Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6/04.0TBVNO.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GONÇALVES FERREIRA
Descritores: SERVIDÃO DE VISTAS
DIREITO DE PROPRIEDADE
Data do Acordão: 11/17/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OURÉM - 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 1360.º DO CCIVIL
Sumário: 1) As restrições estabelecidas no artigo 1360.º do código Civil visam impedir as construções que possibilitem o devassamento do prédio vizinho;
2) Os terraços só estão sujeitos à restrição se forem servidos de parapeito com altura inferior a metro e meio;

3) Uma parede com 30 centímetros de altura não constitui parapeito para efeitos da restrição.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório:

           A.... , viúva, residente na .... intentou acção declarativa, com forma de processo sumário, contra B...., ..... alegando, em resumo, que:

            É dona de uma casa de rés-do-chão, sita na ..., em O....
O Réu procedeu à demolição de uma casa de rés-do-chão e 1.º andar existente do lado sul daquela e erigiu, em seu lugar, uma outra de maior volumetria, composta por mais um andar do que a primitiva e que excede a respectiva altura em cerca de 6 metros.
Ao tempo da construção da casa, o filho da autora informou o município de que a licença de construção emitida estava a ser violada e que a casa em edificação retirava ao seu prédio a claridade das janelas sitas nas traseiras, além de que as obras lhe haviam partido as paredes.
O telhado da casa que foi demolida encontrava-se em plano inferior ao de duas janelas e de um terraço existentes no 1.º andar do prédio da autora.
A parede onde as janelas se situam foi destruída em cerca de 20 centímetros de espessura e aí construída a parede sul da nova casa do réu; no entanto, devido ao facto de esta parede não ter sido rematada, resultam infiltrações, que atingem o rés-do-chão da casa da autora, onde se situam as lojas.
Por outro lado, essa mesma parede encontra-se a menos de 1 metro de distância de uma janela existente na parede sul da sua casa, numa extensão de 4,20 metros, em violação do disposto no n.º 2 do artigo 1363.º do Código Civil.
O réu levantou as paredes do lado norte da casa de tal forma que uma delas ficou encostada à extrema sul de um terraço da casa da autora, que tem um parapeito de 30 centímetros de altura, numa extensão de dois metros e numa altura superior a 3 metros.
Por si e antecessores, desde há mais de 20 anos que beneficia da entrada de luz e ar pela janela da parede sul de sua casa, bem como das vistas que a mesma e o terraço antes referido proporcionavam.
Concluiu pedindo que o réu fosse condenado a demolir a parede que construiu do lado sul, na parte em que decapou a parede da autora em cerca de 20 centímetros, e a repor a parede tal como estava antes.
Subsidiariamente, para o caso de assim se não entender, que o réu fosse condenado a rematar as duas paredes, de forma a impedir a infiltração de humidades das águas pluviais no rés-do-chão do prédio da autora.
