Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
465/09.5PBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: CHEQUE SEM PROVISÃO
CONDIÇÃO OBJECTIVA DE PUNIBILIDADE
PRAZO
PAGAMENTO
EXTINÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
Data do Acordão: 02/02/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA FIGUEIRA DA FOZ – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1º-A,11º, Nº 1, ALÍNEA B) DO DECRETO-LEI Nº 454/91 DE 28/12 (COM AS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELOS DECRETO-LEI Nº 316/97 DE 19/11, DECRETO-LEI Nº 323/01 DE 17/12 E PELA LEI Nº 48/2005 DE 29/08)
Sumário: 1. Para se verificar a condição objectiva de punibilidade no prazo previsto na Lei Uniforme Relativa ao Cheque (LURC), o cheque deve ser apresentado a pagamento dentro de oito dias sendo a data relevante para o efeito não aquela em que o cheque foi emitido e entregue mas a que consta do próprio título.
2. Para que o pagamento constitua causa de extinção do procedimento criminal necessário é que seja efectuado nos termos do artigo 1º-A do Decreto-Lei nº 454/91 de 28.12, no prazo de 30 dias após notificação da instituição de crédito para o efeito, como se preceitua no artigo 11º, nº 5 do mesmo diploma legal.
3. O pagamento efectuado depois de decorrido tal prazo não constitui em nenhum caso causa de extinção do procedimento criminal. Tão só pode dar lugar a atenuação especial da pena.
4. Mas que para que essa possibilidade exista necessário é que o pagamento seja efectuado até ao início da audiência em primeira instância como se preceitua no nº 6 do mesmo artigo 11º.
Decisão Texto Integral: I. Relatório
No processo comum singular nº 465/09.5PBFIG do 1º Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz o arguido AS..., identificado nos autos, foi submetido a julgamento acusado da prática de um crime de emissão de cheque sem provisão p. e p. pelo artigo 11º, nº 1, alínea b) do Decreto-Lei nº 454/91 de 28/12 (com as alterações introduzidas pelos Decreto-Lei nº 316/97 de 19/11, Decreto-Lei nº 323/01 de 17/12 e pela Lei nº 48/2005 de 29/08).

CM... em representação de M&M..., Lda. deduziu contra o arguido pedido de indemnização civil, no qual pede a condenação deste no pagamento da quantia € 388,70, acrescida de juros contabilizados à taxa legal a partir da data de notificação até efectivo e integral pagamento.


Por sentença de 25 de Maio de 2010 foi decidido condenar o arguido AS...:
1. Como autor material de um crime de emissão de cheque sem provisão p. e p. pelo artigo 11º, nº 1, alínea a) do Regime Jurídico do Cheque Sem Provisão, na pena de 6 (seis meses de prisão);
2. A pagar ao demandante CM... em representação de M&M..., Lda. a quantia de €388,70 (trezentos e oitenta e oito euros e setenta cêntimos), acrescida de juros contabilizados à taxa legal a partir da data de notificação até efectivo e integral pagamento.

Inconformado com esta decisão, dela recorreu o arguido AS..., rematando a correspondente motivação com as seguintes conclusões:
I- O Tribunal a quo decidiu condenar o arguido pela autoria material de um crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pela norma do artº 11/nº 1 al. a) do Regime Jurídico do Cheque Sem Provisão.
II- O arguido foi condenado a uma pena de 6 (seis) meses de prisão.
III- O arguido tinha julgamento agendado para o dia 18 de Maio de 2010 e com segunda data para o dia 25 de Maio de 2010.
IV - O arguido tinha defensora nomeada no processo, a qual pediu escusa no dia antes do julgamento agendado para a primeira data.
V- O arguido por mero desconhecimento julgou que teria que ser notificado para constituir novo mandatário, razão pela qual não compareceu na audiência de discussão e julgamento.
VI-O arguido nunca teve intenção de não pagar ao ofendido o valor titulado no cheque.
VII- Até porque o fez assim que soube da realização do julgamento na sua ausência..
VIII- Precisamente no dia 21 de Maio do corrente ano conforme Declaração que se junta sob doc. nº 1 e se dá por integralmente reproduzida.
IX- A referida Declaração essa que não foi apresentada antes da primeira data designada para a audiência de discussão e julgamento porque simplesmente a mesma não existia, ou seja, antes dessa data não se encontrava paga a quantia em dívida ao ofendido.
X- Neste sentido, cita-se Marques Ferreira em anotação ao artigo efectuada por Simas Santos e Leal-Henriques (Código de Processo Penal Anotado, Vol. I, 2ª Ed., Pág. 848), considera que a apresentação tardia do documento, ainda que injustificada, não deverá impedir a sua junção, por ser esta a solução que melhor se adequa ao princípio da verdade material, sancionando-se, porém com multa a apresentação tardia e não justificada, por aplicação subsidiária do artº 523º do C.P.C. (ex vi artº 4°do C.P.P.).
XI- Tal qualmente menciona-se o artº 340o/n° 1 do Código de Processo Penal, que refere que o Tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
XII- Também neste sentido, e sempre por aplicação subsidiária do Direito Civil ao Direito Penal, cita-se o art° 265°-A do Código de Processo Civil que diz que quando a tramitação processual prevista na lei não se adequar às especificidades da causa, deve o juiz oficiosamente, ouvidas as partes, determinar a prática dos actos que melhor se ajustem ao fim do processo, bem como as necessárias adaptações.
XIII- Ou seja, o arguido efectuou o pagamento ao ofendido antes da 2ª data designada para a audiência de discussão e julgamento, verificando-se assim, existir causa extintiva do procedimento ou da responsabilidade criminal que pode pôr termo ao processo.

Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada:
XIV- Refere também o Tribunal a quo que no dia 09 de Abril de 2009, mas com data aposta de 09/04/05, o arguido preencheu e assinou o cheque nº 7000370178, à ordem de M&M..., Lda ....
XV- É o próprio Tribunal a quo que refere que o cheque tinha data aposta de 09/04/05, pergunta-se onde se verifica, onde se averigua estarem preenchidos os requisitos do referido título (cheque).
XVI- São requisitos do cheque, nos termos do artº 1º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque:
- A palavra «cheque» inserta no próprio texto do título e expressa na língua empregada para a relação desse título;
- O mandato puro e simples de pagar uma quantia determinada;
- O nome de quem deve pagar (sacado);
- A indicação do lugar em que o pagamento se deve efectuar;
- A indicação da data em que e do lugar onde o cheque é passado;
- A assinatura de quem passa o cheque (sacador).
XVII- Tal qualmente refere o artº 2° do mesmo diploma legal que: «O título a que faltar qualquer dos requisitos enumerados no artigo precedente não produz efeito como cheque ... »
XVIII- Refere também na douta sentença o Tribunal a quo, que o arguido agiu com o propósito de causar prejuízo patrimonial à ofendida, o que não corresponde à verdade, facto que se prova pelo simples acto de o arguido ter efectuado o pagamento ao ofendido, pelo que nunca se poderá falar em prejuízo.

Contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão:
XIX- Como já foi referido supra, o Tribunal a quo aponta como facto provado no ponto 1 da douta sentença que o cheque tinha data aposta de 09/04/2005.
XX- Se o cheque tem data aposta de 2005, e como igualmente referido como facto provado no ponto 3 da douta sentença, o mesmo foi apresentado a pagamento no dia 17 de Abril de 2009, e devolvido na compensação no dia 20 de Abril de 2009.
XXI- Pelo que, nunca poderia verificar-se aqui a condição objectiva de punibilidade, ou seja, não se pode considerar que o cheque tenha sido apresentado nos prazos previstos da Lei Uniforme Relativa ao Cheque.
XXII- Assim sendo, estamos perante uma contradição entre os fundamentos e a decisão porque existe verdadeira oposição entre o que é dado como provado pelo Tribunal a quo e o que é referido como fundamento da decisão tomada.

Nestes termos e nos melhores de Direito deve ser dado provimento ao presente recurso, e ser revogada a douta sentença do Tribunal a quo, e em consequência:
I- Ser o arguido absolvido da pena a que foi condenado por se verificar a extinção do procedimento ou da responsabilidade criminal que pode pôr termo ao processo por não se verificarem os requisitos constitutivos do crime de emissão de cheque, nomeadamente, o prejuízo patrimonial.
II- Ser o arguido absolvido da pena a que foi condenado por se verificar a extinção do procedimento ou da responsabilidade criminal que pode pôr termo ao processo por não se verificar uma das condições de punibilidade do crime de emissão de cheque, mais especificamente, a apresentação no prazo estabelecido na Lei Uniforme Relativa ao Cheque.
111- Requer-se igualmente a V.Exas. se dignem admitir a junção aos autos da presente Declaração sob documento nº 1, uma vez que o mesmo não pôde ter sido junto antes da 1 a data de audiência de discussão e julgamento dada a sua inexistência na altura, para assim se poder realizar de forma adequada e suficiente as formas de punição, atento ter-se verificado a reparação do dano ao ofendido na sua totalidade.
- E se assim não se entender, requer-se uma atenuação especial da pena, e ser sempre aplicada ao arguido uma pena de multa em substituição da pena aplicada pelo Tribunal a quo, realizando de forma adequada e suficiente as formas de punição, por se verificar que a conduta do arguido demonstrou verdadeiramente a reparação do dano causado ao ofendido, e ainda demonstrou verdadeiro arrependimento, estando no bom caminho para a sua ressocialização e poder ser útil à sociedade.
Julgando-se assim ser de grande alcance social merecendo a oportunidade de não lhe ser aplicada uma pena efectiva de prisão.
E, assim decidindo, praticarão V. Exas. a Habitual e Sã Justiça!

