Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
537/20.5T8LMG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE MANUEL LOUREIRO
Descritores: COVID
SUSPENSÃO DE PRAZOS PROCEDIMENTAIS
IPSS
SUA NÃO APLICAÇÃO.
Data do Acordão: 01/29/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO DO TRABALHO DE LAMEGO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 7º DA LEI Nº 1-A/2020, DE 19/3; LEI 16/2020, DE 29/05.
Sumário: I – A interpretação no sentido da aplicação do regime do art. 7º da Lei nº 1-A/2020, de 19/03, a entidades privadas esbarra no elemento literal da norma, em especial na sua função negativa.

II - Com efeito, por um lado, partindo-se de uma enunciação taxativa constante do dispositivo legal em questão relativamente às entidades no âmbito das quais pendiam ou viriam a pender procedimentos disciplinares sujeitos ao regime de suspensão do art. 7º/1/3 da Lei nº 1-A/2020, logo se verifica que essa enunciação taxativa não comporta, ainda que imperfeitamente expressa, a mínima alusão a entidades distintas das assim enunciadas, designadamente a entidades privadas do tipo das IPSS.

III - Assim sendo, sustentar-se que o regime de suspensão ora em causa se aplicava, também, a procedimentos disciplinares tramitados por entidades privadas redundaria na adopção de uma interpretação que não tem a mínima base de apoio na letra da lei, o que é vedado pelo art. 9º/2 do CC.

IV - A Lei nº 16/2020, de 29/5, procedendo à quarta alteração à Lei nº 1-A/2020, de 19/3, e à décima segunda alteração ao DL 10-A/2020, de 13/3, revogou o referido artigo 7º daquela (artigo 8º), por consequência do que a suspensão de prazos ali regulados deixou de produzir efeitos a partir de 3/6/2020.

V - O legislador foi claro e explícito no sentido de que seria de aplicar o regime suspensivo ora em questão se estivessem em causa os procedimentos disciplinares a tramitar por certas entidades, com clara exclusão de entidades privadas do tipo IPSS; a enunciação taxativa e restritiva constante do art. 7º/9/b constitui um obstáculo praticamente inultrapassável a qualquer tentativa de afirmação de que o legislador teria pretendido abranger pelo regime suspensivo que ali decretou procedimentos disciplinares distintos daqueles que enunciou.

Decisão Texto Integral:






Acordam na 6.ª secção social do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

A autora propôs contra a ré a presente acção especial de impugnação da regularidade e licitude do despedimento, mediante apresentação do correspondente formulário legal, peticionando a declaração da irregularidade ou ilicitude do despedimento que lhe foi imposto pela ré, com as legais consequências.

A ré apresentou articulado motivador do despedimento, sustentando que despediu a autora, com justa causa subjectiva para o efeito, no termo de um procedimento disciplinar válido e regular, por consequência do que deveria improceder a acção.

A autora contestou e reconveio, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe uma indemnização substitutiva da reintegração no valor de 1.905,00€, as retribuições que deixou de auferir desde o despedimento e que se vencerem até ao trânsito em julgado da sentença e, ainda, o valor de 384,30€ relativo ao crédito por formação contínua não proporcionada.

Alegou, muito em síntese, que é nulo o procedimento disciplinar no termo do qual a ré decidiu despedir a autora, pois não foi respeitado o prazo para a autora responder à nota de culpa, prazo esse que esteve suspenso até 3/6/2020, por força do art. 7.º da Lei 1-A/2020, de 19/3, relativo à suspensão dos prazos, tendo a decisão de despedimento sido comunicada à autora em carta que recebeu em 28/5/2020.

Respondeu a ré, sustentando que a suspensão de prazos invocada pela autora não se aplica ao procedimento disciplinar no âmbito do qual foi proferida a decisão de despedimento, razão pela qual não ocorreu a violação do contraditório em que a autora funda a ilicitude do despedimento.

Prosseguiu a acção os seus regulares termos, tendo sido proferido despacho saneador em que se conheceu do mérito da acção, constando do segmento decisório, designadamente, o seguinte: “Atento o exposto, julgo a oposição ao despedimento totalmente improcedente e, bem assim, improcedentes os demais pedidos formulados por M... contra a S...

Custas da acção a cargo da Autora (artigo 527.º do Código de Processo Civil ex vi artigo 1.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo do Trabalho), tendo-se em conta que as custas relativas ao crédito por formação no valor de 384,30€ (objecto de transacção homologada por sentença) são a suportar por Autora e Ré em partes iguais.”.

Não se conformando com o assim decidido, apelou a autora, rematando as suas alegações com as conclusões seguidamente transcritas:

I. A douta sentença, que julgou improcedente a invalidade do procedimento disciplinar, não pode manter-se, pois consubstancia uma solução que não consagra a justa e rigorosa interpretação e aplicação ao caso sub judice das normas e dos princípios jurídicos competentes. Bem pelo contrário, a douta decisão recorrida, não pode deixar de considerar-se atentatória dos elementares princípios de justiça e legalidade.

