Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
440/06.1TBACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: SEGURO OBRIGATÓRIO AUTOMÓVEL
NULIDADE
DANO DE PRIVAÇÃO DO VEÍCULO
REPARAÇÃO
Data do Acordão: 09/08/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ALCOBAÇA – 3º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Legislação Nacional: ARTºS 428º, § 1º, DO CÓDIGO COMERCIAL; DEC. LEI 522/85, DE 31/01.
Sumário: I – O artº 2º, nº 1, do D.L. nº 522/85, de 31/01, estabelece que a obrigação de segurar impende sobre o proprietário do veículo, exceptuando os casos de usufruto, venda com reserva de propriedade e regime de locação financeira, em que a referida obrigação recai, respectivamente, sobre o usufrutuário, o adquirente ou o locatário.

II – Mas, de acordo com o artº 1º, nº 1, desse diploma, toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de lesões corporais ou materiais causadas a terceiros por um veículo terrestre a motor, seus reboques ou semi-reboques, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta essa mesma responsabilidade, nos termos do dito diploma.

III – E o nº 2 do artº 2º preceitua que se qualquer outra pessoa (que não os sujeitos da obrigação de segurar) celebrar, relativamente a um veículo, contrato de seguro que satisfaça o disposto no referido diploma, fica suprida, enquanto o contrato produzir efeitos, a obrigação das pessoas referidas no número anterior.

IV – Por sua vez, o artº 14º estatui que, para além das exclusões ou anulabilidades que sejam estabelecidas nesse diploma, a seguradora apenas pode opor aos lesados a cessação do contrato nos termos do nº 1 do artigo anterior (alienação de veículo), ou a sua resolução ou nulidade, nos termos legais e regulamentares em vigor, desde que anteriores à data do sinistro.

V – A interpretação conjugada destes preceitos legais permite concluir que, face à relevância social da protecção do lesado e valores subjacentes ao regime do seguro obrigatório, nomeadamente quanto à inoponibilidade das excepções contratuais gerais nele não previstas, não repugna aceitar a derrogação da norma do § 1º do artº 428º do Código Comercial pelas do D.L. nº 522/85, nomeadamente nos seus artºs 2º e 8º, nº 1, enquanto enformadoras dum regime especial quanto ao regime da nulidade do seguro por falta de interesse na coisa segurada.

VI – É consensual que a privação do proprietário do uso da sua viatura se traduz num acto ilícito, porque violador do direito de propriedade, já que impede o dono de gozar de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso e fruição da coisa que lhe pertence, nos termos do artº 1305º do C. Civ..

VII – Porém, a mera privação do uso de um veículo automóvel, sem factos reveladores de dano específico emergente ou na vertente de lucro cessante, é insusceptível de fundar a obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil.

Decisão Texto Integral:          Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

         1. RELATÓRIO

         A....., casado, reformado, residente em Rua do Canelão, n° 1, Prazeres, Aljubarrota, concelho de Alcobaça, intentou acção declarativa, com processo comum e forma ordinária, contra Companhia de Seguros B..., Fundo de Garantia Automóvel, com sede em Avenida da República, n.º 59, 4°, 1050-189 Lisboa, C... e D..., pedindo a condenação dos Réus a pagar-lhe, na medida das suas responsabilidades, a quantia de € 20.343,21 Euros, discriminada da seguinte forma:

A) - € 4.180,05, relativo ao valor da reparação do veículo de matrícula 13-85-RA;

B) - € 416,66, relativo ao valor dispendido nas deslocações de Alcobaça para Santarém, para a frequência do curso de formação profissional;

C) - € 625,00, relativo ao valor despendido no arrendamento de um quarto em Santarém;

D) - €. 241,50, relativo ao valor devido pelo parqueamento do veículo, até à data da propositura da acção;

E) - € 13.020,00, relativo à indemnização pela privação do uso do veículo, desde a data do acidente até à data em que for disponibilizado o valor suficiente para a reparação;

F) - € 360,00, relativos aos 12 dias necessários para a sua reparação;

G) - € 1375,00, relativo à indemnização pela desvalorização do veiculo;

H) - O valor devido pelo parqueamento do veículo (€ 1,50 por dia), desde a data da propositura da acção até à data em que os RR. colocarem à disposição do A. os montantes supra referidos;

I) - O valor devido à indemnização pela privação do uso do veiculo, desde a data da propositura da acção até à data em que os RR. colocarem à disposição do A os montantes supra referidos

J) - Juros legais vincendos, a partir da citação, até efectivo pagamento sobre todas as quantias peticionadas.

