Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
135/09.4PAPBL-A.CI
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: MEDIDA DE COACÇÃO
REEXAME DOS PRESSUPOSTOS DA OBRIGAÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
Data do Acordão: 12/16/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 21º DO DL 15/93, DE 22 DE JANEIRO, 204º E 213ºDO CPP.
Sumário: 1.Tratando-se, como é o caso, de despacho que procede ao reexame dos pressupostos da aplicação de medida de coacção previamente decretada, o dever de fundamentação reporta-se, naturalmente, ao objecto da decisão: a superveniência de circunstâncias que possam levar à alteração da anterior decisão, transitada em julgado, cujos pressupostos se reapreciam.
2.Assim, a decisão assumida no processo e transitada em julgado deve manter-se, no âmbito do processo, salva a alteração, superveniente, dos seus pressupostos, ainda que obrigando à revisão dos pressupostos, ex oficio, por estarem em causa meras exigências cautelares atentatórias de direitos fundamentais.
Decisão Texto Integral: 9

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação e Coimbra

I.
T… arguido nos autos, recorre do despacho certificado a fls. 68-70 (275-277 dos autos, rectificado a fls.335) datado de 22 de Outubro de 2009, em que o tribunal recorrido procedendo à revisão trimestral dos respectivos pressupostos, decidiu manter a medida de coacção de obrigação de permanência em habitação, com fundamento na manutenção, inalterados, dos fundamentos que determinaram a sua aplicação.
*
Na motivação formula as seguintes CONCLUSÕES
1- O recorrente não se conforma com o douto despacho que decidiu pela manutenção da medida de coacção da obrigação da permanência na habitação.
2- Os fundamentos que determinaram a aplicação da obrigação de permanência de habitação foram alterados, 1) a prova já se encontra coligida, o que levou a Meritíssima Juíza, no despacho recorrido, afastar o perigo de perturbação do decurso do inquérito, 2) a alteração da residência do aqui recorrente da Rua …, Pombal, para a casa do seu avô, sita na Travessa … Pombal.
Ora
3- A medida de obrigação de permanência na habitação é desnecessária e inadequada.
4- O arguido (como relata os autos), não tem casa própria, nem capacidade financeira para suportar arrendamento, cumpre tal medida, em casa do seu avô, I.., na morada acima indicada, onde vive para além deste, a sua companheira V.. e a sua filha de 2 anos.
5- Derivado a esta situação, o avô, sente-se bastante perturbado e angustiado. Devido à sua longa idade, apresentando mobilidade insuficiente para tratar da casa nomeadamente no que toca a alimentação, compra de bens alimentares e das actividades agrícolas, semear e recolher frutos.
6- Ademais, a sua reforma não é suficiente para as despesas mensais do agregado familiar.
7- O arguido neste momento ambiciona e tem necessidade de arranjar trabalho, no intuito de ter uma vida condigna e de subsistência.
8- Por mera cautela e caso assim não se entenda e indubitável que a obrigação de permanência na habitação é desproporcional ou excessiva face à gravidade dos crimes que vem indiciado o arguido.
9- Porquanto, tendo em consideração, designadamente, a colaboração espontânea e voluntária do arguido junto das autoridades judiciárias e órgãos de policiais com vista ao apuramento da verdade, às condições sócio económicas, a ausência de antecedentes criminais, a sua idade (menor de 21 anos na altura da prática dos factos), bem como, os meios utilizados a quantidade de estupefacientes apreendidas, nunca o mesmo poderá ser acusado pelo crime p. e p. pelo artigo 21º do Decreto-Lei nº15, mas sim pelo artigo 25º, ou 26º, do mesmo diploma.
10- Com o devido respeito, o tribunal a quo não respeitou o princípio da subsidiariedade, bem como o princípio da presunção de inocência, consagrado no n.º2 do artigo 32º da CRP, de que aquele é uma emanação.
11- De facto, resulta inequívoco que as necessidades cautelares que a obrigação de permanência na habitação pretende proteger, podem ser alcançadas através de outras medidas de coacção menos gravosas, nomeadamente e por ordem decrescente as constantes no artigo 198º, (obrigação de apresentação periódica) e 200º (proibição de permanência de ausência e de contactos).
