Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3663/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. GARCIA CALEJO
Descritores: VALIDADE DE UMA DOAÇÃO DE USUFRUTO POR 25 ANOS
Data do Acordão: 01/13/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CELORICO DA BEIRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Legislação Nacional: ART.º 136º A 145.º A. P. ADMINISTRATIVO
Sumário:
I – De harmonia com o disposto no nº 2 do artº 145º do C.P.A., a anulação ou revogação de um acto administrativo, com fundamento em invalidade, produz efeitos retroactivos, cabendo aos particulares lesados interpor recurso contencioso dessas decisões, perante os Tribunais Administrativos .
II – Qualquer juízo sobre a validade desse tipo de actos administrativos foge, em absoluto, da competência material dos Tribunais Comuns .
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I- Relatório:
1-1- A Associação de Melhoramentos Cultural e Desportiva do Concelho de Celorico da Beira, com sede em Celorico da Beira, propõe contra o Município de Celorico da Beira, com sede em Celorico da Beira, a presente acção com processo ordinário, pedindo que se declare a sua propriedade sobre o edifício que, exclusivamente a expensas suas, construiu sobre o terreno do R., se declare que adquiriu, com a incorporação do edifício no terreno e por acessão, o direito de propriedade sobre o mesmo terreno e logradouro anexo, se fixe em 3.200.000$00 ( 15 961,53 Euros ) o valor do aludido terreno à data da incorporação, valor esse que pagará ao R. após o trânsito da decisão, se ordene o cancelamento do registo de propriedade do imóvel a favor do R. e subsidiariamente se condene o R. a reconhecer, por efeito da doação referida, a invocada posse legítima da A. sobre o imóvel descrito nos autos e se condene o R. a abster-se da prática de qualquer acto que perturbe a mesma posse.
Fundamentam estes seus pedidos, em síntese, no facto de ser dona e legítima possuidora de um imóvel urbano, sito na Rua da Corredoura, freguesia de S. Pedro, concelho de Celorico da Beira, sendo destinado a creche e jardim de infância, composto por cave, R/C, sótão e logradouro anexo, com a área coberta de 484 m2 e descoberta de 5 525 m2. A construção do referido imóvel foi levada a efeito pela A, em terreno propriedade do R., com autorização da Câmara Municipal de Celorico da Beira. Em 09/10/84 a Assembleia Municipal de Celorico da Beira, deliberou autorizar a Câmara a adquirir um terreno contíguo ao logradouro do edifício do ex-colégio, terreno que seria, posteriormente, doado à A. para edificar a aludida obra. A Câmara Municipal de Celorico da Beira deliberou, em reunião ordinária de 30/11/84, doar à A. o aludido terreno, tendo definido que a doação seria um lote de 1474 m2, doação essa que nunca chegou a ser formalizada, apesar de o R. desde logo ter posto à disposição da A. o aludido terreno. A obra iniciou-se em 1986 e foi inteiramente custeada pela A., para qual conseguiu avultadas verbas inscritas no PIDAC, com o projecto aprovado pela Câmara em reunião ordinária de 26/11/85, para o qual despendeu 440.800$00 / E. 2 198,70, tendo a obra sido adjudicada pelo valor de 23.708.831$00 / E. 118 259,15, a qual veio a ficar em valor superior, atenta a existência de alguns trabalhos a mais e de revisão de preços tendo pago ao construtor a importância de 26 182 881$00 / E. 130 599,65, tendo ainda despendido a mais com o aquecimento central a importância de 4 571.427$00 / E 22 802,18, tendo ficado tudo no valor de 31.141.108$00 / E 155 331,19. A superfície coberta ocupa a área de 484 m2 e as infra-estruturas exteriores vieram a ocupar uma área adicional de 5.525 m2, de terreno, igualmente pertencente à R.. Ao tempo da conclusão da obra em 1998, tal terreno valia, então cerca de 3.200.000$00 / E 15 961,53, enquanto que o imóvel edificado era superior a 35.000.000$00 / E. 174 579,26. Após o terminus da obra a A. passou a usar e fruir o imóvel e respectivo logradouro, situação que se manteve apenas com a interrupção forçada pelo esbulho a que se refere o procedimento cautelar apenso. A A. construiu um edifício, exclusivamente a expensas próprias, com dinheiros que conseguiu obter de subsídios, sendo o valor acrescentado ao terreno, com a obra da A., manifestamente superior ao valor que o terreno tinha antes, valor esse de 3.200.000$00 / E 15 961,53, que a A. se propõe pagar à R. logo que seja reconhecido o seu direito. A A. actuou de boa fé, pois a obra foi autorizada pelo dono do terreno, o R., devendo assim declarar-se que a A. adquiriu por acessão o direito de propriedade sobre o terreno. Ao registar o imóvel a seu favor a Câmara actuou de forma ilegítima, tendo tal inscrição registral tido lugar em 27/12/93 com base numa simples declaração do então Presidente da Câmara, constante da acta de reunião de 07/11/88, na qual informou que a A. tinha oferecido o edifício da Creche, nunca tendo sito tal oferta materializada ou formalizada através de qualquer acto ou documento juridicamente relevante e eficaz. Considerando-se o R. proprietário do aludido imóvel, em reunião ordinária da respectiva Câmara de 14/12/93, foi deliberado doar o usufruto, do terreno e edifício que constituem tal imóvel, pelo prazo de 25 anos, tendo sido formalizada por escritura pública no Cartório Notarial Privativo da Câmara Municipal, doação essa que foi aceite.
