Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
746/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO DE ANDRADE
Descritores: HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
CONCURSO EFECTIVO ENTRE CRIME E CONTRA-ORDENAÇÃO
Data do Acordão: 05/04/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA FIGUEIRA DA FOZ - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 30º E 137º, N.º 2, DO CÓDIGO PENAL E 32º, DO REGIME GERAL DA CONTRA-ORDENAÇÕES E COIMAS
Sumário: I - Não sendo definido, de forma expressa, pelo legislador, o conceito de negligência grosseira, entende-se que constitui uma forma qualificada de negligência, ligando-se à ideia de «culpa temerária», particularmente censurável, em que a culpa é agravada pelo elevado grau de imprevisão, de falta de cuidados elementares que importam grave desrespeito do dever de representação ou da justa representação da possibilidade de ocorrência do resultado proibido. Ao nível da ilicitude, pressupondo um comportamento particularmente perigoso e um resultado de verificação altamente provável à luz da conduta adoptada. E ao nível da culpa, revelando uma atitude particularmente censurável de leviandade ou de descuido perante o comando jurídico-penal.
Podendo tomar-se como critério de referência, ao nível da ilicitude, a natureza da norma violada (v.gr. actuação que integre outro crime, contra-ordenações graves ou muito graves) ou a quantidade de normas violadas.

II - Não pratica o crime de homicídio com negligência grosseira a condutora em relação à qual apenas se provou que entrou numa curva a velocidade não concretamente apurada, ainda que superior ao limite estabelecido para o local em 10 km./h, não adequando a velocidade ao trânsito que seguia à sua frente, iniciando uma travagem no decurso da qual foi colidir na traseira de um velocípede, já no fim da curva.

III - Existe concurso efectivo entre o crime e a contra-ordenação, uma vez que aquele não esgota o significado, efeito, ou ilicitude da contra-ordenação, por forma a que possa entender-se que a consome, na mediada em que a contra-ordenação visa a protecção do perigo abstracto de uma série de indeterminada de bens jurídicos.

Sendo a arguida condenada por ter causado a morte de outrem por falta de atenção e diligência que se lhe impunha e de que era capaz e não tendo o excesso de velocidade relevado para efeito de qualificação da negligência grosseira, a punição autónoma pela contra-ordenação não viola a proibição da dupla valoração do mesmo facto ou princípio ne bis in idem.

Decisão Texto Integral: ACORDAM, EM AUDIÊNCIA, NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA
I – 1. Após realização da audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença, mediante a qual foi decidido:

- condenar a arguida A..., melhor identificada nos autos, pela autoria do crime de homicídio por negligência p e p elo art. 137º, n.º1 do C. Penal, na pena de 7 (sete) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 18 meses;

- absolver a arguida da contra-ordenação p e p pelas disposições conjugadas dos artigos 24º, nºs 1 e 3, 27º, n.º1 e n.º2 al. a), 3 e 6 e 146º al. b) do C. da Estrada.

2. Dessa sentença recorre o digno magistrado do MºPº, formulando, na sequência da fundamentação apresentada, as seguintes CONCLUSÕES:

1. Ao absolver a arguida da contra-ordenação p. e p. pelo art. 24º, nºs 1 e 3, 25º, n.º 1, Al. f) E 27º, n.º 1, e 2, Al. a) -1º do C. da Estrada, com base na teoria do concurso ideal heterogéneo,

2. violou a douta sentença o disposto no art. 30º, n.º 1, do Cód. Penal, conjugado com tais dispositivos legais e com o art. 20º do Dec. Lei n.º 433/82 de 14.09, na redacção do Dec. Lei nº 244/95, de 14.09.

3. porquanto o crime de homicídio por negligência p. e p. pelo art. 137º do Cód. Penal, em qualquer dos seus números, não apaga o carácter supra-individual da contra-ordenação imputada, o seu significado jurídico autónomo, enquanto dá protecção contra a ofensa de outros bens jurídicos.

