Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3449/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA - GRAVAÇÃO DE PROVA
ÂMBITO E FINALIDADE DO RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO.
Data do Acordão: 02/23/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ÍLHAVO - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 123º, N.ºS 1 E 2, 374º, N.º 1 E 412º, N.º 3, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I - A lei adjectiva penal estabelece as nulidades da sentença, pelo que é a partir da respectiva norma (artigo 379º, n.º1) que se há-de aferir da ocorrência ou não de nulidade da decisão, sendo certo que a não concordância do recorrente com os fundamentos da sentença relativos à medida da pena não constitui nulidade.
II A falta de transcrição da gravação magnetofónica de um dos depoimentos oralmente prestados na audiência em consequência de deficiência técnica, constitui mera irregularidade que, só por si, não afecta o valor ou a validade do acto de julgamento, e que só justificará a reparação da irregularidade com repetição do depoimento, caso este tenha servido para a formação da convicção do tribunal e haja sido invocado, em recurso, como prova que impõe decisão diversa da recorrida.

III A impugnação da matéria de facto tendo em vista o seu reexame não dá lugar à realização de novo julgamento pelo tribunal de recurso, apenas se destinando à reapreciação da prova relativamente a pontos concretos e determinados da decisão de facto.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM, EM AUDIÊNCIA, NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA


1. Em processo comum com intervenção do tribunal singular foram os arguidos A... E B... condenados:
- como autores de um crime de fraude fiscal, à data previsto e punido pelos artigos 6º, 7º, 7º-A, 9º, 12º, 23º, n.º 1, n.º 2, alíneas a) e c), n.º3 alíneas a) e f) e n.º 4, 1ª parte do DL 20-A/90 de 15 de Janeiro (RJIFNA), alterado pelo DL 394/93, de 24 de Novembro, com referência ao art.º 19º, n.º 3 do CIVA, cada um, na pena de 280 dias de multa à razão diária de 100,00 € perfazendo o montante global de € 28.000,00 (vinte e oito mil euros) – decisão esta já com a correcção exarada a fls. 1.068/1.069.
A mesma decisão julgou a acusação improcedente em relação a outros arguidos que também vinham acusados, tendo ainda absolvido os dois identificados arguidos de outros crimes pelos quais vinham acusados.


2. Da referida decisão recorrem os arguidos A... e B..., na parte em que os condenou, formulando as seguintes CONCLUSÕES (transcrição integral):
A) Os Recorrentes não se conformam com a proficiente Sentença que os condenou, porquanto:
B) Dimana da "Fundamentação" e dos factos proficientemente dados como provados que, e passamos a transcrever os factos que, com o devido respeito, os Recorrentes questionam:
"5) - Embora a Arguida A... figurasse formalmente como a única gerente, na verdade, também o Arguido B... participava, de forma muito estreita, na gestão do dia-a-dia da Congelaria";
"6) - Desde o início da actividade da Congelaria que a organização administrativa e a contabilidade da empresa estiveram a cargo da Escritaveiro, Contabilidade e Serviços, L a, com sede em Aveiro, através de Anselmo Batista Gomes, com base nos documentos, designadamente, facturas e recibos, que lhe eram apresentados regularmente por um dos responsáveis da empresa - o Arguido B...";
"8) - Tendo em vista obterem do Estado Português, designadamente da Administração Fiscal, quantias monetárias a que não tinham direito, os Arguidos A... e B..., no seu próprio interesse e usando para o efeito a Congelaria, L.da, integraram na contabilidade desta vários documentos, que designaram de facturas e recibos, emitidos à ordem da Congelaria, sem qualquer legitimidade ou poderes para o efeito";
"9) - As ditas facturas e respectivos carimbos eram forjados relativamente aos originais das empresas que figuravam como suas emitentes: Mundobra, Silgom e Duropa ou montagens feitas a partir de originais";
"10) - Os Arguidos A... e B... tinham conhecimento de que tais documentos não eram verdadeiros, o que veio a verificar-se da seguinte forma:
C) Quanto à proficiente “Fundamentação da matéria de facto provada” o Tribunal valorou os factos de harmonia com os seguintes elementos:
D) "Quanto à matéria dos pontos 5), 6) e 7) baseou-se o Tribunal nos depoimentos dos Arguidos B... e C..., tendo ambos admitido que chegaram a entregar na Escritaveiro, L.da, com sede em Aveiro, os documentos referentes à contabilidade da Congelaria, L.da, tendo o primeiro dos referidos Arguidos admitido que, pelo menos após a morte do Sr. Augusto Rocha, ajudou a viúva deste, a Arguida A..., embora, segundo o mesmo, só lhe dando alguns conselhos sobre como conduzir a firma;
E) Por outro lado, também a testemunha Anselmo Batista Gomes, sócio da Escritaveiro, L.da, após confronto com as declarações por ela prestadas no inquérito perante a Polícia Judiciária, cuja leitura foi permitida ao abrigo do disposto no art. 356°, n° 2, do C.P.P., acabou por admitir que aqueles dois Arguidos chegaram a levar-lhe documentos da contabilidade de Congelaria, L.da, sendo aqueles as pessoas que reputava como os responsáveis daquela empresa;
F) Valorou igualmente o Tribunal o depoimento das Testemunhas Manuel Augusto Andrade e Armindo Dias Lourenço, os quais referiram que, quando levaram a cabo a investigação dos factos tratados nos presentes autos, no âmbito tributário, foi o Arguido B... quem os acompanhou nas diligências que efectuaram, parecendo perfeitamente à vontade nos assuntos que diziam respeito à Congelaria, L.da, demonstrando estar a par do seu funcionamento;
G) Para apreciação destes factos, teve ainda o Tribunal em atenção os documentos de fls. 346 a 373 e 405 a 418, dos quais resulta que o Arguido B..., tendo procuração suficiente para tanto, transferiu para a conta da Congelaria, L.da - 2953.18 - na C.C.A.M. de Ílhavo, da conta 2689.34 da mesma entidade, avultadas quantias em dinheiro;
H) "No que concerne à matéria constante dos pontos 8), 9) e 10) ..., a mesma resultou como provada da análise conjunta dos documentos de fls. 100 a 108, 132 a 144,149,151 a 178, 201 a 235,346 a 373,405 a 418,514 a 520 e 568 a 601, bem como do depoimento das testemunhas Carlos Jorge Amado Morais Cabral, Rui Manuel Campos Ferreira, Manuel Augusto Andrade, Armindo Dias Lourenço, Manuel Godinho, José Jaime de Castro Guimarães e João Carlos Correia Alves e, ainda, dos documentos juntos no anexo 2, analisados em simultâneo com a perícia realizada pela já referida testemunha Rui Manuel Campos Fernandes, na qualidade de especialista Superior do Departamento de Perícia Financeira e Contabilístca da Polícia Judiciária;"
I) "Da análise dos elementos contabilísticos e fiscais, bem como do depoimento daquelas testemunhas, foi possível apurar que, por um lado, as facturas e respectivos recibos, emitidos em nome da Silgom, Mundobra e Duropa, nunca foram integrados na contabilidade daquelas empresas, não tendo, por isso, sido recebido pelo Estado Português o imposto correspondente e, por outro, os cheques emitidos pela Congelaria, L.da para pagamento dos serviços constantes das facturas e recibos em causa, compilados no anexo 2, nunca chegaram a ser entregues àquelas empresas pois, através da rotação de movimentos das contas bancárias - 2954.15, titulada pela Arguida A..., 2689.34, movimentada através de procuração que detinha para o efeito, pelo Arguido B.... e 2953.18, titulada pela Congelaria, L.da, e movimentada pela Arguida A..., na qualidade de sua única gerente - as quantias destinadas àqueles pagamentos ficaram na posse destes dois Arguidos, que não podiam ignorar a forma como o dinheiro surgiu nas suas contas bancárias";
J) “Se os referidos Arguidos movimentavam as contas nos valores exactos e de forma a dar a aparência de transacções verdadeiras tinham necessariamente de saber por que o faziam; Não podiam ignorar todos os factos subjacentes àquele movimento rotativo das contas, sendo que este dava a ideia de que, aparentemente, os pagamentos haviam sido efectuados quando, na verdade, não haviam ocorrido, como já se referiu supra, uma vez que as facturas não correspondiam a qualquer tipo de transacção e os recibos não correspondiam a qualquer pagamento";
K) "Quanto às facturas e recibos da Silgom, as testemunhas Manuel Godinho, tipógrafo que procedeu solicitados por aquela entidade, confrontado com os documentos em causa acaba por esclarecer que a factura 2458 e o respectivo recibo 2424 foram impressos por si, talvez em 1992, quando trabalhava naquela actividade, enquanto a factura 2659 e o respectivo recibo 2424 não são trabalhos originais seus, parecendo ser simples fotocópias feitas a partir dos originais";
L) "O Tribunal valorou ainda o depoimento da testemunha António Fernando Jesus Anastácio, indicado pelos Arguidos..., que esclareceu que trabalhou na marinha onde a Congelaria, L.da, viria a ter as suas instalações, com uma empresa de Lisboa, que admitiu ser a Silgom, sendo certo, porém, que tal ocorreu nos anos de 1986, 1987, 1988, altura em que aquelas instalações ainda pertenciam à empresa Riacalma, L. da, de que era sócio - gerente, à data, o Arguido B....";
M) Segue-se a restante valoração da proficiente fundamentação da matéria provada que, atenta a sua extensão e por simplificação, aqui se dá por integralmente reproduzida, com referência às Testemunhas ouvidas em sede de Audiência de Julgamento e documentos juntos aos autos;
N) Nomeadamente, no que concerne à facturação em nome da Duropa e Mundobra;
O) Concluindo-se que, "analisados os elementos dos autos, se conclui que estão provados os factos constantes dos pontos 5) a 17), ensinam as regras da experiência que, pessoas que, no seu dia-a-dia, contactam com a realidade com que os Arguidos estavam familiarizados administração de empresas- conhecem ou, pelo menos têm a obrigação de conhecer a ilicitude da conduta que praticaram, bem como as consequências penais legalmente previstas”;
P) São simples as questões que, com o devido respeito por proficiente entendimento em contrário, vimos trazer à superior consideração de V. Ex.as;
Q) Desde logo e preliminarmente, ouvida que foi a primeira cassete da documentação da prova ao alcance dos Recorrentes e a menos que resulte o contrário do respectivo duplicado da gravação, as declarações dos Arguidos A... e B... não estão registadas e documentadas;
R) E quanto às declarações do Arguido C..., somente foram registados cerca de 17 minutos de tais declarações;
S) O que a verificar-se e atenta a legal gravação da prova, importará nulidade do Julgamento;
T) Também, calcorreada e escalpelizada toda a documentação da prova constante de cinco cassetes, nomeadamente no que concerne à proficiente fundamentação da matéria provada, não pode resultar da mesma a responsabilização, a qualquer título, do Arguido B..., pelas ocorrências em apreço;
U) Unicamente podendo dar-se como adquirido que este Arguido era procurador de José Pimenta da Fonseca e Maria Margarida Oliveira Rocha Fonseca e, como tal, movimentava as contas dos mandantes;
V) Não podendo entender-se que o fizesse no seu próprio interesse;
X) Sem prejuízo de que a pena em que qualquer dos Arguidos A... e B... foram proficientemente condenados - 280 dias de multa global, á razão diária de 100,00 €, perfazendo o montante, para cada um, de 28.000,00 €, é desmesurada e incomportável;
Y) Demais, atentas as condições sócio - económicas dos Arguidos e demais atendíveis, proficientemente dadas como provadas;
Z) Sempre com o devido respeito por proficiente entendimento em contrário, a condenação ofende o princípio da proporcionalidade;
AA) Assim, a proficiente Sentença de que se recorre é contraditória e obscura e os respectivos fundamentos de facto e de direito não justificam e estão em oposição com a Decisão;
AB) O que constitui nulidade da proficiente Sentença, nos termos das als. b) e c), do n° 1, do art. 668° do C.P.C.;
Termos em que e nos mais de direito, cujo proficiente suprimento se invoca, Deve ser concedido provimento ao presente Recurso e, consequentemente, ser revogada ou anulada a proficiente Sentença de que se recorre.


