Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2313/19.9T8PBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: CITAÇÃO
DEVOLUÇÃO DE CARTA PARA NOTIFICAÇÃO
TAXA DE ÁLCOOL
PROVA TARIFADA
NEXO DE CAUSALIDADE
Data do Acordão: 06/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUIZO CENTRAL CÍVEL DE POMBAL – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 249º, Nº 2, E 570º, Nº 5 DO CPC.
Sumário: I - Indicada na pi uma morada como sendo a do réu na qual ele foi citado, e, nesta sequência, constituindo advogado e contestando, e, inclusive, sendo, depois, nela notificado da renúncia do seu mandatário, a devolução da carta de notificação para o efeito do artº 570º, nº 5 do CPC, irreleva, devendo a notificação ser tida como efetuada – artº 249º, nº 2 do CPC.

II - Assim, não tendo sido paga a taxa de justiça e multa, o desentranhamento da contestação e o julgamento com base na confissão ficta é legal, pois que inexiste qualquer nulidade processual.

III - A taxa de álcool no sangue está sujeita a prova legal tarifada pois que apenas pode ser apurada: i) através de aparelhos analisadores oficialmente aprovados e anualmente verificados; ii) mediante análise ao sangue; iii) através de outros exames médicos que tenham essa capacidade analítica; e, assim, tal taxa não pode ser provada por confissão.

IV - O desconto da margem de erro da taxa apurada apenas pode ser efetuado quando ela emergir dos aludidos aparelhos; quando dimanar destes exames, porque realizados segundo critérios científicos rigorosos, o valor a considerar é, exatamente, o neles apurado.

V - Na ação de regresso instaurada pela seguradora ao abrigo da al. c) do nº1 do artº 27º do DL 291/2007, de 21.08, à autora basta provar que o réu foi o responsável, aquilianamente, pelo sinistro e que conduzia com taxa de álcool superior à legalmente permitida, não lhe sendo exigível a prova do nexo de causalidade entre esta taxa e o sinistro; é que tal excesso faz presumir, juris tantum, este nexo, e, assim, competindo ao réu, para se desonerar, ilidir esta presunção.

Decisão Texto Integral:






ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

A..., COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.,  intentou contra R..., ação declarativa, de condenação, com processo comum.

Pediu:

A condenação do réu a pagar-lhe a quantia de 24.595,71€, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, a apurar, desde a interpelação deste até efetivo e integral pagamento.

Para tanto, alegou, em síntese:

Celebrou com o réu um contrato que qualifica como contrato de seguro automóvel, referente ao motociclo de marca Honda e modelo CBR, com matrícula ..., titulado pela apólice nº...

No dia 22.10.2015, pelas 21h55m, ao quilómetro ..., ocorreu um acidente em que o referido veículo foi interveniente.

O mesmo ficou a dever-se a culpa exclusiva do réu, seu segurado.

Assumiu a responsabilidade pelos danos resultantes do aludido acidente perante ..., passageiro do motociclo na altura do referido acidente.

O réu conduzia com um valor de álcool no sangue superior ao legalmente admissível e que, por isso, lhe assiste direito de regresso sobre este pelo valor pago ao terceiro em virtude do acidente em questão, peticionando o respectivo montante.

Citado contestou o réu.

Não tendo pagado a respetiva taxa de justiça, foi a contestação mandada desentranhar em cumprimento do disposto no artigo 570º, nº. 6 do Código de Processo Civil, determinando a situação de revelia.

Foi proferido despacho a considerar confessados os factos articulados pela autora, nos termos e para os efeitos do artigo 567º nº. 1 do CPC.

Notificados, autora e réu, nos termos e para os efeitos do nº. 2 da citada norma legal, nada  alegaram ou requereram.

2.

Seguidamente foi proferida sentença na qual foi decidido:

«a) Condenar o réu, R..., no pagamento à autora, A... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., da quantia global de 24.595,71€ (vinte e quatro mil, quinhentos e noventa e cinco euros e setenta e um cêntimos);

b) Condenar o réu no pagamento à autora de juros de mora, calculados à taxa legal anual prevista para os juros civis, desde a data de citação e até efectivo e integral pagamento da quantia referida em a);

c) Condenar o réu nas custas do processo.»

Inconformado recorreu o réu.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

...

