, imprescindível.

Também as declarações do Inspector da Policia Judiciária,  quando afirma -  «que esses abusos vinham a decorrer até há cerca de um ano, aliás, que esses abusos tinha decorrido até Junho do ano anterior, altura em que a mãe esteve a trabalhar» - reporta-se ao momento em que os abusos terminaram, e não ao período durante o qual perduraram. 

Já, a ausência de sinais de lesões não são bastantes para por em causa o relato da vítima, pois, como ela refere e se concluiu no Acórdão recorrido, o arguido batia-lhe em zonas estratégicas.

1.3Os acontecimentos do dia 3 de Janeiro de 2011

Em relação aos acontecimentos ocorridos no dia 3 de Janeiro de 2011, diremos que a credibilidade da jovem sai reforçada, perante a evidência das declarações das testemunhas que foram prestadas em audiência, cujos depoimentos foram, exemplarmente analisados pelo tribunal a quo e que por economia reproduzimos, sendo certo que as criticas que lhe são apontadas pelo Recorrente, nas conclusões nºs 19 a 22, são manifestamente insuficientes para beliscar o conteúdo do relato dado pela jovem B....

1. 4 A valoração do relatório pericial

Resta, agora, apreciar se a valoração do relatório pericial levada a cabo pelo tribunal a quo - colocada em crise no recurso do Arguido e na Resposta do Ministério Público –  enferma ou não de erro de julgamento.

Defende o Ministério Público que o Acórdão recorrido enferma de erro notório na apreciação da prova, porquanto:

a) Ao dar-se como provado que, pelo menos, uma vez por semana, durante o período compreendido entre Dezembro de 2007 e inícios de 2010, o arguido mantinha relações de cópula completa, com fricção repetida e ejaculação dentro da vagina da menor, mantendo-se o hímen da menor intacto, não obstante isso.

b) Na verdade, os próprios peritos referem na conjugação do relatório médico-legal com as suas declarações já transcritas prestadas em audiência de julgamento, que a complacência do hímen não se coaduna com relações de cópula tão frequentes com as provadas com um adulto.

c) Aliás, um aspecto que retrata ainda com maior acuidade esse erro notório na apreciação da prova resulta do facto de em casos de relações sexuais apressadas, em que a lubrificação não é a ideal, é mais fácil o rompimento do hímen, película dérmica presente na entrada da vagina.

d) Ora, tendo-se dado como provadas, pelos menos 104 relações de cópula completa com ejaculação até a menor completar 14 anos de idade, relações não consentidas, em circunstâncias de “stress” físico, uma vez que não consentidas, acompanhadas por vezes de agressões, não se vê como compatibilizar isto com a integridade do hímen.

Diferentemente, entendeu o tribunal recorrido que a complacência do íman se harmoniza com os actos sexuais de cópula completa descritos pela B..., com os fundamentos que desde já se transcrevem:

«Em consonância com o acabado de referir, maxime no tocante às arremetidas sexuais do arguido em relação à menor, tomou ainda o Tribunal em consideração o relatório médico-legal de fls. 66 a 69 (referente à perícia de natureza sexual realizada à B...), o qual, no seu conteúdo aparentemente “seco”, acabou por ser “descodificado” em audiência pelos Srs. Peritos subscritores ( P...e Q...), sobretudo na parte das respectivas conclusões. Com efeito, ficou bem clara a ideia de que a ausência de lesões visíveis ao nível genital ou anal não exclui de todo a possibilidade de ter havido a prática de relações sexuais forçadas na pessoa da menor, tanto mais que o exame pericial a esta última foi realizado em 5 de Janeiro de 2011 [com o natural esbatimento – ou mesmo desaparecimento – dos sinais inerentes às relações sexuais havidas, pela última vez, em Junho de 2010; por outro lado, foi também relevante a explicação de que não é tão incomum quanto isso, e perante a sua elasticidade, observar-se um hímen complacente, que pode ter permitido cópula sem se lacerar, em uma menor na fase de transição (precisamente entre os 11 e os 14 ou 15 anos) para uma idade de maturidade física]. Aliás, neste domínio «há, no entanto, que se ser prudente com o diagnóstico de crime sexual apenas através de evidências físicas e biológicas, uma vez que num elevado número de casos os exames são negativos, não significando isso que o crime não possa ter acontecido. A negatividade destes exames (…) relaciona-se com a tardia revelação ou denúncia dos casos, com a destruição dos vestígios pelas vítimas ou abusadores (através de lavagens, por exemplo), ou com o facto de grande parte das práticas sexuais não deixarem vestígios (a cicatrização das lesões anogenitais é rápida e muitas vezes total; (…) no caso de jovens e adultos a penetração não causa necessariamente lesões; a ejaculação acontece, muitas vezes, fora das cavidades ou com uso de preservativo)» (Prof. Teresa Magalhães, “Clínica médico-legal”, pág. 60, disponível na Internet, no site da Delegação do Porto do Instituto Nacional de Medicina Legal)».