Notificado, o Ministério Público respondeu ao recurso interposto nos seguintes termos:
Entende-se que a sentença recorrida está devidamente fundamentada e não padece de qualquer dos vícios invocados pelo recorrente.
De todo o modo faremos breve apontamento sobre as questões suscitadas.
O recorrente invoca doutrina, o art. 340º nº 1 do CPP e o art. 265º -A do CPC, para justificar que o pagamento efectuado pelo arguido do valor titulado pelo cheque, ainda antes da segunda data designada para o julgamento, constituirá "causa extintiva do procedimento ou da responsabilidade criminal que pode por termo ao processo".
Sucede que a doutrina e disposições legais invocadas não tem aplicação na situação concreta, pois, que concluído o julgamento e proferida decisão final.
A declaração relativa ao pagamento efectuado pelo arguido a 21 de Maio de 2010, poderia ter sido junta aos autos e considerada na sentença mas, não foi. Não o foi em tempo útil, circunstância a que o tribunal é completamente alheio, dado que tal era obrigação do arguido.
De todo o modo, ainda que tal comprovativo do pagamento tivesse sido junto em tempo útil nunca constituiria causa extintiva do procedimento ou responsabilidade criminal, nem se vê onde se ancora o recorrente para invocar tal argumento. Com efeito, a responsabilidade criminal só se extinguiria pelo pagamento nos termos referidos nas disposições conjugadas dos arts. 11º n° 5 e 1º-A do DL. 454/91 de 28.12, o que não é o caso.
Não se concorda com o recorrente quando refere a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nem a contradição insanável de fundamentação.
Neste particular, importa referir que foi dado como provado que o cheque foi entregue a 9 de Abril de 2009 e foi apresentado no prazo previsto na Lei Uniforme Relativa ao Cheque, o que se pode comprovar documentalmente, no verso do próprio cheque.
A sentença recorrida é clara e contém todos os factos e fundamentação imposta por lei, não se verificando qualquer violação da mesma.
A sentença recorrida alicerçou-se, e bem, na prova produzida e constante dos autos.
Pelo exposto, entende-se que deve ser negado provimento ao recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida.

Admitido o recurso e remetidos os autos a esta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer:
O arguido foi julgado na sua ausência por se não ter reconhecido a imprescindibilidade da sua presença. Ficou reservada a segunda data fixada para a sua audiência em caso de adiamento, para a leitura da sentença. Como o arguido já havia sido notificado para a 1ª e para a segunda data, não se procedeu a nova notificação entre ambas.
Será que a tal notificação vem imposta na lei?
Pelo estatuído no nº 3 do artO 333º do CPP, pensamos que não, já que o seu defensor oficioso nada requereu nesse sentido.
O que aconteceu foi que o arguido revelou um absentismo de todo incompatível com o seu estatuto processual.
Por isso, e mesmo que já tivesse na sua mão o recibo de quitação que fez juntar com a segunda motivação de recurso, e que lhe retiraria a condenação que sofreu, só de si se pode queixar.
A condenação do arguido em pena efectiva de prisão de seis meses parece-nos que implicaria uma melhor indagação factual sobre a personalidade do arguido, meio de vida, etc. podendo considerar-se insuficiente a mera referência aos crimes por que fora já condenado no ponto nº 7 de flh. 118.
Não se estranhará, por isso, que se considere padecer a decisão da nulidade a que se refere o artº 374º nº 1 al. c) do CPP – já que se não pronunciou sobre questões que deveria apreciar. Esta consideração é feita tendo-se obviamente em consideração que se está perante a emissão de um cheque para compra de alimentos no montante de 388.70 euros – facto este que genericamente os infractores resolvem sem serem submetidos a julgamento. Mesmo os que já têm largo passado criminal como o arguido.

Resta-nos concluir no sentido da improcedência do recurso, coso se não considere verificada a nulidade a que aludimos na alínea b) supra.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, o arguido não exerceu o direito de resposta.

Corridos os vistos legais e realizada conferência, cumpre apreciar e decidir.


***
II. Fundamentos da Decisão Recorrida
Da sentença recorrida constam os seguintes fundamentos de facto e de direito:
Factos Provados
Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia 9 de Abril de 2009, mas com data aposta de 09/04/05, o arguido AF… preencheu e assinou o cheque n.º 7000370178, à ordem de M&M..., Lda., com o valor inscrito de €388,70 sacado sobre a conta bancária n.º 00010020000 do Banco Espírito Santo, titulada em nome de AFA…, Lda e movimentada pelo arguido;
2. Tal cheque destinava-se ao pagamento de cinco cabritos e costeletas de novilho que o arguido AF… adquiriu nas instalações da ofendida M&M..., Lda.;
3. Apresentado o cheque a pagamento, no dia 17 de Abril de 2009, foi o mesmo devolvido no dia 20 de Abril de 2009, com a indicação de “motivo falta de provisão”, conforme declaração aposta no seu verso;
4. Ao não receber o montante de €388,70 titulado pelo cheque, a ofendida sofreu um prejuízo patrimonial de igual valor;
5. O arguido agiu de forma livre e deliberada com o propósito concretizado de causar prejuízo patrimonial à ofendida e consciente de que não tinha saldo bastante na referida conta bancária para cumprir a obrigação assumida, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida criminalmente;
6. Tal facto causou uma quebra nos lucros da ofendida, que se repercutiu de forma notória no seu balanço mensal;
7. O arguido sofreu condenações anteriores, transitadas em julgado, pela prática de crimes de furtos, introdução em casa alheia, cheques sem provisão, receptação, coacção, ameaça, falsificação de documento, burla, ofensas à integridade física qualificada, conduções sem habilitação legal, roubo, burla informática e nas comunicações.
*

Factos Não Provados

Com relevo para a decisão da causa, não se provaram quaisquer factos em contradição com os vindos de descrever.