Contra alegou a autora pugnando pela  manutenção do decidido com os seguintes argumentos finais.

...

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 684º e 685-A º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas  são as seguintes:

1ª  - Nulidade por  notificação do réu para morada onde não residia.

2ª - Alteração da decisão sobre a matéria de facto.

3ª -  Improcedência da ação.

5.

Apreciando.

5.1.

Primeira questão.

Clama o réu que existe nulidade por falta da sua notificação para pagamento da taxa de justiça devida, acrescida da multa legal, pois que não residia na morada para a qual a carta foi enviada para este efeito.

Trata-se de uma nulidade processual, ou procedimental, prevista no artº 195º do CPC.

Estatui este preceito:

«a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.»

É obvio que, a existir, a nulidade influiu no exame e decisão da  causa.

Resta apurar se efetivamente se verificou.

Atentemos.

Foi indicada na  pi uma morada como sendo a do réu.

Este foi citado na mesma.

Na sequência da citação o réu constituiu advogado e contestou a ação.

Logo, esta morada firmou-se no processo como sendo a do réu e, naturalmente, para a  mesma deveriam necessáriamente ser efetivadas todas as notificações posteriores.

A sedimentação desta realidade adveio ainda do facto de o réu ter sido notificado para tal morada da renúncia ao mandato do seu advogado.

Na sequência desta notificação o réu não constituiu mandatário nem nada disse ou requereu.

Não obstante, tal renúncia não influiu na tramitação imediata dos autos, pois que a mesma produziu os seus efeitos com a notificação ao réu, e o processo teve de prosseguir, aproveitando-se os atos anteriormente praticados, ex vi do disposto no artº 47º, nº 2 e 3, al. b) do CPC.

A partir deste momento o réu passou a estar por si nos autos, e para ele deveriam ser efetuadas todas as notificações.

O facto de a notificação de 30.06.2020 ter sido devolvida, por não ter sido levantada, irreleva.

Como bem aduz a recorrida, tem aqui aplicação, em função do supra aludido, o disposto no artº 249º, nº2 do CPC, o qual  estatui:

Notificações às partes que não constituam mandatário

«A notificação efetuada por carta registada não deixa de produzir efeito pelo facto de o expediente ser devolvido, desde que a remessa tenha sido feita para a residência ou a sede da parte ou para o domicílio escolhido para o efeito de a receber; nesse caso, ou no de a carta não ter sido entregue por ausência do destinatário, juntar-se-á ao processo o sobrescrito, presumindo-se a notificação feita no dia a que se refere a parte final do número anterior.»

Perante a anterior citação e notificação, reitera-se que a residência indicada na pi como sendo a do réu, tinha de continuar a dar-se como boa e correta.

Mesmo que  ele tivesse mudado de residência, o tribunal não tem o dom da adivinhação para intuir a sua nova morada.

Se o réu mudou de residência ou as pessoas que residiam na morada indicada deixaram de receber as notificações, deveria ele ter informado o tribunal e/ou ter-se precavido.

Afinal de contas, com a constituição de mandatário para o processo e a posterior contestação, já sabia que existia contra si uma pretensão judicial determinada e  que as possíveis posteriores notificações que na sua pessoa fossem necessárias iriam ser efetivadas na  sua morada indicada pela autora e por ele aceite como tal.

Com a renúncia do seu advogado esta a necessidade e acuidade das notificações em tal morada reforçaram-se.

O normal homo prudens, um cidadão mediamente diligente e desperto, como é suposto o réu ser ou dever ser, certamente que interiorizava este normal devir.

Assim, se na verdade mudou de residência, competia-lhe no mínimo, informar o tribunal de tal facto.

Não o tendo feito, apenas de si, e/ou do seu ilustre advogado – questão esta, porém, que aqui não pode ser dirimida, mas, porventura, na respetiva Ordem -  se pode queixar, pelo que, é caso para dizer que sibi imputet.

Dito isto, é bom de ver que inexiste violação do princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, decorrente do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, mormente o princípio ou subprincípio da proibição da indefesa, bem como da proporcionalidade, este já decorrente do nº 2 do artigo 18º da Constituição.

É que o tribunal atuou, e bem, ou, no mínimo, no que lhe era exigível, em função dos elementos factuais atinentes à sua residência que o próprio réu  aceitou e deu como bons no processo.

