Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
626/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: HÉLDER ROQUE
Descritores: DOAÇÃO
ACEITAÇÃO DE DOAÇÃO
MÚTUO
PAGAMENTO
DANOS PATRIMONIAIS
Data do Acordão: 09/18/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SANTA COMBA DÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 342.º, 1; 940.º, 1; 945.º, 2; 969.º 1; 1142.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: Está-se perante um contrato de doação e não de um contrato de mútuo quando alguém, por espírito de liberalidade, dispõe de uma importância em dinheiro, em benefício de outrem, operando-se a atribuição patrimonial, a seu favor, sem qualquer contrapartida económica para o primeiro, que diminui o seu património, com o correspondente enriquecimento do património do segundo, que não fica obrigado à sua restituição, como forma de neutralizar tal enriquecimento.
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


A... propôs a presente acção declarativa, sob a forma de processo sumário, contra B...e C..., todos bem identificados nos autos, pedindo que, na sua procedência, estes fossem condenados a pagar-lhe a quantia de 5000,00€, acrescida dos juros de mora vencidos, desde a data da citação até efectivo e integral cumprimento, alegando, para tanto, em síntese, que entregou, a título de empréstimo, à ré Patrícia, a quantia de 5.000€, destinada à aquisição de uma viatura automóvel, quantia essa que os réus se obrigaram a restituir, o que, todavia, e, uma vez interpelados para o efeito, se recusaram efectuar.
Na contestação, os réus impugnam os factos alegados pela autora, porquanto nada lhe devem, em virtude de a aludida quantia de 5.000€ ter sido entregue à ré Patrícia Costa, a título de doação e não de mútuo, sendo certo que, por seu turno, invocam ter sofrido com a actuação da autora, ao exigir o pagamento judicial da quantia em questão, danos patrimoniais, deduzindo, em consequência, o correspondente pedido reconvencional, em que solicitam que a autora seja condenada a pagar-lhes a importância global de 2250€.
Na resposta à contestação, a autora impugna os factos alusivos à doação alegada pelos réus e defende a inadmissibilidade da reconvenção deduzida.
A sentença julgou a acção, totalmente, improcedente, por não provada, e, em consequência, absolveu os réus B...e C... do pedido, mas improcedente a reconvenção, por não provada, e, em consequência, absolveu a autora/reconvinda, A..., do pedido reconvencional.
Desta sentença, a autora interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações, com as seguintes conclusões:
1ª – A autora instaurou a presente acção e, alegando a existência de um contrato de mútuo entre si e os réus, peticionou a condenação dos réus a entregar-lhe a quantia mutuada de 5000,00€, acrescida dos juros de mora.
2ª – Os réus contestaram a presente acção alegando que a quantia foi entregue à ré Patrícia Costa a título de doação e não de mútuo.
3ª - Além do mais, considerou-se provado que a ré Patrícia, residente em Oliveira do Hospital, foi estudar para Carregai do Sal em 2000, local onde arrendou um quarto na residência da autora,
4ª - Que a autora, por reconhecimento de todos os favores que a ré Patrícia havia efectuado desde que se tinha mudado para a sua
casa, decidiu dar-lhe uma quantia para a entrada na aquisição de
