Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
256/03.7GBTNV
Nº Convencional: JTRC
Relator: RIBEIRO MARTINS
Descritores: PENA SUSPENSA
REDUÇÃO OFICIOSA
TRANSITO EM JULGADO
Data do Acordão: 09/24/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE TORRES NOVAS – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 2º, Nº 4 E 50º DO CP, 371º-A CPP
Sumário: 1. A possibilidade que agora é concedida pela lei de, após o trânsito em julgado de decisão condenatória e antes de ter cessado a execução da pena imposta, se poder aplicar ao condenado um regime mais favorável, e que constitui uma autêntica excepção ao princípio do caso julgado, não deve ter carácter oficioso desde logo porque há situações ou casos em que apenas o condenado poderá saber se lhe convém ou não o novo regime ou se efectivamente este o favorece, não tendo, por isso, cabimento que o Ministério Público o substitua nesse juízo de oportunidade ou de conveniência.
2. O juízo sobre qual dos regimes é em concreto o mais favorável para o condenado não prescinde duma prévia reavaliação das condições impostas à suspensão, pelo que a sua aplicação em abstracto, como pretende o recorrente, violaria o preceito por si invocado, a saber, o art.º 2º/4 do Código Penal no qual se faz apelo a ponderação em concreto e não em abstracto. Fazê-lo sem a reavaliação dessas condicionantes seria não acatar o preceito.
Decisão Texto Integral: Processo 256/03.7GBTNV
Suspensão condicionada da execução da pena de prisão (Regime mais favorável)
Torres Novas



Acordam em conferência na Secção Criminal da Relação de Coimbra

I – Relatório –
1.1- O arguido RV foi julgado pelo colectivo de Torres Novas no processo comum 256/03 e nele condenado na pena de 2 anos de prisão suspensa na sua execução por três anos mas condicionada ao regime de prova, a saber, –
a) Responder às convocatórias e às visitas dos técnicos do IRS;
b) Não frequentar durante o referido período de 3 anos locais relacionados com a venda, cedência ou consumo de estupefacientes;
c) Não estabelecer quaisquer tipos de contactos com pessoas relacionadas com o tráfico ou consumo de tal tipo de substâncias, designadamente com HA, LC e OJ;
d) Continuar a dedicar-se ao trabalho;
e) Submeter-se a acompanhamento médico especializada à sua toxicodependência, em clínica, centro de recuperação ou qualquer outro estabelecimento especializado à sua escolha, da frequência desse tratamento fazer prova documental nos autos em 30 dias.
1.2- O acórdão condenatório é de 18/10/2005 e transitou na oportunidade em julgado por dele não ter sido interposto recurso.
1.3.1- Contudo, após a entrada em vigor da nova redacção dos Códigos Penal e de Processo Penal introduzidas pelas leis, respectivamente, 59/2007 de 4/9 e 48/2007 de 29/8, o magistrado do Ministério Público veio aos autos promover a alteração do julgado quanto ao período de tempo da suspensão da execução da pena de prisão, pressupondo o magistrado requerente que a alteração do julgado o seria tão só na redução do período de suspensão. E fê-lo invocando o art.º 2º/4 do Código Penal e art.º 271-A do Código de Processo Penal.
1.3.2- Efectivamente, enquanto que pela anterior redacção do art.º 50º/5 do Código Penal o tempo de suspensão da execução da pena de prisão oscilava entre 1 e 5 anos sendo em cada caso determinado o concreto período de suspensão através dum juízo prudencial do julgador, agora o mesmo preceito dispõe que a suspensão «tem duração igual à pena de prisão determinada na sentença (…)».
Como ao arguido fora aplicada a pena de 2 anos de prisão, pretende o Ministério Público que o tribunal a seu pedido se reduza o período de suspensão para igual tempo.
1.4- O juiz indeferiu o promovido afirmando que a situação dos autos não cabe nem na previsão do art.º 2º/3 e 4 do Código Penal nem na previsão do art.º 371-A do Código de Processo Penal.
Este magistrado chama a atenção que o critério legal é de ser o condenado a requerer a alteração do julgado.
2- O Ministério Público recorre, concluindo –
1) A norma do artigo 50/5 do Código Penal, na redacção actual é mais favorável ao condenado se dela resultar um encurtamento do período de suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi imposta.
2) A aplicação retroactiva da lei penal mais favorável ao condenado, mesmo no caso de haver condenação transitada em julgado, decorre dos artigos 29/ 4 da Constituição da República Portuguesa e 2/4 do Código Penal.
3) O Ministério Público, enquanto garante da legalidade democrática e da igualdade dos cidadãos perante a lei, tem legitimidade para requerer a aplicação do regime penal mais favorável ao condenado, ao abrigo dos artigos 219/1 da CRP, 1º do EMP e 5/1 da LOFTJ.
4) O artigo 371. °-A do CPP, introduzido pela Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto, não constitui obstáculo quer à apreciação oficiosa ou a requerimento do Ministério Público do regime mais favorável ao condenado, podendo mesmo a sua aplicabilidade imediata aos processos iniciados anteriormente à sua vigência ser afastada por recurso ao disposto no artigo 5/2 alínea a) do CPP.