Para tanto, o A. alegou, em síntese, que no dia 2 de Dezembro de 2004, pelas 20,30 horas, no sítio de Ponte Jardim, localidade de Alcobaça, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros de matrícula 13-85-RA, propriedade do A., conduzido pelo seu filho E... e o veículo ligeiro de passageiros de matrícula SI-40-93, cuja propriedade se encontra registada em nome de C..., que o conduzia; que, pelas razões que descreve, a culpa pela ocorrência do acidente recai totalmente sobre o condutor do SI; que sofreu os danos que discrimina, relativamente aos quais pretende ser indemnizado; que a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação ocorridos na condução do SI foi transferida para a R. Companhia de seguros B..., mas que esta, no decurso das negociações para a resolução do assunto, após ter procedido à vistoria do RA, declinou a responsabilidade, alegando inexistir seguro válido para a viatura SI, conduzida pelo R. C...; e que, por esse motivo, intentou também a acção contra o Fundo de Garantia Automóvel, o condutor e D..., titular do seguro e alegado comprador do SI.

O Fundo de Garantia Automóvel contestou impugnado a factualidade descrita na petição inicial, chamando a atenção para a triplicação do pedido relativo à paralisação do veículo, para o seu direito de sub-rogação e, no que respeite a danos materiais, para a dedução da franquia.

A Companhia de Seguros B... contestou por excepção, defendendo que, pelos motivos que expõe, na data do acidente o veículo SI-40-93 não era objecto de qualquer seguro válido e eficaz. Contestou também por impugnação, alegando desconhecer, sem obrigação de saber, a factualidade plasmada na petição inicial e acrescentando que o condutor do SI exercia a condução sob influência do álcool, o que foi decisivo para a ocorrência do sinistro.

O A. respondeu, pugnando pela improcedência das excepções arguidas, rectificando alguns artigos da petição inicial e alterando, em consonância, o pedido.

Admitida a alteração referida, saneada, condensada e instruída a acção, realizou-se a audiência de discussão e julgamento, em cujo âmbito foi proferido o despacho de fls. 297 a 302 decidindo a matéria de facto controvertida.

Foi depois emitida a sentença de fls. 306 a 358, julgando parcialmente procedente a acção intentada por A... e, consequentemente, decidindo:

a) condenar a Ré COMPANHIA DE SEGUROS B... a pagar-lhe as seguintes quantias:

1) 4.180,05 Euros (quatro mil cento e oitenta Euros e cinco cêntimos) relativa aos danos patrimoniais causados no veículo, e quantia necessária à sua reparação;

2) 22.080,00 Euros (vinte e dois mil e oitenta Euros), relativa aos danos patrimoniais decorrentes do dano de privação de uso do veículo RA, como activo patrimonial pertencente ao Autor, referente ao período de 1472 dias, computados até à presente data – 04/12/2008 ;

3) 1.375,00 Euros (mil trezentos e setenta e cinco Euros), relativa á desvalorização sofrida pelo veículo RA em consequência do embate sofrido;

4) 10.710,00 Euros (dez mil setecentos e dez Euros), referente ao valor devido pelo parqueamento/depósito do veículo até á presente data – 04/12/2008 (1190 dias X 9,00 €);

5) Ao montante referenciado em 2) acresce o valor diário de 15,00 € relativo à indemnização pela privação do uso, computado desde o dia seguinte ao presente (04/12/2008), até à data em que a Ré seguradora colocar á disposição do Autor a quantia supra mencionada em 1) para efectiva reparação do veículo;