4. Ao arredar a negligência grosseira do n.º 2 do art. 137º do Cód. Penal, com base no facto de naquela curva ocorrerem muitos acidentes e a arguida só circular a tal velocidade,

5. Incorre a douta sentença em contradição insanável da fundamentação (cf. art. 410º, n.º 2, al. b), do Cód. Proc. Penal) porquanto o carácter perigoso da curva só reforça a desatenção manifesta da arguida e indiferença face ao trânsito que pudesse existir à sua frente, e, por outro lado, tal velocidade é precisamente a velocidade excessiva e proibida por lei.

6. Ao aplicar uma pena de prisão de 7 (sete) meses, ainda que suspensa na sua execução, sem recurso ao disposto no ali. 58º do Cód. Penal, onde se prevê a substituição de tal pena por trabalho a favor da comunidade, violou a sentença recorrida este último dispositivo legal, posto que tal sanção realiza de modo adequado as finalidades da punição da arguida.

7. posto que se provou tudo quanto acima se disse a seu respeito e em seu benefício.

Termos em que deve a sentença ser alterada e substituída por outra

3. Não foi apresentada resposta.

No visto a que se reporta o art. 416º do CPP o Ex. Mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso apenas deve proceder na parte relativa à condenação da arguida também pela contra-ordenação, mas já não relativamente à condenação pelo crime com negligência grosseira.

Realizada a audiência, não se verificando obstáculos ao conhecimento de mérito, cumpre conhecer e decidir.


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4. Sintetizando as questões enunciadas nas conclusões, temos para decidir:

- a existência de concurso efectivo ou aparente entre o crime de homicídio negligente e a contra-ordenação causal;

- determinar se a matéria de facto provada permite a imputação à arguida do crime com negligência grosseira. No âmbito desta questão introduzem as conclusões do recurso a questão da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, vício previsto no art. 410º, n.º 2, al. b), do CPP;

- apurar se deve ser aplicada, no caso, à arguida, a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade.

Questões que serão apreciadas pela ordem de precedência lógica indicada nos artigos 368º/369º do CPP, por remissão do art. 424, n.º2 do mesmo diploma.

Para a sua apreciação importa ter presente a decisão da matéria de facto:

II. Estão provados os seguintes factos:

1. No dia 7.6.2003, pelas 14 horas e 30 minutos, a arguida conduzia o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula 60-76-JA, de marca Seat Ibiza (sem ABS), do ano de 1997, de sua propriedade, na Avenida D. João II, em Buarcos, Figueira da Foz, no sentido Buarcos – Figueira da Foz, e pela faixa de rodagem do lado direito, uma vez que a referida artéria apresenta duas faixas de rodagem de cada lado, imprimindo ao veículo uma velocidade não concretamente apurada mas não inferior a 60 km/hora, quando no local o limite máximo de velocidade para tal tipo de veículo é de 50 km/hora.

2. Ao chegar á curva á esquerda que fica junto do cemitério de Buarcos, porque seguisse a tal velocidade e desatenta ao que se passava á sua frente, surpreende-se com a presença de um velocípede sem motor que circulava na mesma faixa de rodagem e que era conduzido junto á berma da estrada por B..., identificado a fls. 26, pelo que inicia uma travagem, bem marcada no pavimento, numa extensão de 33 metros, no decurso da qual vai colidir com a frente direita do seu veículo na traseira do velocípede sem motor, arrastando-o e provocando a projecção do B... para o capo e pára-brisas do Seat e depois para a frente, após imobilização do veículo, ficando o mesmo estatelado no chão com as pernas na faixa de frente do carro, e o velocípede na areia da praia, a 44 metros do local de embate, tendo ido aí parar após voar por cima do parapeito existente do lado direito do passeio e que serve de protecção para os transeuntes.

3. A faixa de rodagem, no sentido Buarcos -Figueira da Foz, apresenta no local a largura de 5,50 metros, é alcatroada, com piso regular e o mesmo apresentava-se seco.