*

Motivação

A convicção do tribunal fundou-se no conjunto da prova produzida em sede de audiência de julgamento e analisada conjugada e criticamente à luz das regras da experiência.

Assim ponderou-se:
- o depoimento prestado pela testemunha CM..., legal representante da ofendida M&M..., Lda., que não tendo presenciado o negócio da aquisição da carne, confirmou, no essencial, que na posse do cheque em causa o apresentou a pagamento na respectiva instituição bancária, tendo o mesmo sido devolvido por falta de provisão. Acrescentou, com interesse, que a quantia pecuniária titulada no cheque não foi paga até hoje, o que representou um empobrecimento de montante equivalente na esfera patrimonial da ofendida.

- o depoimento prestado pela testemunha MA…, funcionária da ofendida e que atendeu o arguido no talho no dia 9 de Abril de 2009, o qual lhe solicitou a entrega de uma encomenda de carne, tendo entregue para pagamento do correspondente preço o cheque em referência. Esclareceu ainda que na altura, e a pedido do patrão, solicitou ao arguido que exibisse os seus documentos de identificação, ao que aquele acedeu, tendo de seguida preenchido e assinado tal título de crédito, pelo seu próprio punho, o que sucedeu à sua frente. Confrontada com o cheque constante de fls. 5, reconheceu-o de imediato, tendo-o identificado como sendo aquele que lhe foi entregue em mão pelo arguido;

- tais depoimentos foram ainda conjugados com o teor dos documentos juntos aos autos, concretamente o talão de venda a dinheiro de fls. 4, o cheque de fls. 5 e elementos bancários constantes de fls. 26 a 34.

Diga-se ainda que as testemunhas supra referidas depuseram de forma coincidente entre si, objectiva, segura, verosímil e consentânea com o que resulta do cheque e da venda a dinheiro constante dos autos, e que por isso mereceram credibilidade no sentido apurado.


*

Parte Penal
Segundo o disposto no art. 11.º, n.º 1, a), do DL n.º 454/91, de 28.12 (com as alterações introduzidas pelos DL nº 316/97, de 19/11, DL n.º 323/01 de 17/12 e pela Lei n.º 48/2005 de 29/08), comete o crime de emissão de cheque sem provisão aquele que, “causando prejuízo patrimonial ao tomador do cheque ou a terceiro, emitir e entregar a outrem cheque para pagamento de quantia superior a €150,00 que não seja integralmente pago por falta de provisão ou por irregularidade do saque, se o cheque for apresentado a pagamento nos termos e prazos estabelecidos pela Lei Uniforme Relativa ao Cheque, sendo punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa ou, se o cheque for de valor elevado, com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.

Este tipo legal de crime pressupõe, ao nível dos elementos objectivos, uma acção (a emissão do cheque) e uma omissão (a falta de provisão de fundos suficientes para o pagamento do cheque), que, no caso, se encontram preenchidos, como demonstram os factos provados.
Por outro lado, provou-se que o arguido bem sabia não possuir fundos na conta sacada que permitissem o pagamento do cheque e que com a sua conduta causaria prejuízo na esfera patrimonial da ofendida, como efectivamente causou, pelo que não só está preenchido o elemento prejuízo patrimonial como também o elemento subjectivo do tipo legal em causa, surgindo o dolo sob a modalidade de dolo eventual (art. 14.º, n.º 3, do Código Penal), pois que o arguido representou como possível a falta de fundos bancários necessários para o pagamento do cheque, sendo certo que não se importou com tal facto.
Está também verificada a condição objectiva de punibilidade uma vez que a falta de provisão do cheque foi verificada nos termos e prazos da Lei Uniforme (arts. 29.º a 31.º e 41.º), ou seja, foi apresentado o cheque a pagamento no prazo de 8 dias, começando o mesmo a contar-se a partir do dia indicado como sendo a data da sua emissão e a verificação no mesmo prazo de falta de provisão.

Em face disto, não restam dúvidas acerca da prática, pelo arguido, do crime por que foi acusado.

Inexistem circunstâncias susceptíveis de afastar a ilicitude ou a culpa.

*
Da escolha e da determinação da medida da pena
O tipo de ilícito em causa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa (cfr. art. 11.º, n.ºs 1 e 2, do DL n.º 454/91, de 28.12, na redacção introduzida pelo DL n.º 316/97, de 19.11) – de 10 até 360 dias (art. 47º, nº1 do Código Penal).
Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (art. 70.º do Código Penal).

A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art. 40.º, n.º 1, do Código Penal).

Os bens jurídicos que a norma incriminadora da emissão de cheque sem provisão visa proteger são o património do tomador do cheque (ou de terceiro) e o espírito de confiança que deve presidir à circulação do cheque enquanto meio de pagamento imediato. Foram estes bens juridico-penalmente protegidos que o arguido ofendeu com a sua conduta, prejudicando patrimonialmente a tomadora no montante correspondente ao valor do cheque e contribuindo para a erosão da função do cheque e para o seu descrédito como meio de pagamento imediato.