6) Ao montante referenciado em 4) acresce o valor diário de 9,00 € devido pelo parqueamento, computado desde o dia seguinte ao presente (04/12/2008), até à data em que a Ré seguradora colocar á disposição do Autor a quantia supra mencionada em 1) para efectiva reparação do veículo;

7) Sob os montantes mencionados em 1) e 3) acrescem juros legais moratórios vencidos e vincendos, computados desde a citação e até integral e efectivo pagamento;

8) Sob os montantes referenciados em 2) e 4) acrescem juros legais moratórios, vencidos e vincendos, computados desde a citação, tendo em atenção as quantias então em dívida, bem como sob as quantias que se foram vencendo, até integral e efectivo pagamento;

9) Absolver a Ré Companhia de SegurosB..., quanto ao demais peticionado;

b) absolver os Réus FUNDO de GARANTIA AUTOMÓVEL, C... e D... da totalidade dos pedidos contra si formulados;

Inconformada, a R. Companhia de Seguros B... apelou e, na alegação apresentada, formulou as conclusões seguintes:


[…]

O A., A..., e o R. Fundo de Garantia Automóvel responderam, defendendo a manutenção da sentença recorrida.

Colhidos os pertinentes vistos, cumpre apreciar e decidir.


***

         Tendo em consideração que, de acordo com o disposto nos artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foram colocadas essencialmente duas questões: (a) a da validade do seguro do veículo SI-40-93; (b) e a da indemnização pela paralisação do veículo 13-85-RA.

         Após a data do acidente (02/12/2004), foi o regime jurídico do contrato de seguro constante dos artºs 425º a 462º do Código Comercial substituído pelo que foi aprovado pelo Decreto-Lei nº 72/2008, de 16/04.

         E a regulamentação do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, constante do Decreto-Lei nº 522/85, de 31/12 e suas alterações, foi substituída pela aprovada pelo Decreto-Lei nº 291/2007, de 21/08.

         Fica desde já consignado que, num caso e noutro, é, face às regras de aplicação da lei no tempo fornecidas pelo artº 12º do Cód. Civil, aplicável a legislação vigente na data do acidente.


***

         2. FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. De facto

         Não tendo sido impugnada a decisão sobre a matéria de facto nem havendo fundamento para oficiosamente a alterar, considera-se definitivamente assente a factualidade dada como provada na 1ª instância e que é a seguinte:

1- Da matéria de facto assente logo após os articulados:


[…]


***

         2.2. De direito

         2.2.1. Validade do contrato de seguro        

         A Recorrente defendeu ao longo do processo que o contrato de seguro tendo por objecto o veículo automóvel 13-85-RA, celebrado em 02/12/2004, tendo como tomador o R. D..., não é válido por o dito tomador não ter qualquer interesse na coisa segurada.

         Com efeito, de acordo com o artº 428º, § 1º do Código Comercial, se aquele por quem ou em nome de quem o seguro é feito não tem interesse na cousa segurada, o seguro é nulo.

         Na sentença recorrida analisou-se com grande profundidade a norma legal mencionada, citando-se a propósito a doutrina e a jurisprudência pertinentes e concluindo-se que, apenas com base naquela disposição, o contrato de seguro em causa estaria inquinado de nulidade, o que determinaria que não se operasse qualquer transferência de responsabilidade civil para a seguradora, com a sua consequente absolvição do pedido.

         Mas, continuou-se, no domínio do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel o juízo exposto não é jurisprudencialmente pacífico, antes parecendo ter, nos últimos anos, evoluído. E, analisando com pormenor a mais recente jurisprudência sobre a matéria, designadamente os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 06/11/2007[1], 28/02/2008[2] e 16/10/2008[3], considerou-se:

         “Aplicando o entendimento exposto ao caso sub judice a solução é necessariamente diferente da supra enunciada. Com efeito, reconhecendo-se a premência das normas reguladoras da lei do seguro obrigatório sobre as normas gerais previstas no Cód. Comercial, maxime nos artigos 428º e 429º, ou seja, atribuindo àquelas a natureza de normas especiais a prevalecer quando em confronto com o regime geral, a conclusão a extrair é a da necessária validade e manutenção do contrato de seguro. Atento, nomeadamente, o regime apertado de oponibilidade das excepções e invalidades previsto no enunciado art.º 14º da Lei do Seguro Obrigatório da Responsabilidade Civil Automóvel.

