Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1683/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. JAIME FERREIRA
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
Data do Acordão: 06/15/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GOUVEIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE AGRAVO
Decisão: PROCEDENTE
Legislação Nacional: ARTºS 29º, Nº 1; 154º, NºS 1 E 3;157º ; 159º ; 160º E 175º, TODOS DO CPEREF E 610º A 618º DO C. CIV. .
Sumário:

I – Não faz qualquer sentido pretender-se, com a declaração de falência, a apreensão de bens regularmente vendidos anteriormente pelo falido , na medida em que os bens vendidos já não são propriedade do falido nessa data e , por conseguinte, não integram a massa falida .
II – O que não impede o liquidatário judicial da falência de usar da possibilidade de impugnar ( impugnação pauliana ) em benefício da massa falida a referida venda , nos termos dos artºs 157º, 159º e 160º do CPEREF.
III – Tal alienação, porém, também pode ser impugnada por qualquer credor do vendedor, se se verificarem as circunstâncias assinaladas nos artºs 610º e 612º do C. Civ., caso em que, uma vez julgada procedente a impugnação, é apenas esse credor quem tem direito à restituição dos bens, na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei, sendo que os efeitos dessa impugnação apenas aproveitam a esse credor – artº 616º, nºs 1 e 4, do C.Civ.
IV – Nessa medida, o prosseguimento da acção de impugnação pauliana instaurada por um credor do falido nenhum reflexo ou efeito tem no processo falimentar posterior, nem aproveita aos demais credores do falido, razão pela qual não deve a acção de impugnação pauliana ser declara extinta, por inutilidade superveniente dessa lide .
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra :
I
No Tribunal Judicial da Comarca de Gouveia, O BB, com sede na Rua CC, em Lisboa, instaurou contra o DD , com sede em Gouveia, e contra a sociedade “ EE “, com sede na Av. FF, em Gouveia, a presente acção declarativa, com processo ordinário, pedindo a condenação das Rés a ver reconhecida e decretada a ineficácia, relativamente ao Autor, da compra e venda celebrada em 27/03/2002, entre as Rés, podendo o A. executar os imóveis transmitidos, na medida do seu interesse e até ao limite do seu crédito, com o consequente cancelamento dos registos efectuados a favor do dito Município .
Para tanto e muito em resumo, alegou o A. ter celebrado com a 2ª Ré, em 27/11/1998, um acordo de consolidação de dívida e contrato de mútuo, mediante o qual essa Ré declarou ser devedora ao A. de € 324.218,63 .
Como a 2ª Ré cessou a sua actividade industrial, o A. procedeu à resolução desse acordo, por carta datada de 16/05/2002, face ao que devem considerar-se imediatamente vencidos todos os créditos do A., os quais montam a : € 540.364,40 de capital em dívida e a € 25.185,40 de juros de mora .
Que o A. também procedeu a desconto de 10 letras de câmbio sacadas pela dita Ré, no valor global de € 180.473,09, a que acrescem juros de mora vencidos no montante de € 3.707,56 .
Que tendo a 2ª Ré , no dia 27/03/2002, celebrado uma escritura pública de compra e venda com o 1º Réu, relativo a todo o seu património, designadamente dos prédios que identifica, o que foi feito com consciência do prejuízo que assim causavam ao Banco Autor e restantes credores, pelo que deve dar-se satisfação ao pedido deduzido, pois que com tal acto se tornou impossível a satisfação dos créditos do Autor.
II
Contestou o DD, alegando, muito em resumo, que à data da celebração da referida escritura de compra e venda desconhecia se a EE tinha dívidas e qual o seu montante e respectivos credores, além de que essa Ré era detentora de património que excedia os bens que lhe foram por ela vendidos .
Que foi pago o preço que era possível obter pela venda dos bens transmitidos, pelo que não houve prejuízo para os credores da 2ª Ré .
Terminou pedindo a improcedência da acção , com a sua absolvição do pedido.
III
Na sequência da junção da certidão de fls. 117 a 119, da qual resulta ter a sociedade Ré sido declarada falida por sentença de 22/07/2002, transitada em julgado em 5/09/2002, foi essa Ré citada na pessoa do seu liquidatário judicial nomeado .