1-2- O R. contestou, sustentando, também em síntese, que a A. nunca foi proprietária nem possuidora do edifício em causa, encontrando-se registado a favor da Câmara Municipal de Celorico da Beira, sem nunca anteriormente ter tido outro titular. Foi o R. desde sempre o único dono do identificado edifício, tendo sobre ele desde sempre exercido poderes de facto sobre o mesmo como seu proprietário. O aludido imóvel não é apenas composto por um edifício com a área coberta de 484 m2. Com efeito, 5 525 m2 de logradouro anexo foram efectivamente adquiridos pela Câmara Municipal e neles foram edificados, piscina municipal, edifício do parque de leilão de gado e arruamentos públicos de acesso ao mercado. Não foi efectuada nenhuma doação do terreno onde foi construído o edifício, existindo apenas um pedido do Sr. Presidente para que essa doação fosse efectuada. A obra foi paga pela Câmara, tendo-se a A. comprometido a devolver o dinheiro que hipoteticamente lhe viesse a ser entregue em função de uma candidatura apresentado à Segurança Social. Na reunião do executivo camarário de 07/11/88, foi este informado pelo Presidente da Associação ora A., também Presidente da Câmara de que tinha oferecido o edifício em causa ao R., o que se compreende atento o facto de a Câmara ter pago a obra. Em 14/11/93 a Câmara deliberou por unanimidade doar à A. o usufruto de todo o terreno e edifício onde a creche – jardim de infância se encontra instalada, tendo a A. outorgado a referida escritura porque bem sabia não ser proprietária do identificado terreno e edifício. Nunca a A. obteve qualquer licença ou projecto aprovado na Câmara para a construção do referido edifício. Nas eleições autárquicas de 12/12/93, saiu eleito novo Presidente, e o anterior Presidente e Vereadores em 14/12/93 deliberaram onerar bens do património Municipal, entre eles o usufruto do terreno e edifício da creche jardim de infância, objecto da presente acção, tendo tal doação sido perfeitamente ilegal, que originou até perda de mandato do antigo Presidente e porque ilegal tal deliberação foi revogada pela Câmara, por unanimidade, por deliberação de 07/02/94, sendo esta a única deliberação em vigor sobre tal matéria. Sempre a A. soube que a propriedade e posse do imóvel era do Réu, sabendo desde finais de 1993, que não tinha direito sobre o usufruto, porque o mesmo não tinha sido validamente constituído, sendo proprietária do edifício a Câmara Municipal de Celorico da Beira, tendo o R. ocupado e regressado à direcção do prédio em 16/01/99.
Termina pedindo que devem ser indeferidos os pedidos formulados pela A., e em consequência ser o R. absolvido deles.