A dimensão assumida pela proliferação da emissão de cheques não pagos, põe em crise os bens jurídicos protegidos pela respectiva incriminação, e impõe a ponderação das exigências preventivas gerais postas por esta realidade e a necessidade de reintegração da eficácia da norma jurídico violada na consciência ético-jurídica da comunidade, através da aplicação de adequada sanção àqueles que são responsáveis pela sua violação.

Nos últimos anos, muito por via da publicação do Decreto-Lei nº 316/97, tem vindo a registar-se uma diminuição sensível da emissão de cheques sem provisão, que conduz à atenuação das exigências preventivas gerais.

No caso em apreço mostra-se considerável o grau em que se fazem sentir as exigências preventivas especiais, pois para além do dolo directo e intenso que presidiu à conduta do arguido, da motivação subjacente à mesma e o cuidadoso estratagema engendrado com vista a lograr a impunidade, não pode deixar de se ter em conta o grau de “profissionalismo” da conduta do arguido, revelando uma personalidade francamente adversa ao dever-ser jurídico-penal e a exigir uma punição que seja susceptível de o fazer interiorizar o mal cometido e tomar consciência da gravidade das consequências do seu comportamento ilícito, de forma a interiorizar o desvalor da sua conduta e para que decida “arrepiar caminho” e passar a pautar a sua vida de conformidade com as regras de vivência em sociedade, abstendo-se, no futuro, na prática de ilícitos criminais, mormente da natureza do em apreciação nestes autos.

Em face de tais exigências preventivas especiais, consubstanciadas na forte necessidade de reintegração social do arguido, que, em conjugação com as circunstâncias que rodearam a prática dos factos, com o meticuloso estratagema gizado com vista a obter a impunidade e o comportamento posterior do arguido (que não tentou sequer ressarcir a ofendida dos prejuízos provocados), revela uma personalidade francamente avessa ao direito, entende-se que a sua condenação numa pena de multa, não é susceptível, em concreto, de satisfazer as exigências preventivas em presença de forma adequada e suficiente, tanto mais que o arguido se encontra a ser julgado pela 4.ª vez por crime de emissão de cheque sem provisão, sendo que a primeira vez que praticou tal ilícito remonta ao ano de 1996.

Opta-se, pois, pela aplicação ao arguido de uma pena de prisão, importando determinar a sua medida concreta, dentro de limite legal de 1 mês a 3 anos (cfr. art.ºs 11º, nº. 1, alínea b) do citado diploma legal e 41º, nº. 1 do C. Penal, para o que serão consideradas todas as circunstâncias, anteriores, contemporâneas e posteriores aos factos que, não fazendo parte do tipo legal do crime, deponham a favor ou contra o arguido, sem olvidar o imperativo jurídico-penal de que a culpa é o fundamento e a sua medida o limite inultrapassável da medida da punição (cfr. art.ºs 71º e 40º do C. Penal).

Ponderadas as aludidas circunstâncias vindas de referir, julga-se adequada a aplicação ao arguido de uma pena de 6 meses de prisão.


*

Não se substitui por pena não privativa da liberdade, por se entender que a tal se opõem as aludidas exigências preventivas, nem se suspende na sua execução por não se poder concluir, em face das circunstâncias dos factos, da personalidade do arguido e da sua conduta anterior e posterior aos mesmos, ser possível a realização, em concreto, da protecção dos bens jurídicos e da reintegração social do arguido, de forma adequada e suficiente, desmotivando-o da prática de futuros crimes, mormente da natureza daqueles em apreço nestes autos, com a mera censura do facto e ameaça da prisão.
Na verdade, o arguido manifesta sucessivamente um total desrespeito e indiferença pelas decisões dos Tribunais, não se inibindo de praticar o crime ora em apreço em pleno período de liberdade condicional, revelador de uma personalidade que nos permite fazer um juízo de prognose póstuma quase confirmando que uma pena de prisão suspensa na sua execução não assegura, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.

Aliás, já foram dadas diversas oportunidades ao arguido, talvez até em número excessivo, para que adaptasse o seu comportamento aos padrões da sociedade em que vive, buscando-se uma intensa preocupação com a sua reinserção social. E se até ao momento o arguido ainda insiste em desperdiçar – sem qualquer motivo que o justifique –, estas oportunidades concedidas pelos Tribunais para que emendasse o seu comportamento, tal é revelador que o efeito eventualmente dissuasor que se pretenderia por via de uma suspensão da pena de prisão não opera no arguido, mas antes contribui para o seu sentimento de impunidade bem vincado ao longo de sucessivas condenações.

Do Pedido de indemnização civil

CM... em representação de M&M..., Lda. deduziu contra o arguido pedido de indemnização civil, no qual pede a condenação deste no pagamento da quantia €388,70, acrescido de juros contabilizados à taxa legal a partir da data de notificação até efectivo e integral pagamento.

Estabelece o art.º 129º do Código Penal que a indemnização por perdas emergentes de crime é regulada pela lei civil.

Resulta da matéria provada que o cheque em causa foi entregue como meio de pagamento do preço estipulado para um contrato de compra e venda celebrado entre a autora do pedido e o arguido – relativa à venda, com entrega imediata de artigos de carne, sendo o cheque sacado à ordem da sociedade vendedora, autora do pedido cível, a quem foi entregue como meio de pagamento do preço estabelecido.