Assim, podendo qualquer pessoa proceder ao seguro de um veículo, em substituição e suprimento da obrigação e dever jurídico de segurar legalmente imposta a determinadas pessoas – cf., art.º 2º, nº 2, do DL nº 522/85 -, o seguro outorgado pelo Réu D... satisfaz as legais exigências requeridas pela Lei do Seguro Obrigatório, nomeadamente no que concerne ao âmbito de cobertura e territorial, pelo que o mesmo deve ser considerado válido e subsistente, aferindo-se a responsabilidade civil coberta pela do condutor, responsável civil, figure este ou não como tomador ou beneficiário do seguro.

Ora, é o alcance social de tal posição, traduzida na relevante tutela da posição dos lesados, conferindo-lhes protecção, dentro da enunciada intencionalidade de socialização do risco, que nos leva a perfilhá-la e adoptá-la, pois tal argumentação surge com maior acuidade perante as finalidades que se pretendem conferir a tal regime legal de seguro obrigatório.

Deste modo:

§ não resultando dos autos que a cessação contratual, por resolução ou nulidade, através da devida comunicação da Ré seguradora, tenha ocorrido em momento anterior á ocorrência do sinistro (no caso concreto, reconheça-se, tal extinção contratual, por comunicação da Ré seguradora, era na prática quase impossível, em virtude do evento sinistro ocorrer no próprio dia de início de vigência do seguro relativamente ao veículo SI) ;

§ estando assim legalmente vedada a ponderação da nulidade prevista no citado art.º 428º, § 1º, do Cód. Comercial, por legal aplicação do restrito regime previsto no mencionado art.º 14º do DL nº 522/85, de 31/01 ;

§ cumprindo o contrato de seguro as regras necessárias á sua validade, e podendo o mesmo ser celebrado por qualquer pessoa, em substituição das legalmente vinculadas – cf., art.º 2º, nºs 1 e 2, do DL nº 522/85, de 31/01 ;

§ não podendo falar-se que a coisa segura (veículo automóvel) não tenha chegado a correr qualquer risco, de forma a concluir-se que o seguro fica sem efeito – cf., art.º 437º, § 1º, do Cód. Comercial -, pois não só a natureza e efeitos do carácter pessoal do presente contrato surgem mitigados no âmbito do seguro obrigatório, como a invocação de tal excepção violaria o restrito âmbito de oponibilidade aos lesados previsto no mencionado art.º 14º da Lei do Seguro Obrigatório da Responsabilidade Civil Automóvel,

    deve necessariamente concluir-se pela vinculação decorrente do contrato de seguro, cabendo assim à Ré Companhia de Seguros B..., responder perante o Autor pelos danos emergentes do acidente e causados pelo veículo seguro.”

         A recorrente concorda com a primeira parte do raciocínio, ou seja, com a nulidade do contrato de seguro, por força do estatuído no artº 428º, § 1º do Código Comercial. Mas rejeita a parte restante, discordando que o regime decorrente do Decreto-Lei nº 522/85, de 31/12, afaste, no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, aquela norma do Código Comercial.

         Vejamos.

         No que concerne ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, domínio em que, no caso, nos movemos, estabelece o artº 2º, nº 1 do Decreto-Lei nº 522/85 que a obrigação de segurar impende sobre o proprietário do veículo, exceptuando-se os casos de usufruto, venda com reserva de propriedade e regime de locação financeira, em que a referida obrigação recai, respectivamente, sobre o usufrutuário, o adquirente ou o locatário.