uma viatura, reconhecendo assim que era a única forma que tinha
para compensar os serviços constantes da ré Patrícia.
5ª - Que a autora influenciou até na escolha da viatura, decidindo então que a melhor solução para a ré Patrícia seria a aquisição de uma viatura VW Pólo, e para esse negócio dar-lhe-ia a quantia de 5.000,00€.
6ª - A acção foi julgada totalmente improcedente, por não provada, e, em consequência, foram os réus B...e C... absolvidos.
7ª - A autora não concorda com a decisão proferida, e com a matéria tida por provada, porquanto a mesma está em manifesta contradição
com a prova produzida em audiência de discussão e julgamento.
8ª - Os requisitos fixados pela lei, para que ocorra doação – disposição gratuita, diminuição do património do doador e espírito de liberalidade, não estão preenchidos.
9ª - O espírito de liberalidade é um elemento subjectivo, sempre
dependente do estado psicológico do doador.
10ª – Assim, para que tivesse existido uma doação, necessário era que, ao contrário do que aconteceu, a autora não exigisse o seu dinheiro de volta, nunca tendo sido vontade da autora dar o seu dinheiro aos réus.
11ª - Já os requisitos do mútuo estão completamente preenchidos: empréstimo, por uma das partes, de uma coisa fungível; obrigação da outra parte de restituir outro tanto, do mesmo género e qualidade.
12ª - No decurso da audiência de discussão e julgamento, vários foram os depoimentos que permitem concluir pela ocorrência de um negócio de mútuo, em detrimento da existência de uma doação, conforme supra se transcreveu.
13ª - De facto, salvo melhor opinião, a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, como poderá ser facilmente constatado, dado o registo fonográfico, permite concluir que a decisão proferida está em manifesta contradição com a prova produzida.
14ª - Na verdade, salvo o devido respeito, os princípios da oralidade e imediação não se podem confundir com arbitrariedade, pelo que a
decisão recorrida deverá ser revogada.
15ª - Deve ainda considerar-se provado que a ré Patrícia não residiu em casa da autora mais de 4 meses, devendo alterar-se a matéria assente, neste sentido.
16ª - Sem prescindir de tudo o que se deixa exposto, a entender-se existir uma doação, então, sempre deveria ter sido determinada a sua
revogação.
17ª – Para que o princípio da economia processual e celeridade não se considerassem violados, deveria a Meritíssima Juíza, tendo em conta a
discussão da matéria de facto, ter apreciado e decidido a revogação da
doação.
18ª - A existir doação, é manifesto que a ré Patrícia se constituiu, por tudo o que narrou ao tribunal, em ingratidão, por ter recusado ao doador os devidos alimentos,
19ª - Sublinhe-se que "alimentos" devem entender-se em sentido amplo, abrangendo cuidados que a ré se comprometeu a acautelar e não
cumpriu.
20ª - Pelo que a ré Patrícia deveria ter sido condenada a devolver à autora a quantia entregue, ainda que devido à revogação da alegada
doação.
21ª - Termos em que deve dar-se provimento ao recurso, anulando-se a decisão recorrida, por violação do disposto nos artigos 1142°, 940°, 970° e 2166°, todos do CC, substituindo-a por outra que conclua pela condenação dos réus no pagamento à autora da quantia de 5.000,00€.
Os réus não apresentaram contra-alegações.