Independentemente disso, que o réu fosse condenado a demolir a parede sul da casa que construiu em toda a extensão em que se encontra a menos de 1,5 metros da abertura ou janela com tijolos abertos, existente na parede norte do prédio da autora, e, bem assim, a parede que construiu junto à parede sul do terraço do prédio da autora, numa extensão de cerca de 2 metros. 
Regularmente citado, o Réu contestou por excepção e por impugnação; em via de excepção, afirmou a sua ilegitimidade, por ter vendido a casa em referência nos autos; do lado da impugnação, teceu considerações de direito sobre a materialidade objectiva existente no local, para, daí, concluir pela improcedência da acção.
Na resposta, a autora disse desconhecer a venda proclamada pelo réu, mas, à cautela, requereu a intervenção principal provocada do adquirente do prédio, D....., com sede na ...., que foi admitida, após o que o chamado se apresentou a contestar, o que fez em termos idênticos aos do réu.
No despacho saneador foram declaradas a validade e a regularidade da lide.
A selecção da matéria de facto, compreendendo os factos assentes e a base instrutória, não foi objecto de reclamação.
Realizada a audiência de julgamento e fixada, sem reparos, a matéria de facto, foi proferida sentença, que julgou a acção parcialmente procedente e condenou os réus a rematar as duas paredes por onde se infiltram humidades das águas pluviais no rés-do-chão do prédio da autora, mas os absolveu do mais que lhes foi pedido.
Insatisfeita com o decidido, a autora interpôs recurso da sentença, admitido como apelação e efeito devolutivo, alegou e formulou estas conclusões:
a) O muro ou parapeito existente no seu terraço, tendo menos de metro e meio de altura em toda a extensão em que confina com o prédio do réu, foi construído em contravenção ao disposto no n.º 2 do artigo 1360.º do Código Civil;
b) Verificando-se o preenchimento de todos os requisitos necessários para o efeito, constituiu-se a favor do prédio da autora uma servidão de vistas, de que este é prédio dominante e o do réu serviente;
c) Constituída a servidão, não podia o réu levantar o seu prédio sem deixar entre ele e o dito terraço uma distância de, pelo menos, metro e meio;
d) Absolvendo-se o réu do pedido de demolição da parede que construiu junto à parede sul do prédio da autora, numa extensão de cerca de dois metros, foi violado o n.º 2 do artigo 1362.º, do Código Civil.
A chamada respondeu à alegação da autora, onde concluiu pela improcedência do recurso, com a argumentação de que a janela e o terraço referidos nos autos não preenchem os requisitos necessários à constituição do direito de servidão de vistas por usucapião.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
São duas as questões a requerer resolução:
1) Se existe constituída uma de servidão de vistas, relativamente a um terraço, de que é dominante o prédio da autora e serviente o prédio do réu;
2) Se o réu podia levantar o seu prédio a menos de metro e meio do prédio da autora.