Por nós, depois de ouvirmos os Senhores peritos e de confrontar as suas declarações, com a perícia médico-legal, somos a acolher a posição do julgador da primeira instância, não só pelos argumentos que se acabaram de transcrever, mas também, porque, não detectámos nos esclarecimentos orais que aqueles prestaram em audiência, que «o hímen, apesar de complacente não resistiria a muitas relações de cópula completa com um homem adulto».

Antes pelo contrário, o que expressamente resulta da Conclusão nº 3, da perícia (fls. 68) é que «a examinada apresenta himan complacente, isto é, que pode ter permitido a cópula sem se lacerar»

Além de que, em audiência, afirmaram clara e expressamente que um como o dos autos, «não é uma situação incomum, bem rara, não é super frequente…mas acontece… nestas idades da adolescência pode acontecer este tipo de exames (…) sem lesões, sem sinais positivos, como nós costumamos dizer, algo que nos pudesse permitir ser mais afirmativos (…)».

E, mais adiante, quando a ilustre defensora do arguido lhes pergunta, se há dados objectivos dum abuso sexual durante 3 anos, dizem:

«Já respondi já está esclarecido que não se pode dizer que seja frequente, não é raro, é possível, acontece (…) o íman é elástico e permite relações. Também, não sabemos a história… são anos …mas não sabemos se foram assim tantas vezes. Se calhar não foram assim tantas, do que me foi contado foram 3 ou 4 vezes ou meia dúzia, enfim, não faço ideia. Mas não sendo frequente é possível esta situação que, obviamente para nós, também não é fácil. Era preferível podermos dizer uma coisa ou outra taxativamente, e simplificávamos a vida de toda a gente, mas o rigor médico-legal impede-nos de ser mais, neste caso, mais concreto, porque noutros somos.  

Há aqui um aspecto relevante que é… não há lesões recentes se houvesse e a gente tivesse observado dois dias depois isso era mas foi, pelo que sei, meses depois (…)».

Por último, acrescentam:

«No que diz respeito à maturidade (…) esta criança terá começado aos doze, este íman complacente é menos provável nas crianças e depois já nas mulheres, é neste período da adolescência quando elas começam a ser bombardeadas hormonalmente que o íman ganha, através das hormonas, muita elasticidade, e é nesta altura que os hímans complacentes são mais vulgares».

São os próprios peritos que reconhecem que, num caso como este, mesmo que conhecessem toda a história dos abusos - que não conhecem - dificilmente poderiam, em termos médico-legais, dar uma resposta objectiva e certa de afirmação ou negação sobre a existência ou não de abusos.

Desta feita, se atendermos à globalidade das declarações dos senhores peritos e não apenas a uma parte compartimentada e desregrada das demais, concluímos que a perícia médico-legal não afasta a compatibilidade de um hímen complacente com o número de actos sexuais praticados.

Perante esta possibilidade e a credibilidade atribuída ao testemunho da jovem B... – também através de uma perícia -  encontram-se removidas todas as dúvidas suscitadas pelas respostas inconclusivas da perícia médico-legal.