O tribunal não cerceou qualquer direito ao réu.

O réu é que não quis ou não soube - por si, e/ou por falta de colaboração com o seu advogado, ou deste para com ele -, defender a sua posição no processo e, consequentemente, os seus direitos.

É bom não esquecer que um dos relevantes princípios do processo é o da auto responsabilidade das partes e o seu dever de colaboração – inclusive para defesa dos seus próprios direitos – com o tribunal.

5.2.

Segunda questão.

5.2.1.

Entende o recorrente que a prova ta taxa de alcoolémia não pode ser feita via confessória, pois que apenas pode resultar de prova legal vinculada e que, nos autos inexiste qualquer relatório pericial ou da análise de pesquisa no sangue que comprove o facto invocado.

Só a primeira asserção é verdadeira.

Efetivamente, estamos perante um facto sujeito a prova legalmente  taxada ou tarifada.

Tal prova pode advir por três modos/meios distintos, a saber: i) ou através de aparelhos analisadores oficialmente aprovados e anualmente verificados; ii) mediante análise ao sangue; iii) através de outros exames médicos que tenham essa capacidade analítica.

Veja-se o artº 153º, nº 1, nº 3, al. b), e nº 8 do CE, rectius este último segmento normativo:

 8 - Se não for possível a realização de prova por pesquisa de álcool no ar expirado, o examinando deve ser submetido a colheita de sangue para análise ou, se esta não for possível por razões médicas, deve ser realizado exame médico, em estabelecimento oficial de saúde, para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool.

 E, ainda, o artº 1º da Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio,  que prova o Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, o qual estatui:

«1 - A presença de álcool no sangue é indiciada por meio de teste no ar expirado, efectuado em analisador qualitativo.

2 - A quantificação da taxa de álcool no sangue é feita por teste no ar expirado, efectuado em analisador quantitativo, ou por análise de sangue.

3 - A análise de sangue é efectuada quando não for possível realizar o teste em analisador quantitativo.»

Mas já quanto à consideração da margem de erro, ela, como é bom de ver, apenas se coloca quando as medições são efetuadas pelo analisador/aparelho, qualitativo e quantitativo.

É o que emerge, vg, do disposto no artº  170º,  nº1, al. b) CE:

1 - Quando qualquer autoridade ou agente de autoridade, no exercício das suas funções de fiscalização, presenciar contraordenação rodoviária, levanta ou manda levantar auto de notícia, o qual deve mencionar:

b) O valor registado e o valor apurado após dedução do erro máximo admissível previsto no regulamento de controlo metrológico dos métodos e instrumentos de medição, quando exista, prevalecendo o valor apurado, quando a infração for aferida por aparelhos ou instrumentos devidamente aprovados nos termos legais e regulamentares.

E já não quando os valores resultem de exames, sanguíneo ou médico.

Na verdade, estes exames são feitos por entidade credenciada e  mediante e no cumprimento de critérios científicos fidedignos.

Veja-se, p. ex., o disposto no artº Artigo 6.º da referida Lei 18/2007:

Exame toxicológico de sangue para quantificação da taxa de álcool

1 - O exame para quantificação da taxa de álcool no sangue é efectuado com recurso a procedimentos analíticos, que incluem a cromatografia em fase gasosa.

2 - O exame referido no número anterior é sempre efectuado pelo Instituto Nacional de Medicina Legal.

Decorrentemente, os seus resultados e valores devem ter-se, pelo menos por via de regra e até prova em contrário, como rigorosos e exatos.

Note-se que se o examinado, após acusar álcool no sangue detetado através dos aparelhos quantitativos, tiver dúvidas ou não se conformar com os valores, pode requerer a contraprova, a qual pode ser feita por novo aparelho ou mediante análise sanguínea -  cfr. artº 153º, nº 2 do CE.

E que o resultado da contraprova prevalece sobre o resultado do exame inicial – cfr. artº 153º, nº 6 do CE.

O caso vertente.

Está provado, documentalmente – cfr. fls.23 – que o réu foi submetido a teste de alcoolémia em aparelho qualitativo DRAGER tendo acusado uma TAS positiva, ou seja superior a 0,5g/L, tendo-se procedido à colheita de sangue relativamente às análises toxicológicas de confirmação de álcool no sangue através do Kit nº GNR 27734 e entregues no Centro Hospitalar de Leiria que assumiu o envio para o INML do Centro.