II. Na sentença apelada, foram dados por assentes os seguintes factos:

1) A propriedade sobre o prédio urbano, sito na ..., composto de casa de rés-do-chão, parte esquerda destinada a escritório, centro a comércio, e direita a snack-bar e primeiro andar destinado a habitação, com a frente voltada ao norte, com a área de 238 m2 e que confronta do norte com ..., do nascente com herdeiros de ....., do sul com ... e ... e do poente com ..., com o valor patrimonial de 10.248.642$00, a que corresponde o artigo ...da freguesia de ..., registada na Conservatória do Registo Predial de O... sob a ficha n.º ..., mostra-se inscrita a favor da autora – alínea A) dos Factos Assentes.
2) C..... enviou ao Sr. Presidente da Câmara Municipal de O... o documento (reclamação sobre a obra com a licença n.º 180/2002) junto aos autos a fls. 10, aqui dado por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais – alínea B) dos Factos Assentes.
3) A Câmara Municipal de O... enviou a C....a a carta junta aos autos a fls. 11/12, aqui dada por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais – alínea C) dos Factos Assentes.
4) Os réus procederam, nos últimos meses, à demolição de uma casa existente do lado sul do prédio da autora – alínea D) dos Factos Assentes.
5) A casa aludida em D) era composta de r/c e primeiro andar – alínea E) dos Factos Assentes.
6) No seu lugar, construíram um nova casa com mais de um andar – alínea F) dos Factos Assentes.
7) A casa cuja construção foi levada a cabo é mais alta do que a casa velha demolida – alínea G) dos Factos Assentes.
8) O telhado da casa que foi demolida encontrava-se num plano inferior ao das janelas e de um pequeno terraço existentes no primeiro andar do prédio da Autora – resposta ao quesito 2.º.
9) Essas janelas, situadas na parede sul do prédio da Autora, são grandes aberturas, a primeira com tijolos com aberturas de 15,5 cm x 15,5 cm, 1,70 m de altura e 3,50 m de comprimento, e a outra, que é completamente aberta, com cerca de 1,65 m de altura e 3,80 m de comprimento – resposta ao quesito 3.º.
10) A parede do prédio da Autora onde elas se situam, com cerca de 85 cm de espessura e numa extensão de cerca de 5,60 m para poente, a partir do ângulo recto que forma junto ao terraço do prédio da Autora, foi destruída em cerca de 20 cm dessa espessura pelo réu e aí construída a parede sul do seu prédio, que se encontra, em toda a sua extensão, sobre a área de implantação da base da parede anteriormente ali existente – resposta ao quesito 4.º.
11) Esta nova parede construída pelo Réu, embora esteja incrustada na parede sul do prédio da Autora, não foi devidamente rematada, sendo que foi o filho da Autora quem o impediu que tal parede fosse rematada – resposta ao quesito 5.º.
12) Ocorrem por aí infiltrações de águas das chuvas entre as duas paredes – resposta ao quesito 6.º.
13) Caem, de seguida, no rés-do-chão do prédio da Autora, onde se situam as lojas – resposta ao quesito 7.º.
14) A parede levantada pelo Réu frente à janela do prédio da Autora que tem os tijolos com abertura de 15,5 x 15,5 cm encontra-se a menos de 1 metro de distância numa extensão de 2,35 m – resposta ao quesito 8.º.
15) No prédio da Autora existe, do lado sul, mais no extremo nascente, um pequeno terraço ao nível do primeiro andar – resposta ao quesito 9.º.
16) Esse terraço forma um quadrilátero irregular, com cerca de 2,50 m do lado norte, 2 m do lado sul e 1,80 m do lado poente e 1,50 m do lado nascente – resposta ao quesito 10.º.
17) Tinha um parapeito com a altura de 30 cm – resposta ao quesito 11.º.
18) Os réus levantaram as paredes do lado norte da casa que construíram de forma que uma delas ficou encostada à extrema sul do referido terraço, numa extensão de 2 metros e numa altura superior a três metros – resposta ao quesito 12.º.
19) O telhado da casa que os réus demoliram para construir a nova casa ficava num plano inferior a esse terraço – resposta ao quesito 13.º.
20) A casa da autora foi construída há mais de 20 e até de 30 anos – resposta ao quesito 14.º.
21) Há mais de 20 anos que a casa da Autora tem as duas aberturas amplas na parede sul e o terraço com o parapeito de cerca de 30 cm de altura sem qualquer parede ou outro obstáculo fronteiro que lhe limite a visibilidade ou a entrada de luz e ar – resposta ao quesito 15.º.
22) Tanto a autora como os seus antepossuidores, há mais de 20 anos têm beneficiado da entrada de luz e de ar por essas aberturas e das vistas que desfrutavam, quer do terraço, quer das janelas – resposta ao quesito 16.º.
23) Sempre sem oposição de ninguém – resposta ao quesito 17.º.
24) À vista de toda a gente – resposta ao quesito 18.º.
25) Convencidos de que exerciam um direito próprio – resposta ao quesito 19.º.