II. No caso dos presentes autos interessa saber se os prazos do procedimento disciplinar e de prescrição contidos no artigo 329.º, nºs 1, 2, e 3, aplicáveis aos procedimentos sancionatórios disciplinares do empregador privado, também ficaram suspensos.

III. Na perspectiva do tribunal a quo, os prazos de procedimento sancionatório disciplinar do empregador privado não estão contemplados no dito normativo legal. Entende o Tribunal a quo que “claramente” os procedimentos disciplinares de particulares não foram abrangidos pela Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, pois que ali expressamente se referem apenas procedimentos sancionatórios e disciplinares que corram termos em serviços da administração direta, indireta, regional e autárquica, e demais entidades administrativas (nessa conformidade, e porque a aqui Recorrida é uma instituição privada de solidariedade social, é de afastar a suspensão do prazo para resposta da Autora à Nota de Culpa)

IV. Não é de acolher a tese (e respectiva fundamentação) desenvolvida pelo Tribunal a quo.

V. No dia 18/03/2020, para vigorar desde as 00h00 do dia 19 seguinte, o Exm.º Senhor Presidente da República declarou o Estado de Emergência, com fundamento na verificação da situação de calamidade pública (cfr. Decreto n.º 14-A/2020, de 18 de Março), pelo período de 15 (quinze) dias.

VI. No dia 20/03/2020, mas com efeitos a retroagir a 09/03/2020, a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março procedeu à ratificação dos efeitos do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, e à aprovação de medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2, agente causador da doença COVID-19 (cfr. art.ºs 1.º, alíneas a) e b), 10.º e 11.º, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março; art.º 37.º, do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março; e art.º 5.º, da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de Abril).

VII. Por efeito do Decreto do Presidente da República n.º 17-A/2020, de 2 de Abril, foi renovada a declaração do estado de emergência, pelo período de 15 (quinze) dias, tendo ocorrido nova renovação, por força do Decreto do Presidente da República n.º 20- A/2020, de 17 de Abril, por idêntico período.

VIII. Que tendo cessado a declaração do estado de emergência, mas ainda na sequência da situação epidemiológica da Covid-19, por Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-A/2020, de 30 de Abril de 2020, foi declarada a situação de calamidade em todo o território nacional até às 23h59 do dia 17 de Maio de 2020, prorrogável ou alterável mediante a evolução da dita situação epidemiológica, a qual foi efectivamente prorrogada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 38/2020, até às 23h59 do dia 31 de Maio de 2020, que revogou a anterior Resolução.

IX. Veio, ainda, a Lei n.º 14/2020, de 9 de Maio, alterar a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, mas sem que tenha modificado o regime nela instituído no tocante aos prazos e diligências processuais, mantendo-se a suspensão dos prazos.

X. Entretanto, a Lei n.º 16/2020, de 29 de Maio, que altera as medidas excepcionais e temporárias de resposta à pandemia da doença COVID-19, procedendo à quarta alteração à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, à primeira alteração à Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, e à décima segunda alteração ao Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, introduziu um inovador regime processual transitório e excepcional, no seu art.º 6.º-A, o qual iniciou a sua vigência em 03/06/2020 (cfr. seu art.º 10.º), tendo revogado o art.º 7.º, daquela Lei n.º 1-A, de 19 de Março, que vinha regulando os prazos e diligências processuais (cfr. art.º 8.º, da dita Lei n.º 16/2020, de 29 de Maio).

XI. Só a partir de 3 de Junho de 2020 os prazos deixaram de estar suspensos.

XII. Interessa apurar se as referidas normas, mormente as relacionadas com a suspensão dos prazos, se aplicam ao procedimento disciplinar instaurado contra a trabalhadora/Autora.

XIII. A resposta a essa questão resulta de forma clara do art.º 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, prevendo -se no seu n.º 6.º, alínea a) que: “O disposto no presente artigo aplica-se, ainda, com as necessárias adaptações, a: (…) b) Procedimentos contraordenacionais, sancionatórios e disciplinares (…)

XIV. Salvo o devido respeito, todas as justificações/causas que levaram à suspensão dos prazos judiciais, têm aplicabilidade no procedimento disciplinar.

XV. Existiam diversas restrições, nomeadamente, quanto à circulação das pessoas em geral e, bem assim, quanto ao distanciamento social.

XVI. O medo de circular pelas ruas e até a simples ida ao supermercado foram (e ainda são) em Março, abril e Maio encaradas com medo e pânico.

XVII. Nesse sentido, a procura de advogado por parte da A. estava também limitada, não tendo, com o devido respeito, o Tribunal a quo fundamento para concluir que o advogado da Autora era de Lamego e, alem disso, que estivesse a trabalhar nesse período de pandemia (no caso do advogado signatário, por exemplo, nos meses de março, abril e Maio permaneceu em casa e não fez qualquer tipo de atendimento presencial no escritório)

XVIII. Como também se nos afigura exagerada e completamente desvirtuada a referência que o tribunal a quo faz ao referir que os tribunais (de Março a Maio) continuaram a trabalhar e a realizar diligências.