Posteriormente,  e conforme dimana do doc. de fls. 26, a GNR, em aditamento à participação em causa, informou que após receção do relatório final nº ... do INMLCF da Delegação do Centro, foi elaborado o seguinte expediente:

Auto de Contra Ordenação com o nº ..., por condução sob influência do álcool, 0,52g/l.

Ou seja, detetado o excesso de álcool no sangue através do aparelho qualitativo, em vez de se seguir, para a sua confirmação ou infirmação,  a via do teste no aparelho quantitativo, encetou-se a via do Exame toxicológico de sangue.

Ademais, sendo suposto que  o réu foi informado, nos termos legais, do excesso de álcool no sangue, para, querendo, requerer a contraprova, outrossim não alegou e provou tê-la impetrado.

O que, só por si, indica ou indicia claramente que ele se conformou e admitiu tal excesso.

Finalmente, vista a contestação do réu, a qual não obstante mandada desentranhar ainda permanece nos autos, dela se retira que o réu não impugna, adrede e convincentemente, a taxa de álcool apurada.

Limitando-se a invocar/aventar hipóteses peregrinas e espatafúrdias, passe o plebeísmo, como seja que  tomou medicamentos nimed e voltaren que «crê terem influenciado quaisquer resultados», pois que estes remédios «fazem com que ocorra um lento processo de eliminação de álcool».

Ou seja, o réu admitiu ter bebido líquidos alcoólicos, mas entende que a culpa da taxa ilegal deriva de medicamentos tomados.

Inclusive alega que não se recorda do motivo que levou à quedada da moto,  hipotizando que foi o passageiro que transportava que provocou o seu descontrolo.

Estas alegações, não obstante tal confissão não ser suficiente para se dar como provada tal taxa ilegal, não deixam de ser sintomáticas quanto à postura, - atribiláriamente desresponsabilizante e eticamente censurável, por querer culpar terceiros sem concretização bastante -,  do demandado.

Em todo caso, certo certo é que os documentos juntos aos autos e que o réu nem sequer impugna especificadamente, provam que o exame de sangue efetuado ao réu pelo IML determinou uma taxa de álcool de 0,52 g/l no  sangue.

A qual, como se viu, deve ter-se como exata.

No atinente aos demais factos alegados e dados como provados, a aludida impossibilidade probatória já não se verifica, e os mesmos podem ser provados por confissão.

5.2.2.

Por conseguinte, os fatos a considerar são os apurados na 1ª instância, a saber:

...

5.3.

Terceira questão.

5.3.1.

Perante este acervo factual foi, de jure, decidido nos seguintes, sinóticos e essenciais, termos:

«…nos termos do artigo 60º, nº. 1, alínea M1, as marcas longitudinais apostas na faixa de rodagem e constituídas por linha contínua significam “para o condutor proibição de a pisar ou transpor e, bem assim, o dever de transitar à sua direita quando aquela fizer a separação de sentidos de trânsito”, o mesmo significando as marcas constituídas por duas linhas contínuas, sendo estas de utilização em zonas que representem particular perigo para a circulação.

Por outro lado, dispõe o artigo 11º, nº. 2 do Código da Estrada que “os condutores devem, durante a condução, abster-se da prática de quaisquer atos que sejam suscetíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança.”

Por seu turno, o artigo 13º, nº. 1 do mesmo diploma legal prevê que “a posição de marcha dos veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem, conservando das bermas ou passeios uma distância suficiente que permita evitar acidentes.”

…resulta da matéria de facto provada que o réu circulava numa zona constituída por uma recta, que proporcionava uma visibilidade não inferior a 50m de toda a largura da faixa de rodagem, sendo esta composta de 3 vias de circulação, uma no sentido Leiria-Pombal e duas no sentido oposto, separadas por duas marcas rodoviárias paralelas constituídas por linhas longitudinais contínuas, tendo perdido o controlo do veículo por si conduzido e entrando em despiste, sobrepondo as referidas marcas rodoviárias, tendo ficado caído e imobilizado no lado contrário da faixa de rodagem atento o sentido que prosseguia.

Tal atuação demonstra, de um passo, que o réu não cumpriu as regras estradais acima enunciadas,…

… da factualidade dada como provada conclui-se ainda que os danos verificados resultaram da referida actuação do réu, de forma directa e necessária.