III. O direito:

a) A servidão de vistas

A autora/recorrente colocou assim a questão na petição inicial:
No lado sul do seu prédio existe um terraço, ao nível do 1.º andar, com um parapeito de 30 centímetros de altura.
Tanto ela como os seus antecessores beneficiaram, durante mais de 20 anos, da entrada de luz e ar e das vistas que se desfrutavam do terraço, sem oposição de que quer que seja, à vista de toda a gente, convencidos de que exerciam um direito próprio, tendo, nessa medida, adquirido uma servidão de vistas.
O réu reconstruiu a sua casa, de forma que uma das paredes ficou encostada à extrema do terraço, violando, desse modo, o disposto no artigo 1362.º, n.º 2 do Código Civil.
A sua versão factual resultou, no essencial, pelo menos, provada, mas na sentença entendeu-se não ser possível a constituição de servidão por usucapião, devido à circunstância de o designado (pela autora) parapeito não o ser, na verdade, dada a sua altura diminuta (30 centímetros).
Nas alegações de recurso, a autora argumenta desta maneira:
Sendo a altura do parapeito inferior a 1,5 metros, a construção do terraço só seria legal se houvesse sido deixado um intervalo de um metro e meio entre o prédio da autora e o prédio dos réus.
Tal não sucedeu e, durante mais de 20 anos, porque o prédio dos réus era mais baixo, o da autora beneficiou de ar, luz e vistas.
Os réus tinham o direito potestativo de se opor à existência do terraço a menos de 1,5 metros do seu prédio ou de obrigar a autora a subir o parapeito para, pelo menos, 1,5 metros de altura, mas não o fizeram, o que importa constituição de servidão de vistas por usucapião, nos termos do n.º 1 do artigo 1362.º.
A autora invocou e provou essa servidão, como lhe competia, razão pela qual ficou o proprietário do prédio vizinho impedido de construir a menos de metro e meio do terraço.
Vejamos se assim é, procurando a resposta na interpretação dos seguintes artigos do Código Civil (diploma de que serão todos os preceitos que venham a ser citados sem indicação de origem):
Artigo 1360.º:
1. O proprietário que no seu prédio levantar edifício ou outra construção não pode abrir nela janelas ou portas que deitem directamente sobre o prédio vizinho sem deixar entre este e cada uma das obras o intervalo de metro e meio.
2. Igual restrição é aplicável às varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, quando sejam servidos de parapeitos de altura inferior a metro e meio em toda a sua extensão ou parte dela.
Artigo 1362.º:
1. A existência de janelas, portas, varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, em contravenção do disposto na lei, pode importar, nos termos gerais, a constituição de servidão de vistas por usucapião.
2. Constituída a servidão de vistas, por usucapião ou outro título, ao proprietário vizinho só é permitido levantar edifício ou outra construção no seu prédio desde que deixe entre o novo edifício ou construção e as obras mencionadas no n.º 1 o espaço mínimo de metro e meio, correspondente à extensão destas obras.
O artigo 1360.º, como bem se vê dos seus termos, estabelece restrições ao direito de propriedade, com vista a prevenir a paz social nas relações de vizinhança, sabido que a vantagem de uns só se consegue, muitas vezes, à custa do sacrifício de outros.
O preceito teve como fonte de inspiração o artigo 2325.º do Código de Seabra, cuja finalidade, dizia o Professor Pires de Lima, era a de impedir que o prédio fosse devassado através do acto de debruçar ou do lançamento de lixo ou outras coisas (RLJ, Ano 97, página 350).
E, em face da redacção dada ao actual artigo, logo reiterou a sua posição, esclarecendo que se mantinha o espírito da lei, pelo que não eram as vistas que estavam em causa, mas, sim, o devassamento traduzido na possível ocupação do prédio vizinho, bastando que no parapeito de uma janela ou de um terraço a pessoa se debruçasse numa atitude natural ou estendesse um braço, para que houvesse violação da propriedade alheia (RLJ, Ano 99, página 240).
A confirmação voltou a surgir nas anotações que, juntamente com o Professor Antunes Varela, fez ao no Código Civil: “É dupla a finalidade desta limitação. Por um lado, pretende-se evitar que o prédio vizinho seja facilmente objecto da indiscrição de estranhos. Por outro lado, quer-se impedir que ele seja facilmente devassado com o arremesso de objectos” (Código Civil Anotado, volume III, 2.ª edição, página 212).