XIX. Entende a A. que o prazo de resposta à nota de culpa remetida pela entidade empregadora/R. ainda não tinha terminado quando lhe foi comunicado o despedimento (porquanto os prazos estavam suspensos).

XX. A suspensão dos prazos em sede de procedimento disciplinar foi objecto de análise e discussão, dando origem à realização de conferências e emissão de pareceres.

XXI. No âmbito de um outro procedimento disciplinar (iniciado em Abril), movido contra uma trabalhadora, o aqui signatário solicitou à Ordem dos Advogados, o esclarecimento sobre a aplicação da suspensão dos prazos, questionando se a suspensão dos prazos era, ou não, aplicável ao procedimento disciplinar.

XXII. Em resposta, a Ordem dos Advogados, por intermédio do senhor Bastonário Professor Doutor Luís Menezes Leitão, solicitou um parecer urgente à Comissão de Legislação.

XXIII. O Senhor Presidente da Comissão de Legislação, Dr. António Raposo Subtil, emitiu o seguinte parecer (que se encontra junto ao articulado apresentado pela A. e sobre o qual não recaiu qualquer referencia ou apreciação por parte da Juiz a quo) : - «O artigo 7.º tem a epígrafe (Prazos e diligências) e o número 6, deste artigo, consigna o seguinte: “O disposto no presente artigo aplica-se, ainda, com as necessárias adaptações, a: a) procedimentos que corram termos em cartórios notariais e conservatórias; b) procedimentos contraordenacionais, sancionatórios e disciplinares …”» - «Ora, para além da suspensão do prazo ter a cobertura da letra da lei não posso deixar de referir que se não houvesse suspensão nos processos disciplinares, teríamos o absurdo de existir uma suspensão num prazo de defesa no âmbito de uma fase administrativa de um processo contra-ordenacional e de não se verificar uma suspensão no prazo de resposta à nota de culpa que constitui um meio de defesa da maior importância para o trabalhador.» - «Se é verdade que os procedimentos disciplinares não assumem carácter urgente, tendo o mesmo o prazo de 1 ano para que se complete desde o início do mesmo (abertura do processo disciplinar), também é verdade que estamos perante um dos maiores direitos do trabalhador, que merece uma especial proteção, que encontra acolhimento na letra da lei: “procedimentos contraordenacionais, sancionatórios e disciplinares …”.» - «No entanto, por mera cautela, remetia um requerimento para o processo, dirigido ao instrutor, invocando a causa excepcional que determina a suspensão do prazo e, por redobrada cautela, invocava o justo impedimento com fundamento na impossibilidade de contactar o trabalhador para preparar a defesa.».

XXIV. Ainda no âmbito da Ordem dos Advogados, foi realizada, no dia 01/04/2020, uma conferência online sob o tema “Prazos Judiciais em Estado de Emergência”, organizada pelo Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos advogados.

XXV. Conferência na qual foram levantadas diversas questões sobre os prazos, mormente dos relativos ao procedimento disciplinar, na qual se destaca: “Suspensão dos prazos nos processos disciplinares: quais os prazos que estão suspensos, os prazos da entidade empregadora e do trabalhador. Num caso hipotético, a entidade já proferiu a decisão final, contudo o trabalhador ainda não foi notificado existindo o prazo de 3 meses para o efeito. E se este também se suspende”.

XXVI. Tendo o orador, o advogado Pedro Ruivo, sido perenptório em afirmar “todos os meios de reacção estão efectivamente suspensos” e, “os prazos de natureza substantiva, todos esses prazos continuam, os prazos de natureza adjectiva no qual se incluem nomeadamente os procedimentos disciplinares, todos esses estão suspensos”. – Cfr. vídeo, minuto 04:38 a 09:08, que poderá ser consultado em https://www.youtube.com/watch?v=KujBOIfN3b4 , oportunamente junto com o articulado da Autora mas que não mereceu qualquer apreciação ou valoração (nem tão pouco referencia) por parte do Tribunal a quo.

XXVII. Salvo o devido respeito, a Lei 4-A/2020 veio estabelecer (ou, pelo menos, esclarecer) que, a partir do dia 7 de abril de 2020, os processos urgentes continuam a ser tramitados, sem suspensão ou interrupção de prazos, atos ou diligências, devendo estas últimas realizar-se através de meios de comunicação à distância adequados.

XXVIII. No âmbito dos processos urgentes, caso não seja possível realizar a diligência necessária através de meios de comunicação à distância, a mesma poderá realizar-se presencialmente apenas se estiver em causa a vida, a integridade física, a saúde mental, a liberdade ou a subsistência imediata dos intervenientes e desde que não implique a presença de um número de pessoas superior ao previsto pelas recomendações das autoridades de saúde e de acordo com as orientações fixadas pelos conselhos superiores competentes.