Nos termos do artigo 27º, nº. 1, alínea c) do Decreto-Lei nº. 291/2007, de 21.8, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº. 153/2008, de 6.8, uma vez satisfeita a indemnização por parte da empresa seguradora, esta terá direito de regresso “contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos.”

A norma citada tem originado bastante discussão, doutrinal e jurisprudencial2 , que se pode resumir à questão de saber se, para concretização deste direito de regresso, se exige à seguradora que alegue e prove o nexo causal entre a verificação do acidente e o estado de influência de álcool em que o condutor se encontre, enquanto facto constitutivo do seu direito e atentas as regras do ónus da prova ínsitas no artigo 342º do Código Civil.

Adiantamos desde já que pensamos que não.

Começando por um argumento de ordem prática, tal exigência redundaria, segundo cremos, naquilo a que usa chamar-se de “prova diabólica”. Com efeito, tanto quanto cientificamente se sabe, as pessoas reagem de formas diferenciadas a quantidades diferenciadas de presença de álcool no sangue.

…a leitura da norma em questão pressupõe um duplo grau de análise: num primeiro momento, a análise da causa do acidente; feita esta, a verificação da condução com uma TAS superior à legalmente admitida. Ou seja, a verificação dos requisitos do direito de regresso da seguradora exige, em primeira linha, a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil subjectiva do condutor, nos quais não se inclui o nexo de causalidade entre a alcoolemia e a verificação dos danos. Apenas depois de se concluir pela existência de responsabilidade civil subjectiva do condutor se partirá para a verificação do outro requisito do direito de regresso da seguradora, isto é, a condução exercida com uma TAS superior ao limite legalmente admitido.

Este argumento sai, ainda, reforçado se analisarmos o sentido da evolução legislativa nesta matéria.

De facto, a legislação anterior (cfr. artigo 19º, nº. 1, alínea c) do DL nº 522/85, de 31.12) dispunha que “satisfeita a indemnização, o segurador tem direito de regresso e/ou reembolso, conforme os casos, nos termos da lei geral e ainda contra o condutor se este tiver agido sob a influência do álcool.”

O segmento final da norma permitia a análise (aliás efectuada pelo Acórdão Uniformizador nº. 6/2002) segundo a qual o direito de regresso da seguradora apenas existiria se fosse possível concluir que o condutor teria actuado como actuou por se encontrar sob influência de álcool.

Com a entrada em vigor do Decreto-Lei nº. 291/2007, de 21.8, o legislador abandonou tal redacção, alterando-a nos termos acima expostos. Todavia, especialmente se considerarmos a solução do aludido Acórdão Uniformizador, “(…) se era seu propósito [do legislador] manter essa solução, di-lo-ia expressamente, mantendo a redacção do texto legal e esclarecendo mesmo o seu sentido de acordo com a interpretação que lhe foi dada pelo AUJ (…)”.

Concluímos, sintetizando, com a jurisprudência do aludido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça  de  9.10.2014  processo nº. 582/11, que “o requisito da alcoolemia foi, com esta última alteração legislativa, enunciado em termos diversos, desconsiderando-se agora a influência (isto é, a relação de causa e efeito) do álcool na condução.

Independentemente dessa influência – que o art. 81º nº2 do Cód. Estrada presume absolutamente quando igual ou superior a 0,5g/l – o direito de regresso basta-se agora – para além da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil subjectiva e do cumprimento da respectiva obrigação de indemnizar - com uma TAS superior à legalmente permitida.

Deixou de relevar para o direito de regresso a questão de saber se in concreto a impregnação de álcool no sangue do condutor medida pela TAS influenciou ou não a condução em termos de constituir a causa remota da actuação culposa do condutor que fez eclodir o acidente: basta que o condutor acuse, no momento do acidente, uma TAS superior à legalmente admitida, para que, se tiver actuado com culpa – e obviamente se se verificarem os demais requisitos da responsabilidade civil subjectiva – possa ser demandado em acção de regresso pela seguradora que satisfez a indemnização ao lesado.”

5.3.2.

Este discurso apresenta-se, desde logo em tese, curial, e, no que ao caso concreto tange, adequado, atentos os seus elementos fáctico circunstanciais.