3. Respondeu o digno magistrado do MºPº dizendo, em síntese:
Da leitura da motivação retira-se que a discordância dos recorrentes se resume a que os factos dados como provados sob os n.ºs 5, 6, 8, 9 e 10, ou 5 a 17, não o deveriam ter sido porque as declarações dos arguidos não se encontram gravadas e a pena de multa é desproporcional e desajustada às condições económicas dos recorrentes.
A alegada falta de gravação facilmente se pode constatar não ter acontecido, pela audição das cassetes que são perfeitamente audíveis e sem deficiências.
Por outro lado, ainda que na primeira cassete a arguida não seja ouvida, tal acontece porque não esteve presente na primeira sessão da audiência, durante a qual foi gravada mais do que uma cassete.
A sentença encontra-se devidamente fundamentada e não violou quaisquer normativos, muito menos os indicados, mostrando-se a pena aplicada justa e adequada às exigências de reprovação e prevenção geral e especial.
Neste Tribunal o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer inteiramente concordante com a resposta, chamando à atenção para que, no caso, a pena de multa, como refere a decisão recorrida, obedece ao disposto no art. 23º, n.º4 do RJFNA que estabelece que o valor da multa não pode ser inferior ao valor da vantagem patrimonial obtida nem superior ao dobro, não podendo ultrapassar o máximo abstractamente estabelecido.
Correram os vistos legais, tendo-se procedido a julgamento, em audiência.
Cumprindo agora decidir.

***

4. As conclusões do recurso formulam as pretensões concretas dos recorrentes, em função da respectiva fundamentação, de que hão-de decorrer e que rematam. Fixando por isso o objecto do recurso.
São as questões sumariadas pelo recorrente nas conclusões que o tribunal de recurso tem que apreciar, sendo o âmbito do recurso definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação – Cfr. Germano Marques as Silva, Curso de processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), bem como Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., p. 74 e decisões ali referenciadas.
Conclusões que têm por finalidade definir, com precisão, a pretensão do recorrente, assim habilitando o tribunal de recurso a poder decidi-las com exactidão. Sendo certo que a finalidade do recurso não é a realização de um novo julgamento, mas tão-só e apenas, a reapreciação de determinadas questões previamente apreciadas pela decisão recorrida ou de que essa decisão pudesse ou devesse ter conhecido, conforme preceitua o art. 410º, n.º1 do CPP.
Isto sem prejuízo do dever de conhecimento oficioso de certos vícios ou nulidades, designadamente os vícios indicados no art. 410º, n.º2 do CPP, de acordo como o Ac. STJ para fixação de jurisprudência 19.10.1995 publicado no DR, I-A Série de 28.12.95.
No caso em apreço, numa análise preliminar verifica-se que, retirando a parte em que transcrevem a fundamentação da própria sentença recorrida, as alegações de recurso, para uma página de fundamentação apresentam seis páginas de conclusões. E, dentro das conclusões propriamente ditas, como tal qualificadas, as alíneas A) à alínea O) são pura transcrição da fundamentação da decisão recorrida.
Começando a “enunciação” das questões suscitadas apenas na alínea P): “São assim as questões que... vimos trazer à consideração”.
Ficando como conclusões propriamente ditas, contendo questões trazidas à apreciação do tribunal, as alíneas Q) a AB).

Sintetizando tais conclusões temos as seguintes questões, para decidir:
- nulidade da sentença - por contraditória e obscura e os respectivos fundamentos de facto e de direito não justificam e estão em oposição com a Decisão, nos termos das als. b) e c), do n° 1, do art. 668° do C.P.C.;
- nulidade do julgamento - por falta de registo das declarações dos recorrentes A... e B... e registo incompleto das declarações de C..., este também acusado no processo mas que foi absolvido;
- Impugnação da decisão da matéria de facto – porque “calcorreada e escalpelizada toda a documentação da prova constante de cinco cassetes, nomeadamente no que concerne à proficiente fundamentação da matéria provada, não pode resultar da mesma a responsabilização, a qualquer título, do Arguido B...…Unicamente podendo dar-se como adquirido que este Arguido era procurador de José Pimenta da Fonseca e Maria Margarida Oliveira Rocha Fonseca e, como tal, movimentava as contas dos mandantes … Não podendo entender-se que o fizesse no seu próprio interesse”;
- Impugnação da medida da pena - por ofender o princípio da proporcionalidade.