Por outro lado, resulta ainda da matéria provada que a demandante, da sua parte, cumpriu efectivamente o negócio subjacente à emissão do cheque e que o pagamento do mesmo foi recusado pelo banco em virtude da conta sacada não ter provisão.

Resulta, também, da matéria provada que a demandante sofreu prejuízos correspondentes ao valor do cheque, por se encontrar desembolsada do mesmo, tendo aberto mão da mercadoria paga com o dito cheque. Prejuízo esse causado pela falta de provisão dos cheques emitidos pelo arguido.

Estão assim verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil: acto ilícito, dano e nexo causal entre o primeiro e o segundo.

Para efeito de responsabilidade civil é suficiente a mera culpa negligente (consciente ou inconsciente), não sendo necessário o dolo, como sucede, no caso, em relação à responsabilidade penal. E para efeitos meramente civis a culpa é apreciada pelo critério do “bom pai de família”, nos termos previstos no art.º 487º, n.º 2 do Código Civil. Sendo de afastar liminarmente que o bónus pater famílias pudesse entregar um cheque como meio de pagamento de bens que recebeu e não tivesse a noção do montante que aprovisionava a conta sacada.

Não se verifica, tão pouco, no caso, qualquer das causas de exclusão de ilicitude ou da culpa relevantes para efeitos civis – previstas nos art.º 334º a 340º do Código Civil.

Aliás, civilmente, o cheque é pagável à vista, nos termos do art.º 28º da Lei Uniforme Sobre os Cheques e por isso, mostram-se verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil previstos no art.º 483º, 562º e 563º do Código Civil: acto ilícito culposo, dano e nexo causal.

Provados os pressupostos da indemnização pedida, importa defini-la.

A demandante tem direito ao montante do cheque, acrescido de juros vencidos desde a data de notificação (o peticionado) até efectivo e integral pagamento.


***
III. Apreciação do Recurso
A documentação em acta das declarações e depoimentos prestados oralmente na audiência de julgamento determina que este Tribunal, em princípio, conheça de facto e de direito (artigos 363° e 428° nº 1 do Código de Processo Penal).
Não obstante, o concreto objecto do recurso é sempre delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal) sem embargo das questões do conhecimento oficioso.
E vistas as conclusões do recurso interposto, as questões que reclamam solução são as seguintes:
1. Se deve ser considerado nos autos o documento junto com o recurso (declaração de pagamento) e se com base em tal documento deve ser declarado extinto o procedimento criminal.
2. Se a sentença recorrida padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
3. Se a sentença recorrida padece do vício de contradição insanável de fundamentação;
4. Se se verifica a condição objectiva de punibilidade de apresentação do cheque a pagamento no prazo previsto na Lei Uniforme Relativa ao Cheque (LURC);

Apreciando:

1. Do documento junto e sua relevância
Pretende o recorrente que seja admitido nos autos documento comprovativo do pagamento do valor do cheque e que com base em tal documento se declare extinto o procedimento criminal.
No que concerne à junção do documento invoca o disposto no artigo 340º do Código de Processo Penal e o artigo 265º-A do Código de Processo Civil.
No que concerne ao disposto nestes último preceito, como resulta do artigo 4º do Código de Processo Penal, apenas seria aplicável se o Código de Processo Penal fosse omisso. Ora, como veremos tal não corre.
O artigo 340º do Código de Processo Penal que permite ao tribunal ordenar oficiosamente ou a requerimento a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, não é por acaso que se encontra inserido no capítulo "da produção de prova" e no título "da audiência". E esse título apenas regula a audiência em primeira instância.
Ou seja, o tribunal apenas tem o poder-dever que lhe é conferido pelo artigo 340º no decurso da audiência de julgamento e enquanto esta não se encerrar. E no que concerne a documentos, em consonância com o exposto o artigo 165º do Código de Processo Penal estipula que os documentos apenas possam ser juntos até ao encerramento da audiência. A audiência encerra-se no momento previsto no artigo 361º, nº 2 do Código de Processo Penal.
O documento em causa não só foi junto posteriormente ao encerramento da audiência, como também a sua data é posterior. Nunca o Tribunal a quo o poderia ter em consideração na sua decisão, como também está vedado a este Tribunal conhecer de questões de que não podia conhecer a decisão recorrida. É o que preceitua o artigo 410º, nº 1 do Código de Processo Penal.

Não obstante o exposto sempre se dirá que o recorrente labora em manifesto erro sobre as consequências do pagamento do valor do cheque.
Com efeito, para que o pagamento constitua causa de extinção do procedimento criminal necessário é que seja efectuado nos termos do artigo 1º-A do Decreto-Lei nº 454/91 de 28.12, no prazo de 30 dias após notificação da instituição de crédito para o efeito, como se preceitua no artigo 11º, nº 5 do mesmo diploma legal.
Já o pagamento efectuado depois de decorrido tal prazo não constitui em nenhum caso causa de extinção do procedimento criminal. Tão só pode dar lugar a atenuação especial da pena.
Mas que para que essa possibilidade exista necessário é que o pagamento seja efectuado até ao início da audiência em primeira instância como se preceitua no nº 6 do mesmo artigo 11º.
O que significa que no caso nunca o arguido poderia beneficiar de tal regime porque o pagamento a que o documento se reporta foi efectuado depois do início da audiência em 1ª instância.
A única possibilidade de tal documento ser admitido e relevado ainda no âmbito da previsão do artigo 11º, nº 6 citado, ocorreria apenas no caso de, por força do recurso ora interposto, serem os autos reenviados (reenvio total) à primeira instância para novo julgamento, posto que tal determinaria a invalidade total do julgamento realizado. Já o reenvio parcial apenas determina, em rigor, a reabertura da audiência para prova de factos indicados na decisão de reenvio, não invalidando a audiência de julgamento anteriormente realizada e a prova dela decorrente. Nesse caso o documento apenas poderia ser admitido e relevado para a escolha e doseamento da pena nos termos gerais previstos no Código Penal (artigos 70º a 72º).