1-3- A A. respondeu com a réplica alegando, em síntese, que o que a A. pretende, é ver reconhecido o direito de propriedade sobre o imóvel urbano e logradouro que lhe está afecto, independentemente da área efectiva de tal conjunto imobiliário. O facto de o então Presidente da Câmara e da Associação ser o mesmo, não lhe retira competências que efectivamente detinha nos respectivos cargos, uma vez que se trata de duas entidades com personalidade jurídica distinta, ainda que representados pela mesma pessoa. Foi a A. que pagou integralmente a obra. A doação foi formalizada por escritura pública e a sua revogação foi feita por deliberação camarária, quando apenas o podia ter sido por acordo das partes, ou pela via judicial.
Termina concluído como na petição inicial.
1-4- O processo seguiu os seus regulares termos posteriores, tendo-se proferido despacho saneador, fixado os factos assentes e a base instrutória, após o que se realizou a audiência de discussão e julgamento, se respondeu ao questionário e se proferiu a sentença.
1-5- Nesta considerou-se improcedente a acção quanto aos pedidos de reconhecimento do direito de propriedade à A., por via da acessão, deles se absolvendo o R.. Mas considerou-se procedente a acção quanto aos pedidos formulados nas als. e) e f), condenando-se o R. a reconhecer que a posse da A. legítima quanto ao prédio urbano sito na Rua da Corredoura, freguesia de S. Pedro, Celorico da Beira, destinado a creche e jardim de infância, inscrito na matriz sob o art. 1.104.º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Celorico da Beira, sob o nº 0054, em consequência da doação do usufruto que lhe foi feita pelo prazo de 25 anos, celebrada por escritura de 28-12-93. Mais se condenou o R. a abster-se de praticar quaisquer actos que perturbem a posse da A.
1-6- Não se conformando com esta sentença, dela vieram recorrer a A. e o R., recursos que foram admitidos como apelação e com efeito suspensivo.
Porém o recurso apresentado pela A. veio a ser declarado deserto por falta de alegações ( fls. 388 ).
1-7- O recorrente R. alegou, tendo dessas alegações retirado as seguintes conclusões úteis:
1ª- Não se verificaram, em concreto, os requisitos da acessão industrial imobiliária, não tendo nascido, por isso, na esfera jurídica da A., o direito potestativo de adquirir nos termos do art. 1340º do C.Civil.
2ª- Mas mesmo que tal direito tivesse surgido, a A. tê-lo-ia renunciado ao outorgar a escritura de doação de usufruto.
3ª- A Câmara Municipal de Celorico, através da deliberação de 7-2-94, pretendeu anular a deliberação que considerou ilegal.
4ª- A Câmara tinha legitimidade para através de nova deliberação anular, com fundamento em ilegalidade, a deliberação anterior, de 14-12-93, através da qual decidiu doar à A. o usufruto do bem, com nos termos dos arts. 136º e 141º a 143º do C.P.A., sendo que, de harmonia com o disposto no nº 2 do art. 145º nº 2 do mesmo diploma, a anulação ou revogação do acto administrativo com fundamento em invalidade produz efeitos retroactivos.
5ª- Uma vez anulado o acto administrativo pela Administração com base em ilegalidade, cabe aos particulares que se sintam lesados, interpor recurso contencioso de anulação nos Tribunais Administrativos, no prazo de dois meses.
6ª- A invalidade do acto administrativo habilitante da administração a outorgar um contrato de direito privado, acarreta a nulidade deste, automaticamente, por um lado, por falta de poderes de representação da pessoa colectiva pelo órgão ou agente que nele outorgar e por outro, por se tratar de violação de normas imperativas de direito público ( arts. 294º e 286º do C.Civil ).
7ª- A Câmara Municipal cumpriu o seu dever ao anular uma deliberação ilegal e que o contrato de doação celebrado com base nessa deliberação ilegal, entretanto anulada com eficácia retroactiva, é ineficaz perante o Município de Celorico, pois foi celebrado por pessoa sem poderes de representação e é nulo por ter sido celebrado em violação de normas de direito público.
8ª- Na acção civil em recurso, o Senhor Juiz era materialmente incompetente para decidir a questão da validade da deliberação que retirou a base jurídica do contrato de doação do usufruto, pois está em causa uma questão de direito administrativo.
9ª- Assim, o Senhor Juiz devia ter-se conformado com a anulação do acto administrativo e ter reconhecido a nulidade derivada do contrato de doação de usufruto.
10ª- O Senhor Juiz apenas poderia ter reconhecido a posse autónoma ou formal da A.