*

Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
As questões a decidir, na presente apelação, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do Código de Processo Civil (CPC), são as seguintes:
I – A questão da alteração da decisão sobre a matéria de facto.
II – A questão da existência da doação.
III - A questão da revogação da doação.

I

DA ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

Alega a autora que não concorda com a decisão proferida e com a matéria tida por provada, porquanto a mesma está em manifesta contradição com a prova produzida em audiência de discussão e julgamento.
Porém, pretendendo a autora a alteração da matéria de facto, não indica os concretos pontos da base instrutória que entende ver modificados, nem esclarece o sentido de orientação das respostas a consagrar, passando ao lado da circunstância de terem conhecido resposta afirmativa os pontos nºs 3, 4, 5, 7, 8, 9, resposta negativa os pontos nºs 1, 2, 10 e 11 e resposta explicativa o ponto nº 6, todos da referida peça processual.
Assim, invocando a autora a necessidade de ser alterada a matéria dada como provada, não concretizou os pontos da base instrutória em causa, nem esclareceu o sentido exacto das respostas que entende corresponderem, correctamente, à prova produzida nos autos.
Neste particular, registe-se que, segundo o texto preambular do DL nº 39/95, de 15 de Fevereiro, «a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, impõe o duplo ónus de circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando, claramente, qual a parcela ou segmento da decisão proferida que se considera viciada, por erro de julgamento, e de fundamentar, em termos concludentes, as razões por que discorda do decidido, indicando os pontos da matéria de facto impugnada pelo recorrente e o sentido da alteração proposta» , tal como vem reproduzido no artigo 690º-A, nº 1, a) e b), do CPC.
Pelo exposto, ao recorrer da decisão sobre a matéria de facto, a autora não observou o estipulado pelo artigo 690º-A, nº 1, do CPC, que impõe a observância de determinados ónus, que não satisfez, na sua totalidade, o que implica o não conhecimento do objecto da apelação, neste particular.
Assim sendo, este Tribunal da Relação considera que se devem declarar como provados os seguintes factos:
A ré Patrícia, residente em Oliveira do Hospital, foi estudar para Carregal do Sal, em 2000, local onde arrendou um quarto, na residência da autora – A).
A ré Patrícia era proprietária de um veículo automóvel, Renault 5, que utilizava nas suas deslocações – B).
A autora não possui qualquer veículo automóvel e, constantemente, solicitava à ré Patrícia os favores de a transportar na sua viatura, para o centro de saúde, o hospital, a farmácia, o supermercado e para passeios diversos – C).
A ré Patrícia, atendendo à relação de amizade que se foi construindo entre ambas, durante 3 anos, foi acedendo a esses pedidos de transporte, muitos dos quais lhe causaram transtornos pessoais – D).
O Renault 5 avariava, constantemente, atendendo aos vários anos que já tinha, e a ré Patrícia pretendia adquirir uma viatura nova, facto que comentou com a autora, porque essa aquisição lhe oferecia grandes preocupações, pois sabia que os automóveis são caros e ela tinha dificuldades económicas – E).
Na sequência do referido em E), a autora, por reconhecimento de todos os favores que a ré Patrícia havia efectuado, desde que se tinha mudado para a sua casa, decidiu dar-lhe uma quantia para a entrada na aquisição de uma viatura, reconhecendo, assim, que era a única forma que tinha para compensar os serviços constantes da ré Patrícia – 4º e 5º.
Para o efeito, deslocou-se ao “stand”, acompanhando a ré Patrícia, onde esta adquiriu a viatura, influenciando até na escolha daquela, que pretendia adquirir uma viatura a um preço baixo, tendo a autora alegado que era melhor comprar uma mais cara e nova, evitando, assim, de futuro as avarias que o seu antigo Renault 5 lhe causava, até porque havia um prazo de garantia – 6º e 7º.
Decidiu, então, que a melhor solução para a ré Patrícia seria a aquisição de uma viatura, VW Pólo, e, para esse negócio, dar-lhe ia a quantia de 5.000€ - 8º.
A ré Patrícia aceitou, então, aquele dinheiro e, para pagar o remanescente do preço do veículo, orçado em 8.716,94€, contraiu um empréstimo, onde o 1º e o 2º réus foram fiadores, ficando a pagar a quantia mensal de 281,17€, durante 36 meses – 9º.
No dia de 29 de Agosto de 2003, a autora efectuou a transferência da quantia de 5.000€, para a conta bancária pertencente à sociedade comercial “Pina e Rodrigues, Lda”, detentora do “stand” de automóveis “Maragol”, em Seia, destinada ao pagamento de parte do preço do referido veículo, VW Pólo – F).
Decorrido algum tempo, a autora reclamou a restituição do dinheiro e os réus recusaram restituir-lha – 3º.