         Mas, de acordo com o artº 1º, nº 1 do mesmo diploma legal, toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de lesões corporais ou materiais causadas a terceiros por um veículo terrestre a motor, seus reboques ou semi-reboques, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se, nos termos do presente diploma, coberta por um seguro que garanta essa mesma responsabilidade.

         E o nº 2 do artº 2º preceitua que se qualquer outra pessoa (que não os sujeitos da obrigação de segurar) celebrar, relativamente ao veículo, contrato de seguro que satisfaça o disposto no presente diploma, fica suprida, enquanto o contrato produzir efeitos, a obrigação das pessoas referidas no número anterior.

         Por sua vez, o artº 14º estatui que, para além das exclusões ou anulabilidades que sejam estabelecidas no presente diploma, a seguradora apenas pode opor aos lesados a cessação do contrato nos termos do nº 1 do artigo anterior (alienação do veículo), ou a sua resolução ou nulidade, nos termos legais e regulamentares em vigor, desde que anteriores à data do sinistro.

         A interpretação conjugada destes preceitos legais permite concluir, como se fez no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/10/2008, já acima citado, que face à relevância social da protecção do lesado e valores subjacentes ao Regime do Seguro Obrigatório, nomeadamente quanto à inoponibilidade das excepções contratuais gerais nele não previstas, não repugna aceitar a derrogação da norma do § 1º do artº 428º do Código Comercial pelas do Decreto-Lei nº 522/85, nomeadamente nos seus artºs 2º e 8º, nº 1, enquanto enformadoras dum regime especial quanto ao regime da nulidade do seguro por falta de interesse na coisa segurada.

         Concorda-se, portanto, aceitando a premissa de que o R. D... não tinha interesse na coisa segurada (veículo automóvel de matrícula 13-85-RA), com a interpretação das normas legais do Código Comercial e do Decreto-Lei nº 522/85 feita na sentença sob recurso, para ela se remetendo, nos termos do artº 713º, nº 5 do Cód. Proc. Civil, dada a sua extensa, profunda e completa fundamentação.

         Duvidamos, contudo, que aquela premissa seja verdadeira.

         Com efeito, decorre dos factos provados que entre os RR. C... e D..., tendo como objecto o veículo automóvel de matrícula 13-85-RA, foi celebrado um contrato de comodato (artºs 1129º e seguintes do Cód. Civil), para cuja perfeição faltava apenas a entrega, para a qual se não provou que tenha sido acordado dia e/ou hora, da dita viatura.

         A relação jurídica assim estabelecida entre o dono da viatura e o iminente comodatário conferiram a este o necessário interesse para a celebração do contrato de seguro de responsabilidade civil[4]. O risco só começaria com a entrega e circulação do veículo automóvel, mas o interesse existia já, com actualidade[5].

         E não se provou que entre a celebração do contrato de seguro e a ocorrência do acidente se tenha interposto qualquer facto susceptível de extinguir aquele interesse. Ou seja, o interesse existente no momento da celebração do contrato de seguro continuava a existir no momento do acidente, nada permitindo concluir que, apesar do sinistro, não fora a demora na reparação, o comodato não viesse a atingir a perfeição, com a entrega do veículo[6].

         Existindo, naqueles dois momentos[7], interesse do tomador do seguro na coisa segurada, o contrato de seguro não padece da nulidade cominada pelo § 1º do artº 428º do Cód. Comercial, suprindo, nos termos dos artºs 2º, nº 2 e 8º, nº 1 do Decreto-Lei nº 522/85, o incumprimento da obrigação de segurar por parte do R. C.... E a falta de coincidência, no momento do acidente, entre o tomador do seguro e o sujeito da obrigação de segurar não obsta à eficácia do seguro, não sendo, nos termos do artº 14º do Decreto-Lei nº 522/85, oponível ao lesado.

         Também por este motivo, nega-se, pois, no que a esta questão tange, razão à apelante.