Efetivamente, presentemente é entendimento, doutrinal e jurisprudencial, uniforme, ou, no mínimo, claramente maioritário, que na ação de regresso intentada pela seguradora ao abrigo  da al. c) do nº1 do artº 27º do DL n.º 291/2007 de 21 de Agosto, esta não é obrigada a provar o nexo de causalidade entre a alcolémia ou a substancia estupefaciente e o sinistro.

 Antes bastando que o demandado seja responsável, aquilianamente, pelo acidente e acuse uma taxa de álcool superior ao limite legal.

Neste sentido, e para além do aresto aludido na sentença, cfr. os Acs. do STJ de  08/10/2009, p. 525/04.9TBSTR.S1; de 28/11/2013, p. 995/10.6TVPRT.P1.S1; de 06/04/2017, p. 1658/14.9TBVLG.P1.S1; de 07/02/2017, p. 29/13.9TJVNF. G1.S1; de 07/03/2019, p. 248/17.9T8BRG.G1.S2; de 03/11/2020, p. 2490/18.6T8PNF.P2.S1, e de 10/12/ 2020, p. 3044/18.2T8PNF.P1.S1, todos in dgsi.pt.

Na verdade, pode considerar-se que:

«Do disposto no art. 27.º, n.º 1, al. c), do DL n.º 291/2007, de 21-08, decorre uma presunção iuris tantum do nexo de causalidade entre o estado de alcoolemia ou a evidência de consumo de substância psicotrópica e o ato de condução causador do acidente, incumbindo ao condutor segurado, quando demandado em ação de regresso, o ónus da sua ilisão, ainda que não se mostre exigível que a influência da alcoolemia ou do consumo de substância psicotrópica seja a causa exclusiva da conduta causadora do acidente, devendo essa influência ser ponderada, para tais efeitos, à luz dos princípios da proporcionalidade e da adequação.» -  Ac.  do STJ de 25.03.2021, p. 313/17.2T8AVR.P1.S1.

No caso sub judice, e como plasmado na sentença, provou-se que o acidente se ficou a dever a conduta contravencional, pelo menos negligente, do réu.

Mais se apurou que ele conduzia com taxa de álcool superior, ainda que não muito superior, à legalmente permitida.

Finalmente, o réu não logrou ilidir a aludida presunção.

Por conseguinte a final conclusão é que a sentença não merece censura e o réu deve ser responsabilizado nos termos decididos.

Improcede o recurso.

6.

Sumariando – artº 663º nº7 do CPC.

I - Indicada na pi uma morada como sendo a do réu  na qual ele foi citado, e, nesta sequência, constituindo advogado e contestando, e, inclusive, sendo, depois, nela notificado da renúncia do seu mandatário,  a devolução da carta de notificação para o efeito do artº 570º nº5 do CPC, irreleva, devendo a notificação ser tida como efetuada – artº 249º nº 2 do CPC.

II - Assim, não tendo sido paga a taxa de justiça e multa, o desentranhamento da contestação e o julgamento com base na confissão ficta é legal, pois que inexiste qualquer nulidade processual.

III - A taxa de álcool no sangue está sujeita a prova legal tarifada pois que apenas pode ser apurada: i) através de aparelhos analisadores oficialmente aprovados e anualmente verificados; ii) mediante análise ao sangue; iii) através de  outros exames médicos que tenham essa capacidade analítica; e, assim, tal taxa não pode ser provada por confissão.

IV - O desconto da margem de erro da taxa apurada apenas pode ser efetuado quando ela emergir dos aludidos aparelhos; quando dimanar destes exames, porque realizados segundo critérios científicos rigorosos, o valor a considerar é,  exatamente, o neles apurado.

V - Na ação de regresso instaurada pela seguradora ao abrigo da al. c) do nº1 do artº 27º do DL 291/2007, de 21.08, à autora basta provar que o réu foi o responsável, aquilianamente, pelo sinistro e que conduzia com taxa de álcool superior à legalmente permitida, não lhe sendo exigível a prova do nexo de causalidade entre esta taxa e o sinistro; é que tal excesso faz presumir, juris tantum, este nexo, e, assim, competindo ao réu, para se desonerar, ilidir esta presunção.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar o recurso improcedente e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas pelo recorrente.

Coimbra, 2021.06.22.


Carlos Moreira

João Moreira do Carmo
Fonte Ramos