4. A colisão supra referida deu-se a 5,30 metros do segundo poste de iluminação pública a contar do acesso ao “Lidl”, atento o sentido de marcha Figueira da Foz – Cabo Mondego. Tal poste de iluminação encontrava-se no separador central que divide a avenida em duas faixas de rodagem.

5. Próximo do local de embate ficou caído o capacete de protecção de B....

6. Em virtude de tal colisão, projecção e queda, sofreu B... as lesões traumáticas crâneo-meninjo-encefálicas, torácicas e vértebro-medulares lombares analisadas e descritas de fls. 44 a 51, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, que foram causa adequada da sua morte.

7. Agiu a arguida de forma livre, deliberada e consciente ao imprimir tal velocidade ao veículo que conduzia naquele local e ao não conseguir imobilizá-lo no espaço livre e visível á sua frente, assim violando também as mais elementares regras de prudência e de cuidado, que era capaz de adoptar e que devia ter para evitar um resultado que de igual forma podia e devia prever, mas que não previu, dando, pois, causa àquelas lesões para a vitima, que foram causa adequada da sua morte.

8. A arguida sabia ainda que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

9. O embate deu-se praticamente no fim da curva, atendendo ao sentido de trânsito da arguida e da Vitima.

10. A curva onde se deu o acidente era muito perigosa e, por isso, ocorreram na mesma muitos acidentes.

11. Após o embate a arguida ficou muito nervosa, desmaiou e foi assistida no Hospital Distrital da Figueira da Foz, tendo-lhe sido diagnosticada crise de ansiedade, o que lhe provocava mal-estar e tonturas.

12. A arguida é tida por pessoa cumpridora, respeitadora, condutora prudente, simpática, boa amiga e boa estudante.

13. Antes do acidente a arguida era pessoa alegre e brincalhona. Depois do acidente, a arguida mudou a sua maneira de ser e de estar. Passou a ser uma pessoa fechada e depressiva. Presentemente, a arguida anda em consultas de psiquiatria, tendo-lhe sido diagnosticado sindroma depressivo reactivo, de evolução arrastado.

14.A arguida é estudante do 3º ano de Direito na Universidade de Coimbra. Reside com seus pais, mas, actualmente, durante a semana está em Coimbra, vindo a casa aos fins-de-semana. Não tem quaisquer rendimentos e são os seus pais quem suportam todas as suas despesas.

15.A arguida é primária, confessou parcialmente os factos e encontra-se arrependida.


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III – 1. Importa, em primeiro lugar, apreciar a existência do vício da contradição insanável entre fundamentação e conclusão.

A existência do referido vício é fundamenta nos seguintes termos (conclusões 4 e 5): “Ao arredar a negligência grosseira … com base no facto de naquela curva ocorrerem muitos acidentes e a arguida só circular a tal velocidade incorre a douta sentença em contradição insanável da fundamentação porquanto o carácter perigoso da curva só reforça a desatenção manifesta da arguida e indiferença face ao trânsito que pudesse existir à sua frente, e, por outro lado, tal velocidade é precisamente a velocidade excessiva e proibida por lei”.

Ora o referido carácter perigoso da curva não é mencionado pela decisão recorrida na fundamentação da decisão da matéria de facto. Com efeito, em tal fundamentação são referenciados e analisados – apenas - os depoimentos das várias testemunhas e documentos de fls. 1 a 7, 23 e 44 a 51 (documentos relativos à identificação da vítima, à assistência hospitalar e relatório da autópsia).

O carácter perigoso da curva (com o qual o digno recorrente concorda expressamente, diga-se) é invocado na fundamentação jurídica da decisão, como argumento para concluir pela inexistência da negligência grosseira, na perspectiva de que dificultou a imobilização tempestiva do veículo, reduzindo o âmbito da relevância das violação do dever de cuidado, por tal circunstância transcender ou dificultar o seu poder de actuação.