Nas mesmas águas navega de forma aparentemente unânime a nossa jurisprudência, como se pode ver, entre outros, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16.01.1976, onde se decidiu não estarem sujeitas à restrição as construções que não permitam o devassamento do prédio vizinho (BMJ 253, página 179), dos acórdãos da Relação do Porto, de 17.12.1987, de 28.01.1988, de 26.09.1989 e de 11.10.1998 (CJ, Ano XII, Tomo V, página 211, Ano XIII, Tomo I, página 198, e Ano XIV, Tomo IV, página 204, e BMJ 380, página 530, respectivamente) e dos acórdãos da Relação de Coimbra, de 28.11.2005 e de 26.06.2007, CJ, Ano XXX, Tomo V, página 18, e Ano XXXII, página 30, respectivamente).
Não que o legislador não tenha tido em mente, também, impedir ou dificultar as vistas; prova disso é o estabelecimento da altura mínima de 1,80 metros, a contar do solo ou sobrado, para a implantação das frestas, seteiras, óculos para luz e ar e janelas gradadas (artigos 1363.º, n.º 2, e 1364.º), o que, na prática, inviabiliza se aviste o prédio vizinho, sabido que só uma ínfima percentagem da população portuguesa ultrapassa aquela altura.
Mas a defesa do olhar não pode ter sido a preocupação maior, uma vez que o curto espaço de segurança exigido pelo n.º 1 do artigo 1360.º (um metro e meio) não protege, de forma alguma, contra as vistas; não protege mais, seguramente, do que a distância de meio metro ou de um metro.
O mesmo se não dirá do lançamento de objectos, em que o factor distância já constitui obstáculo de peso ao sucesso da operação.
Se isto é válido, de um modo geral, para as aberturas (portas e janelas), por maioria de razão o é quanto aos terraços, cuja existência a um nível superior ao do prédio vizinho não afecta mais gravemente este do que a simples contiguidade à superfície. A devassa é praticamente a mesma; tanto vale estar no terraço como no solo, para poder ver o que se passa no terreno vizinho (Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., página 215).
Mas já não assim, se o terraço for dotado de parapeito, porque, então, as pessoas podem debruçar-se sobre ele, de forma a ocupar parcialmente o prédio vizinho e a arremessar com mais facilidade objectos para dentro dele. A devassa, elucidam aqueles mestres, começa a tomar aspectos mais graves (local citado).
O parapeito proporciona às pessoas condições de segurança para se aproximarem do extremo do terraço e para se debruçarem sobre ele. “Cria-se, assim, um espaço de normal vivência dos habitantes da casa, começando a possibilidade de devassa, nos dois aspectos, a tornar-se mais grave: será mais fácil que quaisquer objectos se lancem ou caiam no prédio vizinho, e será mais natural que este seja devassado com as vistas em condições mais gravosas do que as resultantes da simples contiguidade ao nível do solo ou da existência de uma superfície a nível superior, mas sem parapeito” (acórdão da Relação do Porto, de 17.12.1987, acima referido).
O simples facto de a restrição do n.º 1 do artigo 1360.º se aplicar, tão-somente, aos terraços providos de parapeito de altura inferior a metro e meio significa que não foram as vistas o alvo a proibir. Se, na realidade, o legislador as quisesse impedir de todo, teria fixado a altura em um metro e oitenta, como fez para as aberturas previstas nos artigos 1363.º e 1364.º.
Quis-se, com certeza, dificultá-las; mas, acima de tudo, visou-se poupar os habitantes do prédio vizinho da situação, nada agradável, de ver a sua propriedade ocupada, ainda que de forma incipiente, ou servir de vazadouro de lixo.
Evidentemente que nem toda a parede ou suporte (com menos de metro e meio de altura, entenda-se) permite ou facilita a devassa. Se for tão baixa que impeça as pessoas de obterem o apoio necessário para se debruçarem, não funciona a restrição do preceito em análise.
Dito de outro modo, só a existência de um parapeito justifica a proibição de construir a menos de 1,5 metros do terreno contíguo, sendo que “não pode considerar-se como tal uma parede divisória de alguns centímetros ou mesmo decímetros de altura. Ele deve ter as dimensões suficientes para que possa servir de apoio à pessoa, para que esta possa debruçar-se, apoiando-se nele, sobre o terreno do vizinho” (Pires de Lima e Antunes Varela, último local citado).
Ou, como se escreveu no referido acórdão da Relação do Porto, de 17.12.1987, a restrição é afastada se o muro que veda o terraço “tiver uma altura tão pequena que praticamente impeça a normal frequência do respectivo espaço, tal como sucederia se este não fosse provido de qualquer muro. Na verdade, se o muro tiver apenas alguns centímetros, ou mesmo uns escassos decímetros de altura, a situação, naquele aspecto, é equiparável à não existência do muro”.   