2. Do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
Alega o recorrente que a decisão recorrida padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada porque o Tribunal a quo deu como provado que o cheque foi preenchido e assinado em 9 de Abril de 2009, mas com data aposta de 9.4.2005 não estando preenchidos os requisitos do artigo 1º da LURC relativamente à indicação da data, não produzindo efeito como cheque nos termos do artigo 2º do mesmo diploma.
Mais alega que se refere na sentença recorrida que o arguido agiu com o propósito de causar prejuízo patrimonial o que não corresponde à verdade, o que se prova pelo simples acto de o arguido ter efectuado o pagamento.

A insuficiência a que se reporta o artigo 410º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Penal é um vício que ocorre quando a matéria de facto é insuficiente para a decisão de direito, o que se verifica porque o tribunal deixou de apurar a matéria de facto que lhe cabia apurar dentro do objecto do processo, tal como este está circunscrito pela acusação e pela defesa, sem prejuízo do mais que a prova produzida em audiência justifique. Tal vício consiste na formulação incorrecta de um juízo: a conclusão extravasa as premissas; a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada (cfr. Simas Santos/Leal-Henriques, Código de Processo Penal, Volume II, em anotação ao artigo 410º).
No aspecto citado manifesto é que o Tribunal a quo apurou os factos necessários à decisão de direito proferida e o que o recorrente configura não é o vício de insuficiência, mas um erro de direito porque, na sua perspectiva e segundo a factualidade provada, o cheque dos autos não seria um título de crédito/cheque válido.
Mas também nessa perspectiva o cheque apenas não produziria efeito como cheque se lhe faltasse a data. Ora, segundo os factos provados, o cheque contém data, o que lhe falta é a correspondência entre a data que nele consta e a data em que efectivamente foi emitido. Mas tal desconformidade não lhe retira efeitos com o cheque. Só a falta de data lhe retiraria esse efeito, como claramente resulta do artigo 2º da LURC que expressamente consigna que o título a que faltar qualquer dos requisitos enumerados no artigo precedente (entre eles a data) não produz efeito como cheque.
Se o Tribunal a quo deu como provada a existência de prejuízo e que o arguido agiu com intenção de o causar, não concordando o recorrente com essa formulação dos factos provados, tal não é susceptível de configurar o alegado vício porque não tem qualquer coincidência com a respectiva noção acima exposta, antes devia ter determinado outra via de recurso prevista no artigo 412º, nº 3 do Código de Processo Penal (impugnação da matéria de facto – fundamento de recurso idóneo a corrigir erros de julgamento da matéria de facto, como aquele que é invocado) de que não lançou mão.

Ainda a propósito do vício de insuficiência, verifica-se que na sentença recorrida o Tribunal condenou o arguido em pena de prisão e na opção entre pena privativa e não privativa da liberdade ponderou apenas os antecedentes criminais do arguido, ainda assim fazendo apenas constar da matéria de facto provada os crimes por que o arguido foi condenado e o trânsito em julgado das respectivas decisões.
A ponderação do disposto no artigo 70º do Código Penal ( e também do artigo 71º) exige um conhecimento muito mais vasto sobre a situação pessoal do arguido.
Mesmo no domínio dos antecedentes criminais a devida ponderação do grau das exigências de prevenção a realizar através da pena não se basta com o elencar dos tipos de crimes e do trânsito em julgado das condenações, sendo também manifestamente relevante a ponderação das datas em que foi cada um deles cometido, das datas em cada uma das decisões transitou em julgado, das penas que foram aplicadas e se foram ou não cumpridas e quando.
Mas também relevante, especialmente quando se trata de aplicar uma pena de prisão, é igualmente a situação pessoal do arguido no âmbito familiar, laboral e outros que indiquem o seu grau de inserção social.
Não obstante o julgamento se ter realizado na ausência do arguido, a averiguação das suas condições pessoais podia e devia ser averiguada, já que as hipóteses de averiguação nesse domínio vão manifestamente para além das declarações do arguido.
Ora, na sentença recorrida não se encontra mencionada qualquer impossibilidade de investigar tais factos, acrescendo que relativamente aos antecedentes criminais os dados omitidos constavam do certificado de registo criminal junto aos autos e que o Tribunal não tomou em consideração integralmente como devia.
Tal como resulta do antes consignado, verifica-se quanto à matéria relativa à escolha e doseamento da pena o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, o que teria como consequência, nos termos do artigo 426º, nº 1 do Código de Processo Penal, o reenvio do processo para novo julgamento restrito à averiguação dos factos em questão.
Mas o reenvio apenas se justificará se não constituir uma inutilidade, ou seja, se a matéria de facto que com o reenvio fica intocada e não pode ser reapreciada no novo julgamento que, em caso de reenvio parcial, constitui uma reabertura da audiência e não em sentido próprio um novo julgamento, for susceptível de integrar o crime por que o arguido foi condenado em primeira instância.