Para cuja apreciação importa ter presente a decisão da matéria de facto objecto do recurso.

***


5 . A decisão da matéria de facto é a seguinte:

A) Matéria provada:

1) - A empresa Congelaria, Produção e Comércio de Peixe, Limitada constituiu-se no dia 18.06.96, tendo sede social no lugar de Carvalheira, freguesia e concelho de Ílhavo, tendo como objecto a produção e comercialização de peixe e mariscos, frescos e congelados, e como sócios C..., com uma quota de 1.197,11 € (240 000$00), e A..., com uma quota de 798,08 € (160 000$00), sendo esta a sua única gerente, situação que se manteve no ano de 1997 e até ao presente.
2) - A Congelaria está colectada, desde o início da sua actividade e, pelo menos, até 23 de Outubro de 2000, na Repartição de Finanças do Concelho de Ílhavo (código 0108), sujeita, nos anos de 1996 e de 1997, ao regime normal do Imposto Sobre o Valor Acrescentado (IVA), com periodicidade trimestral.
3) - O arguido B... é casado com uma filha da arguida A....
4) - O arguido C... é filho do B... e neto da arguida A....
5) - Embora a arguida A... figurasse formalmente como a única gerente, na verdade, também o arguido B... participava, de forma muito estreita, na gestão do dia-a-dia da Congelaria.
6) - Desde o início da actividade da Congelaria que a organização administrativa e a contabilidade da empresa estiveram a cargo de Escritaveiro, Contabilidade e Serviços, Lda, com sede em Aveiro, através de Anselmo Batista Comes, com base nos documentos, designadamente facturas e recibos, que lhe eram apresentados regularmente por um dos responsáveis da empresa - o arguido B....
7) - O arguido C... entregou algumas vezes, em número não concretamente apurado, documentos da contabilidade da Congelaria, L.da na sede da Escritaveiro, Contabilidade e Serviços, L. da, sita em Aveiro.
8) - Tendo em vista obterem do Estado português, designadamente da Administração Fiscal, quantias monetárias a que não tinham direito, os arguidos A... e B..., no seu próprio interesse, e usando para o efeito a Congelaria, L.da, integraram na contabilidade desta vários documentos, que designaram de facturas e recibos, emitidos à ordem de Congelaria, sem qualquer legitimidade ou poderes para o efeito.
9) - As ditas facturas e respectivos carimbos eram forjados relativamente aos originais das empresas que figuravam como suas emitentes: Mundobra, Silgom e Duropa, ou montagens feitas a partir de originais.
10) - Os arguidos A... e B... tinham conhecimento de que tais documentos não eram verdadeiros, o que veio a verificar-se da seguinte forma:
Empresa MUNDOBRA:
- Factura n.º 7087, datada de 31.08.96, manuscrita, referindo fornecimento e montagem de vedação exterior, no montante global de 27.924,95 € (5.598.450$00), sendo o IVA no montante de 4.057,47 € (813.450$00);
Foi emitido o respectivo “recibo” datado de 02.09.96;
- Factura n.º 7099, datada de 30.06.97, manuscrita, referindo serviço de reparação de diques e fornecimento de cofragem, no montante global de 21.731,27 € (4.356.729$00), sendo o IVA no montante de 3.157,54 € (633.029$00);
Foi emitido o respectivo “recibo” datado de 31.07.97;
- Factura n.º 7100, datada de 31.07.97, manuscrita, referindo serviços de construção de tanques e construção de uma comporta, no montante global de 24.324,18 € (4.876.560$00), sendo o IVA no montante de 3.534,28 € (708.560$00);
Foi emitido o respectivo “recibo” datado de 30.09.97;
Empresa SILGOM:
- Factura n.º 2458, datada de 31.10.96, manuscrita, referindo serviços de reparação de diques e fornecimento de cofragem, no montante global de 17.427,00 € (3.493.800$00), sendo o IVA no montante de 2.492,99 € (499.800$00);
Foi emitido o respectivo “recibo” datado de 30.11.96;
- Factura n.º 2659, datada de 02.08.97, manuscrita, referindo construção de 15 comportas, no montante global de 50.706,11 € (10.165.662$00), sendo o IVA no montante de 7.367,55 € (1.477.062$00);
Foi emitido o respectivo “recibo” datado de 01.09.97;
Empresa DUROPA:
- Factura n.º F 1185, datada de 09.09.96, manuscrita, referindo fornecimento de um gerador e execução duma instalação eléctrica, no montante global de 20.309,06 € (4.071.600$00), sendo o IVA no montante de 2.950,89 € (591.600$00);
Foi emitido o respectivo “recibo” com data de 30.09.96;
- Factura n.º F 1183, datada de 17.12.96, manuscrita, referindo fornecimento de duas electrobombas, no montante global de 13.539,37 € (2.714.400$00), sendo o IVA no montante de 1.967,28 € (394.400$00);
Foi emitido o respectivo “recibo” com data de 17.12.96;
- Factura n.º F 1197, datada de 16.07.97, manuscrita, referindo vários fornecimentos, no montante global de 14.503,89 € (2.907.768$00), sendo o IVA no montante de 2.107,34 € (422.484$00).
Foi emitido o respectivo “recibo” com data de 31.08.97.
11) - Mas para além de terem integrado na contabilidade da Congelaria, L.da estes documentos que sabiam forjados, a que não subjazia qualquer relação comercial, os arguidos A... e B..., por decisão conjunta, a fim de aparentarem uma situação de legalidade, emitiram vários cheques, sacados sobre a conta n.º 2953.18 (actual 401 249 54580), titulada pela Congelaria, L.da na C.C.A.M. (Caixa de Crédito Agrícola Mútuo) de Ílhavo, e que foram assinados pela arguida A... e passados à ordem de Duropa, Silgom e Mundobra.
12) - Contudo, tais cheques não foram entregues a nenhuma destas empresas, ou a qualquer pessoa a elas ligada, antes ficaram na posse dos arguidos A... e B..., que os “endossaram”, apondo no seu verso carimbos e assinaturas como se fossem os representantes legais dessas empresas.
13) - Tal aconteceu com os seguintes cheques:
- Cheque n.º 2433149269, à ordem de Duropa, no montante de 14.503,89 € (2.907.768$00), datado de 17.06.98;
- Cheque n.º 1533149270, à ordem de Mundobra, no montante de 24.324,18 € (4.876.560$00), datado de 23.06.98;
- Cheque n.º 0633149271, à ordem de Mundobra, no montante de 21.731,27 € (4.356.729$00), datado de 25.06.98; cujo montante global, no total de 60.559,34 € (12.141.057$00), os arguidos A... e B..., em 26.06.98, depositaram na conta n.º 2954.15 (actual conta n.º 401 24921338), titulada pela arguida A.... e por uma sua filha na C.C.A.M. de Ílhavo;
- Cheque n.º 3133149279, à ordem de Silgom, no montante de 50.706,11 € (10.165.662$00), datado de 29.06.98, de cujo montante global os arguidos A... e B... retiraram 33.248,18 € (6.665.662$00) que depositaram, em 29.06.98, na referida conta 2954.15;
- Na mesma data, os restantes 17.457,93 € (3.500.000$00) foram depositados pelos arguidos A... e B... na conta n.º 2689.34, titulada por José Pimenta da Fonseca e Maria Margarida Oliveira Rocha Fonseca na C.C.A.M. de Ílhavo, emigrantes no Canadá, de quem o arguido B... era procurador, com poderes bastantes para movimentar livremente aquela conta.
14) - A fim de os cheques emitidos não serem devolvidos por falta de provisão, os arguidos A... e B... foram efectuando sucessivos movimentos a crédito na conta da Congelaria, L.da (2953.18), com quantias provenientes da conta n.º 2954.15, a saber:
- No dia 17.06.98 transferiram 24.324,18 € (4.876.560$00) e ainda 14.503,89 € (2.907.768$00);
- No dia 26.06.98 transferiram 21.731,27 € (4.356.729$00);
- No dia 29.06.98 transferiram 55.665,85 € (11.160.000$00).
15) - Por sua vez, a conta n.º 2954.15, aos 17.06.98, foi previamente “alimentada” pelos arguidos A... e B... com dois depósitos:
- Um, no valor de 29.927,88 € (6.000.000$00), transferido da conta n.º 2689.34;
- Um outro, no valor de 9.975,96 € (2.000.000$00), resultante de um depósito em numerário feito pela arguida A....
16) - Ora, não obstante as “facturas” e os “recibos” não terem sido elaborados por quem de direito e não obstante não traduzirem quaisquer relações comerciais entre as empresas, não tendo sido pago pela Congelaria, L.da qualquer montante às empresas que figuravam como emitentes, por decisão conjunta dos arguidos A... e B...., e com os propósitos já referidos, essas “facturas’ e “recibos”, através da Escritaveiro, L.da, foram registados e integrados na contabilidade daquela, como se de verdadeiros custos se tratasse, tendo sido deduzido, indevidamente, o IVA nelas expresso, da seguinte forma:
Períodos de dedução:
- 1996/12T:
MUNDOBRA - 4.057,47 € (813.450$00);
SILGOM - 2.492,99 € (499.800$00);
DUROPA - 4.918,15 € (986.000$00);
TOTAL: 11.468,61 € (2.299.250$00).
- 1997/09T:
MUNDOBRA - 6.691,82 € (1.341.589$00);
SILGOM - 7.367,55 € (1.477.062$00);
DUROPA - 2.107,34 € (422.484$00);
TOTAL: 16.166,71 € (3.241.135$00).
17) - Com base nesses documentos forjados, e ainda por decisão conjunta dos arguidos A... e B..., a Congelaria, L.da, através da arguida A..., apresentou-se como credora perante a Administração Fiscal, tendo pedido e obtido da Direcção de Serviços de Cobrança do Imposto Sobre o Valor Acrescentado (DSCIVA) dois reembolsos de IVA:
- Um, relativo ao 4º trimestre de 1996, no valor de 11.562,11 € (2.317.995$00), pedido pelo sujeito passivo a 10.02.97, processado a 19.02.97 e pago através de cheque (n.º 0483748650), emitido em 27.05.97 pela Direcção Geral das Contribuições e Impostos.
Este cheque foi endossado pela arguida A..., na qualidade de gerente da Congelaria, L.da, tendo sido depositado e creditado, aos 30.05.97, na conta n.º 2575/85 da C.C.A.M. de Ílhavo, titulada em exclusivo pelo arguido C...;
- Um outro, relativo ao 3º trimestre de 1997, no valor de 16.814,09 € (3.370.922$00), pedido a 10.11.97, processado a 21.11.97, pago, aos 28.04.98, por transferência bancária da administração fiscal para a conta n.º 011/200028962 do BBV de Aveiro, titulada pela Congelaria, L.da, tendo ficado disponível a 04.05.98.
Neste mesmo dia, a arguida A... procedeu ao levantamento desse montante, através de um talão avulso, ao balcão do BBV, montante que fez seu e que depois entregou à sua filha Maria Margarida Oliveira Rocha, depositando-o na conta de que esta era titular.
18) - Ao agir da forma descrita, os arguidos A.... e B... fizeram-no livre, deliberada e conscientemente, com intenção de auferir para ambos, usando para tanto a Congelaria, L.da, benefícios patrimoniais - fiscais a que bem sabiam aquela não ter direito, com a necessária diminuição das receitas tributárias, pois que os supra referidos documentos não correspondiam à verdade, não tendo havido qualquer transacção comercial ou pagamento por parte da mesma sociedade.
19) - Actuaram aqueles arguidos no seu próprio interesse, usando a Congelaria, L.da, enquanto seus responsáveis e beneficiários, para lograr alcançar os seus intentos.
20) - Os arguidos A... e B... agiram de prévio e comum acordo, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela legislação fiscal e penal.
21) - A arguida A... é viúva e tem 66 anos; recebe uma pensão de reforma, processada pela entidade portuguesa respectivamente competente, no montante de 374,10 € e uma outra, processada pelas autoridades francesas, no montante de 199,52 €.
22) - Encontra-se a pagar, à Fazenda Nacional a quantia mensal de 150,00 € a título de prestação para restituição do IVA indevidamente recebido do Estado, a que se reportam os presentes autos.
23) - O arguido B..., tem 51 anos, é casado, sendo a esposa uma pessoa muito doente, padecendo de cancro, auferindo 200,00 € de pensão de invalidez em virtude desta doença.
24) - Aquele arguido trabalha como vendedor de automóveis, auferindo, em média, cerca de 500,00 € mensais; reside em casa própria, pagando 400,00 € de hipoteca contraída para aquisição da mesma.
25) - O arguido C... tem 29 anos, é casado e tem dois filhos gémeos, de 3 anos.
26) - Trabalha como pintor da construção civil, auferindo 400,00 € por mês.
27) - Vive em casa emprestada.
28) - Os arguidos A..., B... e C... nunca antes foram condenados pela prática de qualquer crime.