XXIX. Ainda assim, a lei determina a aplicação aos processos urgentes do regime de suspensão previsto para os restantes processos caso não seja possível, nem adequado, assegurar a prática de atos ou a realização de diligências nos processos urgentes.

XXX. Por outro lado, a Lei 4-A/2020 veio determinar que se consideram urgentes, para efeitos de aplicação do regime descrito: Os processos e procedimentos para defesa dos direitos, liberdades e garantias lesados ou ameaçados de lesão por quaisquer providências inconstitucionais ou ilegais; O serviço urgente previsto no Código de Processo Penal, na lei de cooperação judiciária internacional em matéria penal, na lei de saúde mental, na lei de proteção de crianças e jovens em perigo e no regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional, que deva ser executado aos sábados, nos feriados que recaiam em segunda-feira e no segundo dia feriado, em caso de feriados consecutivos; Os processos, procedimentos, atos e diligências que se revelem necessários a evitar dano irreparável, designadamente os processos relativos a menores em risco ou a processos tutelares educativos de natureza urgente e as diligências e julgamentos de arguidos presos. De notar que também não foram suspensos os prazos relativos à prática de atos realizados exclusivamente por via eletrónica no âmbito das atribuições do Instituto Nacional da Propriedade Industrial, I. P.A suspensão de prazos também não se aplica ao contencioso pré-contratual previsto no Código de Processo nos Tribunais Administrativos e aos prazos relativos a procedimentos de contratação pública, designadamente os constantes do Código dos Contratos Públicos.

XXXI. Os prazos aplicáveis aos procedimentos disciplinares estiveram suspensos desde o dia 09/03/2020 a 02/06/2020 (inclusive).

XXXII. O instrutor do processo disciplinar e a R. não tomaram em consideração a suspensão dos prazos.

XXXIII. A R. podia iniciar o procedimento disciplinar, como o fez, sendo que isso nem se põe em causa.

XXXIV. E nesse sentido, podia e devia remeter a nota de culpa à A. para que esta, no prazo de 10 dias, apresentasse a sua resposta e os respectivos meios de prova, se assim o entendesse.

36. Notificação essa, que a A. apenas recebeu a 29/04/2020.

XXXV. Seguidamente, deveria ter a R. aguardado pelo término do prazo de 10 dias úteis, que apenas ocorreria a 18 de Junho de 2020.

XXXVI. Contudo, a R. proferiu decisão final, procedendo ao despedimento da A.

XXXVII. Decisão que chegou ao conhecimento da A., através de carta registada com A/R, recebida a 28/05/2020.

XXXVIII. Ou seja, como se deu conta o prazo de 10 dias, para a A. responder à nota de culpa, concedido ao abrigo do art.º 355.º do CT, ainda não tinha decorrido.

XXXIX. Nesse sentido, foi tomada a decisão final com aplicação da sanção disciplinar, sem a audiência prévia da trabalhadora/A.

XL. Em clara violação do prescrito no art.º 329.º, n.º 6 do CT, que exige essa audiência prévia, antes da aplicação da sanção.

XLI. Consequentemente, sanção é nula e o procedimento disciplinar inválido, o que desde já se invoca para todos os efeitos legais daí advenientes.

XLII. O despedimento é ilícito por invalidade do procedimento disciplinar, como decorre do art.º 382.º, n.º 1, alínea c) do CT.

XLIII. O procedimento disciplinar é inválido e desprovido de qualquer efeito, sendo o despedimento nulo e ilícito.

XLIV. Estando o procedimento disciplinar ferido de invalidade, por não ter sido respeitado o prazo para a A./trabalhadora responder à nota de culpa, não resta ao Tribunal outra decisão, que não seja julgar despedimento ilícito e ilegal e, consequentemente, proceder ao pagamento da indemnização prevista no art.º 391.º do CT e ainda às retribuições que a mesma deixou de auferir desde a data do despedimento até transito em julgado da presente decisão.”.

Contra-alegou a ré, pugnando pela improcedência da apelação.

O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

II - Principais questões a decidir

Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso (artigos 635º/4 e 639º/1/2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei 41/2013, de 26/6 – NCPC – aplicável “ex-vi” do art. 87º/1 do Código de Processo do Trabalho – CPT), integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões a decidir:

1ª) se o prazo para a autora responder à nota de culpa se encontrou suspenso até ao dia 3/6/2020, por força da Lei 1-A/2020, de 19/3, nas redacções sucessivas que lhe foram sendo conferidas até à Lei 16/2020, de 29/5;

2ª) em caso de resposta afirmativa à primeira questão, se o despedimento da autora é ilícito por violação do direito ao contraditório em sede de procedimento disciplinar decorrente da inobservância do prazo de resposta da autora à nota de culpa;

3ª) em caso de resposta afirmativa à primeira e segunda questões, que efeitos decorrem da ilicitude do despedimento da autora.