        


***

         2.2.2. Dano da privação do uso do veículo

Vem-se desenhando, desde há uns anos para cá, na doutrina e na jurisprudência, uma querela sobre se a privação do uso, nomeadamente de veículo automóvel imobilizado devido a acidente de viação, constitui, de per si, um dano indemnizável ou se é necessário que o lesado prove, para além da privação do uso, danos concretos decorrentes dessa privação.

         É consensual que a privação do proprietário do uso da sua viatura se traduz num acto ilícito, porque violador do direito de propriedade, já que impede o dono de, como lhe faculta o artº 1305º do Cód. Civil, gozar de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso e fruição da coisa que lhe pertence.

         Onde a divergência surge é no tocante a saber se a privação do uso integra já, em si mesma, um dano com ela conexionado ou se é indispensável que se provem ainda os danos concretos porventura dela decorrentes.

         No sentido de que a privação do uso integra já um dano, bastando ao lesado provar aquela para ter direito à pertinente indemnização podem indicar-se, na doutrina, Abrantes Geraldes, em Indemnização do Dano da Privação do Uso, pág. 39 (citado na sentença sob recurso), autor que refere como partilhando a mesma opinião Júlio Gomes, Américo Marcelino e Menezes Leitão e, na jurisprudência, os Acórdãos do STJ de 27/05/2003 (Proc. 03A1351, relatado pelo Cons. Ribeiro de Almeida), 28/09/2006 (Proc. 06B2732, relatado pelo Cons. Oliveira Barros), 10/10/2006 (Proc. 06A2503, relatado pelo Cons. Nuno Cameira) e de 05/07/2007, (Proc. 07B1849, relatado pelo Cons. Santos Bernardino), todos consultáveis em www.dgsi.pt/jstj.

         Em sentido contrário, ou seja, de que a privação do uso, “qua tale”, não basta para fundar a obrigação de indemnizar, sendo indispensável a alegação e prova de danos concretos por ela causados encontram-se, v.g., os Acórdãos do STJ de 12/01/2006 (Proc. 05B4176, relatado pelo Cons. Salvador da Costa), 08/06/2006 e 05/07/2007 (Procs. 06A1497 e 07B2138, relatados pelo Cons. Sebastião Povoas), 13/12/2007 (Proc. 07A3927, relatado pelo Cons. Mário Cruz), 06/05/2008 (Proc. 08A1279, relatado pelo Cons. Urbano Dias), 16/09/2008 (Proc. 08A2094, relatado pelo Cons. Garcia Calejo), 30/10/2008 (Proc. 08B2662, relatado pelo Cons. Bettencourt de Faria), 30/10/2008 e 06/11/2008 (Procs. 07B2131 e 08B3402, relatados pelo Cons. Salvador da Costa) e de 09/12/2008 (Proc. 08A3401, relatado pelo Cons. Moreira Alves), todos consultáveis em www.dgsi.pt/jstj.

         Sobre esta questão parece-nos pertinente ponderar que a responsabilidade civil, seja contratual, seja por factos ilícitos, pressupõe, além de outros requisitos, a existência de danos. Se não houver danos para indemnizar, não pode falar-se em responsabilidade civil.

         No dizer do Prof. Antunes Varela[8], referindo-se à responsabilidade civil por factos ilícitos, “para haver obrigação de indemnizar, é condição essencial que haja dano, que o facto ilícito culposo tenha causado um prejuízo a alguém”.

         Dano ou prejuízo é toda a ofensa de bens ou de interesses alheios protegidos pela ordem jurídica[9]; é a lesão causada no interesse juridicamente tutelado[10]; consiste em se sofrer um sacrifício, tenha ou não conteúdo económico[11].

         Os danos têm sido objecto de várias classificações[12]. Mas para a questão que nos ocupa interessa fazer incidir a atenção sobre a distinção entre dano real e dano de cálculo[13].

         O dano real é o prejuízo que o lesado sofreu, em sentido naturalístico («in natura»), que pode analisar-se nas múltiplas formas possíveis de ofensa de interesses ou bens alheios juridicamente protegidos, de ordem patrimonial ou não patrimonial, revestindo, as mais das vezes, a forma de uma destruição, subtracção ou deterioração de certa coisa, material ou incorpórea.