* * *

B) Matéria Não Provada:
Da audiência de discussão e julgamento não resultou como provada qualquer outra matéria com interesse para a decisão da causa, nomeadamente que:
- Também o arguido C... participava, de forma muito estreita, na gestão do dia-a-dia da Congelaria, L.da, sendo responsável pela mesma.
- Os arguidos A... e B... agiram no interesse e por conta da empresa Congelaria, L.da
- Os arguidos A... e B... acordaram, com indivíduos cuja identidade não logrou apurar-se, a elaboração de vários documentos, que designaram de facturas e recibos, emitidos à ordem de Congelaria, L.da, sem qualquer legitimidade ou poderes para o efeito, usando indevidamente facturas e carimbos originais das empresas a figurar como suas emitentes - Silgom, Mundobra e Duropa, ou usando montagens que fizeram a partir de originais.
- Tendo em vista obter do Estado português, designadamente da Administração Fiscal, quantias monetárias a que não tinha direito, o arguido C..., no seu próprio interesse, e no interesse e por conta da empresa Congelaria, L.da, acordou, com indivíduos cuja identidade não logrou apurar-se, a elaboração de vários documentos, que designou de facturas e recibos, emitidos à ordem de Congelaria, L.da, sem qualquer legitimidade ou poderes para o efeito, usando indevidamente facturas e carimbos originais das empresas a figurar como suas emitentes - Mundobra, Silgom e Duropa, ou usando montagens feitas a partir de originais.
- Os arguidos A..., B... e C... forjaram os documentos descriminados no ponto 10) da matéria provada.
- O arguido C..., por decisão conjunta com os arguidos A... e B..., a fim de aparentar uma situação de legalidade, participou na emissão de vários cheques, sacados sobre a conta n.º 2953.18 (actual 401 249 54580), titulada pela Congelaria, L.da na C.C.A.M. (Caixa de Crédito Agrícola Mútuo) de Ílhavo.
- Tais cheques ficaram na posse do arguido C... que, conjuntamente com os arguidos A... e B..., participou no seu “endosso”, tendo sido aposto no verso dos mesmos carimbos e assinaturas como se este fosse o representante legal dessas empresas.
- O arguido C..., conjuntamente com os arguidos A.... e B..., através da Congelaria, L.da, solicitou o reembolso do IVA referente às facturas e recibos emitidos em nome das empresas Silgom, Mundobra e Duropa.
- Ao agir da forma descrita, os arguidos Congelaria, L.da e C... fizeram-no livre, deliberada e conscientemente, com intenção de auferir benefícios patrimoniais - fiscais a que bem sabiam não ter direito, com a necessária diminuição das receitas tributárias, pois que os supra referidos documentos não correspondiam à verdade, não tendo havido qualquer transacção comercial ou pagamento.
- Actuou aquele arguido no seu próprio interesse, mas também no interesse, em nome e por conta da arguida Congelaria, L.da, como seu responsável e beneficiário.
- O arguido C... agiu de prévio e comum acordo com os arguidos A... e B..., bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela legislação fiscal e penal.