3. Do invocado vício de contradição insanável da fundamentação
O recorrente alega que a sentença recorrida padece do vício de contradição insanável de fundamentação porque se o cheque tem data aposta de 2005 e foi apresentado a pagamento em 17 de Abril de 2009 e devolvido na compensação em 20 de Abril de 2009, não se verifica a condição objectiva de punibilidade de apresentação nos prazos previstos na LURC, estando a contradição no que é dado como provado e no que é referido como fundamento da decisão tomada.
No que concerne a este vício de contradição insanável de fundamentação, segundo Simas Santos/Leal-Henriques em Código de Processo Penal, II Volume 2ª edição, em anotação ao artigo 410º do Código de Processo Penal, consiste no facto de se afirmar e de negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade e ou qualidade, sendo insanável a contradição que não possa ser ultrapassada com recurso à decisão no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras da experiência, que não possa ser esclarecida de forma suficiente, dada a colisão entre os fundamentos invocados.
Consignada a noção do que seja o vício invocado, logo se verifica que o alegado não o pode configurar mas, eventualmente, um erro de subsunção jurídica dos factos ou erro de direito, posto que o Tribunal a quo considerou que a dita condição de punibilidade se encontrava preenchida e segundo o recorrente tal não ocorre.

4. Da condição objectiva de punibilidade de apresentação a pagamento do cheque no prazo da LURC
Como já se mencionou no ponto anterior o recorrente alega que tendo o cheque data aposta de 2005 e tendo sido apresentado a pagamento em 17 de Abril de 2009 e devolvido na compensação em 20 de Abril de 2009, não se verifica a condição objectiva de punibilidade de apresentação nos prazos previstos na LURC
O corpo do artigo 11º, nº 1 do Decreto-Lei nº 454/91 de 28.12 estipula no seu nº 1 que a emissão de cheque sem provisão apenas é punível se o título for apresentado a pagamento nos termos e prazos estabelecidos na LURC, consagrando assim uma condição objectiva de punibilidade do cheque sem provisão.
O artigo 29º da LURC que versa sobre o prazo para pagamento do cheque estipula o seguinte, assinalando-se a negrito o conteúdo que para o caso interessa:
O cheque pagável no país onde foi passado deve ser apresentado a pagamento no prazo de oito dias.
O cheque passado num país diferente daquele em que é pagável deve ser apresentado respectivamente num prazo de vinte dias ou de setenta dias, conforme o lugar de emissão e o lugar do pagamento se encontram situados na mesma ou em diferentes partes do mundo.
Para este efeito os cheques passados num país europeu e pagáveis num país à beira do Mediterrâneo, ou vice-versa, são considerados como passados e pagáveis na mesma parte do mundo.
Os prazos acima indicados começam a contar-se do dia indicado no cheque como data da emissão.
Não oferece qualquer dúvida que o cheque deve ser apresentado a pagamento no prazo de oito dias e que a data relevante para o efeito não é aquela em que o cheque foi emitido e entregue mas a que consta do próprio título.
E o texto da lei é tão claro que não admite outra interpretação, sendo certo que nunca pode ser acolhida a que não tenha no texto uma mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expressa, nos termos do artigo 9º do Código Civil.
O que significa que o cheque dos autos com data aposta de 2005 nunca poderia ser apresentado a pagamento no prazo da LURC e a sua falta de provisão nunca poderia configurar a prática do crime de emissão de cheque sem provisão por lhe faltar a mencionada condição objectiva de punibilidade.
Eventualmente poderia a conduta do arguido integrar a prática de um crime de burla se, intencionalmente, tivesse entregue o cheque nas ditas condições com o objectivo de enganar o credor, matéria de facto que não constava da acusação e que, a ser aditada, sempre constituiria uma alteração substancial dos factos (artigo 359º do Código de Processo Penal) que, não tendo sido comunicada, preclude definitivamente a possibilidade de perseguição criminal.
Assim a factualidade provada não integra a prática pelo arguido do crime por que foi condenado na decisão recorrida importando revogá-la e absolver o arguido.
E porque nos termos do artigo 403º, nº 3 do Código de Processo Penal «a limitação do recurso a uma parte da decisão não prejudica o dever de retirar da procedência daquele as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão do recurso» e não se verificam os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito que fundaram a condenação civil, sendo essa a única causa de pedir admissível em pedido cível formulado em processo penal, importa igualmente absolver o arguido desse pedido.
***
IV. Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido e, em consequência, revogar a sentença recorrida condenatória, decidindo absolvê-lo do crime de emissão de cheque sem provisão de que se encontrava acusado, bem como do pedido cível formulado, cujas custas ficam a cargo da sociedade demandante.
***

Maria Pilar Pereira de Oliveira (Relatora)

José Eduardo Fernandes Martins