Terminados os articulados foi proferido despacho saneador, a considerar regular o processado e a seleccionar, de entre a matéria alegada, os factos tidos como relevantes para efeito de instrução e de discussão da causa , do que houve reclamação apresentada pelo DD , a qual ainda não foi apreciada .
Designada data para audiência e uma vez esta iniciada, logo no seu início foi proferido despacho, no qual se faz referência ao facto de, na pendência desta acção, ter a Ré “ EE “ sido declarada falida, por sentença transitada em julgado a 5/09/2002, na sequência do que foi decidido declarar extinta a presente instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos do artº 287º do CPC.
IV
Desse dito despacho interpôs recurso o A., recurso que foi admitido como agravo, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo .

Nas alegações que apresentou o Agravante concluiu da seguinte forma :
1 – A declaração superveniente de falência da vendedora dos bens objecto de impugnação pauliana não deve determinar a inutilidade da lide, com a consequente extinção da instância .
2 – Nas acções paulianas propostas antes da declaração de falência do transmitente, deve o pedido inicial de ineficácia relativamente ao autor / credor, com consequente direito de execução do bem no património do adquirente, ser oficiosamente convolado para a consequência juridicamente admissível, ou seja, a reversão a favor da massa falida .
3 – A tanto o impõe o regime previsto nos artºs 154º a 160º do CPEREF e o permite o disposto nos artºs 663º e 664º do CPC .
4 – Por outro lado, nada obsta a que, oficiosamente, o Tribunal decrete a nulidade dos negócios impugnados, se verificados os pressupostos factuais, ainda que tal nulidade não tenha sido peticionada .
5 – Não estão verificadas as circunstâncias processuais para que se conclua pela inutilidade superveniente da lide, pelo que deverá ser revogado o despacho recorrido, por violação do disposto nos artºs 154º a 160º do CPEREF , 663º e 664º , estes do CPC, ordenando-se o prosseguimento dos autos .
V
Não foram apresentadas contra-alegações .

Nesta Relação foi aceite o recurso interposto e tal como fora admitido, tendo-se procedido à recolha dos necessários “ vistos “ legais, sem qualquer observação, pelo que nada obsta ao conhecimento do objecto do presente agravo, o qual, face às supra- -escritas conclusões, se pode resumir à reapreciação do despacho recorrido, isto é, saber-se se uma declaração superveniente de falência ( em relação à propositura de uma acção de impugnação pauliana na qual se alega ter o falido sido vendedor de bens do seu activo) do vendedor de bens objecto de impugnação pauliana deve ou não determinar a extinção desta instância declarativa, por inutilidade superveniente da lide .

Para tanto e como elementos de facto a considerar para tal apreciação, resultantes dos próprios autos, salientam-se os seguintes :
1 – A presente acção declarativa para exercício do direito de impugnação pauliana por parte do Autor, foi instaurada em 16/07/2002 ( conforme fls. 2 dos autos ) .
2 – A escritura de compra e venda de bens do património da sociedade “ EE “, celebrada entre os R.R., e a que o A. se reporta, é datada de 27/03/2002 ( conforme certidão de fls. 53 a 58 ) .
3 – Por sentença do Tribunal Judicial de Seia proferida em 22/07/2002 e transitada em julgado em 05/09/2202, foi a sociedade Ré declarada falida ( certidão de fls. 117 a 119 ) .
4 – o aqui Autor logrou obter registo predial da presente acção já após o registo de aquisição dos bens pelo DD ( certidão de fls. 123 a 134 ) .