         O dano de cálculo é o reflexo do dano real sobre a situação patrimonial do lesado; a expressão pecuniária do dano real.

         A evolução do dano real para o dano de cálculo implica uma operação mental, uma avaliação, podendo esta ser abstracta ou concreta. A avaliação abstracta traduz-se numa ponderação objectiva do prejuízo sofrido e a avaliação concreta numa ponderação subjectiva desse mesmo prejuízo.

         A obrigação de indemnização, para ser integral e indiscutivelmente cumprida, deveria traduzir-se na reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, e corresponder à eliminação absoluta e instantânea do dano real, fazendo com que a realidade com e sem o facto danoso fosse em tudo igual.

         Mas a reconstituição natural, com o purismo acima delineado, é impossível, já que o relógio do tempo não anda, a não ser na ficção, para trás. E, se o facto danoso ocorreu, nada pode fazer regredir a realidade até antes da ocorrência.

         Mas, em alguns casos, é possível a reconstituição natural, ainda que sem o grau de exigência atrás referido. E, nessas situações, de acordo com o artº 562º do Código Civil, nela deve consistir a obrigação de indemnizar.

         Outras, frequentes, vezes, não há qualquer possibilidade de reconstituição natural, ou ela não repara integralmente os danos, ou é excessivamente onerosa para o devedor e, então, a indemnização tem de ser fixada em dinheiro (artº 566º do Código Civil), sendo necessário avaliar, calcular, quantificar pecuniariamente o dano real. É, em suma, preciso transitar do dano real para o dano de cálculo.

         Nessa operação mental há que ter presente o artº 566º, nº 2 do Código Civil, disposição legal que prevê que a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos.

         Ou seja, a nossa lei civil adoptou a chamada teoria da diferença e pressupõe que na determinação da diferença relevante se proceda a uma avaliação concreta do dano de cálculo, interessando o prejuízo concretamente sofrido pelo lesado e não o que habitual e correntemente se sofre em situação idêntica.

         Isto é, “de jure constituto”, estamos em crer, citando o sumário de um dos acórdãos do STJ acima referidos[14], que a mera privação do uso de um veículo automóvel, sem factos reveladores de dano específico emergente ou na vertente de lucro cessante, é insusceptível de fundar a obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil.

         Revertendo ao caso concreto que ocupa a nossa atenção, constata-se que, embora dos autos decorra que o A. está privado do uso do seu veículo automóvel de matrícula 13-85-RA desde a data do acidente (02/12/2004), apenas se provou, em termos de danos concretos resultantes dessa privação, que despendeu no aluguer de um automóvel a quantia de € 414,66 (€ 136,85 + € 277,81) e no pagamento da renda de um apartamento partilhado pelo seu filho com outros colegas, por não poder utilizar o RA nas deslocações de casa para Santarém e vice-versa, durante os meses de Janeiro a Abril de 2005, a quantia de € 500,00 (€ 125,00/mês x 4 meses).

         Atenta a posição atrás assumida na controvérsia acerca do dano da privação do uso, entendemos, contra o decidido pela 1ª instância e dando, nesta questão, razão à apelante, que a tal título, só serão indemnizáveis os indicados danos concretos.

         E, tendo em conta que durante os meses de Janeiro a Abril de 2005, em que o filho do A. ficou alojado em Santarém, não fazendo a viagem diária de e para Aljubarrota, não dando causa às despesas inerentes, à indemnização haverá que deduzir o montante de tais despesas. Montante esse que, não estando apurado nos autos, atendendo à distância entre Aljubarrota e Santarém, ao número de viagens (ida e volta todos os dias úteis) e, sobretudo, à equidade, se fixa em € 250,00.

         Assim, a título de indemnização pelos danos sofridos com a privação do uso do seu veículo automóvel de matrícula 13-85-RA, terá o A. a receber a quantia de € 664,66 (€ 414,66 + € 500,00 - € 250,00).