Resultando evidente das declarações da jovem B... que, entre final de 2007 e inícios de Junho de 2010, ocorriam relações sexuais de cópula completa, pelo menos, uma vez por semana, e existindo em cada ano 52 semanas - facto notório que não necessita de prova -  pode afirmar-se, com segurança, como o fez o tribunal recorrido,  que, desde final de 2007 até completar 14 anos de idade – 11 de Janeiro de 2010 - o arguido e a jovem mantiveram aquele tipo de relações sexuais, pelo menos, 104 vezes.

A forma como o Colectivo de juízes valorou a perícia médico-legal  não enferma, assim, de nenhum erro – de julgamento ou notório -  nem está em contradição com o ponto de facto provado nº 16.

Improcedem, pois, as conclusões do Recorrente (nº 26) e as do Recorrido (nºs 1 a 6).

1. 5Conclusão

À laia de conclusão, dir-se-á que, perante tudo o que se expôs, o tribunal recorrido, quando valorou, global e criticamente, a prova a produzida em audiência, obedeceu às regras de direito probatório, nomeadamente, os princípios da livre convicção, da prova vinculada e in dubio pro reo, não merecendo qualquer censura a forma como credibilizou umas declarações – maxime as da vitima - em detrimento de outras e bem assim como apreciou as perícias médico-legais.

Mantém-se, pois, na íntegra, a decisão sobre a matéria de facto, tal qual consta do Acórdão sob Júdice.

2Erro notório na apreciação da prova

Perante a decisão tomada no ponto 1.4 supra, encontra-se, a nosso ver, prejudicado o conhecimento desta questão, acrescentando-se apenas que, do texto da decisão recorrida, não se evidencia qualquer erro notório de apreciação da prova, no sentido que lhe é atribuído pelo art. 410º, nº 2, al. a), do Código de Processo Penal.

 

3 –  O crime continuado

Advoga o Recorrente que a sua conduta integra, unicamente, um crime continuado de violação agravada, tal como resulta do nº 2 do art. 30º, do Código Penal, sem que, contudo, invoque um único fundamento que se enquadre no conceito do aludido crime continuado.

A base em que sustenta esta sua discordância reporta-se, mais uma vez,  à forma como o tribunal a quo examinou a prova produzida, dizendo que não se consegue «vislumbrar como é que (…) foi apurada tal quantidade de crimes de violação agravada, uma vez que esta quantificação teve por base unicamente as declarações da menor que, sobre tal matéria, nunca precisou as vezes que tais factos ocorreram».

Esta argumentação consubstancia uma impugnação da matéria de facto e não um recurso de direito, pois o que o Recorrente questiona não é o enquadramento jurídico do números de práticas sexuais apuradas (116), antes coloca em crise a forma como o tribunal a quo, em face do probatório, encontrou aquele número.

Assim, e estando já apreciada a impugnação da matéria de facto (ponto 1 supra), poderíamos já concluir pela improcedência desta pretensão do Recorrente.

Contudo, acrescentaremos algumas breves notas sobre o âmbito de aplicação do art. 30º, nº 2 do Código Penal, que estatui:

“Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua sensivelmente a culpa do agente”.

O crime continuado  – uma ficção jurídica para efeitos de punição (Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, Parte Geral II – Teoria do Crime, Editorial Verbo, 1998, pág. 319 e 320) – constitui uma excepção ao princípio, segundo o qual o número de crimes se determina pelo número de tipos de crimes efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crimes for preenchido pela conduta do agente (nº 1, do mesmo art. 30º), cuja principal justificação radica numa diminuição considerável da culpa do agente.

O cerne do crime continuado, lê-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 13.04.2011 – www.dgsi.pt -  «o seu traço distintivo à luz do qual os outros crimes orbitam parece situar-se na existência de uma circunstância exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente. O quid essencial está em saber em que medida a solicitação externa diminuiu a censura que determinada (s) conduta(s) merecem».

«Porém, não basta uma qualquer solicitação mas é necessário que ela facilite de maneira apreciável a reiteração criminosa. Por outro lado, não poderá, também, ser suficiente que se verifique uma situação exterior normal ou geral que facilite a prática do crime. Sendo normais, ou gerais, deve justamente o agente contar com elas para modelar a sua personalidade de molde a manter-se fiel às normas jurídicas». - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5.09.2007, Coletânea de Jurisprudência, III, pág. 192.