11ª- E no confronto desta posse, desacompanhada do direito de usufruto e o direito de propriedade plena invocado e provado pela R., comprovado através do registo da propriedade e das presunções decorrentes do art. 7º do C.R.P., deveria ter dado prevalência a este, julgando improcedentes os pedidos subsidiários formulados pela A.
12ª- A posse autónoma é por natureza provisória, uma vez que a protecção que a lei lhe confere cessa se, antes do decurso do prazo da usucapião, o titular do direito real definitivo o vier alegar e provar para o defender contra pretensões possessórias contrárias, como aconteceu no caso sub judice.
Termos em que deve ser revogada a sentença recorrida.
1-7- A parte contrária não respondeu a estas alegações.
Corridos os vistos legais, há que apreciar e decidir.
II- Fundamentação:
2-1- Uma vez que o âmbito objectivos dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos apenas as questões que ali foram enunciadas ( arts. 690º nº1 e 684º nº 3 do C.P.Civil ).
2-2- Após a resposta à base instrutória, ficou assente a seguinte matéria de facto:
1- Na Rua da Corredoura, freguesia de S. Pedro, Celorico da Beira, existe um prédio urbano, destinado, desde a sua concepção a creche e jardim de infância, composto de cave, R/ch., sótão e logradouro anexo, o qual confronta do Norte, Nascente e Sul com rua pública e Poente com antigo Colégio.
2- O prédio referido em A) encontra-se inscrito na matriz predial urbana da freguesia de S. Pedro sob o art. 1.104º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Celorico da Beira sob o nº 00541 e nele figura como titular do direito de propriedade inscrito o R..
3- Em 1984 a A. propôs-se construir as instalações destinadas a uma creche e jardim de infância referidas em A).
4- Contactado para o efeito, o R., na pessoa do então Presidente da Câmara, propôs-se o R. facultar o terreno para construção.
5- A Assembleia Municipal de Celorico da Beira, deliberou em 09/10/1984, autorizar a Câmara a adquirir o terreno contíguo ao logradouro do edifício do ex-colégio à família Osório Portugal.
6- Em 1986 a A. levou a cabo a construção do imóvel referido em A) e conclui-a em Novembro de 1988, tendo sido a implantação do imóvel autorizada pelo R..
7- O R., considerando-se proprietário do prédio referido em A), através da respectiva Câmara em reunião ordinária que teve lugar no dia 14/12/1993, deliberou doar à A. o usufruto do terreno e edifício que o constituem, pelo prazo de 25 anos.
8- Na sequência de tal deliberação, foi outorgada no Cartório Notarial Privativo da Câmara Municipal escritura publica de doação, a qual foi aceite.
9- Por deliberação de 7.02.1994 foi revogada, por unanimidade, a deliberação referida no facto G).
10- O R. intentou neste Tribunal acção ordinária contra a A., pedindo a anulação da doação referida em H), da qual a A. foi absolvida da instância por ter sido julgado incompetente, em razão da matéria, o Tribunal Judicial de Celorico da Beira.
11- No dia 16 de Janeiro de 1999, o R. ocupou o prédio referido em A).
12- A R. deliberou em reunião ordinária de 30.11.1984, doar à A. o terreno referido em E) da MFA.
13- Essa doação nunca chegou a ser formalizada.
14- A construção referida em F) da MFA foi inteiramente custeada pela A..
15- Que, para tal, obteve comparticipação do Centro Regional de Segurança Social da Guarda através de verbas inscritas no PIDAC nos anos de 1985/86/87/88.
16- A A. contratou com a empresa Tecnopórtico da Guarda elaboração do projecto respectivo.
17- No que despendeu a quantia de Esc. 440.800$00.
18- Tal projecto foi presente à reunião ordinária da Câmara Municipal de Celorico da Beira, em 26/11/1985.
19- E foi aprovado por unanimidade.
20- Após aprovação a A. adjudicou a obra referida no facto F) da MFA à firma Carlos Alberto Fernandes Marques, Lda..
21- Pelo preço de 23.708.831$00.
22- Devido à existência de trabalhos adicionais o A. pagou a importância total de Esc. 26.182.881$00 pela construção do imóvel referido em A) da MFA .
23- No aquecimento central incorporado no edifício a A. despendeu a quantia de Esc. 4.517.427$00.