12- Assim no presente caso, e tendo em conta as necessidades cautelares, mormente,
Não existe fundado perigo de fuga, porquanto, o arguido leva um modo de vida sedentário, com vínculo familiar (vive em união de facto com V…, com uma filha de dois anos de idade), é cidadão nacional e encontra-se devidamente identificado, não tem meio de transporte próprio nem capacidade financeira.
O processo encontra-se concluso no que toca à produção e recolha da prova, não existindo perigo de entorpecimento com base na forte suspeita de que o arguido “destrua, modifique, oculte, suprima ou falsifique meios de prova”, “influa de maneira desleal nos co-arguidos, testemunhas ou peritos” ou “induza outros a realizar tais comportamentos”.
13- Seria de manter a medida de coacção de proibição de, por qualquer meio, contactar com pessoas ligadas ao consumo, detenção e venda de estupefacientes, cumulada com a obrigação de apresentação periódica semanal no posto da PSP de Pombal.
14- Pelo que, salvo melhor opinião, são adequadas e suficientes, às exigências cautelares que o caso requer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
15- Sendo assim, é imperativo que seja restituído o arguido à liberdade devendo manter-se as seguintes medidas de coacção:
a) TIR,
b)Proibição de, por qualquer meio, contactar com pessoas ligadas ao consumo, detenção e venda de estupefacientes.
Cumulada ainda com a,
c) Obrigação de apresentação periódica semanal no posto da PSP de Pombal.”
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Respondeu o MºPº, ponto por ponto, à fundamentação do recurso, sustentando a sua improcedência.
No mesmo sentido se pronuncia o Exmo. Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer.
Corridos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
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II.

A decisão recorrida é a seguinte:
Compulsados os autos, verificamos que em sede de primeiro interrogatório, foram aplicadas ao arguido as seguintes medidas de coação:
TIR; Proibição de, por qualquer meio, contactar com pessoas ligadas ao consumo, detenção e venda de produtos estupefacientes; obrigação de permanência na habitação, com proibição de ai se ausentar sem autorização do tribunal, tudo nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 191º, 192º, 193º, nºs 1, 2 e 3,194º,195º,196º, 200º, nº 1, alínea b), 201º e 204º, alíneas a), b) e c) do Código de Processo Penal.
Para tal foi considerada indiciariamente demonstrada factualidade que abstractamente seria susceptível de integrar a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. p. pelo artigo 21º do DL 15/93, de 22 de Janeiro.
Nos termos do disposto no artigo 213º do CPP importa proceder ao reexame dos pressupostos da obrigação de permanência na habitação.
(…)
Como supra expusemos, foi considerada indiciariamente demonstrada factualidade levada a cabo pelo arguido que abstractamente seria susceptível de integrar a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p.p., pelo artigo 21º do DL 15/93, de 22 de Janeiro.
À aplicação das medidas de coacção - maxime as que implicam privação da liberdade -, bem como, por maioria de razão, a sua alteração, substituição e revogação, presidem princípios fundamentais, como os princípios da legalidade, da adequação, da proporcionalidade, da precariedade e da subsidiariedade, plasmados nos artºs 191º, 193º e 204º do CPP, princípios estes que funcionam como garantias para os cidadãos, no âmbito do processo penal.
No que concerne à medida de obrigação de permanência na habitação, dada a gravidade de que se reveste, em termos de limitação da liberdade dos cidadãos, são especialmente relevantes os princípios da precariedade e da subsidiariedade, já que esta medida de coacção apenas deverá ser aplicada como último recurso e somente enquanto se mantiverem as condições tácticas que ditaram a sua aplicação.
Por conseguinte, como impõe o art. 213º do CPP, periodicamente há que proceder a uma análise das condições fácticas que envolvem os arguidos a quem foi aplicada tal medida, de modo a verificar se existe ou não qualquer alteração das circunstâncias que estiveram na base da decisão de aplicação dessa medida de coacção, visando decidir se se justifica a sua manutenção ou se, pelo contrário, deve ser decretada a sua substituição ou cessação.
Compulsados os autos, e ouvido o Ministério Público e o arguido, verifica-se que os pressupostos de facto e de direito que determinaram a aplicação da medida de prisão preventiva ao arguido continuam a prevalecer, designadamente no que respeita ao perigo de fuga e perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime e da personalidade do arguido, de continuação da actividade criminosa.
Saliente-se, no que a este particular concerne, o facto de ao arguido continuar sem emprego fixo, sendo-lhe desconhecidas outras fontes de rendimento. Este facto, aliado à preocupação e alarme social inerentes a este tipo legal de crime, faz com que exista igualmente um perigo de perturbação da tranquilidade pública que urge acautelar.
