Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
245-B/2002.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
DECISÃO
RECURSO
ÓNUS DE ESPECIFICAÇÃO A CARGO DO RECORRENTE
EMBARGOS DE TERCEIRO
INVOCAÇÃO DE UMA AQUISIÇÃO DERIVADA
COMPRA E VENDA
VEÍCULO AUTOMÓVEL
PRESUNÇÃO DO ARTº 7º CRP
Data do Acordão: 06/03/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TOMAR - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 690º-A, Nº 1, DO CPC ; 351º CPC; 219º E 879º C. CIV.; E 7º CÓDIGO REGISTO PREDIAL
Sumário: I – Deve rejeitar-se o recurso de facto por o recorrente omitir o ónus de especificação, cominado no art.690-A nº1 do CPC, visto não ter individualizado, nas respectivas conclusões, “os pontos de facto” que pretende impugnar, limitando-se a afirmar genericamente que a decisão “assenta em factos que não devem ser considerados provados”.

II - Os embargos de terceiro apresentam a estrutura de uma acção declarativa autónoma, antecedida por uma fase introdutória de carácter preventiva ou cautelar, podendo pedir-se o reconhecimento do direito de propriedade e a entrega da coisa apreendida judicialmente.

III - Nos embargos de terceiro, reivindicando-se o bem apreendido judicialmente, em regra, é insuficiente a invocação de uma aquisição derivada, por não ser constitutiva do direito de propriedade, mas apenas translativa, a menos que se comprove que o direito já existia no transmitente, bastando para o efeito que a coisa já se encontrava inscrita a favor do transmitente, à data em que o embargante dele a adquiriu derivadamente, sem necessitar de provar a cadeia de transmissões anteriores.

IV - O contrato de compra e venda de veículo automóvel é meramente consensual, sendo a obrigatoriedade do registo declarativa ou funcional.

V - A presunção do art.7º do CRP, aplicável ao registo automóvel, sendo juris tantum, importa a inversão do ónus da prova, fazendo recair sobre a outra parte a prova do contrário ( arts.347 e 350 do CC ) do facto que serve de base à presunção ou do próprio facto presumido.

VI - A prova da falsidade da declaração de venda para efeitos do registo, consubstanciando uma causa de nulidade do registo, é suficiente para ilidir a presunção, independentemente da declaração judicial da nulidade em acção autónoma.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
I – RELATÓRIO

1.1. - A... – deduziu embargos de terceiro por apenso ao procedimento cautelar de arresto que B... instaurou, na Comarca de Tomar, contra C...,
Alegando, em resumo, haver comprado, em 13 de Março de 2002, ao Stand «D...», sito na Avª. Carvalheiro, freguesia de Galegos em Penafiel, o veículo automóvel arrestado em 16/5/2002, com inscrição no registo a seu favor, pediu
Que seja reconhecido o direito de propriedade do embargante sobre o veículo automóvel ligeiro de passageiros arrestado, de marca «Volkswagen», modelo «Sharan» e matrícula 16-27-IA e que a posse sobre o mesmo lhe seja restituída.

Contestou apenas a requerente do arresto, B..., defendendo-se por impugnação motivada, arguindo ainda a falsidade da declaração de venda com base na qual foi registado o veículo.
No saneador afirmou-se a validade e regularidade da instância.

1.2. - Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que decidiu pela improcedência dos embargos.

1.3. - Inconformado, o embargante recorreu de apelação, com as seguintes conclusões:
(…)
Não foram apresentadas contra-alegações.