 Parapeito, como o próprio vocábulo indica, é algo que serve para deter o peito. Trata-se de uma palavra composta, que segundo a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, tem origem em pára, forma do verbo parar, e peito e é sinónimo de parede, resguardo, etc., que se eleva à altura do peito ou pouco menos.
Definição reafirmada, aliás, pelo Dicionário Bertrand da Língua Portuguesa, de Cândido de Figueiredo, citado na sentença recorrida.
Uma parede ou construção idêntica que não atinja, em altura, mais do que o meio da perna, como é o caso figurado nos autos, não é um parapeito, pois que lhe falta virtualidade para dar segurança às pessoas contra o perigo de quedas, para além de não permitir que quem quer que seja nela se debruce com a finalidade de devassar terreno vizinho.
Numa situação destas, ninguém permanecerá no terraço, junto da parede, mais do que o tempo necessário à eventual realização de algum trabalho. Espaço de vivência dos habitantes da casa não será, com toda a certeza.
O que vale por dizer que nunca seria possível a constituição de servidão de vistas[1] por usucapião, nos termos do n.º 1 do artigo 1362.º, por faltar o elemento decisivo para a caracterização da obra em infracção à lei: a existência de um parapeito.
Certo que, e é esse, bem vistas as coisas, o grande argumento da recorrente, se deu por assente a existência de um terraço com parapeito, que, durante mais de vinte anos, lhe proporcionou luz, ar e vistas, com o conhecimento de toda a gente e, também, do primitivo réu, que nunca se opôs a tal, e que ela beneficiou disso na convicção de exercer um direito próprio.
A questão é que o uso da palavra parapeito na matéria de facto constante da sentença (ponto 21, resultante da resposta ao artigo 15.º da base instrutória) não tem o condão de dar vida ao que não existe.
A expressão foi utilizada, muito naturalmente, em sentido não rigoroso, com o significado de parede ou muro, e não no sentido jurídico que inegavelmente comporta. Se tivesse sido esta a ideia, então mais não restaria do que considerar a palavra não escrita, retirando-a do complexo factual. Mas, aceitando-a como expressão de uso corrente, sem qualquer carga jurídica, é óbvio que logo fica esvaziado o argumento que se pretende retirar. Em qualquer caso, sempre a mesma brigaria com um facto essencial à decisão do pleito, alegado, aliás, pela própria recorrente, qual seja o da altura da parede, que, esse sim, desmistifica por completo a existência de parapeito.
E, não existindo parapeito em sentido técnico-jurídico, não podia a autora (como o não podiam os seus antecessores) debruçar-se sobre ele para devassar o prédio dos réus.
Havendo um obstáculo, chamemos-lhe assim, de, apenas, trinta centímetros de altura, a situação é exactamente a mesma que se nada houvesse; será possível olhar para o prédio vizinho a partir do terraço, assim como nele receber luz e ar, mas está completamente afastada a hipótese de constituição de servidão de vistas.
Daí que não pudessem a autora e seus antecessores ter exercido qualquer direito, fosse qual fosse a sua convicção a tal respeito, pois que não é a convicção que determina o direito, mas a existência deste que pode desencadear a convicção.
A questão, portanto, improcede.

b) Se o réu podia levantar construção a menos de metro e meio do prédio da autora

Evidentemente que a resposta a esta questão dependia da que se desse à anterior.
O réu só teria de respeitar a distância de metro e meio se tivesse sido constituída servidão de vistas a favor do prédio da autora (n.º 2 do artigo 1362.º).
Não provada a constituição dessa servidão, era lícito ao réu levantar edifício ou construção no seu prédio sem qualquer restrição.


IV. Em síntese:

1) As restrições estabelecidas no artigo 1360.º do código Civil visam impedir as construções que possibilitem o devassamento do prédio vizinho;
2) Os terraços só estão sujeitos à restrição se forem servidos de parapeito com altura inferior a metro e meio;
3) Uma parede com 30 centímetros de altura não constitui parapeito para efeitos da restrição.


V. Decisão:

Em face do exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, por via disso, em confirmar a sentença apelada.
Custas pela recorrente.


[1] Designação, aliás, equívoca, como defendem Pires de Lima e Antunes Varela, na medida em que o objecto da restrição não é propriamente a vista sobre o prédio vizinho, mas a existência da obra que deite sobre o prédio nas condições previstas no artigo 1360.º (ob. cit., página 219).