Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
606/10.0PAPNI-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: COMPETÊNCIA PARA A EMISSÃO DE MANDADO DE DETENÇÃO VISANDO O CUMPRIMENTO DE PENA
Data do Acordão: 12/13/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JC CRIMINAL– J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 470.º DO CPP; ART. 138.º, N.º 2, DO CEPMPL
Sumário: I - O legislador quis estabelecer a linha de fronteira de actuação entre os dois tribunais [Tribunal da Condenação e TEP].

II - E esta linha, numa interpretação literal, foi situada no trânsito em julgado da sentença condenatória que aplicou a pena privativa ou a medida privativa da liberdade.

III - Todavia, esta interpretação é posta em causa na argumentação da Exposição de Motivos, literalmente entendida, quando nela, a dita linha de fronteira é referida ao trânsito em julgado da sentença que decretou o ingresso do agente do crime num estabelecimento prisional, a fim de cumprir medida privativa da liberdade.

IV - A sentença condenatória decreta uma pena de prisão, mas não decreta o ingresso do agente num estabelecimento prisional pois, como se sabe, é por intermédio de um mandado, vulgo, mandado de condução ao estabelecimento prisional para cumprimento de pena, necessariamente posterior ao trânsito da sentença, que este procedimento se desenrola.

V - É competente para a emissão de mandado de detenção destinado a assegurar o início da execução de pena de prisão, embora suspensa na respectiva execução, fixada em sentença já transitada em julgado, suspensão que veio, posteriormente, a ser revogada, por despacho igualmente transitado em julgado, o tribunal da condenação.

Decisão Texto Integral:






Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

 I. RELATÓRIO

            No Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Leiria – Instância Central – Secção Criminal – Juiz 2, o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum com intervenção do tribunal singular, dos arguidos A... e B... , ambos com os demais sinais nos autos, imputando-lhes a prática, ao primeiro, de quatro crimes de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º, nº 1 e 204º, nº 2, e) do C. Penal e de dois crimes de furto, p. e p. pelo art. 203º, nº 1 com referência ao art. 204º, nº 4 do mesmo código, e ao segundo, de três crimes de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º, nº 1 e 204º, nº 2, e) do C. Penal e de um crime de furto, p. e p. pelo art. 203º, nº 1 com referência ao art. 204º, nº 4 do mesmo código.

            No processo nº 337/10.0PAPNI, apendo, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido A... , imputando-lhe a prática de um crime de burla informática, p. e p. pelo art. 221º, nº 1 do C. Penal.

            Por acórdão de 24 de Fevereiro de 2015, já transitado, foi o arguido B... condenado, depois de oportunamente comunicada uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, pela prática de dois crimes de furto qualificado e de um crime de apropriação de coisa achada, nas penas parcelares de dois anos e seis meses de prisão, dois anos e nove meses de prisão e de três meses de prisão e, em cúmulo, na pena única de três anos e nove meses de prisão, suspensa na respectiva execução por igual período, com regime de prova e condicionada ao pagamento de uma indemnização, no prazo de dois anos.    

            Por despacho de 6 de Março de 2017, já transitado, foi revogada a suspensão da execução da pena única de prisão aplicada ao arguido B... e determinado o seu cumprimento.


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            Em 3 de Julho de 2017 foi proferido o seguinte despacho:

            Fls. 1343: Informe que se aguarda que o TEP emita os competentes mandados de detenção para que o arguido B... cumpra a pena de prisão que lhe foi imposta.

De todo o modo, para evitar mais delongas, desde já se declara, nos termos do disposto no artigo 138º, nºs. 2 e 4, alínea t) do Código de Execução de Penas e medidas Privativas da Liberdade, o Juízo Central Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria e, portanto os presentes autos, materialmente incompetente para proceder à emissão dos mandados de detenção do arguido B... a fim de o mesmo cumprir a pena em que foi condenado, mais declarando competente para o efeito o Tribunal de Execução de Penas [O Supremo Tribunal de Justiça decidiu nesse sentido os Conflitos Negativos de Competência nºs. 24/13 e 277/07, ambos da 5ª Secção e 4641/10 e 268/11, ambos da 3ª Secção. Semelhantemente o Tribunal da Relação de Coimbra decidiu os Conflitos Negativos de Competência nº 89/10.4GCFIG-A.C1 de 26/03/2014 e nº 734/11.4PBFIG-A.C1, de 09/04/2014 e nº 65/11.0TXCBR-C.C1, de 23/06/2016 e no processo nº 264/12.7GCACB-A.S1, da 5ª Secção do S.T.J., no âmbito do processo nº 264/12.7GCACB, da Secção Criminal da Instância Central da Comarca de Leiria; sendo as mais recentes decisões de 08 de Março de 2017, no processo 484/16.5TXCBR-B.C1, de 07 de Abril de 2017, no processo 531/16.0TXCBR-B.C1, de 11 de Abril de 2017, no processo 536/16.1TXCBR-B.C1 e de 31 de Maio de 2017, no processo 1516/98.2JGLSB].  