II - FUNDAMENTAÇÃO

2.1. – O objecto do recurso:
O recorrente impugna a matéria de facto, mas omitiu o ónus da especificação, nos termos do art.690-A nº1 do CPC.
A revisão do Código de Processo Civil, operada pelo DL 329-A/95 de 12/2, instituiu, de forma mais efectiva, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto. Porém, o poder de cognição do Tribunal da Relação sobre a matéria de facto não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento de facto. Desde logo, a possibilidade de conhecimento está confinada aos pontos de facto que o recorrente considere incorrectamente julgados, com os pressupostos adrede estatuídos no art.690-A nº1 e 2 do CPC.
A razão de ser da exigência do ónus da especificação consta do preâmbulo do Dec.Lei nº39/95 de 15/2, visando afastar a possibilidade de o recorrente se limitar “a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo pura e simplesmente a reapreciação de toda a prova produzida em 1ª instância e manifestando genérica discordância com o decidido”, decorrendo ainda dos princípios estruturantes da cooperação, lealdade e boa fé processuais.
Os concretos pontos de facto impugnados devem ser feitos nas respectivas conclusões, porque delimitadoras do âmbito do recurso e constituírem o fundamento da alteração da decisão. Já quanto à especificação dos meios probatórios, a lei não impõe que seja feita nas conclusões, podendo sê-lo no corpo da motivação ( cf., por ex., Ac do STJ de 20/11/2003, de 8/3/06, de 13/7/06, disponíveis em www dgsi.pt/jstj ), mas em todo o caso impõe-se a obrigatoriedade de conexionar cada facto censurado com os elementos probatórios correspondentes.
Sobre a sanção para o incumprimento do ónus da especificação, existem actualmente duas teses:
a) - Uma, no sentido da rejeição imediata do recurso, sem prévio convite. Argumenta-se, para o efeito, não só com a letra da lei ( “ deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição” ), como com a interpretação sistemática, pois se fosse aplicável a regra do art.690 nº4 do CPC o legislador tê-lo-ia dito, e a própria teleologia, o duplo grau em matéria de facto converge com o ónus da especificação, já que, de outro modo, implicaria numa substituição pelo tribunal do ónus que impende sobre as partes de litigar diligentemente, contendendo com o direito da outra parte a fazer valer, segundo o princípio da igualdade, da forma como a contra-parte litiga ( arts.3 e 264 do CPC ) ( cf., neste sentido, por ex., AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, 4ª ed., pág.157, LOPES DO REGO, Comentários ao Código de Processo Civil, pág.466, Ac STJ de 20/5/04, de 1/7/04, de 25/11/04, de 29/11/05, de 7/12/05, 25/5/06, de 14/9/06, disponíveis em www dgsi.pt/jstj ).
b) - Outra, que defende o convite ao aperfeiçoamento apenas quando estiver em causa uma mera deficiência do ónus de especificação, tanto por aplicação analógica do art.690 nº4, como da regra geral dos arts.265 nº2 e 266 nº2 do CPC.
Justifica-se, para tanto, que a sanção deve ser proporcional à gravidade do incumprimento, cominando a lei a rejeição imediata do recurso, à semelhança da imediata deserção no caso de falta (absoluta) de alegações (art.690 nº3 do CPC), mas já não quando ocorre uma simples deficiência ( cf., por ex., Ac do STJ de 20/3/03, 29/11/05, de 6/7/06, de 13/7/06, de 7/2/07, em www dgsi.pt/jstj ).
Analisando as alegações do embargante, constata-se não haver individualizado, nas respectivas conclusões, “os pontos de facto” que pretende impugnar, limitando-se a afirmar genericamente que a decisão “assenta em factos que não devem ser considerados provados”
Por isso, verificando-se total omissão sobre o ónus de especificação, por ausência de individualização da matéria questionada, impõe-se a rejeição do recurso de facto.
Deste modo, o objecto do recurso circunscreve-se à questão de direito, designadamente, quanto a saber se está comprovada a titularidade do direito de propriedade do embargante sobre o veículo automóvel arrestado.

2.2. – Os factos provados:
1) - No dia 15 de Maio de 2002, no âmbito dos autos apensos de procedimento cautelar de arresto nº 245-A/2002, foi arrestado um veículo automóvel de marca «Volkswagen», modelo «Sharan», ligeiro de passageiros, com a magtrícula 16-27-IA, com o nº de quadro WVWZZZ7MZVV0036258, a gasóleo, de cor verde, com a cilindrada de 1896 cc (alínea A) da matéria assente);
2) - O direito de propriedade sobre este veículo está registralmente inscrito a favor do embargante, desde 12 de Abril de 2002 (alínea B) da matéria assente);
3) - O embargante requereu o registo de propriedade do veículo em seu nome, na data de 21 de Março de 2002 (alínea G) da matéria assente);
4) - O registo inicial de propriedade relativo ao mesmo veículo foi requerido por E... (alínea C) da matéria assente);
5) - Posteriormente, o direito de propriedade sobre o veículo passou a estar registralmente inscrito a favor de F... (alínea D) da matéria assente);
6) - F... declarou vender o veículo IA a G... e este declarou comprar aquele veículo a F... (alínea E) da matéria assente);
7) - Foi com base no requerimento – declaração para registo de propriedade em que figurava o nome de G..., no local reservado à assinatura do vendedor, que o direito de propriedade sobre o veículo passou a estar inscrito em nome do embargante (alínea F) da matéria assente);
8) - Em 2 de Março de 2002, em Tomar, B... declarou vender a C... o veículo 16-27-IA, a pronto pagamento, pelo preço de € 17.457,93, tendo o mesmo veículo sido imediatamente entregue (alínea H) da matéria assente);
9) - O embargante declarou comprar o 16-27-IA à empresa D..., com stand na Avenida Carvalheiro, freguesia de Galegos, concelho de Penafiel e esta declarou vender-lhe aquele veículo pelo preço de € 15.961,53 (resposta ao nº 1 da base instrutória);
10) - Para esse efeito, a empresa D..., entregou ao embargante uma declaração de venda que continha o nome de G... (resposta ao nº 2 da base instrutória);
11) - A empresa D... havia, por sua vez, declarado comprar aquele veículo a H... e esta havia declarado vender-lhe o mesmo veículo (resposta ao nº 3 da base instrutória);
12) - Aquando desta venda, H... entregou à empresa D... a declaração de venda referida na resposta ao nº 2 (resposta ao nº 4 da base instrutória);
13) - Esta declaração de venda, a que aludem a alínea F) e as respostas aos nºs 2 e 4, não foi assinada por G... (resposta ao nº 5 da base instrutória).