III – Fundamentação

A) De facto

Factos provados

O tribunal recorrido descreveu como provados os seguintes factos:

...

B) De direito

Primeira questão: se o prazo para a autora responder à nota de culpa se encontrou suspenso até ao dia 3/6/2020 por força da Lei 1-A/2020, de 19/3, nas redacções sucessivas que lhe foram sendo conferidas até à Lei 16/2020, de 29/5.

Nos termos do art. 7º da Lei 1-A/2020, de 19/03, na sua primitiva redacção:

“1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, aos atos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos, que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal, aplica-se o regime das férias judiciais até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, conforme determinada pela autoridade nacional de saúde pública.

2 - O regime previsto no presente artigo cessa em data a definir por decreto-lei, no qual se declara o termo da situação excecional.

3 - A situação excecional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos.

4 - O disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excecional.

5 - Nos processos urgentes os prazos suspendem-se, salvo nas circunstâncias previstas nos n.os 8 e 9.

6 - O disposto no presente artigo aplica-se ainda, com as necessárias adaptações, a:

a) Procedimentos que corram termos em cartórios notariais e conservatórias;

b) Procedimentos contraordenacionais, sancionatórios e disciplinares, e respetivos atos e diligências que corram termos em serviços da administração direta, indireta, regional e autárquica, e demais entidades administrativas, designadamente entidades administrativas independentes, incluindo o Banco de Portugal e a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários;

c) Prazos administrativos e tributários que corram a favor de particulares.

7 - Os prazos tributários a que se refere a alínea c) do número anterior dizem respeito apenas aos atos de interposição de impugnação judicial, reclamação graciosa, recurso hierárquico, ou outros procedimentos de idêntica natureza, bem como aos prazos para a prática de atos no âmbito dos mesmos procedimentos tributários.

8 - Sempre que tecnicamente viável, é admitida a prática de quaisquer atos processuais e procedimentais através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente por teleconferência ou videochamada.

9 - No âmbito do presente artigo, realizam-se apenas presencialmente os atos e diligências urgentes em que estejam em causa direitos fundamentais, nomeadamente diligências processuais relativas a menores em risco ou a processos tutelares educativos de natureza urgente, diligências e julgamentos de arguidos presos, desde que a sua realização não implique a presença de um número de pessoas superior ao previsto pelas recomendações das autoridades de saúde e de acordo com as orientações fixadas pelos conselhos superiores competentes.

10 - São suspensas as ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria.

11 - Após a data da cessação da situação excecional referida no n.º 1, a Assembleia da República procede à adaptação, em diploma próprio, dos períodos de férias judiciais a vigorar em 2020.”

No caso em apreço a autora recebeu a nota de culpa no dia 28/4/2020, ou seja num momento em que já se encontrava em vigor a Lei 4-A/2020, de 6/4, que alterou a Lei 1-A/2020, designadamente no que concerne artigo 7º que aqui nos interessa, que passou a ter a seguinte redacção

“1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, todos os prazos para a prática de atos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal ficam suspensos até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, a decretar nos termos do número seguinte.

2 - ...

3 - ...

4 - ...

5 - O disposto no n.º 1 não obsta:

a) À tramitação dos processos e à prática de atos presenciais e não presenciais não urgentes quando todas as partes entendam ter condições para assegurar a sua prática através das plataformas informáticas que possibilitam a sua realização por via eletrónica ou através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente;

b) A que seja proferida decisão final nos processos em relação aos quais o tribunal e demais entidades entendam não ser necessária a realização de novas diligências.

6 - Ficam também suspensos:

a) O prazo de apresentação do devedor à insolvência, previsto no n.º 1 do artigo 18.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;

b) Quaisquer atos a realizar em sede de processo executivo, designadamente os referentes a vendas, concurso de credores, entregas judiciais de imóveis e diligências de penhora e seus atos preparatórios, com exceção daqueles que causem prejuízo grave à subsistência do exequente ou cuja não realização lhe provoque prejuízo irreparável, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 137.º do Código de Processo Civil, prejuízo esse que depende de prévia decisão judicial.

7 - Os processos urgentes continuam a ser tramitados, sem suspensão ou interrupção de prazos, atos ou diligências, observando-se quanto a estes o seguinte:

a) Nas diligências que requeiram a presença física das partes, dos seus mandatários ou de outros intervenientes processuais, a prática de quaisquer atos processuais e procedimentais realiza-se através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente;

b) Quando não for possível a realização das diligências que requeiram a presença física das partes, dos seus mandatários ou de outros intervenientes processuais, nos termos da alínea anterior, e esteja em causa a vida, a integridade física, a saúde mental, a liberdade ou a subsistência imediata dos intervenientes, pode realizar-se presencialmente a diligência desde que a mesma não implique a presença de um número de pessoas superior ao previsto pelas recomendações das autoridades de saúde e de acordo com as orientações fixadas pelos conselhos superiores competentes;

c) Caso não seja possível, nem adequado, assegurar a prática de atos ou a realização de diligências nos termos previstos nas alíneas anteriores, aplica-se também a esses processos o regime de suspensão referido no n.º 1.