«Essencial é distinguir entre a ocorrência ou subsistência de uma mesma situação externa que leve ou “empurre” o agente para a repetição da mesma conduta, por um lado, e a procura ou organização pelo agente de novas oportunidades para repetir uma conduta anteriormente praticada, por outro.

Por outras palavras, há que distinguir entre a reiteração criminosa que resulta de uma situação externa que subsiste ou se repete sem que o agente para tal contribua e aquela que resulta de uma situação procurada, provocada ou organizada pelo próprio agente. Neste segundo caso, são obviamente razões endógenas que levam à reiteração criminosa e, portanto não existe atenuação da culpa, mas antes uma culpa agravada, estando pois excluído o crime continuado» - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.05.2009, Coletânea de Jurisprudência, II, pág. 227.

Volvendo ao caso vertente, e perante a factualidade apurada não se vislumbra – nem o Recorrente a indica - que o arguido tenha agido num quadro de uma solicitação externa a facilitar-lhe a realização do crime, solicitação essa que lhe diminuiu consideravelmente a culpa.

O arguido, porque residia na mesma casa com a jovem, tinha-a, facilmente à «mão», especialmente, nas alturas que a companheira e mãe da B... se encontrava ausente de casa.

Porém, esta facilidade de acesso à jovem não pode nunca significar que consubstancia uma solicitação ou facilitação exterior conducente a diminuir a culpa do Recorrente.

Neste sentido, cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.11.2012 - www.dgsi.pt

Inexistindo, assim, qualquer circunstância externa - arrastando o arguido à repetição reiterada do cometimento dos factos ilícitos pelos quais foi condenado – a  diminuir consideravelmente a culpa do Recorrente, afastada fica a punibilidade da sua conduta através do crime continuado.

 

4 O Crime de trato sucessivo

Defende o Digno Procurador, na Resposta ao Recurso do arguido, que deve aderir-se à tese do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Novembro de 2012, no sentido de que se está perante um crime prolongado, protelado ou protráido, exaurido ou de trato sucessivo, ou seja, há só um crime apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituírem um crime – tanto mais grave (no quadro da sua moldura penal) quando mais repetido.

Quid Iuris?

O aresto citado pelo Ministério Público apela ao crime de trato sucessivo, solução que a doutrina e a jurisprudência encontraram para a realidade de uma «actividade sexual criminosa» que se repete prolongadamente no tempo, sendo a contagem do número de actos difícil e quase arbitrária.

Ai se lê:

«Ao contrário do crime continuado [cuja inserção doutrinária também nasceu, entre outras razões, da dificuldade em contar o número de crimes individualmente cometidos ao longo de um certo período de tempo], nos crimes prolongados não há uma diminuição considerável da culpa, mas, antes em regra, um seu progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta [ou, em caso de eventual «diminuição da culpa pelo facto», um aumento da culpa enquanto negligência na formação da personalidade ou de perigosidade censurável»]. Na verdade, não se vê que diminuição possa existir no caso, por exemplo, do abuso sexual de criança, por atos que se sucederam no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da ilicitude e da culpa se acentua [ou, pelo menos, se mantém estável à medida que os atos se repetem].

O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que «uma unidade  resolutiva», realidade que não deve confundir-se com uma «única resolução», pois que «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de motivação» (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no “Código Penal anotado”, de P.P Albuquerque).

Para além disso, deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso de crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma.

E a propósito de um caso de crime de abuso sexual de crianças, o Ac. do STJ de 23-1-2008, proc. n.º 4830/07-3.ª, resume do seguinte modo o que aqui temos vindo a expor:

 «I – O fundamento da unificação criminosa consiste na diminuição da culpa do agente, resultante da “cedência” a uma solicitação exterior, e não na unidade de resolução criminosa ou na homogeneidade da atuação delitiva. Esta última, assim como a proximidade temporal das condutas, é um elemento meramente indiciário da continuação criminosa, que deverá ser confirmado pela verificação de uma solicitação exterior mitigadora da culpa. Por sua vez, a unidade de resolução criminosa nem sequer existe no crime continuado, pois o que caracteriza esta figura é precisamente a renovação de tal resolução perante as solicitações externas exercidas sobre o agente. Por isso, sempre que a repetição da conduta criminosa seja devida a uma tendência da personalidade do agente, a quaisquer razões de natureza endógena, que ocorra independentemente de qualquer solicitação externa, ou que decorra de oportunidade provocada ou procurada pelo próprio agente, haverá pluralidade de crimes e não crime continuado.