II

DA DOAÇÃO

Sustenta a autora que não se encontram preenchidos os requisitos constitutivos da doação, mas antes que se mostram verificados os pressupostos do contrato de mútuo.
O artigo 940º, nº 1, do Código Civil (CC), define a doação como “o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente”.
Por outro lado, o artigo 1142º, do CC, define o mútuo como “o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade”.
São requisitos, essencialmente, constitutivos da doação a disposição gratuita de certos bens, em benefício do donatário, ou seja, a atribuição patrimonial sem contrapartida económica, isto é, gratuitamente, independentemente de um correspondente de natureza patrimonial, à custa da diminuição da substância efectiva do património do doador, e o espírito de liberalidade, por parte do disponente, ou seja, o «animus donandi», a ideia da generosidade ou da espontaneidade, oposta à da necessidade ou do dever.
Efectivamente, para haver doação, impõe-se que a atribuição patrimonial seja gratuita, e que não exista, portanto, um correspectivo de natureza patrimonial, embora possa existir uma contrapartida de natureza moral, sem que o acto perca a característica da gratuitidade.
Porém, a doação é, desde logo, um contrato e, como tal, é necessário o concurso da vontade do proponente doador e do aceitante donatário .
Ora, o mútuo é um contrato distinto da doação, porquanto ao enriquecimento obtido, à custa do património do mutuante, através da prestação constitutiva do contrato, corresponde, como elemento típico deste, a obrigação de restituir, que neutraliza tal enriquecimento .
Revertendo ao caso dos autos, importa reter que a autora, em reconhecimento de todos os favores que a ré Patrícia lhe havia efectuado, relacionados com transportes na sua viatura, para o centro de saúde, o hospital, a farmácia, o supermercado e para passeios diversos, como única forma de a compensar pelos serviços por esta prestados, desde que arrendou um quarto na residência da autora, decidiu dar-lhe a quantia de 5.000€, destinada ao pagamento de parte do preço da aquisição de um novo veículo automóvel, devido às constantes avarias da antiga viatura da ré, da marca R5, operando-se a transferência da aludida quantia, no dia de 29 de Agosto de 2003, para a conta bancária de “Pina e Rodrigues, Lda”, detentora do “stand” de automóveis “Maragol”, em Seia, onde a ré celebrou o contrato de compra e venda do automóvel, da marca VW Pólo.
Tendo a ré Patrícia aceitado aquela quantia em dinheiro ofertada pela autora, decorrido algum tempo, esta reclamou a sua restituição aos réus, que se recusaram a efectuá-la.
Perante a prova produzida, dúvidas não há, razoavelmente, em como a autora dispôs, por espírito de liberalidade, da importância em dinheiro de 5000€, destinada à aquisição de um novo automóvel, para a ré Patrícia, operando-se esta atribuição patrimonial, a seu favor, sem qualquer contrapartida económica para a autora, que diminuiu, efectivamente, o seu património, com o correspondente enriquecimento do património da ré, que não ficou obrigada à sua restituição, o que neutralizaria tal enriquecimento.
Está, assim, inequivocamente, demonstrada a existência de um contrato de doação e não de um contrato de mútuo.
Certo que, também, se provou que, após a aceitação da quantia ofertada pela autora, decorrido algum tempo, esta reclamou dos réus a sua restituição, tendo-se estes recusado a fazê-lo.
Aliás, a própria tradição para o donatário do título representativo do bem doado, como aconteceu, no caso concreto, através da transferência bancária da aludida importância, é já havida como aceitação da doação, em conformidade com o disposto pelo artigo 945º, nº 2, do CC.
E, a partir da aceitação da doação, o doador já não pode revogar, livremente, a sua declaração negocial, como resulta, «a contrario», do estipulado pelo artigo 969º, nº 1, do CC.
De todo o modo, não é este o objecto da acção e, consequentemente, também, o não pode ser o da apelação.
E, não tendo a autora logrado demonstrar a existência de um contrato de mútuo, em consequência da inobservância do princípio da distribuição do ónus da prova, decorrente do preceituado pelo artigo 342º, nº 1, do CC, não é nesta sede que podem relevar considerações respeitantes à procedência da revogação da doação, por eventual ingratidão do donatário.
Não colhem, assim, com o devido respeito, as conclusões constantes das alegações da autora.

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CONCLUSÕES:

Está-se perante um contrato de doação e não de um contrato de mútuo quando alguém, por espírito de liberalidade, dispõe de uma importância em dinheiro, em benefício de outrem, operando-se a atribuição patrimonial, a seu favor, sem qualquer contrapartida económica para o primeiro, que diminui o seu património, com o correspondente enriquecimento do património do segundo, que não fica obrigado à sua restituição, como forma de neutralizar tal enriquecimento.

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DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar improcedente a apelação e, em consequência, em confirmar, inteiramente, a douta sentença recorrida.

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Custas, a cargo da autora-apelante.