De onde resulta que, a existir tal vício, o mesmo radicaria na fundamentação jurídica da sentença, o que traduziria um erro de direito, por inconsistência da fundamentação apresentada e não uma contradição entre a fundamentação da decisão da matéria de facto e a decisão. Sendo certo que, como se disse, o digno recorrente nem manifesta discordância de nenhum dos factos provados.

A contradição apontada nas conclusões do recurso é antes entre um facto (curva onde ocorrem vários acidente) e a consequência jurídica daí retirada (grau de culpa menor – ausência de negligência grosseira).

Ora os vícios do art. 410º, n.º2 incidem exclusivamente sobre a decisão de facto, como resulta não só da sua letra (“ainda que a lei restrinja à matéria de direito, o recurso pode ter como fundamento…” - corpo do citado n.º2), bem como o teor expresso (“matéria de facto”, “apreciação da prova”) constantes das alíneas a) e c) do mesmo preceito. Em conformidade com o espírito ou a ratio do mencionado preceito, permitindo a chamada revista alargada, em que o tribunal de recurso embora conhecendo exclusivamente de direito, nas três situações previstas no art. 410º n.º2 pudesse conhecer daqueles vícios da matéria de facto, a extrair da decisão em si e do seu confronto com as regras da experiência comum, reenviando, em tal caso o processo para novo julgamento da matéria de facto correspondente.

Assim a existência de tal vício fica liminarmente afastada, por não inquinar, a existir, na perspectiva do próprio recurso, a decisão de facto, mas antes a fundamentação de direito, susceptível de apreciação nos fundamentos jurídicos da decisão acerca dos pressupostos da negligência grosseira.

2. O que nos leva desde já à apreciação da questão da negligência grosseira, perante a matéria de facto provada.

Não é inteiramente seguro e inequívoco o conceito de negligência grosseira.

Logo por não definido, deforma expressa, pelo legislador.

Trata-se de uma forma qualificada de negligência, ligando-se, no entendimento predominante na doutrina e jurisprudência, à ideia de «culpa temerária», particularmente censurável, em que a culpa é agravada pelo elevado grau de imprevisão, de falta de cuidados elementares que importam grave desrespeito do dever de representação ou da justa representação da possibilidade de ocorrência do resultado proibido – cfr. Ac. STJ de 03.04.2003, disponível, em texto integral, em htt://www.dgsi/jstj, com o n.º de documento SJ200304030008535, citando a doutrina e a jurisprudência mais relevantes sobre este ponto.

Sendo de considerar a doutrina de Figueiredo Dias, na esteira de Roxin, de que a negligência grosseira constitui um grau aumentado de negligência, não só ao nível do ilícito, mas também ai nível da culpa. Ao nível da ilicitude, pressupondo um comportamento particularmente perigoso e um resultado de verificação altamente provável à luz da conduta adoptada. E ao nível da culpa, revelando uma atitude particularmente censurável de leviandade ou de descuido perante o comando jurídico-penal, evidenciando no facto qualidades particularmente censuráveis de irresponsabilidade e insensatez – cfr. F. Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, 2001, p. 380-381 e 358 e no Comentário Conimbricence, I, 113.

Esta dupla relevância, ao nível da ilicitude e da culpa, permite que possa falar-se em negligência grosseira mesmo ao nível da negligência inconsciente, quando (apesar da negligência inconsciente) se assiste a uma conduta particularmente censurável ao nível da ilicitude, envolvendo uma conduta particularmente perigosa, tomando-se como ponto de referência a precaução ou a previsão do cidadão normal, homem médio, suposto pela ordem jurídica.

Podendo tomar-se ainda como critério de referência, ao nível da ilicitude, a natureza da norma violada (v.gr. actuação que integre outro crime, contra-ordenações graves ou muito graves) ou a quantidade de normas violadas.