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C) Motivação (da matéria provada e não provada):

No que concerne à matéria constante do ponto 1) valorou o tribunal a certidão emitida pela Conservatória do Registo Comercial de Ílhavo, junta aos autos de fls. 480 a 481v., bem como as declarações dos arguidos A..., B... e C..., que confirmaram como sendo verdadeiros todos os elementos constantes daquele citado documento.
Para apreciação da matéria constante do ponto 2) valorou o tribunal os documentos juntos aos autos de fls. 151 a 178, em especial o documento junto a fls. 152.
Para apuramento da matéria constante dos pontos 3) e 4) teve o tribunal em atenção os assentos de nascimento dos arguidos B... e C..., juntos aos autos a fls. 772 e 782, respectivamente.
Quanto à matéria dos pontos 5), 6) e 7), baseou-se o tribunal nos depoimentos dos arguidos B... e C..., tendo ambos admitido que chegaram a entregar na Escritaveiro, L.da, com sede em Aveiro, os documentos referentes à contabilidade da Congelaria, L.da, tendo o primeiro dos referidos arguidos admitido que, pelo menos após a morte do Sr. Augusto Rocha, ajudou a viúva deste, a arguida A...., embora, segundo o mesmo, só lhe dando alguns conselhos sobre como conduzir a firma.
Por outro lado, também a testemunha Anselmo Batista Gomes, sócio da Escritaveiro, L.da, após confronto com as declarações por ela anteriormente prestadas no inquérito perante a Polícia Judiciária, cuja leitura foi permitida ao abrigo do disposto no art.º 356º, n.º 2 do C.P.P., acabou por admitir que aqueles dois arguidos chegaram a levar-lhe documentos da contabilidade da Congelaria, L.da, sendo aqueles as pessoas que reputava como os responsáveis daquela empresa.
Valorou igualmente o tribunal o depoimento das testemunhas Manuel Augusto Andrade e Armindo Dias Lourenço, as quais referiram que, quando levaram a cabo a investigação dos factos tratados nos presentes autos, no âmbito tributário, foi o arguido B... quem os acompanhou nas diligências que efectuaram, parecendo perfeitamente à vontade nos assuntos que diziam respeito à Congelaria, L.da, demonstrando estar a par do seu funcionamento.
Para apreciação destes factos, teve, ainda, o tribunal em atenção os documentos de fls. 346 a 373 e 405 a 418 dos quais resulta que o arguido B..., tendo procuração suficiente para tanto, transferiu para conta da Congelaria, L.da - 2953.18 - na C.C.A.M. de Ílhavo, da conta 2689.34 da mesma entidade, avultadas quantias em dinheiro.
No que concerne à matéria constante dos pontos 8) a 15), a mesma resultou como provada da análise conjunta dos documentos de fls. 100 a 108, 132 a 144, 149, 151 a 178, 201 a 235, 346 a 373, 405 a 418, 514 a 520 e 586 a 601, bem como do depoimento das testemunhas Carlos Jorge Amado Morais Cabral, Rui Manuel Campos Ferreira, Manuel Augusto Andrade, Armindo Dias Lourenço, Manuel Godinho, José Jaime de Castro Guimarães e João Carlos Correia Alves e, ainda, dos documentos juntos no anexo 2, analisados em simultâneo com a perícia realizada pela já referida testemunha Rui Manuel Campos Fernandes, na qualidade de Especialista Superior do Departamento de Perícia Financeira e Contabilística da Polícia Judiciária.
Da análise dos elementos contabilísticos e fiscais, bem como do depoimento daquelas testemunhas, foi possível apurar que, por um lado, as facturas, e respectivos recibos, emitidos em nome da Silgom, Mundobra e Duropa nunca foram integrados na contabilidade daquelas empresas, não tendo, por isso, sido recebido pelo Estado Português o imposto correspondente, e por outro, os cheques emitidos pela Congelaria, L.da para pagamento dos serviços constantes das facturas e recibos em causa, compilados no anexo 2, nunca chegaram a ser entregues àquelas empresas pois, através da rotação dos movimentos das contas bancárias - 2954.15, titulada pela arguida A...; 2689.34, movimentada, através de procuração que detinha para o efeito, pelo arguido B... e 2953.18, titulada pela Congelaria, L.da e movimentada pela arguida A..., na qualidade de sua única gerente - as quantias destinadas àqueles pagamentos ficaram na posse destes dois arguidos, que não podiam ignorar a forma como o dinheiro surgiu nas suas contas bancárias.
Se os referidos arguidos movimentavam as contas nos valores exactos de forma a dar a aparência de transacções verdadeiras tinham necessariamente de saber porque o faziam. Não podiam ignorar todos os factos subjacentes àquele movimento rotativo das contas, sendo que este dava a ideia de que, aparentemente, os pagamentos haviam sido efectuados quando, na verdade, não haviam ocorrido, como já se referiu supra, uma vez que as facturas não correspondiam a qualquer tipo de transacção e os recibos não correspondiam a qualquer pagamento.
Quanto às facturas e recibos da Silgom, a testemunha Manuel Godinho, tipógrafo que procedeu à impressão das facturas e recibos solicitadas por aquela entidade, confrontado com os documentos em causa, acaba por esclarecer que a factura 2458 e o respectivo recibo 2424 foram impressos por si, talvez em 1992, quando trabalhava naquela actividade, enquanto a factura 2659 e respectivo recibo 2424 não são trabalhos originais seus, parecendo ser simples fotocópias feitas a partir dos originais.
Ainda quanto a esta empresa, dos referidos elementos probatórios, apurou-se que a mesma está encerrada desde antes de 1996, estando o irmão da sócia gerente Isabel Maria Ribeiro Rito - Joaquim Amândio Ribeiro - única pessoa que trabalhava a coberto dela, preso desde essa data.
O tribunal valorou ainda o depoimento da testemunha António Fernando Jesus Anastácio, indicada pelos arguidos A...., B.... e C..., que esclareceu que trabalhou na marinha onde a Congelaria, L.da viria a ter as suas instalações, com uma empresa de Lisboa, que admitiu ser a Silgom, sendo certo, porém, que tal ocorreu nos anos de 1986, 1987, 1988, altura em que aquelas instalações ainda pertenciam à empresa Riacalma, L.da, de que era sócio gerente, à data, o arguido B....
No que concerne à Duropa, o seu sócio gerente - testemunha José Jaime Guimarães, confirmou que as facturas em causa não foram emitidas por aquela empresa, sendo certo, aliás, que, por um lado, nunca trabalharam para a Congelaria e, por outro, nem sequer venderam nenhum gerador naquela altura e não fazem, sequer, instalações eléctricas de nenhum tipo, dedicando simplesmente à compra e venda de artigos, que exportam para Angola, na sua grande maioria.
A testemunha João Carlos Correia Alves, anterior sócio da Impritécnica, empresa gráfica que elaborou as facturas usadas pela Duropa, confirma que as facturas 1183, 1185 e recibos 284 e 300 foram feitos pela Impritécnica para a Duropa. Já o recibo 1190 e a factura 1197 não são trabalhos da Impritécnica, configurando, provavelmente, fotocópia daqueles.
Já no que se refere à Mundobra, embora não tenha sido possível aceder à sua contabilidade, através dos elementos fiscais juntos aos autos é, contudo, possível perceber que aquela empresa não labora desde 1995, encontrando-se o seu sócio gerente ausente em parte incerta há vários anos, resultando tal informação dos depoimentos das testemunhas Manuel Augusto Andrade e Armindo Dias Lourenço, sendo que os mesmos disto tiveram conhecimento aquando da investigação por eles desenvolvida no sentido de tentar localizar os sócios gerentes das empresas Silgom, Duropa e Mundobra.
Face aos recolhidos elementos, não podia, por isso, aquela empresa prestar qualquer serviço nem emitir as respectivas facturas e recibos juntos no anexo 2.
No que respeita à matéria dos pontos 16) e 17), teve o tribunal em atenção os documentos de fls. 151 a 178, 201 a 235, 246 a 249, 346 a 373, 405 a 418, 436 e 526 a 530, bem como ao depoimento da própria arguida A...., da testemunha Anselmo Batista Gomes, tendo ambos reconhecido que a aquela arguida, na qualidade de sócia gerente da Congelaria, L.da, assinou todas as declarações periódicas de IVA entregues, contendo todas elas o pedido de restituição deste imposto devidamente formulado, confirmando, igualmente, ambos as quantias recebidas, a forma de pagamento utilizado e o destino dado às quantias recebidas a esse título.
Valorou-se, também, o depoimento das testemunhas Carlos Jorge Amado Morais Cabral, Rui Manuel Campos Ferreira, Manuel Augusto Andrade e Armindo Dias Lourenço, tendo os mesmos relatado como, no desempenho das suas funções, acabaram por constatar o modo como ocorreram os factos em causa, depoimentos que nos pareceram verosímeis e isentos.
Atentando nos factos constantes dos pontos 18) a 20), para dar como provada tal matéria, atendeu o tribunal à conjugação dos restantes factos dados como provados e às regras da experiência comum que permitem formular presunções judiciais.
Tal como se refere no acórdão da R.P., de 23 de Fevereiro de 1993, publicado in BMJ, 324, pág. 620 “(...) dado que o dolo pertence à vida interior de cada um é, portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão. Só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência. (...)”.
Assim, dado que, analisados os elementos dos autos, se conclui que estão provados os factos constantes dos pontos 5) a 17), ensinam as regras das experiência que, pessoas que, no seu dia-a-dia, contactam com a realidade com que os arguidos estavam familiarizados - administração de empresas - conhecem, ou, pelo menos, têm a obrigação de conhecer a ilicitude da conduta que praticaram, bem como as consequências penais legalmente previstas. Apesar disto, os arguidos não se abstiveram de adoptar aquelas condutas, sabendo que corriam o risco de ser punidos.
Quanto à matéria constante dos pontos 21), 22, 23), 24), 25), 26) e 27), respeitante à situação familiar, profissional e económica dos arguidos A..., B... e C... valorou o tribunal os respectivos depoimentos.
Para apuramento da matéria constante do ponto 28) teve o tribunal em atenção os certificados de registo criminal dos arguidos A..., B... e C..., juntos aos autos a fls. 1005, 1004 e 1003, respectivamente.
A matéria dada como não provada resultou como tal pelo facto de não haver sido produzida sobre a mesma prova suficiente que fundamentasse decisão em sentido contrário.