5) Ao negar legitimidade ao Ministério Público para requerer a aplicação ao condenado do regime penal mais favorável, o despacho violou os artigos 50/ 5 e 2/4 do CP, 29/4 in fine, 13, 18/2, 219/ 1 da CRP, 1º do EMP e 5.°/1 da LOFTJ.
6) Inexistindo qualquer elemento de facto relevante para a prolação de decisão – em beneficio do condenado – no sentido de adequar o período de duração da suspensão de execução da pena de prisão ao vertido no n.º 5 do artigo 50. ° do CP ex vi artigo 2º/4 do mesmo Código, que não conste já do acórdão condenatório, reabrir a audiência revela-se acto inútil em face do teor do artigo 369/º 2 ex vi do artigo 371º, ambos do CPP.
7) Pelo exposto, poderá a Relação proferir decisão em que determine a redução do prazo de suspensão da execução da pena de prisão de 3 anos para 2 anos por ser o correspondente à pena de prisão aplicada ao condenado, de harmonia com o artigo 50/ 5 ex vi artigo 2/ 4 do CP.
8) Caso assim se não entenda, deverá a Relação revogar o despacho e ordenar a sua substituição por outro que, sem precedência de qualquer diligência adicional, dê cumprimento ao preceituado no artigo 50/ 5 do CP ex vi artigo 2º/4 do mesmo diploma.
3- O arguido não se pronunciou. Mas fê-lo o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto no sentido do improvimento do recurso.
4- Colheram-se os vistos. Cumpre apreciar e decidir!
II – Apreciação –
Antecipando o nosso entendimento cremos, com o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, que o recurso não deve merecer provimento.
1.1- A situação em apreço não cabe nem na previsão do n.º2 nem do n.º4 do artigo 2º do Código Penal. O n.º2 do artigo versa a situação em que o facto do agente foi descriminalizado. Seguramente que não é o caso dos autos. O n.º4 do artigo versa duas distintas situações –
- A primeira, aquela em que à data do julgamento o regime punitivo já não é o que vigorava à data da prática do facto. Nesta situação o tribunal terá de aplicar o regime que dentre eles se revelar em concreto o mais favorável ao arguido. A sua aplicação é feita em bloco relativamente a cada crime e não norma a norma.
- A segunda, a do regime punitivo ter sido alterado depois da condenação. Nesta situação «cessam a execução e os efeitos penais logo que logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior».
A previsão deste último segmento do n.º4 do art.º 2º do Código Penal é a de casos nítidos em que logo em abstracto se vê qual dos regimes é o mais favorável ao arguido [pelo simples confronto dos regimes], pelo que a sua aplicação nem carece de qualquer outro apoio processual para além dum simples despacho judicial em que se reconheça a situação e se decida em conformidade.
Este regime foi o encontrado para ultrapassar o juízo de inconstitucionalidade imputada à ressalva inserta no segmento final do n.º4 do art.º 2º do Código Penal na sua anterior versão, a saber, « (…) é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente, salvo se este já tiver sido condenado por sentença transitada em julgado». Foi esta ressalva que mereceu o juízo de inconstitucionalidade afirmada pelo TC no Acórdão do TC n.º 572/2003 [DR II Série de 17/2/2004], no seguimento, aliás, do que entre outros já a Prof. Teresa Beleza referia nas suas lições de Direito Penal.
Fora destas situações –, ou seja, naquelas situações em que pelo simples confronto dos regimes não se antolha qual deles seja o mais favorável ao arguido –, há que entrar em linha de conta com o caso julgado. A valia do caso julgado não é totalmente estranha à Lei Fundamental ( v/ art.º 282/3 da CRP).
O instituto do caso julgado tem valia processual e funciona simultaneamente como garantia para o arguido traduzida no princípio «ne bis in idem» [quando invocado a seu favor…] quer como valor social obtido pela estabilidade das decisões judiciais.
A segurança nas relações humanas reclama que, em princípio, esgotadas as vias do recurso ordinário, as decisões judiciais se mantenham estáveis pois elas também são decisões de apaziguamento dos conflitos sociais.
Mesmo assim, em algumas situações há derrogação do valor do caso julgado, como acontece no recurso extraordinário de revisão ou na previsão do novo art.º 371-A do CPP. Mas neste último caso, só por iniciativa do condenado.
Estatui este artigo que «Se, após o trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer Sublinhado nosso. a reabertura da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime».
No caso em apreço apenas interessa ponderar a previsão do art.º 371-A do Código de Processo Penal, já que aqui não cuidamos do regime do recurso de revisão.
O art.º371º-A do Código de Processo Penal trata da possibilidade de alteração do julgado por iniciativa do arguido. É o que resulta do seu enunciado.
Mas mesmo aqui há a ter presente que se há situações em que o arguido pode antever que a posterior decisão do tribunal lhe será favorável, outras haverá em que tal previsão não é possível.