 II – Estando em causa crime de abuso sexual de crianças agravado, não pode aceitar-se que o «êxito» da primeira «operação» e das seguintes possa determinar a diminuição da culpa do arguido: este agiu determinado pela vontade de satisfazer os instintos libidinosos, como se diz no acórdão recorrido, e, para tanto, aproveitou as situações mais favoráveis para esse efeito, nomeadamente a ausência da sua mulher e mãe da ofendida. O aproveitamento calculado de situações em que a reiteração é mais propícia exclui, porque não diminui a culpa, o crime continuado. É, de resto, notório, que o arguido agiu determinado por uma única resolução, por ela levado a aproveitar todas as situações que facilitassem a prática dos atos ilícitos, e não formando sucessivamente novas resoluções perante circunstâncias favoráveis entretanto surgidas.

 III – Da mesma forma, a não resistência da ofendida, embora certamente tenha facilitado a repetição do comportamento do arguido, também não pode atenuar a culpa, pois a atitude da ofendida terá normalmente resultado do ascendente que, como pai, o arguido tinha sobre ela, e não de um «acordo» entre ela e o arguido, que não se provou.

 IV – Nem sequer se podem considerar homogéneas todas as condutas imputadas ao arguido, uma vez que uma delas, a descrita inicialmente na matéria de facto, assume claramente uma gravidade maior do que as restantes. Quando muito, poderia admitir-se a unificação num crime continuado das três condutas que consistiram em o arguido acariciar e chupar os seios da ofendida, condutas inteiramente homogéneas. Contudo, a homogeneidade não é condição suficiente da continuação criminosa, sendo essencial, como já se disse, que haja uma efetiva diminuição da culpa do agente, o que não sucede, pois que a repetição criminosa ficou a dever-se à persistente vontade do arguido em satisfazer os seus desejos, vontade essa que superou as normais inibições que estão ligadas às relações entre pais e filhos.

 V – Em todo o caso, essas três condutas, se não podem ser unificadas em termos de continuação criminosa, podem sê-lo como crime de trato sucessivo, que se caracteriza pela repetição de condutas essencialmente homogéneas unificadas por uma mesma resolução criminosa, sendo que qualquer das condutas é suficiente para preencher o tipo legal de crime. Contrariamente ao que acontece no crime continuado, não há aqui qualquer diminuição de culpa, antes a reiteração criminosa, revelando uma persistência da resolução criminosa, encerra uma culpa agravada, que será medida de acordo com o número de condutas e respetiva ilicitude».

Uma outra tese – a que defende que os crimes de abuso sexual crianças não se enquadram na figura do crime de trato sucessivo – está, também, explanada, no Acórdão em análise, através do voto de vencido do Exmº Senhor Conselheiro Manuel Braz que contra-argumenta como segue:

«A categoria de crime de trato sucessivo, a que a posição maioritária faz apelo, não vem, com essa designação, contemplada na lei, que prevê o crime permanente (artigo 119.º, n.º 2, al. a)), o crime continuado (artigos 119.º, n.º 2, al. b), 30.º, nºs 2 e 3, e 79.º) e o crime habitual (artigo 119.º, n.º 2, al. b)), bem como o crime que se consuma por atos sucessivos ou reiterados (artigo 19.º, n.º 2 do Código de Processo Penal).

 O crime de trato sucessivo será reconduzível à figura do crime habitual, como refere Lobo Moutinho (Da unidade à pluralidade dos crimes no direito penal português, página 620, nota 1854).