2.3. – O Direito:

2.3.1. A sentença recorrida julgou improcedente os embargos de terceiro, por o embargante não haver provado ( art.342 nº1 CC ) o direito de propriedade sobre o veículo automóvel arrestado.
Para tanto, baseou-se nos seguintes tópicos argumentativos:
a) - Não é suficiente a prova da compra e venda do veículo à D..., por consubstanciar uma aquisição derivada translativa, não se comprovando que o direito já existisse na anterior vendedora, H...;
b) - Também não basta o registo, efectuado em 12/4/2002, por não ser constitutivo de direitos e a presunção juris tantum está ilidida pelo facto do documento que lhe serviu de suporte haver sido falsificado.
Em contrapartida, para o apelante é suficiente a prova de que adquiriu o veículo por contrato de compra e venda à D... (respostas aos quesitos 1º e 2º), estando assim demonstrado o seu direito de propriedade, já que a prova das sucessivas transmissões é exigida para efeitos do registo, mas não para a validade do contrato de compra e venda.

2.3.2. - Finalidade e natureza dos embargos de terceiro:
Os embargos de terceiro, antes a Reforma de 1985 ( art.1037 nº1 do CPC ) consubstanciava uma pura acção possessória, limitada à defesa da posse, ofendida por qualquer diligência ordenada judicialmente, com especial destaque para a penhora, o arresto, o arrolamento, a posse judicial avulsa e o despejo.
Porque o que estava em causa era apenas e tão só a posse, embora se divergisse se era suficiente a posse jurídica ou formal, o certo é que quando a diligência afectava o direito de propriedade impunha-se a necessidade de reivindicação ( cf., por ex., MARIA DO ROSÁRIO RAMALHO, "Sobre o fundamento possessório dos embargos de terceiro", ROA ano 51 (1991), pág. 649, Ac do STJ de 26/6/1991, BMJ 408, pág.495 ).
Ao contrário do regime anterior, hoje os embargos de terceiro não se destinam apenas à defesa da posse lesada pela diligência judicial mas, também, à defesa de “qualquer direito incompatível com a realização ou âmbito da diligência” ( art.351 nº1 do CPC ).
Como se justifica no preâmbulo do Dec. Lei n.º 329-A/95, de 12/12, “permite-se, deste modo, que os direitos “substanciais” atingidos ilegalmente pela penhora ou outro acto de apreensão judicial de bens possam ser invocados, desde logo, pelo lesado no próprio processo em que a diligência ofensiva teve lugar, em vez de o orientar necessariamente para a propositura de acção de reivindicação – por esta via se obstando, no caso de a oposição do embargante se revelar fundada, à própria venda dos bens e prevenindo a possível necessidade de ulterior anulação desta, no caso de procedência de reivindicação”.
Apesar da nova inserção sistemática nos incidentes da instância, os embargos apresentam a estrutura de uma acção declarativa autónoma, antecedida por uma fase introdutória de carácter preventiva ou cautelar ( cf. ISABEL PARREIRA, Embargos de Terceiro Preventivos, ROA ano 61 ( 2001), vol.II, pág.837 e segs.).