24- E o valor do prédio edificado era de Esc. 35.000.000$00.
25- Após o terminus da construção referida em F) da MFA a A. passou a usar o imóvel referido em A).
26- Assim como o seu logradouro.
27- Aí instalando os serviços da creche e jardim de infância.
28- E prestando serviços de apoio sócio-pedagógico à infância.--------------
2-3- Como se verifica pelas primeiras conclusões da apelante, esta contesta que se verifiquem, em concreto, os requisitos da acessão industrial imobiliária, não tendo nascido, no seu prisma, na esfera jurídica da A., o direito potestativo de adquirir nos termos do art. 1340º do C.Civil, acrescentando que, mesmo que tal direito tivesse surgido, a A. tê-lo-ia renunciado ao outorgar a escritura de doação de usufruto.
Esta posição da apelante é absolutamente inócua para o presente recurso, já que expressamente na douta sentença recorrida se disse que tendo a A. aceite, ao outorgar a escritura, que a propriedade era do R. e que a mesma reverteria para este sem quaisquer encargos, findo o prazo do usufruto, renunciou à acessão. Em consequência, julgou-se improcedente a acção quanto aos pedidos de reconhecimento do direito de propriedade à A., por via da acessão, deles se absolvendo o R.. Isto é, em relação a este aspecto a ora apelante não foi vencida, pelo o recurso nem sequer era admitido, quanto a isso ( art. 680º nº 1 do C.P.Civil ).
Quer isto dizer que não nos iremos deter sobre a problemática atinente à aquisição da propriedade do bem em causa por banda da A., em virtude da acessão imobiliária.
Significa isto que nos fica apenas para a apreciar a problemática relativa à validade ou invalidade da doação de usufruto de 28-12-93, mediante a qual a Câmara Municipal de Celorico concedeu à A. o usufruto do terreno e edifício que o constituem, pelo prazo de 25 anos.
Sobre o assunto na douta sentença recorrida referiu-se que a doação uma vez aceite, não é livremente revogável. Por isso, se entendeu que “a deliberação de 7/02/1994, através da qual a Câmara de Celorico da Beira, por unanimidade revogou a deliberação de 14/12/1993, através da qual se havia decidido fazer a doação do usufruto do terreno e edifício à Autora, não poderá produzir quaisquer efeitos sobre a doação concretizada legalmente por escritura pela escritura de 28/12/1993”.
Nesta conformidade, considerando-se plenamente válida a doação, decidiu-se condenar o R. a reconhecer a posse da A. legítima sobre o bem em questão, em virtude de tal doação.
É sobre esta problemática que o apelante mostra o seu inconformismo. Segundo ele, a Câmara Municipal de Celorico, através da deliberação de 7-2-94, pretendeu anular a deliberação que considerou ilegal, sendo que tinha legitimidade para, através de nova deliberação anular, com fundamento em ilegalidade, a deliberação anterior, de 14-12-93, através da qual decidiu doar à A. o usufruto do bem, nos termos dos arts. 136º e 141º a 143º do C.P.A.. De harmonia com o disposto no nº 2 do art. 145º nº 2 do mesmo diploma, a anulação ou revogação do acto administrativo, com fundamento em invalidade, produz efeitos retroactivos. Uma vez anulado o acto administrativo pela Administração com base em ilegalidade, cabe aos particulares que se sintam lesados, interpor recurso contencioso de anulação nos Tribunais Administrativos, no prazo de dois meses. A invalidade do acto administrativo habilitante da administração a outorgar um contrato de direito privado, acarreta a nulidade deste, automaticamente, por um lado, por falta de poderes de representação da pessoa colectiva pelo órgão ou agente que nele outorgar e por outro, por se tratar de violação de normas imperativas de direito público ( arts. 294º e 286º do C.Civil ). A Câmara Municipal cumpriu o seu dever ao anular uma deliberação ilegal e que o contrato de doação celebrado com base nessa deliberação ilegal, entretanto anulada com eficácia retroactiva, é ineficaz perante o Município de Celorico, pois foi celebrado por pessoa sem poderes de representação e é nulo por ter sido celebrado em violação de normas de direito público.