         Nesta parte procedem, pois, as conclusões da alegação da recorrente.


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         3. DECISÃO

         Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação parcialmente procedente e, consequentemente:

a) Mantendo-a em tudo o mais, revoga-se a sentença recorrida na parte em que condenou a R. Companhia de Seguros B... a pagar ao A. a quantia de € 22.080,00 (vinte e dois mil e oitenta euros), relativa aos danos patrimoniais decorrentes da privação de uso do veículo RA desde a data do acidente até 04/12/2008, acrescida do valor diário de 15,00 € desde 04/12/2008 até à data em que a Ré seguradora colocasse à disposição do Autor a quantia de € 4.180,05 para efectiva reparação do veículo [nºs 2) e 5) da al. a) da parte decisória da sentença].

b) Condena-se a R. Companhia de Seguros B... a pagar ao A., a título de indemnização pela paralisação do seu referido veículo automóvel, a quantia de € 664,66 (seiscentos e sessenta e quatro euros e sessenta e seis cêntimos).

         As custas são a cargo da R./apelante e do A./apelado, na proporção do decaimento.


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                                               Coimbra,


[1] Processo 07A3447, relatado pelo Cons. Nuno Cameira, in www.dgsi.pt/jstj.
[2] Processo 07A4604, relatado pelo Cons. Sousa Leite, in www.dgsi.pt/jstj.
[3] Processo 08A2362, relatado pelo Cons. Alves Velho, in www.dgsi.pt/jstj.
[4] Tenha-se em conta que, de acordo com o n º 1 do artº 1º do Decreto-Lei nº 522/85, o seguro deve preceder a circulação.
[5] Tanto assim que, conhecedora da situação (cfr. pontos 2.40 a 2.42 do elenco dos factos provados), a R. emitiu o documento mencionado no ponto 1.1. do mesmo elenco dos factos provados.
[6] A ineficácia do seguro quanto ao risco coberto, por o mesmo não ter chegado a existir (artº 437º, 1º do Cód. Comercial), não obsta, face ao artº 2º, nº 2 do Decreto-Lei nº 522/85, à produção dos efeitos quanto ao acidente entretanto ocorrido.
[7] Ac. STJ de 09/06/2005 (Proc. 05B1611), in www.dgsi.pt/jstj.   
[8]  Das Obrigações em Geral, 3ª ed., vol. I, pág. 492. Cfr. tb. Prof. Almeida Costa, Direito das Obrigações, pág. 390, onde diz: “Condição da existência de responsabilidade civil, bem sabemos, é a verificação de um dano ou prejuízo a ressarcir”. Por sua vez, o Prof. Inocêncio Galvão Telles, em Direito das Obrigações, 7ª ed. revista e actualizada, pág. 373, afirma: “Para que o devedor se constitua em responsabilidade não basta que deixe de cumprir culposamente a obrigação. É necessário, ainda, que o credor tenha sofrido prejuízos; que ao acto ilícito e à culpa acresça este outro elemento”.
[9]   Prof. Almeida Costa, ob. cit., pág. 391.
[10]   Prof. Antunes Varela, ob. cit., pág. 493.
[11]   Prof. Galvão Telles, ob. cit., pág. 374.
[12]   Danos patrimoniais e danos não patrimoniais, também ditos morais; dano real e dano de cálculo; dano emergente e lucro cessante; danos presentes de danos futuros, etc.
[13]   Trata-se de terminologia do Prof. Almeida Costa (ob. cit., pág. 392), correspondendo, se bem vemos, na linguagem do Prof. Antunes Varela (ob. cit., pág. 492) ao binómio dano real e dano patrimonial e, na linguagem do Prof. Galvão Telles (ob. cit., pág. 375) à distinção entre prejuízo concreto e prejuízo abstracto.
[14] Ac. STJ de 30/10/2008 (Proc. 07B2131, relatado pelo Cons. Salvador da Costa).