2.3.3. - O direito de propriedade sobre o veículo automóvel e o contrato de compra e venda:
Defendendo-se nos embargos de terceiro o direito de propriedade afectado pela diligência judicial, com o consequente pedido de reconhecimento e entrega, ele faz parte da causa de pedir que se apresenta complexa.
Por isso, o terceiro/autor terá de alegar e provar os factos constitutivos do direito de propriedade e a desconformidade (incompatibilidade ) da diligência com a propriedade.
Qual é a prova adequada?
Tal como na acção de reivindicação, também aqui a causa de pedir consubstancia-se nos factos de que emergem a titularidade do direito de propriedade.
Em regra é insuficiente a invocação de uma forma de aquisição derivada ( por exemplo, o contrato de compra e venda ), por não ser constitutiva do direito de propriedade, mas apenas translativa desse direito, a menos que se comprove que o direito já existia no transmitente, o que nem sempre é fácil, e daí a designação de “ probatio diabolica “.
Ora, a prova do direito deve ser feita pelo autor, não bastando justificar a própria aquisição, sendo também necessário provar o “ dominium auctoris “ ou a usucapião, como forma de aquisição originária.
Por isso, o reivindicante terá de invocar factos dos quais resulte a aquisição originária do domínio por parte dele ou de um transmitente anterior, e neste sentido se consolidou a doutrina, tanto na vigência do Código de Seabra, como no Código Civil de 1966.
No sentido de que nos embargos de terceiro não basta a prova da aquisição derivada, a menos que o embargante alegue ter adquirido o bem do próprio executado, sendo indispensável a prova da aquisição originária, cf. Ac da RP de 7/2/08, proc. nº0735266 ( Deolinda Varão ), disponível em www dgsi.pt .
Só assim não será quando o autor beneficie da presunção legal de propriedade ( presunção juris tantum ) como a resultante da posse ( art.1268 nº1 do CC) ou a do registo ( art.7º do CRP).
Note-se, porém, que a prova cabal da propriedade deve adequar-se ao concreto litígio, podendo satisfazer-se com a “prova do melhor título”, ou até com a “prova da primeira aparência”, o que contende com o objecto do litígio e o interesse do demandado ( cf., neste sentido, OLIVEIRA ASCENSÃO, “A Acção de Reivindicação”, ROA ano 57 ( 1997), vol.II, pág.532 e segs. ).
O embargante fundamentou a propriedade do veículo na aquisição à D..., por contrato de compra e venda e no registo do veículo a seu favor ( 12/4/2002).
O contrato de compra e venda de veículo automóvel é meramente consensual ( art.219 do CC), sendo a obrigatoriedade do registo declarativa ou funcional.
Trata-se de um contrato com eficácia real ou contrato real, porque a transferência da propriedade se dá por efeito dele ( arts.408 e 874 do CC). Por isso, a validade do contrato de compra e venda de veículo automóvel não depende do registo, por não ter natureza constitutiva, mas antes enunciativa ( cf. Ac STJ de 24/2/77, BMJ 264, pág.179, de 3/3/98, BMJ 475, pág.629, Ac RL de 3/11/87, C.J. ano XII, tomo V, pág.88 ).
No nosso ordenamento jurídico, postulando-se o chamado “ sistema do título “, à produção dos efeitos reais basta o acto pelo qual se estabelece a vontade dessa constituição ou transferência, pelo que o negócio é um e único, obrigacional e real, como negócio real “ quoad effectum “.
O primeiro dos efeitos essenciais do contrato de compra e venda é o efeito real, cuja transferência se opera por força do contrato, segundo o princípio da consensualidade ( art.408 nº1 e 879 a) do CC ).
Estando aqui em causa directamente o direito de propriedade, e face à impugnação da embargada, conforme já se justificou, não é suficiente o mero contrato de compra a venda, por não ser constitutivo do direito, mas antes translativo, e daí a prova de que o direito já existia no transmitente, segundo o princípio “ nemo plus iuris…”. É que na aquisição derivada, a preexistência do direito do transmitente constitui a causa da aquisição do direito do adquirente.
Ora, provou-se que o embargante adquiriu o veículo à D... que o adquirira a H..., mas não está demonstrada a cadeia de transmissão do veículo até se alcançar o adquirente originário ( E... ), tal como se justificou na sentença.
É certo que para alegação e prova de que o direito de propriedade já existia na pessoa do transmitente pode socorrer-se da presunção derivada do registo, ou seja, se a coisa reivindicada já se encontrava inscrita a favor do transmitente, à data em que o autor dele a adquiriu derivadamente, não necessita de provar a cadeia de transmissões anteriores ( cf. ANTUNES VARELA, RLJ ano 120, pág.220, Ac STJ de 21/11/1996, BMJ 461, pág.406 ).
Só que, como resulta da certidão do registo de fls.135, nunca o veículo esteve registado em nome da D..., a quem o embargante adquiriu, em 13/3/2002, por compra e venda, e muito menos em nome de H....
Diz o recorrente que a mesma argumentação que serve para validar o contrato celebrado entre a B... e a C... serve perfeitamente para validar os contratos celebrados entre H... e a D... e entre esta e o embargante, mas sem consistência.
Desde logo, porque compete ao embargante provar o alegado direito de propriedade sobre o veículo arrestado ( art.342 nº1 do CC ). Por outro lado, sendo legitimo inferir pela apresentação de declaração de venda original assinada pelo G... de fls.46 que a B... comprou o veículo àquele, tal como fez a sentença, então relativamente à C..., que adquiriu ( 2/3/2002 ) o veículo àquela, está comprovado o direito de propriedade, dado o registo a favor do Cerejo em 4/5/2000.