8 - Consideram-se também urgentes, para o efeito referido no número anterior:

a) Os processos e procedimentos para defesa dos direitos, liberdades e garantias lesados ou ameaçados de lesão por quaisquer providências inconstitucionais ou ilegais, referidas no artigo 6.º da Lei n.º 44/86, de 30 de setembro, na sua redação atual;

b) O serviço urgente previsto no n.º 1 do artigo 53.º do Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de março, na sua redação atual;

c) Os processos, procedimentos, atos e diligências que se revelem necessários a evitar dano irreparável, designadamente os processos relativos a menores em risco ou a processos tutelares educativos de natureza urgente e as diligências e julgamentos de arguidos presos.

9 - O disposto nos números anteriores aplica-se, com as necessárias adaptações, aos prazos para a prática de atos em:

a) [Anterior alínea a) do n.º 6.]

b) Procedimentos contraordenacionais, sancionatórios e disciplinares, incluindo os atos de impugnação judicial de decisões finais ou interlocutórias, que corram termos em serviços da administração direta, indireta, regional e autárquica, e demais entidades administrativas, designadamente entidades administrativas independentes, incluindo a Autoridade da Concorrência, a Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, o Banco de Portugal e a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, bem como os que corram termos em associações públicas profissionais;

c) Procedimentos administrativos e tributários no que respeita à prática de atos por particulares.

10 - A suspensão dos prazos em procedimentos tributários, referida na alínea c) do número anterior, abrange apenas os atos de interposição de impugnação judicial, reclamação graciosa, recurso hierárquico, ou outros procedimentos de idêntica natureza, bem como os atos processuais ou procedimentais subsequentes àqueles.

11 - Durante a situação excecional referida no n.º 1, são suspensas as ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.

12 - Não são suspensos os prazos relativos à prática de atos realizados exclusivamente por via eletrónica no âmbito das atribuições do Instituto Nacional da Propriedade Industrial, I. P.

13 - (Anterior n.º 11.)”.

Finalmente, a Lei 16/2020, de 29/5, procedendo, também, à quarta alteração à Lei nº 1-A/2020, de 19/3, e à décima segunda alteração ao DL 10-A/2020 de 13/3, revogou o referido artigo 7º (artigo 8º), por consequência do que a suspensão de prazos ali regulados deixou de produzir efeitos a partir de 3/6/2020.

Temos, assim, no âmbito de um diploma legal de natureza excecional que decretou as medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19: i) uma norma que decretou a suspensão dos prazos para a prática de actos processuais e procedimentais que devessem ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corriam termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal (art. 7º/1); ii) outra norma que determinou a suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos (art. 7º/3); iii) uma norma excecional que determinou a aplicação do regime das duas anteriores normas, na parte com relevo para o caso dos autos, aos procedimentos disciplinares que corram termos em serviços da administração direta, indireta, regional e autárquica, e demais entidades administrativas, designadamente entidades administrativas independentes, incluindo a Autoridade da Concorrência, a Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, o Banco de Portugal e a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, bem como os que corram termos em associações públicas profissionais (art. 7º/9/b)).

O problema que ora se suscita é o de saber se a suspensão decorrente desta última norma se aplica, também, a procedimentos disciplinares que corram termos em entidades distintas das que nela se encontram identificadas, designadamente em entidades privadas do tipo da recorrida que é uma IPSS – no sentido de que as IPSS são pessoas colectivas privadas pode consultar-se, por exemplo, Pedro Gonçalves, Entidades Privadas com poderes públicos, Almedina, 2005 p. 252; caracterizado as IPSS como instituições particulares de interesse público, numa das modalidades de que se podem revestir-se as pessoas colectivas privadas de utilidade pública, parecer do Conselho Consultivo da PGR de 6/12/1990, publicado no DR, de 28/3/1991, nº 73, p. 23..

Comece por se recordar que está legalmente impedida a aplicação analógica do referido art. 7º/9/b, enquanto norma excecional que é, pois que nos termos do art. 11º do CC “As normas excecionais não comportam aplicação analógica, mas admitem interpretação extensiva.”.

Por outro lado: i) “A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.” (art. 9º/1 do CC); ii) “Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.” (art. 9º/2 do CC); iii) “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.” (art. 9º/3 do CC).

Resulta do art. 9º transcrito que na interpretação da lei devem considerar-se os elementos literal, histórico, sistemático e teleológico, tudo com vista a alcançar-se o resultado final pretendido, qual seja o de ser desvendado o espírito da lei (o denominado pensamento legislativo objectivo).

O ponto de partida do intérprete é constituído pelo elemento literal que, além disso, também constitui o limite da interpretação.