Quer isto dizer que o apelante sustenta que, uma vez anulado o acto administrativo que determinou a celebração da doação, gera-se a invalidade sequencial deste contrato de direito privado. Para tal considera que a segunda deliberação camarária, que revogou, por unanimidade, a deliberação anterior ( que determinou a doação ) é uma deliberação legítima, válida e susceptível de produzir efeitos retroactivos.
Perante os factos provados temos que a Câmara Municipal tomou duas deliberações. A primeira, que teve lugar no dia 14/12/1993, deliberou doar à A. o usufruto do terreno e edifício que o constituem, pelo prazo de 25 anos. A segunda, de 7.02.1994, que revogou, por unanimidade, a deliberação anterior.
Qualquer juízo sobre a validade desta deliberação e da revogação implícita da anterior, sendo estes, actos claramente administrativos, foge, em absoluto, da competência material do Tribunal Judicial de Celorico da Beira e deste Tribunal da Relação. Tal apreciação cabe ao Tribunal Administrativo de Círculo territorialmente competente, de harmonia com os disposto nos arts. 212º nº 3 da Constituição, 66º do C.P.Civil e 51º nº1 do ETAF. É que os tribunais judiciais, constituindo os tribunais regra dentro da organização judiciária, gozam de competência não descriminada, gozando os demais, ou seja, os tribunais especiais, competência às matérias que lhes são especialmente cometidas. A competência dos tribunais judiciais determina-se pois, por um critério residual, sendo-lhes atribuídas todas as matérias que não estiveram conferidas aos tribunais especiais. Ora a discussão sobre a validade ou invalidade das indicadas deliberações, constitui apreciação de actos puramente administrativos tal como são definidos no art. 120º do C.P.A. ( DL 442/91, de 15/11 ), segundo o qual “consideram-se actos administrativos as decisões dos órgãos da Administração que ao abrigo de normas de direito público visem produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta”, pelo que o conhecimento e decisão correspondentes, cabe aos Tribunais Administrativos.
A mesma ideia ( relativa à incompetência do Tribunal Judicial de Celorico para conhecer da matéria em questão) , se referiu na douta sentença recorrida ao dizer-se que se “o Réu se quisesse questionar a legalidade da doação ou vício da deliberação que autorizou a doação tinha de recorrer a outros meios processuais, designadamente recorrer ao tribunal administrativo”.
Claro que o ora apelante ao realizar a escritura, efectuou um acto de direito privado, mas este não é impugnado, de forma directa, no presente recurso. É que o apelante não põe em causa, com argumentos de âmbito civilista, a doação que, a favor da apelada, efectuou. A nosso ver, só com uma argumentação deste teor é que poderia chamar o Tribunal Judicial de Celorico da Beira e o Tribunal desta Relação a pronunciarem-se. As razões e argumentos jurídicos que invocou para considerar válida a deliberação de 7-2-94 e a consequente revogação da deliberação anterior, é matéria de âmbito absolutamente administrativo que, como já salientámos, não nos compete conhecer.
Por outro lado, o próprio apelante diz que propôs uma acção ordinária junto do Tribunal Judicial de Celorico da Beira pedindo a anulação da doação outorgada em 23-12-93, mas o tribunal decidiu, no despacho saneador, absolver a R. do pedido, por se considerar incompetente em razão da matéria, decisão de que não recorreu. Isto é, por decisão já transitada em julgado ( à falta de recurso ), o Tribunal Judicial de Celorico já entendeu ser incompetente em razão da matéria para decidir sobre o pedido de anulação da doação em causa, obviamente por tal anulação implicar o conhecimento de actos puramente administrativos. Assim sendo, pese embora se entenda que é duvidoso que se tenha formado caso julgado sobre a incompetência do tribunal ( por falta dos respectivos pressupostos ), o certo é que o Tribunal Judicial já se pronunciou sobre a sua competência em questão idêntica, pelo que não se compreende a atitude do ora apelante ao deixar transitar em julgado tal decisão, vir aqui reincidir no pressuposto subentendido da competência do Tribunal Judicial, apelando, a que no fundo, este tribunal se considere competente para, tacitamente, considerar inválida a doação em causa.
Por tudo o exposto, o recurso é improcedente.
III- Decisão:
Assim, nega-se provimento ao recurso, mantendo a douta sentença recorrida.
Sem custas dado que o apelante está dele isentas.