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            Inconformado com o decidido, recorreu o Digno Magistrado do Ministério Público, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

1ª – Vem o presente recurso interposto pelo Ministério Público do douto despacho de fls. 1345 no qual se declarou materialmente incompetente o Juízo Central Criminal da Comarca de Leiria e competente o Tribunal de Execução das Penas de Coimbra para proceder à emissão dos mandados de detenção do arguido B... a fim de cumprir a pena de prisão em que foi condenado, entretanto revogada, por douto despacho de fls. 1272 a 1274, transitado em julgado no dia 3 de Maio de 2017.

2ª – Do cotejo das dispões legais conjugadas dos artigos 467º, nº 1, 470º, nº 1, 477º, nºs. 2 e 4, todos do Código de Processo Penal e 138º, nº 2, do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade, resulta que:

a) Se “as decisões penais condenatórias transitada em julgado têm força executiva”;

b) Se a “execução da pena corre nos próprios Autos perante o Tribunal de 1ª Instância em que processo”;

c) Se a alteração legislativa efectuada ao disposto no artigo 477º, nºs. 2 e 4, do Código de Processo Penal manteve intocáveis as competências do Ministério Público junto do Tribunal da condenação para proceder ao cômputo da pena, o qual deverá ser objecto de homologação pelo Juiz;

d) Se compete ao Tribunal de Execução das Penas, para além do mais, “acompanhar a execução das penas”,

3ª – Impõe-se concluir que tudo pressupõe que o condenado se encontre em efectivo cumprimento de pena, pois sem a detenção e subsequente sujeição a reclusão do condenado, mostrar-se-á impossível proceder ao cômputo da pena em que este foi condenado, nos termos do disposto no artigo 477º, nºs. 2 e 4, do Código de Processo Penal.

            4ª – Ao decidir como doutamente se decidiu no douto despacho a quo nele foi violado o disposto nos artigos 467º, nº 1, 470º, nº 1, 477º, nºs. 2 e 4, todos do Código de Processo Penal e o disposto no artigo 138º, nº 2, do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade, razão pela qual deverá ser revogado e mandado substituir por outro no qual se ordene a emissão de mandados de captura do arguido, a fim de o mesmo dar início ao cumprimento da pena de prisão em que foi condenado.

Contudo, Vªs. Exªs. Decidirão Conforme for de LEI e JUSTIÇA.


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            O arguido não respondeu ao recurso.

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            O Mmo. Juiz a quo sustentou o despacho recorrido.

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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, concordando com a argumentação da motivação do recurso, referindo a dissensão jurisprudencial existente e a mais recente posição desta Relação, e concluiu pela revogação do despacho recorrido.

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Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo Digno Magistrado do Ministério Público recorrente, a única questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, é a de saber qual o tribunal – entre o tribunal da condenação e o tribunal de execução das penas – competente para emitir os mandados de detenção no seguimento da revogação da suspensão da execução da pena de prisão.


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            1. Como dissemos, a questão a decidir no presente recurso é a de saber qual o tribunal competente para a emissão de mandados de detenção a fim de o condenado que viu ser revogada a suspensão da execução da pena de prisão imposta, iniciar o cumprimento dessa pena.

            Reflectindo a dissensão que, quanto a esta matéria existe, o Mmo. Juiz a quo entendeu que essa competência cabe ao tribunal de execução de penas enquanto o Digno Magistrado do Ministério Público recorrente entende que cabe ao tribunal da condenação.

            Em bom rigor, não são muitos nem decisivos os argumentos que são alinhados em abono de uma e outra tese. No essencial, a divergência jurisprudencial resulta da congruência ou incongruência da interpretação das disposições dos arts. 470º, nº 1, 477º, nº 1 e 478º do C. Processo Penal, por um lado, com a interpretação do disposto no art. 138º, nºs 2 e 4, t) do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade [doravante, CEPMPL], à luz do que o legislador consignou no ponto 15 da Exposição de Motivos da Proposta de Lei 252/X, que está na génese da aprovação do CEPMPL. 

            Este ponto tem o seguinte teor:

«15. No plano processual e no que se refere à delimitação de competências entre o tribunal que aplicou a medida de efectiva privação da liberdade e o Tribunal de Execução das Penas, a presente proposta de lei atribui exclusivamente ao Tribunal de Execução das Penas a competência para acompanhar e fiscalizar a execução de medidas privativas da liberdade, após o trânsito em julgado da sentença que as aplicou. Consequentemente, a intervenção do tribunal da condenação cessa com o trânsito em julgado da sentença que decretou o ingresso do agente do crime num estabelecimento prisional, a fim de cumprir medida privativa da liberdade. Este um critério simples, inequívoco e operativo de delimitação de competências, que põe termo ao panorama, actualmente existente, de incerteza quanto à repartição de funções entre os dois tribunais e, até, de sobreposição prática das mesmas. Incerteza e sobreposição que em nada favorecem a eficácia do sistema.».