2.3.4. - A prova por presunção derivada do registo:
O embargante socorreu-se do registo ( art.4º da petição inicial ) para afirmar a propriedade do veículo.
O registo de propriedade de veículo automóvel é obrigatório ( arts. 1, 3º, 5º DL nº54/75, de 12/2, e art. 42º DL nº55/75, de 12/2, ambos na redacção do DL 178-A/2005).
O registo de propriedade automóvel fundado em contrato verbal de compra e venda, faz-se por meio de requerimento formulado pelo comprador e confirmado pelo vendedor, devendo conter também a declaração de venda ( arts. 11 nº3 e 25 nº1 do Dec.nº55/75 de 12/2 ( Regulamento do Registo de Automóveis ).
O veículo automóvel 16-27-IA está inscrito no registo em nome do embargante, desde 12 de Abril de 2002, na sequência do requerimento de 21 de Março de 2002.
Daí constituir presunção de que existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos definidos no registo ( art.7º CRP, aplicável por força do art.29 do DL nº54/75 de 12/2 ), tratando-se de presunção juris tantum ( cf., por ex., Ac do STJ de 14/10/97, BMJ 470, pág.630 ).
Para ilidir esta presunção, é necessário, ou fazer a prova da nulidade do registo ou demonstrar a invalidade do negócio ou acto jurídico com base no qual foi feito o registo ( cf. ANTUNES VARELA, RLJ ano 118, pág.307 ) ou, ainda, que a titularidade do direito inscrito pertence a outrem, pedindo-se, simultaneamente o respectivo cancelamento.
Provou-se ser falsa a declaração que serviu de suporte ao registo, o que implica a sua nulidade ( art.16 a) do CRP ), falsidade que foi excepcionada pela embargada na contestação.
Mas a nulidade do registo só é oponível depois de declarada por decisão judicial transitada em julgado, conforme dispõe o art.17 nº1 do CRP.
Uma vez que não foi ainda declarada a nulidade, em pertinente acção de registo, dir-se-ia que continua válido e eficaz, e, por isso mesmo, a presunção ficaria incólume. Contudo, uma coisa é a sua validade, outra a presunção legal de propriedade.
Será que a mera prova da causa da nulidade do registo, independentemente da declaração judicial em acção autónoma, é suficiente para ilidir a presunção?
A sentença aponta nesse sentido, ao dizer: “Ora, se o documento que serve de fundamento ao registo não é verdadeiro, o registo também não poderá ter a tal eficácia «erga omnes» associada ao registo (neste caso, assim será, considerando o efeito jurídico da presente acção, em que não está peticionado o cancelamento, nem se trata de acção de anulação ou de nulidade do registo)”.
As presunções não são, em rigor, verdadeiros meios de prova, mas somente “ meios lógicos ou mentais da descoberta de factos, e firmam-se mediante regras da experiência ( apreciadas pela lei ou pelo julgador )” ( VAZ SERRA, Provas, BMJ 110, pág.198 ).
Na definição legal ( art.349 do CC ) são ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido ( facto base da presunção ) para afirmar um facto desconhecido ( facto presumido ), segundo as regras da experiência da vida, da normalidade, dos conhecimentos das várias disciplinas científicas, ou da lógica.
A presunção do art.7º do CRP, aplicável ao registo automóvel, sendo juris tantum, importa a inversão do ónus da prova, fazendo recair sobre a outra parte a prova do contrário ( arts.347 e 350 do CC ) do facto que serve de base à presunção ou do próprio facto presumido.
Provou-se ter sido com o requerimento – declaração para registo de propriedade em que figurava o nome de G..., no local reservado à assinatura do vendedor, que o direito de propriedade sobre o veículo passou a estar inscrito em nome do embargante, declaração que a H... entregou à D... e esta ao embargante, mas que não foi efectivamente assinada pelo G....
Na medida em que a declaração foi falsificada, logo não sendo verdadeira, está posta em causa a base da presunção.
Sendo a presunção “ a atribuição legal de certa relevância a um facto “, não faria sentido conferir relevo jurídico a uma declaração falsificada, repudiada pela ordem jurídica ( cf., art.153 nº1 do CRP ) que inquinou o registo.
Neste contexto, fazer funcionar a presunção do registo feito com um documento falsificado, seria manifestamente abusivo ( art.334 do CC ), por o presumido direito de propriedade exceder os limites impostos pela boa fé ( objectiva ) e pelos bons costumes.
Acresce que se o registo feito com base numa escritura de justificação que se impugna é ineficaz, não constituindo presunção de que o direito existe ( cf. Ac de fixação de jurisprudência do STJ de 4/12/2007 ( DR Iª Série de 31/3/08 ), ou devendo ter-se por ilidida a presunção derivada do registo para o titular ( formal ) do direito registado se ele não foi um terceiro de boa fé ( cf. Ac do STJ de 23/6/1992, BMJ 418, pág.718 ), também a demonstrada causa de nulidade do próprio registo implica o afastamento da presunção.
Na medida em que a embargada invocou na contestação a falsidade da declaração que serviu de base ao registo efectuado pelo embargante, implicitamente estava a excepcionar a nulidade do registo, com essa causa. A ser assim, pedido o reconhecimento do direito de propriedade com base na presunção derivada do registo, mas opondo-se o demandado com a excepção da nulidade do registo, a procedência desta excepção é suficiente para postergar a presunção.
É certo que a nulidade só pode ser invocada depois de declarada por trânsito em julgado ( art.17 nº1 do CRP ), mas é assim para efeito da extinção do registo, nada obstando que possa ser arguida por via de excepção com o objectivo de ilidir a presunção derivada do mesmo registo.
Improcede o recurso, confirmando-se a douta sentença recorrida.