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7. Enunciadas as questões a decidir e vista a decisão, importa proceder à sua apreciação.

7.1. Nulidade da sentença
Concluem os recorrentes que a sentença é “contraditória, sendo nula nos termos dos artigos 668, alíneas a) e b) do CPC”.
A nulidade da al. a) do n.º1 do citado art. 668º do CPC consiste na falta de assinatura do juiz. Ora no caso a sentença encontra-se devidamente assinada, nem sendo alegado sequer o contrário, pelo que tal nulidade não se verifica.
Por sua vez a nulidade da al. b) consiste na falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. E a sentença encontra-se devidamente fundamentada, não só de facto, como resulta da própria transcrição efectuada pelos recorrentes, como ainda de direito, sendo certo que em matéria de direito nem os recorrentes alegam falta de fundamentação.
Aliás a verificar-se alguma nulidade da sentença não seria seguramente prevista na invocada norma do CPC, porque tal matéria é regulada expressamente pelo art. 374º do CPP, carecendo por isso de fundamento o recurso à lei subsidiária.
A este respeito recorrentes não fundamentam ou demonstram os pressupostos de qualquer nulidade por violação do art. 374º do CPP. Concluindo pela sua existência sem curar de demonstrar os respectivos pressupostos.
De qualquer forma, tentando reconstruir o percurso lógico das conclusões verifica-se que os recorrentes, depois de nas conclusões X, Y, e Z sustentarem que a multa aplicada é exagerada e desproporcionada em face da matéria provada, concluem a seguir (al. AA) que “assim a sentença é contraditória e obscura, os fundamentos não justificam a decisão o que constitui nulidade se referirem”.
Ou seja, as premissas invocadas (pena exagerada) nada têm a ver com a conclusão delas extraída (nulidade da sentença por alegada contradição).
Que no caso, tendo presente a exaustiva fundamentação da matéria de facto acima transcrita, tal não se verifica, manifestamente. O mesmo sucedendo em relação á matéria de direito também ela exaustivamente fundamentada e em relação à qual os recorrentes, aliás, não especificam em que seja contraditória ou obscura ou ainda em quê os fundamentos possam contradizer a decisão.
Pelo que é manifestamente improcedente a invocada nulidade.



7.2. Nulidade do julgamento

Como fundamento desta pretensão da anulação do julgamento aponta-se que as declarações dos arguidos ora recorrentes e parte das declarações de um dos arguidos não recorrentes (absolvido) não se encontram gravadas – “o que, a verificar-se, e atenta a legal gravação da prova, importará a nulidade do julgamento” [cfr. conclusão S)].
Como consta da respectiva acta, foi determinada a gravação de todas as declarações prestadas em audiência foram gravadas, indicando-se em acta o princípio e o termo da gravação de todos os depoimentos prestados nas sucessivas cassetes utilizadas.
A este respeito, é patente a falta de fundamento da invocada falta de gravação das declarações da recorrente Maria Alice. Não foram gravadas, nem podiam ter sido, na primeira sessão da audiência, pela simples razão de que a referida arguida não foi ouvida, porque faltou a essa sessão. No entanto, na sessão em que esteve presente e prestou declarações, as mesmas foram gravadas, tal como conta da respectiva.
Por outro lado, ainda que os recorrentes não tenham cumprido a exigência contida pelo art. 412º, n.º3 do CPP relativamente ao recurso da matéria da facto, o tribunal ordenou a respectiva transcrição da gravação a qual se encontra no volume em apenso, composto por 234 páginas, cuja apensação foi realizada a fls. 1124.
E em relação à gravação do depoimento da arguida não se verificou qualquer anomalia, encontrando-se transcritas de fls. 131 a 153 do referido apenso.
Não se compreende por isso o recurso nesta parte, por manifestamente infundado.
Transcrição essa que os recorrentes não tiveram em qualquer conta nas suas alegações.
O mesmo se dizendo no que toca às declarações do arguido não recorrente C.... Quer por devidamente gravadas e subsequentemente transcritas de fls. 1 a 6 do respectivo apenso. Quer porque os recorrentes não invocam qualquer circunstância de onde pudesse concluir-se pela relevância do arguido em causa (absolvido) em relação aos recorrentes.

No que toca às declarações do ora recorrente João Carlos, foi determinada a sua gravação, tal como sucedeu com toda a prova produzida em audiência, como se encontra exarado em acta.
E o sistema de gravação, para além de devidamente accionado, funcionou, tanto que, durante este depoimento a cassete rodou - da rotação 1050 à rotação 1729 do Lado A e das rotações 0006 a 1066 do Lado B – tal como consta da acta sem que a ninguém se tenham suscitado dúvidas sobre essa gravação.
Sucede porém que – ainda que não seja propriamente isso que o recorrente invoca, dado que não curou de verificar a transcrição, como resulta evidente da forma como vem alegada a falta de gravação do depoimento da arguida - conforme se verifica de fls. 6 do apenso relativo à transcrição da prova produzida em audiência, as declarações do arguido não puderam ser transcritas.
O que não significa que tenha sido denegada a gravação ou não tenha sido accionado o mecanismo técnico da gravação, ou até que a gravação não tenha sido feita, tal como foi determinado e exarado na acta. Mas apenas que, por qualquer deficiência técnica não esclarecida, não foi possível proceder à correspondente transcrição.
Importa todavia estabelecer as consequências de tal falta.
A impossibilidade de transcrição dos depoimentos, por deficiência técnica do respectivo suporte, não se encontra prevista especificamente como causa de nulidade nem pelo art. 363º nem pelo art. 119º do CPP ou qualquer outra norma.
Pelo que cai no âmbito das meras irregularidades, nos termos do art. art. 118º, n.º 2 do CPP.
Como tal está sujeita ao regime do art. 123º que postula que “qualquer irregularidade só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiver assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiver sido notificado para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado.
A validade do julgamento constitui uma realidade diferente da impossibilidade, a posteriori, de transcrição de uma cassete.
Só devem ser consideradas relevantes as irregularidades que em concreto “possam afectar” o acto, como resulta do citado art. 123º. Ou que possa ter “efeito no exame ou decisão da causa”, como refere o art. 201º, n.º1 do CPC, lei subsidiária do Processo Penal (art. 4º do CPP).
Este entendimento resulta ainda do disposto no art. 122º, n.º3 do CPP que determina que “ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os actos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela”.
Bem como do princípio geral de proibição da prática de actos inúteis previsto no art. 137º do CPC.
Não faria sentido, por ex., que, tratando-se da falha técnica relativa a um depoimento de uma testemunha abonatória e tendo o recurso por fundamento a inexistência dos pressupostos do crime se considerasse aquela falta como fundamento de anulação da decisão para a qual tal depoimento não teve qualquer relevo, porque anódina ou sem virtualidade, em concreto, para poder levar a uma decisão diferente.
Assim para que determinada irregularidade seja susceptível de anular o acto, tem que daí resultar, em concreto, a virtualidade de “afectar esse mesmo acto”. Não basta a omissão de determinada formalidade só por si, tem ainda que se evidenciar que essa omissão é ou pode ser relevante para o resultado final que é questionado, o mesmo é dizer para a decisão. Sob pena de, no caso da gravação, de garantia máxima do sistema, se transformar em fonte de inoperacionalidade do mesmo.
O relevo ou essencialidade da omissão para a decisão do pleito tem que ser visto em concreto, tendo por referência não só o acto ou formalidade omitido, como ainda o seu efeito na economia do processo, dentro do quadro específico do caso e da posição globalmente assumida pelo sujeito processual a quem a formalidade omitida interessava ou a favor de quem a mesma é consignada.
Tal resulta ainda do especial dever de fundamentação do recurso enunciado no art. 412º, n.º3 do CPP, de impõe ao recorrente que tenha que indicar os pontos de facto e de direito que entende incorrectamente julgadas, em particular, no que toca à decisão de facto ainda as provas que impõem decisão diversa, fazendo referência ainda aos respectivos suportes magnéticos. Devendo por isso esclarecer em que é que a omissão da formalidade afecta o exercício do direito que pretende ver reconhecido.
Subjacente a qualquer acto processual (ou à sua anulação por irregularidade por deficiência de qualquer formalismo) deve estar um interesse jurídico relevante que em processo civil é referido como um pressuposto processual autónomo – o interesse em agir. “Um estado de coisas reputado bastante grave para tornar legítima a pretensão do demandante em conseguir, por via judiciária o bem que a ordem jurídica lhe reconhece” – cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, reedição de 1976, p. 80.
Interesse em agir que o próprio CPP consagra explicitamente nos recursos, no art. 401º, n.º2 que estabelece: não pode recorrer quem não tiver interesse em agir.