Apontados os factos a considerar na discussão que se impõe, deles resulta que em 27/03/2002, entre os aqui R.R. foi outorgada escritura pública de compra e venda , pela qual foi transferida a favor do Réu DD a propriedade de três prédios urbanos que à Ré “ EE “ à data pertenciam.
Assim tendo sido, forçoso é admitir que nessa data foi transmitida a propriedade sobre esses bens , tanto mais que nessa transmissão foi observada a forma legalmente exigível para o acto, conforme resulta dos artºs 874º ; 875º ; 879º, al. a) ; e 1316º, todos do C. Civ. – o direito de propriedade adquire-se por contrato, entre outros modos possíveis, designadamente por compra e venda celebrada por escritura pública .
Quer isto dizer que desde 27/03/2002 o verdadeiro e legítimo dono desses prédios passou a ser o adquirente supra referido .
Assim sendo, quando em 22/07/2002 foi decretada a falência da dita sociedade, já a dita não era proprietária dos imóveis antes por ela vendidos .
Logo, não faria qualquer sentido que à data dessa declaração falimentar se procedesse, nesse processo, à apreensão desses bem, nos termos da al. c) do nº 1, do artº 128º e do nº 1 do artº 175º do CPEREF ( Código este aplicável na redacção do Dec. Lei nº 315/98, de 20/10 ) , na medida em que tal bem já não era propriedade da falida e, por isso, não podia integrar a massa falida .
O que não impede o liquidatário judicial da falência de usar da possibilidade de impugnar ( impugnação pauliana ) em benefício da massa falida a referida venda outorgada em 27/03/2002, dado ainda não terem decorrido 5 anos desde então, nos termos dos artºs 157º , 159º e 160º do citado CPEREF, e artºs 610º a 618º do C.Civ., diligência essa que se afigura nem sequer ter sido intentada, pois nada dos autos resulta que o possa ter sido .
Caso assim venha a suceder e porque esse tipo de acção é dependência do processo de falência – artº 160º, nº 1, do CPEREF - , afigura-se, no entanto, que deverá manter-se o não prosseguimento de qualquer acção executiva contra o falido, nos termos do artº 154º, nº 3, do CPEREF, enquanto estiver pendente esse tipo de acção, na medida em que a eventual procedência dessa acção tem como efeito que os bens objecto da mesma revertam para a massa falida – artº 159º, nº 1, do CPEREF e artº 870º do CPC.
Porém, não é esta a situação que se nos depara para análise, mas antes que na data de declaração de falência da sociedade “EE & EE “ já haviam sido transmitidos para um terceiro – no caso o DD, também aqui Réu -, por escritura pública de 27/03/2002, os bens em relação aos quais o Banco Totta & Açores instaurou a presente acção de impugnação pauliana ( razão pela qual tais bens já não pertenciam à falida na data da declaração da sua falência, não podendo, por isso, esses bens ser considerados como fazendo parte da massa falida ), acção esta que também foi instaurada antes da declaração de falência da sociedade referida .
Sendo assim, essa declaração de falência não pode obstar ao prosseguimento da presente acção declarativa , onde a falida está representada pelo seu liquidatário judicial, que para o efeito foi citado, já que têm de ser interpretados os artºs 29º, nº 1 e 154º nº 3, do CPEREF em conjugação com o nº 1 deste último ( nos termos do qual apenas as acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa falida, intentadas contra o falido ..., mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa, é que são apensadas ao processo de falência ) e em conjugação com o artº 175º do dito código ( nos termos do qual proferida a sentença de falência procede-se à apreensão de todos os bens susceptíveis de penhora ... , devendo o juiz desse processo requisitar todos os processos nos quais se tenha efectuado qualquer acto de apreensão ou detenção de bens do falido - do falido, note-se bem, portanto existentes à data dessa qualificação – para efeitos de apensação aos autos de falência ) .
Além de que , como já se salientou, em 27/03/2002 transferiu-se efectivamente a propriedade sobre os bens em causa nesta acção, pelo que deixaram os ditos de ser propriedade da sociedade aqui Ré para todos e quaisquer efeitos .
No entanto, apesar de se ter como juridicamente válida a alienação levada a cabo pela aqui sociedade Ré, tal alienação também pode ser impugnada por qualquer credor da dita vendedora, se se verificarem as circunstâncias assinaladas nos artºs 610º e 612º do C. Civ. – requisitos para a procedência da impugnação pauliana .
E foi o que aconteceu com a propositura da presente acção, anterior à data de declaração de falência, com a qual o aqui A. visa a declaração de ineficácia da compra e venda apenas em relação a si, como credor da dita sociedade alienante .
Só que, neste caso, uma vez julgada procedente a impugnação, é apenas esse credor quem tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei, sendo que os efeitos da impugnação apenas aproveitam a esse credor – artº 616º, nºs 1 e 4, do C. Civ. .
É que neste caso a acção pauliana é uma acção vincadamente pessoal, cujos efeitos se medem apenas pelo interesse do credor que a promoveu e em proveito do dito, sem qualquer concorrência dos demais credores da sociedade transmitente, apesar de, entretanto, ter sido declarada falida – vejam-se neste sentido, entre outros, o Prof. Antunes Varela, in “ Das Obrigações em Geral “, vol. II, 6ª ed., pg. 454 a 461, onde este autor salienta de forma muito clara a diferença entre o actual regime da impugnação pauliana, decorrente do citado artº 616º do C. Civ. e a disciplina estabelecida no Código Civil antigo ( de 1867 ), no seu artº 1044º, no qual se consagrava a doutrina de que uma vez rescindido o acto ou contrato, revertiam os valores alienados ao cúmulo dos bens do devedor, em benefício dos seus credores ; os Prof. Pires de Lima e A. Varela, in “ C. Civ. anotado “, vol I, pg. 557, onde se afirma que “ o nº 4 ( do artº 616º do C.Civ. ) confirma o carácter pessoal da impugnação : esta não beneficia senão o credor que a exerceu “ ; o Ac. Rel Lx. de 27/06/2002, in C.J. 2002, tomo III, pg. 120 ; o Ac. STJ Un. Jur. nº 3/2001, in D. R., Iª série, de 9/2/2001 ; o Ac. STJ de 18/05/99, in BMJ 487, 287 ; Ac. Rel. Lx. de 30/11/99, in C. J. ano XXIV, tomo V, pg. 109; o Ac. STJ de 28/3/96, in C. J. STJ 1996, vol I, pg. 159; o Ac. Rel. Po. de 21/05/92, in C. J. 1992, tomo 3, pg. 289; o Prof. Vaz Serra, in RLJ nº 100, pg. 206 , e nº 111º, pg. 154;