Com efeito, a letra da lei tem duas funções: a negativa ou de exclusão, que impõe o afastamento de qualquer interpretação que não tenha uma base de apoio na lei (teoria da alusão); e a positiva ou de selecção que determina sucessivamente, de entre os vários significados possíveis, o técnico-jurídico, o especial e o fixado pelo uso geral da linguagem.

Logo por aqui se verifica que a interpretação sustentada pela apelante no sentido da aplicação do regime do art. 7º/9/b a entidades privadas esbarra no elemento literal, em especial na sua função negativa.

Com efeito, por um lado, partindo-se de uma enunciação taxativa constante do dispositivo legal em questão relativamente às entidades no âmbito das quais pendiam ou viriam a pender procedimentos disciplinares sujeitos ao regime de suspensão do art. 7º/1/3 transcritos, logo se verifica que essa enunciação taxativa não comporta, ainda que imperfeitamente expressa, a mínima alusão a entidades distintas das assim enunciadas, designadamente a entidades privadas do tipo das IPSS.

Assim sendo, sustentar-se que o regime de suspensão ora em causa se aplicava, também, a procedimentos disciplinares tramitados por entidades privadas redundaria na adopção de uma interpretação que não tem a mínima base de apoio na letra da lei, o que é vedado pelo art. 9º/2 do CC.

Por outro lado, o legislador conhecia, como não podia deixar de ser, que para lá das entidades que identificou no art. 7º/9/b, outras existem com competência disciplinar a exercer através da tramitação dos competentes procedimentos disciplinares, pois foi esse mesmo legislador que, por exemplo e relativamente ao regime jurídico do contrato de trabalho em que são empregadores entidades privadas: i) determinou que “O empregador tem poder disciplinar sobre o trabalhador ao seu serviço, enquanto vigorar o contrato de trabalho.” (art. 98º do CT/09); ii) regulamentou aspetos substantivos e procedimentais a que devia subordinar-se o exercício desse poder disciplinar (arts. 328º a 332º, 352º a 358º do CT/09).

Sendo assim, sustentar-se que o regime suspensivo ora em questão se aplicava a processos disciplinares tramitados por entidades diversas das taxativamente identificadas no art. 7º/9/b viola ostensivamente a presunção decorrente do transcrito 9º/3 do CC.

Com efeito, como na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art. 9º/3 do CC), apenas se encontra utilidade na enunciação identificativa de entidades constante do art. 7º/9/b se com ela se pretendia excluir do âmbito de aplicação dessa norma os procedimentos disciplinares tramitados por entidades distintas das constantes daquela enunciação.

É certo que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, devendo reconstituir o pensamento legislativo (art. 9º/1 do CC), sendo igualmente certo que se por essa via reconstitutiva se chegar à conclusão de que o texto da lei “diz menos do que aquilo que se pretendia dizer”, deve fazer-se uma interpretação extensiva, estendendo o texto de modo a abarcar os casos que, embora não directamente abrangidos pela letra da lei, são abrangidos pelo seu espírito.

Ora, o legislador foi claro e explícito no sentido de que seria de aplicar o regime suspensivo ora em questão se estivessem em causa os procedimentos disciplinares a tramitar por certas entidades, com clara exclusão de entidades privadas do tipo da recorrente; a enunciação taxativa e restritiva constante do art. 7º/9/b constitui um obstáculo praticamente inultrapassável a qualquer tentativa de afirmação de que o legislador teria pretendido abranger pelo regime suspensivo que ali decretou procedimentos disciplinares distintos daqueles que enunciou.

Por outro lado, não existem, que conheçamos, trabalhos preparatórios da Lei 1-A/2020 e da Lei 4-A/2020, do mesmo modo que delas nada consta em termos de exposição de motivos, razão pela qual não pode sustentar-se que a história desses diplomas legais induz à conclusão de que o legislador se pronunciou em termos divergentes e mais restritivos do que aqueles em que pretendia pronunciar-se.

A idêntica conclusão se chega no plano do elemento sistemático que indica que as leis se interpretam umas pelas outras porque a ordem jurídica forma um sistema e a norma deve ser tomada como parte de um todo sistemático, pois que não existem outros diplomas legais a partir dos quais possa sustentar-se que os termos taxativos e restritivos em que o legislador se pronunciou no art. 7º/9/b contrariam a unidade do sistema jurídico a que deve atender-se em sede interpretativa.

Finalmente, o elemento racional ou teleológico que leva a atender-se ao fim ou objectivo que a norma visa realizar (ratio legis) não permite sustentar de forma inequívoca que a solução suspensiva decorrente do art. 7º/9/b deveria ser extensível a todos os procedimentos disciplinares, independentemente da natureza da entidade em que corressem termos, pois que, por exemplo: i) os constrangimentos pandémicos que motivaram essa solução e correspondentes âmbitos de extensão não foram iguais para todos, tendo variado, por exemplo, em função da natureza pública ou privada do “empregador” e do sector de actividade em que o “empregador” operava, bem assim como do tipo de actividade desempenhada por cada profissional e do sector de actividade em que o mesmo operava[1]; ii) não são totalmente coincidentes os contornos procedimentais dos “procedimentos disciplinares públicos” e correspondentes sanções regulamentados na Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas a que estavam sujeitos  a generalidade dos procedimentos disciplinares referidos pelo art. 7º/9/b, por um lado, e o “procedimento disciplinar privado” e correspondentes sanções regulamentados no CT/09 e a que estavam sujeitos os procedimentos disciplinares tramitados por empregadores privados, por outro lado[2].