 Este autor, depois de definir o crime contínuo como o «crime cuja consumação se protrai mediante a prática de uma pluralidade de atos sucessivos (no sentido de praticados em imediata sequência temporal)», correspondendo «basicamente àquilo que Eduardo Correia chamou o crime único com pluralidade de atos», caracteriza assim o crime habitual:

«O crime habitual, no sentido que à expressão confere a atual legislação, é um crime em que a consumação se protrai no tempo (dura) por força da prática de uma multiplicidade de atos “reiterados”.

 Que a persistência temporal na consumação se não dá mediante a prática de um só ato, mas de uma multiplicidade deles - eis o que distingue o crime habitual do crime permanente; que os atos que vão consumando o crime são, não sucessivos, mas reiterados - eis o que distingue o crime habitual do crime contínuo.

 O ponto central da definição do crime habitual é, por isso, o que deve entender-se por “atos reiterados”.

 É seguro que, por “atos reiterados”, se deve entender, pelo menos, a pluralidade de atos homogéneos. Atos diversos não são reiterados.

 (…) apenas se pode admitir a “consumação por atos reiterados” (um crime habitual) em casos especiais - o mesmo é dizer, nos casos e termos em que isso é expressamente possibilitado pelo tipo de crime.

 Na verdade, embora a caracterização legal não se esgote nisso, os “atos reiterados” são opostos, pela própria lei, aos “atos sucessivos” no sentido de praticados em ato seguido. Isso indica um certo distanciamento temporal - pelo menos suficiente para se não admitir a existência de um crime contínuo - o que faz o crime perder o cariz episódico, para passar a estruturar-se numa atividade que se vai verificando, multi-episodicamente, ao longo do tempo.

 Mas se em relação a todos os crimes fosse de admitir esta forma habitual de perpetração, as restantes figuras a que nos referimos ficariam em crise, se é que lhes sobraria qualquer espaço de aplicação.

 Assim se compreende que, como a doutrina indica, os crimes “habituais” (seja qual for o entendimento a dar à “habitualidade” do crime, o mesmo é dizer, à “reiteração” dos atos de que se compõe) correspondem a casos especiais em que a estrutura do facto criminoso se apresenta ou, pelo menos, pode apresentar mais complexa do que habitualmente sucede e se desdobra numa multiplicidade de atos semelhantes que se vão praticando ao longo do tempo, mediante intervalos entre eles. Exemplos apontados são o crime de maus-tratos e infração às regras de segurança (artigo 152.º [atual 152.º-B]), o crime de lenocínio (artigo 170.º)».

 Admite o autor outros casos, como o crime de tráfico de estupefacientes, que considera desdobrar-se ou poder desdobrar-se numa multiplicidade de atos semelhantes, «como claramente resulta da previsão da agravação por diversas circunstâncias, a começar pela da destinação ou entrega a “menores” ou da distribuição “por um grande número de pessoas” (artigo 24.º, n.º 1, al.s. a) e b) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro)» (ob. cit.,  páginas 604 a 620).

 Mais incisivo, Figueiredo Dias define crimes habituais como sendo «aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de uma forma reiterada», dando como exemplo os crimes de lenocínio e de aborto agravado do artigo 141.º, n.º 2, do CP (Direito Penal: Parte Geral, Tomo I, 2.ª edição, pág. 314).

Não é, pois, a unidade de resolução que pode conferir a uma reiteração de atos homogéneos o cariz de crime de trato sucessivo, que se identifica com a categoria legal do crime habitual, mas somente a estrutura do respetivo tipo incriminador, que há de supor a reiteração.

 Parece claro que tanto os tipos de crime de abuso sexual de crianças e de abuso sexual de menores dependentes como o de violação não contemplam aquela «multiplicidade de atos semelhantes» que está implicada no crime habitual nem, por isso, a sua realização supõe um comportamento reiterado.

Cada um dos vários atos do arguido foi levado a cabo num diverso contexto situacional, necessariamente comandado por uma diversa resolução e traduziu-se numa autónoma lesão do bem jurídico protegido. Cada um desses atos não constituiu um momento ou parcela de um todo projetado nem um ato em que se tenha desdobrado uma atividade suposta no tipo, mas um “todo”, em si mesmo, um autónomo facto punível. Deve por isso entender-se que, referentemente a cada grupo de atos, existe, usando palavras de Figueiredo Dias, «pluralidade de sentidos de ilicitude típica» e, portanto, de crimes (ob. cit. página 989).».