Daí que se verifique a negligência grosseira na condução sob o efeito do álcool com taxas qualificadas como crime, associada à prática de outras contra-ordenações, como a circulação fora de mão ou em excesso de velocidade – cfr. designadamente Ac. STJ de 11.11.98, proc. 891/98, 3ª Sec. e Ac.STJ de 06.09.99, proc. 161/99, 3ª Sec., sumariados no Boletim interno do STJ em http://www.stj.pt/.

NO caso em apreço, a par da já referida conclusão extraída a partir do facto provado (facto n.º10) relativo à natureza da curva, a argumentação do recurso centra-se em que foi dado como provada a matéria de facto que, a este respeito, constava da acusação devendo, por identidade de razão, proceder também em termos de direito.

Não está em causa, como se disse, a decisão da matéria de facto – coincidente com aquela que constava da acusação e com a perspectiva do digno recorrente. Mas apenas a qualificação jurídica dessa mesma matéria de facto, apurando se é susceptível ou suficiente para integrar o falado conceito de negligência grosseira.

A matéria relevante, a par da referida configuração da curva, neste ponto é a descrita sob o n.º7 da matéria provada: “Agiu a arguida de forma livre, deliberada e consciente ao imprimir tal velocidade ao veículo que conduzia naquele local e ao não conseguir imobilizá-lo no espaço livre e visível á sua frente, assim violando também as mais elementares regras de prudência e de cuidado, que era capaz de adoptar e que devia ter para evitar um resultado que de igual forma podia e devia prever, mas que não previu, dando, pois, causa àquelas lesões para a vitima, que foram causa adequada da sua morte”.

A este respeito, para determinar o “grau” da negligência, o que importa ter presente é a matéria de facto relativa ao dever de cuidado exigido à arguida, naquelas circunstância, e que a mesma omitiu. Ou quais os deveres que sobre ela incidiam e que não cumpriu, ou seja a natureza (grau) dos deveres violados e a intensidade dessa violação.

Ora a expressão “assim violando também as mais elementares regras de prudência e de cuidado, que era capaz de adoptar e que devia ter” constitui mera conclusão extraída da matéria de facto previamente definida, nada lhe acrescentando em qualquer daqueles dois vectores.

Matéria de facto essa que é a descrita sob os nºs 1, 2 e 3, onde são definidas as características da via, o limite de velocidade, a actuação da arguida. Sendo em face dessa matéria de facto que se há-de proceder à definição da gravidade da actuação da arguida e do grau de violação do dever de cuidado, tendo por referência dos deveres que lhe impunha o exercício da condução em tais circunstâncias concretas de tempo e lugar.

Ora o que resulta efectivamente provado é tão-só e apenas que a arguida entrou na curva (curva do cemitério de Buarcos, no sentido Cabo Mondego - Figueira da Foz) “imprimindo ao veículo velocidade não apurara, mas superior a 60 km/h, num local onde o limite é de 50… ao chegar à curva, porque seguisse a tal velocidade e desatenta ao que se passava à sua frente, surpreende-se com a presença do velocípede”.

No que toca à desatenção e surpresa a matéria provada assume conotação conclusiva/dedutiva, a partir da constatação da existência do embate na traseira do velocípede. O que resulta mais evidente da sequência descritiva: “pelo que inicia uma travagem, bem marcada no pavimento, numa extensão de 33 metros, no decurso da qual vai colidir com a frente do veículo na traseira do velocípede”.

Bem como quando situa a colisão à saída dessa curva: “o embate deu-se praticamente no fim da curva, atento o sentido de marcha da arguida e da vítima” – facto n.º 9.

Ora, como resulta do facto n.º 10, “a curva era muito perigosa e, por isso ocorreram na mesma muitos acidentes”.

Não constando da acusação ou da matéria provada sequer que a arguida “conhecesse” a curva, ou a perigosidade da mesma, para que lhe fosse exigível um especial dever de cuidado.