Aqui chegado importa referir que não se ignora o alegado pelo arguido, nomeadamente no que concerne ao facto de a prova estar já coligida e às suas necessidades de arranjar emprego, mas o alegado como fundamento da eventual alteração da medida de coacção aplicada, não justifica a aplicação da medida proposta, uma vez que não ficariam devidamente acautelados os perigos supra referidos, mantendo-se totalmente inalterados os fundamentos que determinaram a aplicação da obrigação de permanência na habitação.
Nestes termos, tendo em conta que nos presentes autos há fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a cinco anos de prisão, que se consideram inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção previstas no CPP, e que existe em concreto perigo de continuação da actividade criminosa e perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, verifica-se que os pressupostos previstos nos art. 201º e 204º do Código de Processo Penal que determinaram a sujeição do arguido à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação se mantém totalmente válidos e actuais, não havendo alteração dos mesmos.
Pelo exposto, determina-se que o arguido T… continue a aguardar os ulteriores termos processuais na situação em que se encontra nos autos.
Notifique.”
**
III.
No presente recurso não está em causa, o despacho que decretou a medida de coacção impugnada – obrigação de permanência na habitação.
Mas aquele que procedeu, oficiosamente, à reapreciação dos seus pressupostos.
Com efeito a medida de coacção revista havia sido decretada por despacho anterior, de 24 de Julho de 2009, com os seguintes fundamentos: - forte indiciação da prática, pelo arguido/recorrente, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21º do DL 15/93, de 22 de Janeiro; - perigo de fuga; perigo da continuação da actividade criminosa; - perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.

Não carece, pois de renovação a apreciação dos pressupostos da prisão preventiva efectuada no referido despacho transitado em julgado.
Apenas cumprindo sindicar o despacho recorrido, relativamente à alteração dos pressupostos.
Tratando-se, como é o caso, de despacho que procede ao reexame dos pressupostos da aplicação de medida de coacção previamente decretada, o dever de fundamentação reporta-se, naturalmente, ao objecto da decisão: a superveniência de circunstâncias que possam levar à alteração da anterior decisão, transitada em julgado, cujos pressupostos se reapreciam.
Com efeito já no domínio do CPP de 1929, na redacção introduzida pelo DL 377/77 de 06.09 se entendia que as medidas de coacção, pelas contínuas variações do seu condicionalismo, assentavam no princípio ou estavam sujeitas à condição rebus sic stantibus – cfr. Maia Gonçalves CPP Anotado, 13ª ed., em anotação ao art. 212º.
Perspectiva consagrada no art. 212º n.º2 CPP. Na sequência do Acórdão do Plenário das Secções reunidas do STJ de 24.01.96, DR IS-A de 14.03.96: A medida deve ser revogada ou substituída “logo que se verifiquem circunstâncias que o justifiquem, nos termos do artigo 212º, independentemente da revisão trimestral do art. 213º”.
Em conformidade aliás com os princípios atinentes ao caso julgado, assente na identidade da decisão e dos respectivos fundamentos – identidade da causa de pedir (factos concretos em que assenta a decisão) e do pedido ou pretensão formulada e decidida com base naquela causa ou fundamento.
Assim, a decisão assumida no processo e transitada em julgado deve manter-se, no âmbito do processo, salva a alteração, superveniente, dos seus pressupostos, ainda que obrigando à revisão dos pressupostos, ex oficio, por estarem em causa meras exigências cautelares atentatórias de direitos fundamentais.

Numa primeira abordagem – nuclear, na perspectiva da alteração dos pressupostos, objecto da decisão recorrida - o recorrente alega que os pressupostos da medida foram alterados (cfr. síntese na conclusão primeira). Com base em dois argumentos: - de um lado, que - “a prova já se encontra coligida”; e de outro, que – a “alteração da residência para casa de seu avô”.
Numa segunda linha, alega que “caso assim não se entenda” sustenta que a medida em vigor é desproporcional e excessiva.
Só a primeira incide, verdadeiramente, sobre a “alteração” dos pressupostos, o mesmo é dizer, sobre o objecto do despacho recorrido. Inscrevendo-se a segunda no ataque aos fundamentos do primitivo despacho, transitado em julgado.