Assim, v.g., o condenado saberá à partida qual a decisão judicial que fizer a correspondência em dias de multa de certo tempo de prisão (art.º 43º), que operar a conversão da prisão na [novel] pena de permanência na habitação (art.º 44º), do cumprimento da prisão em dias livres (art.º 45º), da sua execução em regime de semidetenção ( art.º 46), da redução da suspensão da execução da pena quando não condicionada ( art.º50º). Como se sabe, tais penas de substituição são hoje possíveis em penas mais alargadas de prisão.
São situações em que ao condenado é possível uma antecipação do teor da pena substitutiva caso o tribunal anua à substituição. São para situações como estas que, a nosso ver, o legislador ainda pôs ao alcance do condenado uma possibilidade de alteração do julgado através do mecanismo do art.º 371º-A do CPP.
Assim, v.g., só o condenado estará em condições de dizer antecipadamente se uma suspensão por dois anos condicionada ao pagamento de certa quantia monetária lhe é ou não mais favorável do que uma suspensão por 3 anos condicionada ao pagamento dessa quantia.
Mas haverá situações em que nem condenado nem o próprio tribunal estará em condições de aprioristicamente fazer tal prognose. Só depois duma ensaiada aplicação em concreto dos regimes se poderá dizer qual deles se revela no concreto mais favorável ao arguido.
Assim, quem poderá asseverar em abstracto que determinado condicionamento para a suspensão da execução da pena de prisão [v.g. um concreto bloco de regras de conduta ou um concreto regime de prova] estabelecido por sentença anterior à revisão do Código seria o mesmo se o tribunal tivesse de partir para a suspensão na base dum período de suspensão inferior?
Há que ter presente que as condicionantes impostas pelo julgador na sentença não dependem do seu alvedrio ou capricho. É um poder discricionário no sentido técnico/legal e por isso orientado pela finalidade visada pela lei de encontrar, dentro da culpa revelada pelo agente, o melhor meio de alcançar a recuperação social do delinquente (cfr. art.º 40º/1 do Código Penal).
Com o condicionalismo judicial imposto na suspensão da execução da pena de prisão visa-se sempre atingir o desiderato da recuperação social do delinquente. Ora, se o tribunal entendesse que com certo bloco de regras de conduta ou regime de prova não se alcançaria a finalidade legal por certo período de tempo, certamente que então se decidiria por diferente solução, pelo menos ao nível das concretas regras de conduta ou deveres impostos ao condenado.
1.2- Como refere o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, com o que concordamos –, “a possibilidade que agora é concedida pela lei de, após o trânsito em julgado de decisão condenatória e antes de ter cessado a execução da pena imposta, se poder aplicar ao condenado um regime mais favorável, e que constitui uma autêntica excepção ao princípio do caso julgado, não deve ter carácter oficioso desde logo porque há situações ou casos em que apenas o condenado poderá saber se lhe convém ou não o novo regime ou se efectivamente este o favorece, não tendo, por isso, cabimento que o Ministério Público o substitua nesse juízo de oportunidade ou de conveniência.
Basta pensar nas suspensões de execução de penas condicionadas a pagamentos de indemnizações ou em que há injunções ou regras de conduta que se protelem no tempo, podendo o condenado preferir um maior espaçamento temporal para que as cumpra em relação à ameaça de uma revogação da suspensão da pena.
Assim, à semelhança do que ocorre no campo de aplicação do art.º 371-A do CPP, temos para nós como mais consentâneo com o respeito pela opção do condenado e com o que resta do princípio do caso julgado, a não admissibilidade de aplicação oficiosa do comando do n.º5 do art.º 50º do Código Penal”.
1.3- A suspensão, já o dissemos, tem uma finalidade pedagógica e ressocializadora, mormente quando acompanhada da imposição de deveres, de regras de conduta ou de regime de prova. O conteúdo dessas imposições estará também dependente da sua duração.
Assim, o aqui recorrente não tem nenhum elemento que lhe diga ser do real interesse do condenado a redução do tempo da suspensão.
Este bem poderá estar, tal como o Estado, interessado na sua recuperação e ter por mais consentâneo com esse seu interesse um regime de prova mais prolongado face às concretas condições em que o mesmo foi delineado na sentença.
O recorrente partiu do pressuposto, que poderá estar errado, de que para o condenado só interessam situações de menor esforço num período o mais possível abreviado, num completo alheamento pessoal na sua real recuperação.
Ou seja, o juízo sobre qual dos regimes é em concreto o mais favorável para o condenado não prescinde duma prévia reavaliação das condições impostas à suspensão, pelo que a sua aplicação em abstracto, como pretende o recorrente, violaria o preceito por si invocado, a saber, o art.º 2º/4 do Código Penal no qual se faz apelo a ponderação em concreto e não em abstracto. Fazê-lo sem a reavaliação dessas condicionantes seria não acatar o preceito.
III – Decisão –
Termos em que se tem nega provimento ao recurso.
Sem custas.
Coimbra,