2.4. – Síntese conclusiva:
1. Deve rejeitar-se o recurso de facto por o recorrente omitir o ónus de especificação, cominado no art.690-A nº1 do CPC, visto não ter individualizado, nas respectivas conclusões, “os pontos de facto” que pretende impugnar, limitando-se a afirmar genericamente que a decisão “assenta em factos que não devem ser considerados provados”.
2. Os embargos de terceiro apresentam a estrutura de uma acção declarativa autónoma, antecedida por uma fase introdutória de carácter preventiva ou cautelar, podendo pedir-se o reconhecimento do direito de propriedade e a entrega da coisa apreendida judicialmente.

3. Nos embargos de terceiro, reivindicando-se o bem apreendido judicialmente, em regra, é insuficiente a invocação de uma aquisição derivada, por não ser constitutiva do direito de propriedade, mas apenas translativa, a menos que se comprove que o direito já existia no transmitente, bastando para o efeito que a coisa já se encontrava inscrita a favor do transmitente, à data em que o embargante dele a adquiriu derivadamente, sem necessitar de provar a cadeia de transmissões anteriores.
4. O contrato de compra e venda de veículo automóvel é meramente consensual, sendo a obrigatoriedade do registo declarativa ou funcional.
5. A presunção do art.7º do CRP, aplicável ao registo automóvel, sendo juris tantum, importa a inversão do ónus da prova, fazendo recair sobre a outra parte a prova do contrário ( arts.347 e 350 do CC ) do facto que serve de base à presunção ou do próprio facto presumido.
6. A prova da falsidade da declaração de venda para efeitos do registo, consubstanciando uma causa de nulidade do registo, é suficiente para ilidir a presunção, independentemente da declaração judicial da nulidade em acção autónoma.
III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem:
1)
Julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

2)
Condenar o apelante nas custas.
+++
Coimbra, 3 de Junho de 2008.
Os Juizes Desembargadores
( Jorge Arcanjo)
( Isaías Pádua )
( Teles Pereira )