Não resultando tão-pouco da matéria provada, em que se traduziu, em concreto, a distracção da arguida (podia atender o telemóvel, olhar o mar, olhar para qualquer objecto estranho à condução). Não podendo assim dizer-se que violasse, de forma grave ou fora do comum, o dever de cuidado. E se fosse numa desatenção fora do comum, provindo de uma recta, seguiria em frente, sem descrever a curva, dificilmente podendo colher o velocípede no final da curva.

No que toca à velocidade, o que temos de concreto é que a arguida seguia a velocidade não apurada, superior a 60 km./h num local onde o limite era de 50 km/.h.

Sem que se tenha apurado a velocidade concreta, designadamente em termos de se poder concluir pela existência de contra-ordenação grave ou muito grave. Apenas se podendo ter como seguro que excedia em 10 km/h. o limite legal para aquele local.

Não resulta assim da matéria de facto provada, a nível da ilicitude, que a arguida tenha assumido um comportamento especialmente perigoso, violando de forma pouco comum as regras de trânsito, ou, ao nível da culpa, que a arguida tenha revelado uma atitude particularmente leviana ou de descuido, omitindo os mais elementares deveres de cuidado.

Diga-se até que a alegação do recurso, quando sustenta a aplicação no caso da pena de trabalho a favor da comunidade refere precisamente “beneficia do regime dos jovens adultos, como também a negligência é inconsciente, a curva era perigosa…” – cf. fls. 212-A dos autos.

Mal se compatibilizando, neste contexto, a pretensão da negligência grosseira com a afirmada negligência inconsciente e a dificuldade acrescida resultante do “relevo” e “aperto” da curva, dificultando a travagem.

Houve conduta negligente, com a consequência extrema da perda de uma vida humana, mas a matéria provada não permite concluir pela existência de um grau de negligência “qualificado” ou da negligência grosseira.

Concluindo-se assim, com o Ex. Mo PGA, que a matéria provada não permite qualificar a negligencia com que actuou a arguida como grosseira.

4. Relativamente à questão da aplicação, no caso, da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, esta pode ser aplicada como substituição da multa (“a requerimento do condenado pode o tribunal ordenar que a pena de multa fixada seja substituída por dias de trabalho” - art. 48º, n.º1 CP) ou como pena de substituição da pena de prisão – art. 58º

Postula o art. 58º, n.º1 do C. Penal (na redacção dada pelo DL 48/95 de 15.05): Se ao agente dever ser aplicada pena de prisão aplicada em medida não superior a 1 (um) ano, o tribunal substitui-a por prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Com esta redacção introduzida pela revisão de 1995 houve o nítido propósito de alargar o campo de aplicação desta pena, aumentando-se o limite máximo de pena de prisão que ela pode substituir de 3 para 12 meses.

Na revisão do C. Penal de 95, refere Maia Gonçalves, C. Penal Anotado, 15ª ed., p. 215, em anotação ao artigo 58º “A comissão revisora propôs um expressivo alargamento dos pressupostos da medida de prestação de trabalho a favor da comunidade, atendendo à ideia de que se trata porventura da mais importante descoberta político-criminal dos últimos decénios no domínio sancionatório e que esta pena é a única das penas que não têm carácter estritamente pessoal-negativo mas assume cariz social-positivo”.

Ora, no caso em apreço, não se verifica, desde logo, outro pressuposto de natureza formal enunciado no n.º 5 do art. 58º do C. Penal: A pena de prestação de trabalho a favor da comunidade só pode ser aplicada com aceitação do condenado.

Sendo certo que tal pressuposto – aceitação do arguido – assume nesta pena de substituição especial destaque (como tal exigido pela lei) no sentido de evitar que a prestação de trabalho se transforme em “trabalho forçado obrigatório” proibido pelas Convenções Internacionais vigentes na ordem jurídica portuguesa – cfr. designadamente o art. 2º, n.º2, c) da Convenção n.º 29 da O. I. T..