Tudo visto, sem prejuízo de conhecermos entendimentos divergentes[3], somos do entendimento de que o regime suspensivo do art. 7º/9/b citado não se aplica aos procedimentos disciplinares tramitados por entidades privadas, como é a recorrente – no sentido por nós propugnado, José Oliveira Martins, Dúvidas na interpretação de alguns preceitos da legislação de emergência (Covid 19), Julgar On Line, Março de 2020, p. 3, nota 4, Luís Filipe Salabert, Covid 19 e a sua interferência nos prazos processuais, Covid 19 e o Direito, Edições Universitárias Lusófonas, p. 146, nota 2, Paulo Pimenta, Prazos, diligências, processos e procedimentos em época de emergência de saúde pública (DL nº 10-A/2020, de 13 de Março, Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março, e Lei nº 4-A/2020, de 6 Abril), consultável em https://www.direitoemdia.pt/magazine/show/68, Pedro Ruivo, intervenção feita na sessão de esclarecimentos que decorreu on line no dia 27/4/2020 e que pode ser consultada em https://www.youtube.com/watch?v=D8IY8X1hlzw#t=18m07s, aqui se explicitando, em resposta a questão directamente relacionada com a suspensão dos prazos em procedimentos disciplinares privados, entendimento diferente do que o mesmo autor tinha anteriormente (1/4/2020) explicitado na conferência on line “Prazos Judiciais em Estado de Emergência” a respeito de questão[4] que nada tinha a ver com a dita suspensão de prazos (https://www.youtube.com/watch?v=KujBOIfN3b4).

É negativa, assim, a resposta a esta questão.


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A resposta negativa à primeira questão prejudica o conhecimento das demais.

IV- DECISÃO

Acordam os juízes que integram esta sexta secção social do Tribunal da Relação de Coimbra no sentido de julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Sem custas.

Coimbra, 29/1/2021.


(Jorge Manuel Loureiro)

(Paula Maria Roberto)

(Ramalho Pinto)



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[1] Para assim concluir bastar consultar os diferentes instrumentos normativos que se encontram publicados em https://dre.pt/legislacao-covid-19.
[2] Atente-se, apenas a título de exemplo: i) na circunstância do “procedimento disciplinar público” prever a possibilidade de intervenção de advogado  do trabalhador no âmbito do procedimento (art. 35º do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas), ao passo que no “procedimento disciplinar privado” a jurisprudência dos nossos tribunais judiciais superiores tem vindo a  recusar a intervenção activa de advogado na fase instrutória do procedimento (v.g. acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 16/5/1990, BTE, 2.ª série, nrs. 10-11-12/91, p. 1188, de 31/10/2007, proferido no processo 4430/2007-4, do Tribunal da Relação do Porto de 12/5/2005, CJ, 2005, V, p. 247, de 13/4/2015, proferido no processo 994/14.9TTPNF.P1, do STJ 8/6/2006, proferido no processo 05S3731- no mesmo sentido, agora na doutrina, Júlio Gomes, Direito do Trabalho, vol. I, p. 1006); ii) nas diferenças entre as sanções disciplinares previstas no art. 9º do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas e no art. 328º do CT/2009; iii) na exigência de “procedimento disciplinar privado” para aplicar qualquer tipo de sanção, incluindo a repreensão (art. 329º do CT/09), podendo ser aplicada a sanção de repreensão registada a um trabalhador em funções públicas sem necessidade de procedimento disciplinar (art. 28º/2 do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas); iv) na diversidade das formas de processo previstas para o “procedimento disciplinar público” (art. 27º do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas) que não encontra paralelo no “procedimento disciplinar privado”.
[3] O enunciado no parecer da Comissão de Legislação da Ordem dos Advogados invocado no art. 29º das alegações, no estudo de Sílvia Saraiva, Acesso ao direito e aos tribunais, no contexto da pandemia COVID-19, Estado de Emergência - COVID-19, Implicações na Justiça, CEJ, pp 641 a 643, no estudo de Pedro Romano Martinez, Dúvidas na interpretação de alguns preceitos da legislação de emergência (Covid 19), Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, volume LXI, (2020) 1, pp. 634 e 635.
[4] A questão a que se respondia na intervenção era a seguinte: “O prazo de prescrição do direito à indemnização previsto no n.º 1 do artigo 498.º do Código Civil encontra-se suspenso à luz do disposto no n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março?”.