Quanto a nós e ponderada a factualidade apurada, perfilamos esta segunda orientação.

A matéria de facto provada não nos permite inferir que a conduta do arguido, em final de Dezembro de 2007, tenha tomado uma unidade resolutiva que abarcasse, ab initio, as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que viriam a ter lugar os actos sexuais que praticou com a vitima, contra a vontade desta.

O que ressalta da matéria factual, especialmente dos que constam nos números 4 a 14,  é que o arguido, aproveitando o facto, de em algumas vezes, a jovem se encontrar sozinha em casa, tomava em cada um desses momentos, a decisão (a resolução) de se colocar em cima dela, introduzindo o seu pénis erecto na vagina da B..., friccionando-o até satisfazer os seus instintos libidinosos, criando, para tanto e de cada vez, as condições necessárias concretizar o seu propósito.

Dito de outra forma, o arguido, quando pretendia satisfazer seus apetites sexuais com a B..., renovava a intenção de o fazer, praticando de seguida os actos necessários a executá-la: escolhia os momentos em que a jovem se encontrava sozinha em casa, o espaço onde os actos sexuais teriam lugar, e bem assim o modo como anulava a resistência da B....

Cada uma das condutas do Recorrente – cada acto sexual -  é autónoma em relação às outras, sujeita a um juízo, também ele, autónomo de censura, constituindo, assim, um crime, em concurso efectivo, com os demais.

5 - Medidas da pena: parcelares e única

Vem o Recorrente condenado:

- na pena de 5 anos de prisão por cada um dos 104 crimes de violação agravada, , previsto e punido pelo art. 164º, nº 1, al. a) e 177º, nº 6, do Código Penal;

- na pena de 4 anos e 6 meses de prisão pela prática de cada um dos 12 crimes de violação agravada, previsto e punido pelo art. 164º, nº 1, a) e 177º, nº 5, do Código Penal.

- na pena de 9 meses de prisão pela prática de um crime de sequestro previsto e punido pelo art. 158º, nº 1, do Código Penal.

Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 9 anos de prisão.

Insurge-se o recorrente contra cada uma das penas supra referidas, reputando-as, como excessivas.

Será assim?

A escolha e medida da pena obedece a critérios legais, devidamente delineados nos art.s 70º a 74º do Código Penal.

Na determinação da pena, deve o julgador ponderar, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele, designadamente as elencadas nas diversas alíneas do nº 2, do art. 71º, do Código Penal, a saber:

- As reportadas à execução do facto, desde o grau da ilicitude, o modo de execução, o grau de violação dos deveres impostos ao agente, intensidade da culpa, sentimentos manifestados e fins determinantes da conduta [alíneas a), b) e c)];

- As relativas à personalidade do agente: as suas condições pessoais e situação económica, bem como a falta de preparação para manter uma conduta lícita manifestada no facto [alíneas d) e f)];

- As que respeitam à conduta do agente anterior e posterior a facto [alínea e)].

A aplicação de uma pena tem como finalidade, di-lo o art. 40º do Código Penal, a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, sendo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa. 

Como se realça no Acórdão desta Relação de 4 de Maio de 2013 – www.dgsi.pt – citando, a Prof. Anabela Rodrigues e o Acórdão do STJ de 4.7.2006:

 «A prevenção geral radica, no significado que a “gravidade do facto” assume perante a comunidade, isto é,  importa aferir do significado que a violação de determinados bens jurídicos penais tem para a comunidade e satisfazer as exigências de protecção desses bens na medida do necessário para assegurar a estabilização das expectativas da validade do direito ou, por outra forma, a consideração da prevenção geral procura dar “satisfação à necessidade comunitária de punição do caso concreto , tendo-se em conta de igual modo a premência da tutela dos respectivos bens jurídicos».

Já a pena única deve ser determinada em função de uma apreciação conjunta dos factos e da personalidade do agente (cf. art. 77º, nº 1 do Código Penal).