Para além de, atenta a natureza e consequências do crime, bem como as necessidades de protecção do bem jurídico violado, no caso o bem jurídico supremo, e as necessidades de prevenção geral, atentos os elevadíssimos índices de sinistralidade rodoviária se afigura que a aplicação da pena pretendida não satisfaz adequadamente as referidas finalidades da pena, postas em destaque, como finalidade primordial da pena, pela redacção do art. 40º do C. Penal introduzida pela Revisão de 1995.

Pelo que carece de fundamento o recurso, neste ponto, logo por faltar a aceitação da arguida.

5. Resta a apreciação da ultima questão - concurso entre crime e contra-ordenação.

Em conformidade com o disposto no art. 30º do C. Penal, aplicável por força do art.32º do RGCO, haverá tantas infracções quantos os tipos legais preenchidos, em concurso ideal, equiparado ao concurso real.

O número de crimes (no caso crime/contra-ordenação) determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.

Havendo concurso aparente de infracções, por consumpção, quando a infracção mais grave inclui nos seus elementos descritivos o preenchimento dos elementos (todos os elementos) de outra menos grave. Há como que uma relação equivalente a dois círculos concêntricos em que o de menor raio se encontra totalmente dentro do maior. Como que “esgotando” ou estando integralmente previsto no maior, o de âmbito menor, por conter em si toda a ilicitude do menos grave.

Como refere Eduardo Correia, Unidade e Pluralidade de Infracções, Colecção Teses, 1983, 133-134, “trata-se de uma relação entre os bens jurídicos violados entre mais e menos, uns contêm-se já nos outros. Só relações de mais e menos, entre bens jurídicos tutelados pelas normas, podem estar na base da consunção”.

Sendo certo que o conceito de acção aceite pelo C.P. como critério para distinguir entre unidade e pluralidade de infracções é o também definido por Eduardo Correia, autor do projecto: não um conceito naturalístico, mas antes o conceito teleológico, reportado aos valores jurídicos violados – cfr. Unidade e Pluralidade de Infracções, cit. p. 74 e 84.

Ora, no caso, os factos integrantes da contra-ordenação não constituem crime, só por si.

Ainda que constituam elemento da negligência causal do crime, este não esgota o significado, o efeito, a ilicitude da matéria da contra-ordenação, por forma a que possa entender-se que a consome.

Na mediada em que a contra-ordenação visa a protecção do perigo abstracto de uma série de indeterminada de bens jurídicos.

Com efeito protege não só a vida e a integridade física daquela vítima, mas a de todo e qualquer utente da via pública incluindo a do próprio autor da contra-ordenação, os próprios bens em circulação na via. No caso a arguida não é condenada “apenas” por conduzir a 60 km/h no local onde o limite era de 50. Podendo seguramente fazê-lo sem incorrer no crime. Mas antes porque, por falta de atenção e diligência que se lhe impunha e de que era capaz, não descreveu a curva e colheu o desafortunado ciclista, causando-lhe a morte.

Diga-se ainda que no caso, não tendo o excesso de velocidade relevado para efeito de qualificação da negligência grosseira, a sua punição autónoma como contra-ordenação não viola a proibição da dupla valoração do mesmo facto o princípio ne bis in idem.

Não se verifica assim a hipótese de consumpção legal prevista no art. 136º do C.E., correspondente ao art. 20º do Regime G.C.O. – neste sentido cf. o Ac. STJ de 03.04.2003, em htt://www.dgsi/jstj acima citado.

Pelo que, nesta parte o recurso haverá de proceder, fixando-se a coima sensivelmente a meio da respectiva moldura.


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IV. Nos termos expostos, julga-se parcialmente procedente o recurso, condenando a arguida, para além do crime por que vem condenada, pela contra-ordenação p e p pelas disposições conjugadas dos artigos 24º, nºs 1 e 3, 27º, n.º1 e n.º3 al. a) do C. da Estrada, na coima de € 150,00 (cento e cinquenta euros). Julgando-se improcedente o recurso em tudo o mais, em que se mantém a decisão recorrida. -------

Sem custas (a arguida não deduziu oposição).