Sendo assim, o prosseguimento da presente acção nenhum reflexo ou efeito tem na falência decretada, nem aproveita aos demais credores da falida, razão pela qual deve ser ordenado o prosseguimento desta acção, com comunicação ao processo falimentar em causa , assim se devendo revogar a decisão recorrida, que julgou extinta a presente instância por impossibilidade superveniente da lide .
No sentido antes exposto podem ver-se , entre outros, Luís Carvalho Fernandes, in CPEREF anotado, comentários ao artº 160º; os Ac. Rel. de Coimbra de 11/03/2003, in Col. Jur. ano XXVIII, tomo II, pg. 11; e de 9/12/03, este proferido no Rec. de Agravo nº 3490/03, de que foi relator o mesmo deste aresto, nos quais também se defende que “ no caso de falência do alienante, não tendo o liquidatário impugnado a venda, não há lugar à suspensão da execução, por virtude do artº 154º, nº 3, do CPEREF, que impede o prosseguimento do processo executivo “ .

VI

Face ao exposto e nos termos das disposições legais citadas, acorda-se em julgar procedente o recurso de agravo interposto pelo Autor, em consequência do que se revoga a decisão recorrida, que julgou extinta a presente instância por impossibilidade superveniente da lide , devendo ser ordenado o prosseguimento regular da presente acção .

Custas do presente recurso pelos R.R. .