Ora no caso vertente o arguido não alega que, muito menos porquê, a transcrição do seu próprio depoimento pudesse, na sua perspectiva, levar a decisão diferente. Nem alega sequer, quando impugna a decisão da matéria de facto, que o faça tendo como fundamento o dito depoimento não transcrito. Nem refere, em concreto, qualquer razão pela qual ou da qual pudesse concluir-se que a transcrição do depoimento é ou pode ser relevante para a decisão do recurso, ou que pudesse levar a decisão contrária à recorrida.
Aliás o recorrente não invoca a falta de transcrição – indiferente para o recurso dado que manifestamente não foi atribuído qualquer relevo à transcrição - mas apenas a falta de gravação. Que, tendo ele estado presente em julgamento e representado por mandatário, devia logo ter arguido no acto, como impõe o citado art. 123º. Sendo certo que também os participantes na audiência são responsáveis pelo resultado final, não sendo admissível que se remetam à posição cómoda de assistentes, assistindo, indiferentes a qualquer irregularidade, para depois, à posteriori, se insurgirem contra aquilo que na hora não os incomodou.
Por outro lado, como acima se referiu, os próprios recorrentes, não indicam qual a matéria de facto a indevidamente julgada e a prova que imporia decisão diversa, por referência aos suportes técnicos, como impõe no art. 412º, n.º3 CPP.
Nem fundamentam o recurso em qualquer passagem do depoimento não transcrito. Ou ensejam sequer demonstrar que esse depoimento tivesse sido relevante como meio de prova susceptível de “impor” decisão diferente da recorrida (termo utilizado pelo art. 412º, n.º3, al. a) do CPP, para o recurso da matéria de facto).
Não vem alegado que o depoimento do arguido pudesse levar a outra decisão. Ou que tivesse, legalmente ou por força de qualquer princípio de apreciação da prova, força suficiente para o efeito. Ou ainda que, ao contrário do que consta da decisão, ele não tivesse prestado as declarações que lhe são imputadas como fundamento da decisão.
E da decisão recorrida – na parte em que o recorrente dela manifesta discordância - não resulta, de forma alguma, assentado nas declarações ou na “confissão” do arguido para dar como provados os factos que lhe são desfavoráveis.
Pelo contrário, da economia da decisão resulta que as declarações do arguido foram irrelevantes para a condenação, o mesmo é dizer, para a prova dos factos que o prejudicam.
Com efeito, analisando a fundamentação exaustiva da decisão, acima transcrita, verifica-se que apenas valorou o depoimento do recorrente João Carlos na parte em que admitiu ter procedido à entrega na Escritaveiro, L.da, com sede em Aveiro, os documentos referentes à contabilidade da Congelaria, L.da. E em que admitiu que, pelo menos após a morte do Sr. Augusto Rocha, ajudou a viúva deste, a arguida A..., embora só lhe dando alguns conselhos sobre como conduzir a firma.
Factos que o recorrente não contesta ter dito, nem nega, tanto que alega que o fez com base numa procuração.
Procuração essa também devidamente ponderada pela decisão – tal como consta do § 7º da motivação supra transcrita.
Aliás o recorrente, na fundamentação faz tábua rasa sobre a prova em que a decisão assentou, nomeadamente o núcleo da prova documental e pericial e da confirmação, em audiência, pelos técnicos que detectaram a incorporação das facturas sem correspondência a qualquer transacção ou prestação de serviços que referem.
A decisão, no que concerne à matéria que o recorrente impugna assenta, não no depoimento em falta mas antes na conjugação dos depoimentos dos técnicos especialistas que procederam à inspecção da contabilidade das várias empresas envolvidas, nos documentos apreendidos e cotejo dos extractos das contas bancárias movimentadas pelos arguidos, complementados pela prova testemunhal. E toda a prova testemunhal relevante para a decisão, produzida em audiência, encontra-se devidamente transcrita, podendo por isso ser reapreciadas, desde que cumpridos os ónus de impugnação que incidem sobre o recorrente.
Assim: ««« Valorou o tribunal o depoimento das testemunhas Manuel Augusto Andrade e Armindo Dias Lourenço, as quais … levaram a cabo a investigação dos factos tratados nos presentes autos, no âmbito tributário, disseram que foi o arguido B... quem os acompanhou nas diligências que efectuaram, parecendo perfeitamente à vontade nos assuntos que diziam respeito à Congelaria, L.da, demonstrando estar a par do seu funcionamento… teve, ainda, o tribunal em atenção os documentos de fls. 346 a 373 e 405 a 418 dos quais resulta que o arguido B..., tendo procuração suficiente para tanto, transferiu para conta da Congelaria, L.da - 2953.18 - na C.C.A.M. de Ílhavo, da conta 2689.34 da mesma entidade, avultadas quantias em dinheiro. … a matéria constante dos pontos 8) a 15), resultou como provada da análise conjunta dos documentos de fls. 100 a 108, 132 a 144, 149, 151 a 178, 201 a 235, 346 a 373, 405 a 418, 514 a 520 e 586 a 601, bem como do depoimento das testemunhas Carlos Jorge Amado Morais Cabral, Rui Manuel Campos Ferreira, Manuel Augusto Andrade, Armindo Dias Lourenço, Manuel Godinho, José Jaime de Castro Guimarães e João Carlos Correia Alves e, ainda, dos documentos juntos no anexo 2, analisados em simultâneo com a perícia realizada pela já referida testemunha … na qualidade de Especialista Superior do Departamento de Perícia Financeira e Contabilística da Polícia Judiciária…Da análise dos elementos contabilísticos e fiscais, bem como do depoimento daquelas testemunhas, foi possível apurar que, por um lado, as facturas, e respectivos recibos, emitidos em nome da Silgom, Mundobra e Duropa nunca foram integrados na contabilidade daquelas empresas, não tendo, por isso, sido recebido pelo Estado Português o imposto correspondente, e por outro, os cheques emitidos pela Congelaria, L.da para pagamento dos serviços constantes das facturas e recibos em causa, compilados no anexo 2, nunca chegaram a ser entregues àquelas empresas pois, através da rotação dos movimentos das contas bancárias - 2954.15, titulada pela arguida A...; 2689.34, movimentada, através de procuração que detinha para o efeito, pelo arguido B... e 2953.18, titulada pela Congelaria, L.da e movimentada pela arguida A..., na qualidade de sua única gerente - as quantias destinadas àqueles pagamentos ficaram na posse destes dois arguidos, que não podiam ignorar a forma como o dinheiro surgiu nas suas contas bancárias»».