É evidente o propósito do legislador em estabelecer a linha de fronteira de actuação entre os dois tribunais, pelas razões de política criminal que aponta. E esta linha, numa interpretação literal, foi situada no trânsito em julgado da sentença condenatória que aplicou a pena privativa ou a medida privativa da liberdade. Nesta acepção, a partir do trânsito da sentença, toda a actividade de execução da pena competirá ao tribunal de execução de penas.

Todavia, esta interpretação é posta em causa na argumentação da Exposição de Motivos, literalmente entendida, quando nela, a dita linha de fronteira é referida ao trânsito em julgado da sentença que decretou o ingresso do agente do crime num estabelecimento prisional, a fim de cumprir medida privativa da liberdade. É que a sentença condenatória decreta uma pena de prisão, mas não decreta o ingresso do agente num estabelecimento prisional pois, como se sabe, é por intermédio de um mandado, vulgo, mandado de condução ao estabelecimento prisional para cumprimento de pena, necessariamente posterior ao trânsito da sentença, que este procedimento se desenrola.

Na Exposição de Motivos o legislador deixou claro o propósito de atribuir exclusivamente ao Tribunal de Execução das Penas a competência para acompanhar e fiscalizar a execução de medidas privativas da liberdade, e este propósito encontra-se reflectido no art. 138º, nº 2 do CEPMPL ao dispor que, após o trânsito em julgado da sentença que determinou a aplicação de pena ou medida privativa da liberdade, compete ao tribunal de execução das penas acompanhar e fiscalizar a respectiva execução e decidir da sua modificação, substituição e extinção, sem prejuízo do disposto no artigo 371.º-A do Código de Processo Penal.        

Uma vez que a pena de prisão decretada por sentença transitada só inicia a sua execução quando o condenado ingressa no estabelecimento prisional, competindo ao tribunal de execução das penas acompanhar e fiscalizar a respectiva execução dir-se-á que tal competência só se ‘inicia’ após o ingresso do condenado na instituição prisional. E se assim é, então a emissão do mandado de condução ao estabelecimento prisional para execução da pena de prisão não é, já, um ‘momento’ do acompanhamento e fiscalização da execução da pena, mas um procedimento ainda anterior.

Dispondo o art. 470º, nº 1 do C. Processo Penal que, a execução corre nos próprios autos perante o presidente do tribunal de 1ª instância em que o processo tiver corrido, sem prejuízo do disposto no artigo 138.º do Código da Execução das Penas e das Medidas Privativas da Liberdade, será então razoável entender que a emissão de tal mandado integra a competência do tribunal da condenação.

Aliás, o art. 17º do CEPMPL que enuncia, taxativamente, os casos em que pode ter lugar o ingresso do condenado no estabelecimento prisional, distingue, além de outros, entre, a) mandado do tribunal que determine a execução da pena ou medida privativa da liberdade e, b) mandado de detenção. Tal distinção, contudo, já não se encontra presente no art. 138º, nº 4, t) do mesmo código, que apenas atribui competência material ao tribunal de execução das penas para a emissão de mandados de detenção, de captura e de libertação, mas já não, para a emissão de mandados que determinem a execução da pena ou medida privativa da liberdade.

Deste modo, sempre com ressalva do respeito devido por opinião diversa, que é muito, também nós entendemos, no seguimento das mais recentes decisões desta Relação, que compete ao tribunal de execução das penas, nos termos do disposto no art. 138º, nº 4, t) do CEPMPL, emitir mandados de detenção, captura ou libertação que visem a execução das suas próprias decisões, sendo, em consequência, competente para emitir o mandado de detenção destinado ao início da execução de uma pena de prisão fixada em sentença transitada o tribunal da condenação (cfr., neste sentido, decisão de 29 de Março de 2017, do Presidente da 5ª Secção da R. de Coimbra, processo nº 92/15.8PTLRA-A.C1 e acórdãos da R. de Coimbra de 29 de Novembro de 2017, processo nº 536/15.9GCLRA-B.C2, de 18 de Outubro de 2017, processo nº 3466/11.0TALRA-A.C1 e de 11 de Outubro de 2017, processo nº 16/11.1PELRA-B.C1, todos in www.dgsi.pt).


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            Em síntese conclusiva do que fica dito:

- É competente para a emissão de mandado de detenção destinado a assegurar o início da execução de pena de prisão, embora suspensa na respectiva execução, fixada em sentença já transitada em julgado, suspensão que veio, posteriormente, a ser revogada, por despacho igualmente transitado em julgado, o tribunal da condenação.


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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso e, em consequência:

A) Declaram competente para a emissão do mandado de detenção visando o início da execução da pena de prisão imposta nestes autos ao arguido B... , o Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Juízo Central Criminal de Leiria – Juiz 2.

B) Revogam o despacho recorrido e determinam a sua substituição por outro que determine a emissão do referido mandado de detenção.

 C) Recurso sem tributação.


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Coimbra, 13 de Dezembro de 2017


Heitor Vasques Osório  (relator)


Helena Bolieiro (adjunta)