 Quem julga, depois de apuradas as penas parcelares aplicáveis a cada um dos crimes em concurso,  «(…) há-de descer da ficção, da visão compartimentada que está na base da construção da moldura e atentar na unicidade do sujeito em julgamento. A perspectiva nova, conjunta, não apaga a pluralidade de ilícitos, antes a converte numa nova conexão de sentido. Adverte que o todo não equivale à mera soma das partes e repara, além disso, que os mesmos tipos legais de crime são passíveis de relações existenciais diversíssimas, a reclamar uma valoração que não se repete de caso para caso. A esse novo ilícito corresponderá uma nova culpa. Que continua a ser culpa pelos factos em relação. Afinal, a avaliação conjunta dos factos e da personalidade de que fala o CP». Cristina Líbano Monteiro, A pena "unitária" do concurso de crimes», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 16, n.º 1, Janeiro-Março 2006, Coimbra Editora, p. 151 e ss.

Definidos os critérios que norteiam a escolha da medida concreta da pena e ponderada a factualidade apurada, nenhum reparo merece a decisão recorrida, no quantum de cada uma das penas parcelares e única em que condenou o arguido, sendo certo que o Recorrente não invoca argumentos fácticos que justifiquem a alteração do decidido em primeira instância.

A pena única em que o Recorrente vai condenado não admite a sua substituição pela suspensão da respectiva execução.

6 – O pedido cível

Alega o Recorrente que, à luz dos critérios do art. 496º, do Código Civil, o montante fixado em 70 000,00€, é excessivo.

Mais uma vez não indica o Recorrente um único argumento que possa contrariar os fundamentos que justificaram a fixação do montante indemnizatório.

Com efeito, não podemos esquecer que a jovem B..., com 11 anos de idade e durante cerca de dois anos e meio, viu-se completamente desprotegida dos adultos, sujeita à violência de actos sexuais forçados por parte do próprio companheiro da sua mãe.

Durante este tempo viveu num estado de permanente agitação psicológica, muito sobressaltada e assustada.

Tornou-se numa jovem bastante fechada em si mesma, desconfiada e com baixos níveis de auto estima.

Sente-se complexada em relação ao seu próprio corpo.

Viveu e sentiu na escola que frequentava a vergonha dos rumores que sobre si recaíam acerca dos factos em análise, o que a fez sentir-se enxovalhada.

Dela se apoderou uma sensação de vergonha por tudo aquilo que consigo se passou, o que a leva a não se relacionar de modo aberto e descomplexado com as outras pessoas.

O presente e o futuro da B... estão marcados por este passado, desconhecendo-se em que medida se revelam e se irão revelar na sua vida.

Uma coisa é certa. O recorrente despojou a jovem de 11 anos de, livremente,  poder iniciar a sua vida sexual quando, pelo modo, pela forma e com quem muito bem entendesse.

São estes os danos – de natureza não patrimonial – que hão-de ser compensados pelo arguido.

  Como ensinava o Prof. Mota Pinto –  in  Teoria Geral do Direito Civil, 1986, pág. 115 – «os interesses cuja lesão desencadeia um dano não patrimonial são infungíveis, não podem ser reintegrados mesmo por equivalente. Mas é possível, em certa medida, contrabalançar o dano, compensá-lo mediante satisfações derivadas do dinheiro.

Não se trata, portanto, de atribuir ao lesado um “preço da dor” ou um “preço de sangue” mas de lhe proporcionar uma satisfação, em virtude da aptidão do dinheiro para propiciar a realização de uma ampla gama de interesses, na qual se podem incluir mesmos interesses de ordem ideal».

Deste modo, mostra-se adequada, justa e equitativa, a quantia de 70 000,00€ como compensação aos danos não patrimoniais causados pelo Recorrente à jovem B....

    

V – DECISÃO

Por todo o exposto, acordam os juízes da Secção Criminal desta Relação julgar não provido o Recurso.

Custas pelo Arguido, com taxa de justiça que se fixa em 5 UCS.

Coimbra,  9 de Abril de 2014

 (Alcina da Costa Ribeiro - relatora)

 (Cacilda Sena - adjunta)