Assenta ainda nas seguintes ilações, que o recorrente não infirma:
“Se os referidos arguidos movimentavam as contas nos valores exactos de forma a dar a aparência de transacções verdadeiras tinham necessariamente de saber porque o faziam. Não podiam ignorar todos os factos subjacentes àquele movimento rotativo das contas, sendo que este dava a ideia de que, aparentemente, os pagamentos haviam sido efectuados quando, na verdade, não haviam ocorrido, como já se referiu supra, uma vez que as facturas não correspondiam a qualquer tipo de transacção e os recibos não correspondiam a qualquer pagamento”.

De onde resulta que a falada falha técnica do aparelho de gravação, constitui formalidade de relevo nulo para a decisão recorrida na aperte em que é questionada e, por maioria de razão, para a para a respectiva reapreciação, o mesmo é dizer, para a decisão do recurso. Quer porque a decisão não se fundou nas declarações do arguido que sejam postas em causa. Quer porque no recurso, tal como vem instaurado, o recorrente não questiona a matéria de facto com base no depoimento não transcrito, não cumprindo sequer o preceituado no art. 412º, 3 do CPP.
Aliás as declarações do arguido não têm, sem mais, a força de “confissão” ou “prova plena”. Nem naquilo que o favoreça nem naquilo que o desfavoreça.
Assim nem na perspectiva do recurso, nem de qualquer outra circunstância emergente dos autos que possa ser tomada em consideração na apreciação do recurso, resulta que a circunstância de a gravação – ordenada e a que se procedeu, em acto público onde o arguido esteve presente e devidamente assistido por defensor – por deficiência técnica, ter ficado parcialmente inaudível e, por essa circunstância, insusceptível de transcrição possa ter efeito relevante para a apreciação do recurso.
Pelo que improcede a invocada irregularidade.



7.3. Recurso da matéria de facto

As insuficiências da fundamentação e subsequentes conclusões do recurso para o efeito pretendido, a que se fez referência na sintetização das questões suscitadas, tornam-se mais evidentes depois de se atentar na minuciosa fundamentação da decisão da matéria de facto, acima transcrita – e repetidamente qualificada, aliás, de “proficiente” pelos próprios recorrentes.
Como então se referiu o recurso não tem por finalidade nem pode ser confundido com um “novo julgamento” da matéria de facto. Destina-se apenas a reapreciação da decisão proferida em primeira instância em pontos concretos e determinados. Tem como finalidade a reapreciação de questões de que tenha ou devesse ter conhecido a decisão recorrida – cfr. designadamente o disposto no art. 410, n.º1 do CPP.

Sendo certo que a decisão da matéria de facto envolve a apreciação de todo o conjunto da prova carreada para os autos e produzida, discutida e analisada em pormenor durante a audiência de discussão e julgamento com base na oralidade e imediação, obrigando não só à apreciação de todas e cada um dos vários depoimentos produzidos em audiência e avaliação da credibilidade de todos e cada um deles, como ainda das prova documental e pericial incorporadas nos autos discutidas em audiência, com a intervenção do arguido e seu defensor, que sobre elas puderam exercer amplamente o contraditório.

Razão pela qual o legislador estabeleceu um específico dever de motivação do recurso nesta matéria – cfr. art. 412º, n.ºs 1, 3 e 4 do CPP.
Não tendo a recorrente impugnado especificamente a decisão em conformidade com tais dispositivos, a apreciação da decisão fica limitada aos termos em que a decisão vem questionada. Isto na falta de vícios da decisão que resultem do texto da mesma e a inquinem de algum dos vícios enunciados no art. 410º.
Da leitura da motivação retira-se que a discordância dos recorrentes se resume a que os factos dados como provados sob os n.ºs 5, 6, 8, 9 e 10 ou 5 a 17 não o deveriam ter sido.
No entanto, fazendo a transcrição da “proficiente fundamentação” da sentença recorrida os recorrentes não especificam qual a prova que “deveria levar” `a solução por si propugnada.
Com efeito, como se disse supra – e resulta do confronto das conclusões e da fundamentação supra transcritos as alíneas A) a O) inclusive, constituem pura transcrição da fundamentação da decisão recorrida. Como tal, na medida em que a transcrevem, aptas tão-só a descrever o percurso dessa fundamentação. Que não a pô-la em crise.
As razões de fundo da discordância manifestada consistem em que “calcorreada e escalpelizada toda a documentação da prova constante de cinco cassetes…não pode resultar da mesma a responsabilização do arguido”.
Daqui resulta que o recorrente refere exclusivamente “a prova constante de cinco cassetes”.
Omitindo, de todo, quais os específicos aspectos em que seria relevante. E fazendo ainda tábua rasa sobre toda a prova documental e pericial, designadamente as facturas sem suporte, os movimentos bancários efectuados pelo próprio recorrente com base nelas – supra referenciadas a propósito da falta de relevo, para a decisão, da falta de transcrição de um depoimento. Bem como da prova por declarações prestadas em audiência e devidamente transcrita, designadamente os depoimentos das testemunhas especialistas neste tipo de investigação.
Provas essas que não são minimamente questionadas pelo recorrente, que não invoca qualquer prova – ou critério legal de apreciação da mesma - que imponha decisão diversa da recorrida.
Aliás transcreve extensamente a fundamentação da sentença e parte depois, de imediato, num salto lógico não fundamentado, sem mais, para a conclusão de que a decisão deve ser revogada. Com efeito, depois de transcrever desenvolvidamente a “proficientemente” fundamentação da decisão ao longo das alíneas A) a O) das conclusões do recurso, parte de imediato para a improcedência.
Sem alegar que as provas em que assentou a decisão sejam ilegais ou que o relevo que lhes foi atribuído viole qualquer critério legal ou regra de apreciação da prova.
Sendo certo, como resulta da mera transcrição operada nas conclusões do próprio recorrente, é minuciosa e exaustiva, estruturada nos elementos de prova pericial, documental e testemunhal que vai referencia e analisa de forma racional e crítica, bem como nas regras da experiência que indica e não são questionados.
Enquanto o recurso, descrevendo o percurso enunciativo e de análise crítica da prova em que se fundou a decisão recorrida - transcrevendo-a exaustivamente ao longo das alíneas A a O – remata, sem mais, nas conclusões T, U e V, remata, sem mais, dizendo que a matéria correspondente “não pode” ser dada como provada. Sendo cero que as conclusões Q a S se referem às nulidades.
Em suma, o recorrente não “rebate” nem o teor dos meios de prova convocados (qualquer deles), nem os critérios subjacentes à apreciação efectuada pelo tribunal. Não demonstrando, por maioria de razão, quais as provas que pudessem impor decisão diferente. Nem apresentando razões legais ou sobre valoração de provas susceptíveis de contrariar o juízo subjacente à decisão.
Pelo que o recurso tem que improceder.


7.4 No que toca à medida da pena de multa fixada, dir-se-á apenas - como salienta o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer e resulta da decisão recorrida e do subsequente despacho de correcção - que, no caso, a pena de multa, cominada pelo art. 23º do RJFNA, obedece ao disposto no, n.º4 do mencionado preceito que estabelece que o valor da multa não pode ser inferior ao valor da vantagem patrimonial pretendida, nem superior ao dobro, não podendo ultrapassar o máximo abstractamente estabelecida.
Ora no caso, a multa fixada equivale ao valor da vantagem concretamente obtida, ou seja a soma dos dois cheques emitidos pela administração fiscal para reembolso indevido do IVA com base na facturação falsa (2.317.995$00+3.370.922$00:200.482= € 28.376.198).
Pelo que, tendo sido fixada no mínimo legalmente admissível, carece também nesta parte o recurso de fundamento.

8. Termos em que se acorda negar provimento ao recurso, julgando-o totalmente improcedente.----
Cada recorrente pagará 6 UC de taxa de justiça e ambos, solidariamente, as restantes custas do recurso.