No que toca ao primeiro fundamento relativo à alteração de pressupostos (prova já coligida, verifica-se que a decisão que decretou a medida não teve como fundamento o perigo para a aquisição da prova. Pelo que nunca poderia ser alterado um pressuposto que não existiu.
Tão-pouco os argumentos reportados nas conclusões n.º4 e 5 se inscrevem nos fundamentos da medida aplicada, sendo, como tal, estranhos aos seus pressupostos e, como tal, de impossível alteração.
Aliás o próprio recorrente admite que não tem casa própria onde possa estabelecer-se. Do mesmo modo que reconhece que, quando a medida foi decretada não exercia qualquer actividade profissional remunerada que pudesse retomar.
Por outro lado, no que toca à invocada “necessidade de encontrar trabalho” o recorrente não materializa qualquer perspectiva, muito menos séria, de trabalho ou, sequer, proposto.
Para cujo exercício, aliás, caso surgisse, bastava pedir autorização ao tribunal para se ausentar da habitação durante o período necessário ao seu exercício.
Pelo que também aqui não existe qualquer alteração dos pressupostos da decisão que aplicou a medida cautelar.
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No que toca à invocada desproporcionalidade, para além de que o recorrente devia impugnar o despacho que aplicou a medida, devia substanciar os pressupostos fácticos tidos por alterados.
Ora o recorrente não põe em causa a valoração da prova quanto ao crime tido por fortemente indiciado – crime de tráfco de produtos estupefacientes p. e p. pelo artigo 21º do DL 15/93.
Alega que o crime indiciado “será apenas o do art. 25º ou do art. 26º”. Mas não invoca qualquer suporte probatório, muito menos superveniente, em relação ao despacho que decretara a medida revista, que pudesse inscrever-se como fundamento da alteração da qualificação jurídica.
Não faz qualquer esboço ou esforço de demonstração probatória ou fáctica dessa alegação.
Aliás, alegando que “a prova se encontra adquirida”, o recorrente não refere que já tenha sido deduzida acusação, muito menos pelo art. 25º ou 26º. Ou que tenha sido alterada a qualificação jurídica efectuada no despacho que determinou a aplicação da medida sob revisão.
Em contrapartida, como é dada conta na resposta, verifica-se que a acusação já foi deduzida. E a qualificação jurídica em que repousa a aplicação da medida coactiva em análise não só não foi alterada no sentido suposto pela motivação de recurso, como, pelo contrário, foi agravada.
Com efeito, na acusação, superveniente ao despacho que decretou a medida de coacção, os factos indiciados foram qualificados como integrando o crime de tráfico agravado, p. e p. pelo artigo 24º, al. a) com referência ao artigo 21º.
Acresce que a alegação do recorrente – além de não fundamentada, minimamente, em termos probatórios – é incompatível com as várias quantidades de cannabis apreendidas na sua (em 16.07, na via pública, 4,192 gramas de peso líquido; dias depois, em 24.07, em sua casa, uma caixa com 24,522 gramas, mais um papel com 30,381 gramas, mais 0,332 gramas). Além da balança e outros instrumentos apreendidos destinados à divisão e acondicionamento das doses. E da prova testemunhal arrolada na acusação relativamente aos ali descriminados actos concretos de venda regular a vários toxicodependentes, também identificados na acusação.

De qualquer modo, face à matéria indiciada, agora densificada na acusação entretanto deduzida, além de já ter sido aplicado TIR, bem como a medida de Proibição de contactar com pessoas ligadas ao consumo, detenção e venda de produtos estupefacientes, a apresentação periódica não satisfaz as exigências cautelares que emergem da matéria indiciada e personalidade do agente neles revelada, tendo por referência, natureza e gravidade do crime, a sanção aplicável.
Tanto mais sabendo-se que se trata de um crime em que existe consenso entre consumidores e traficantes, confluência de interesses geradora de interdependências e cumplicidades associadas ao tráfico e consumo de estupefacientes, designadamente quando o vendedor contacta directamente com o toxicodependente, como é o caso, em termos de matéria de facto indiciada. E que o agente não exercia qualquer actividade profissional remunerada.
Carece, pois, de fundamento a pretensão do recorrente em ver substituída a medida cautelar de permanência em habitação decretada.
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IV.
Nestes termos decide-se negar provimento ao recurso, com a consequente manutenção da decisão recorrida. ----
Custas pelo recorrente, sem prejuízo do instituto do apoio judiciário, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC.