Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
525/06.4GCLRA.C1.
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO VENTURA
Descritores: CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
EMPURRÃO
BEM JURÍDICO TUTELADO
ILICITUDE
MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 01/21/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA – 3.º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 143.º, N.º 1 DO C.P.; ARTIGO 71.º DO C.P..
Sumário: I. - Na delimitação do bem jurídico, e em particular do interesse social perseguido, concebe-se, nas palavras de Paula Faria, a ofensa à integridade física como desatenção à pessoa da vítima no seu todo, atendo-se o legislador a um entendimento estritamente somático, corporal-objectivo da incolumidade pessoal, na pluralidade das suas dimensões.
II. - Não obstante o esforço de autonomização do que deve ser nuclearizado como bem jurídico protegido no crime de ofensa á integridade física, dever-se-á salientar a abrangência de um campo caracterizado pela existência de uma pluralidade de bens jurídicos próximos e conexos – de que são exemplo, a vida, quando o resultado morte não se verifica; a honra, perante o sofrimento psicológico desencadeado por injúrias associado a manifestações somáticas - e que merecem ser aglutinados em torno da protecção do direito à integridade pessoal, enquanto dimensão nuclear da dignidade da pessoa humana.
III. - A realidade do crime não deriva exclusivamente da qualidade “ontológica” ou “ôntica” de certos comportamentos, mas da combinação de determinadas qualidades materiais do comportamento com o processo de reacção social àquele, conducente à estigmatização dos agentes respectivos como criminosos ou delinquentes».
IV. -. No léxico comum o verbo “empurrar” contém sempre a acção forte, vigorosa, dirigida à deslocação de uma pessoa ou objecto. Logo, na representação e valorização colectiva, e quando assume a natureza de exercício de vis physica contra outrem constitui uma forma de violência.
IV. – A aferição da ilicitude do facto deve ser feita em função da esfera de protecção da norma incriminadora e dos limites da moldura penal, nos quais o legislador já reflecte a natureza e densidade do bem jurídico protegido, todas as formas de ataque ou violação ao mesmo e ainda as finalidades preventivas da punição penal
Decisão Texto Integral: I. Relatório
os presentes autos com o NUIPC 525/06.4GCLRA, por sentença proferida em 20/05/2008, foi o arguido …absolvido da prática de um crime de ameaça p. e p. pelo artº 153º, nºs 1 e 3 do CP e condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo artº 143º, nº1, do CP, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à razão diária de €10 (dez euros), perfazendo €900,00 (novecentos euros).
Inconformado com essa condenação, veio o arguido interpor recurso, pedindo a sua absolvição ou, assim não se entendendo, a redução da pena. Extraiu da motivação a seguinte síntese conclusiva:
1ª- Pela douta sentença proferida nos autos à margem identificados foi o arguido/recorrente condenado pela prática, como autor e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143°, n° 1 do CP, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de € 10, num total de € 900.
2ª- Em face do princípio da subsidiariedade, vertido no art. 18°, n° 2 da CRP, a ofensa ao corpo ou à saúde prevista na norma do art. 143°, n° 1 do CP deve ser determinada objectivamente e não pode ser insignificante ou ligeira.
3ª In casu, como é dito na douta sentença sob recurso, «a agressão em questão foi bastante leve», sem consequências além das que resultam de um empurrão com as mãos no peito de um homem, sendo o agente mais velho e não tendo o ofendido caído ou recuado.
4ª- Assim, a acção do arguido não pode deixar de ser considerada banal, situando-se no âmbito dos comportamentos que, pese embora desagradáveis ou incomodativos, não deverão ser censurados pelo direito de agressão máxima, ou seja, pelo direito penal.
5ª- O que vale por dizer que a conduta do arguido não preenche o tipo de crime p. e p. pelo art. 143°, n° 1 do CP, constituindo antes uma ofensa atípica, destituída de dignidade penal.
6ª- Donde que, salvo o devido respeito, a douta sentença em crise violou o disposto no art. 143°, n° 1 do CP, devendo ser revogada, com a consequente absolvição do arguido da prática do crime de ofensa à integridade física simples.
7ª- Subsidiariamente, sempre se aduz que a norma do art. 143°, n° 1 do CP, se interpretada no sentido de integrar toda e qualquer ofensa ao corpo ou à saúde, incluindo ofensas insignificantes, diminutas ou ligeiras, padece de inconstitucionalidade material, por violação do princípio da subsidiariedade, consagrado no art. 18°, n° 2 da CRP.
8ª- Pelo que, se for assim interpretada, deverá aquela norma penal ser declarada inconstitucional, sendo a douta sentença em crise revogada, com a consequente absolvição do arguido absolvido.
9ª Ainda a título subsidiário e sem conceder, sempre se aduz que, perante a factualidade dada como provada, inexistem ponderosas razões de prevenção geral positiva ou de prevenção especial que justifiquem uma pena de 90 dias de multa.
10ª- Assim, a douta sentença recorrida violou o disposto nas normas conjugadas dos art°s. 400, n s 1 e 2, e 71°, n° 1, ambos do CP, pelo que sempre se imporá a sua revogação parcial, reduzindo-se a pena de multa aplicada a não mais de 20 dias, à taxa diária de €10.00.
Respondeu o magistrado do Ministério Público junto do Tribunal recorrido, deixando, por seu turno, as seguintes conclusões:
I - A noção de corpo é também uma referência a um todo psíquico-somático indissociável que constitui a base de uma só realidade - a pessoa humana.
II - O STJ fixou jurisprudência por acórdão do plenário das secções criminais de 18 de Dezembro de 1991, DR, série I-A, de 8 de Fevereiro de 1992, do seguinte modo: "Integra o crime do art. 142° do Código Penal a agressão voluntária e consciente, cometida à bofetada sobre uma pessoa, ainda que esta não sofra, por via disso, lesão, dor ou incapacidade para o trabalho.".
III - Entendida a noção de ofensa corporal é inquestionável que a integridade física do queixoso foi atingida.
IV - O princípio da subsidiariedade que o art. 18°, n.° 2 da CRP consagra, pelas razões já aduzidas em relação à qualificação jurídico-penal dos factos, não tem relação com a concreta interpretação dada à norma no caso dos autos.
V - Entendemos que o tribunal aplicou correctamente uma pena de multa ao arguido, por se afigurar que assegura plenamente as finalidades de prevenção geral e especial que o caso reclama - arts. 70° e 71° do Cód. Pena
VI — Deve indeferir-se o recurso e manter-se a douta sentença recorrida.
Neste Tribunal, a Srª. Procuradora-geral Adjunta emitiu douto parecer, nos termos do qual, em síntese, considera que mostram-se preenchidos todos os elementos essenciais do crime por que o arguido foi condenado e que a pena fixada não merece censura.
Fundamentação
Âmbito do recurso
É pacífica a doutrina e jurisprudência[i] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso[ii].
São duas as questões colocadas: primeiro a verificação dos elementos essenciais do crime de ofensa à integridade física tipificado no artº 143º, nº1, do CP, tendo com sub-questão a inconstitucionalidade material de interpretação que leve a incluir na previsão daquele tipo penal de «ofensas insignificantes, diminutas ou ligeiras»; depois, e a título subsidiário, a redução da pena para «não mais de 20 dias».
Apreciação
Da decisão recorrida (de facto)
Não vêm suscitados nem se vislumbram no texto da decisão em matéria de facto quaisquer vícios, pelo que cumpre considerar fixados os factos pertinentes para a verificação do acerto do juízo subsumptivo tal como referidos na decisão recorrida, com o seguinte teor:
No dia 31 de Agosto de 2006, a hora não apurada, o ofendido … dirigiu-se às instalações da firma "R… Lda" sitas na Rua da B…., área desta comarca de Leiria.
Fê-lo, conforme lhe havia sido determinado pelo arguido …, legal representante da "RSJ - Transportes", a fim de receber o seu vencimento.
Porém, aí chegado, por motivos não concretamente apurados, e após alguma exaltação o arguido abeirou-se do ofendido e deu-lhe um empurrão com as mãos, atingindo o ofendido … no peito.
De seguida, o arguido, após ter dito que matava o ofendido com dois tiros, entrou dentro de casa e voltou a sair, correndo atrás do ofendido, que fugiu para dentro do seu carro e abandonou o local.
O ofendido … ficou assustado e receou pela sua vida e integridade física. Embora não tendo sofrido lesões clinicamente comprovadas, o ofendido sentiu dor, em consequência do empurrão sofrido às mãos do arguido.
Ora, este sabia que ao empurrar o ofendido, o molestava fisicamente, provocando-lhe dor, objectivo que se propôs e alcançou.
O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito, alcançado, de molestar fisicamente o ofendido ….
O arguido estava ciente que a respectiva conduta não lhe era permitida e que é punida por lei criminal.
O arguido já foi julgado e condenado pela prática de um crime de ameaça praticado em 20/03/1998.
O arguido é empresário detendo a sociedade "......, Lda", auferindo rendimentos não concretamente apurados, é casado sendo a mulher doméstica, tem dois filhos maiores, ainda em formação profissional (mestrado e estágio) que são sustentados pelo arguido, e vive em casa própria. Como habilitações literárias possui a 4ª classe da escolaridade.
No meio profissional e social em que se insere o arguido é visto como boa pessoa, de bom trato e de boas contas.
Na altura da prática dos factos o arguido andava nervoso e exaltado por causa da morte recente do seu filho mais velho.
Do crime de ofensa à integridade física
O objecto do presente recurso encontra-se na resposta à questão de saber se a conduta provada atinge gravidade susceptível de fundar materialmente a perseguição e punição penal.
O legislador nacional prevê no artº 143º do Código Penal a ofensa à integridade física e define o tipo como a conduta de quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa. Trata-se da tutela do bem jurídico integridade física da pessoa humana, obedecendo ao comando constitucional do artº 25º, nº1, da CRP: A integridade moral e física das pessoas é inviolável.
Na delimitação do bem jurídico, e em particular do interesse social perseguido, concebe-se, nas palavras de Paula Faria [[iii]], a ofensa à integridade física como desatenção à pessoa da vítima no seu todo, atendo-se o legislador a um entendimento estritamente somático, corporal-objectivo da incolumidade pessoal, na pluralidade das suas dimensões.
Não obstante, nesse esforço de autonomização do bem jurídico protegido, própria da função primordial de garantia do direito criminal contra comportamentos - exercícios de liberdade – penalmente proibidos, por comunitariamente intoleráveis, cabe salientar que nos movemos num domínio caracterizado pela existência de uma pluralidade de bens jurídicos próximos e conexos – de que são exemplo, a vida, quando o resultado morte não se verifica; a honra, perante o sofrimento psicológico desencadeado por injúrias associado a manifestações somáticas [[iv]] - e que merecem ser aglutinados em torno da protecção do direito à integridade pessoal [[v]], enquanto dimensão nuclear da dignidade da pessoa humana. É, pois, como refracção dessa realidade ontológica superior, porque assim configurada no artº 1º da CRP, que deve ser perspectivado o problema.
Considera o recorrente que, em face do princípio da subsidiariedade, vertido no art. 18°, n° 2 da CRP, a ofensa ao corpo ou à saúde prevista na norma do art. 143°, n° 1 do CP deve ser determinada objectivamente e não pode ser insignificante, diminuta ou ligeira. Diga-se desde já que concordamos inteiramente com essa afirmação, pois neste, como em todos os domínios, a apreciação da censura jurídico-penal não dispensa a ponderação de respeito e conformidade com a representação e valoração colectiva densificada na norma incriminadora [[vi]]. Nessa medida, «a (in)adequação social fornece-nos o ponto a partir do qual a ofensa ao bem jurídico há-de considerar-se relevante, o limiar mínimo [...] a partir do qual é legítimo desencadear a reacção jurídico-penal» [[vii]]. É que, como indica Figueiredo Dias, «a realidade do crime [...] não resulta apenas do seu conceito, ainda que material, mas depende também da construção social daquela realidade; ele é em parte produto da sua definição social, operada em último termo pelas instâncias formais (legislador, polícia, ministério público, juiz) e mesmo informais (família, escolas, igrejas, clubes, vizinho) de controlo social. Numa palavra: a realidade do crime não deriva exclusivamente da qualidade “ontológica” ou “ôntica” de certos comportamentos, mas da combinação de determinadas qualidades materiais do comportamento com o processo de reacção social àquele, conducente à estigmatização dos agentes respectivos como criminosos ou delinquentes» [[viii]].
Afirmado este entendimento normativo, vejamos se no caso em presença foi respeitado esse limite, o mesmo é dizer, se a condenação do arguido respeitou o princípio da legalidade, na vertente da tipicidade penal.
De acordo com o que ficou provado, o arguido abeirou-se de …, colocou-lhes a mãos no peito e empurrou-o, causando-lhe dor, resultado que visou e atingiu. Será esta uma conduta insignificante? Ou, colocando a questão de outro modo, estaremos perante comportamento sem relevância social bastante para justificar materialmente a censura jurídico-penal? Cremos que a resposta é negativa e que a conduta em apreço merece tipicidade penal.
No léxico comum o verbo empurrar contém sempre a acção forte, vigorosa, dirigida à deslocação de uma pessoa ou objecto [[ix]]. Logo, na representação e valorização colectiva, e quando assume a natureza de exercício de vis physica contra outrem constitui uma forma de violência. Violência essa que, sem perder tal caracterização, pode assumir muitas e diversas graduações, algumas em que a discussão sobre a tipicidade encontra relevo.
Com efeito, as situações da vida nos nossos dias colocam-nos muitas vezes em situações de proximidade corporal que proporcionam e de certa forma vulgarizam variados contactos físicos pelo que cobrir com a força repressiva penal uma total ausência de impacto físico noutra pessoa seria manifestamente excessivo. Exemplificando a partir de uma imagem impressiva do quotidiano pendular urbano, como acontece com o transporte colectivo em hora de ponta, certamente que a conduta do passageiro que exerce alguma – pouca - força sobre os demais utentes do metropolitano em busca da criação de um espaço para poder entrar, obriga outrem a sofrer no seu corpo acção indesejada e não consentida [[x]]. Mas, cremos seguro afirmar que a censura comunitária desse acto não ultrapassa a do mero incómodo e exige ético-socialmente o afastamento da censura jurídico-penal [[xi]].
Acontece que, no caso dos autos, a vítima da conduta do arguido não se limitou a sofrer o empurrão: sentiu dor em resultado da conduta do arguido e do emprego por este de força física importante. Ora, independentemente de não ser elemento exigido pelo tipo [[xii]], esse resultado da conduta não pode ser ignorado neste plano de análise, pelo suplemento de afastamento relativamente ao dever ser colectivamente exigido que aduz à conduta. Sendo a dor um fenómeno complexo e que pode ter múltiplas origens, certo é que a sua origem no caso em apreço encontra-se claramente associada a reacção bio-fisiológica causada por uma agressão, ao mesmo tempo lesiva da integridade física – pois os tecidos da zona onde foi exercida a força são mecanicamente afectados – e da saúde – pois desencadeou no organismo uma reacção biopsicológica penalizadora, i.e. uma alteração funcional do organismo e também do bem-estar psicológico da vítima [[xiii]]. Afirma-se assim a lesão do bem jurídico protegido com a incriminação da ofensa à integridade física.
É certo que dos factos provados não resulta que a vítima tenha carecido de qualquer intervenção terapêutica ou sofrido lesão duradoura mas daí não resulta que estejamos perante resultado socialmente insignificante. Com o devido respeito por opinião diversa, não nos parece que a sociedade tolere ou conviva sem forte censura relativamente a tais comportamentos nem que, ao contrário do referido no recurso, os assuma como «banais» e fruto de uma agressividade não desviante. Também não encontramos na circunstância de ambos serem do sexo masculino, o arguido ser mais velho que a vítima ou não se ter provado que recuou ou caiu no solo subsídios relevantes para o juízo de tipicidade, na vertente da adequação social [[xiv]]. A tolerância, por desistência das instâncias formais de controlo, de um clima social de agressão e violência por via da vulgarização de comportamento como o dos autos reduziria inevitavelmente a cidadania e a vivência comunitária.
Cabe ainda notar que não é exacto afirmar que a decisão recorrida trilhou caminhos diversos, mormente no que toca à reclamada interpretação desconforme com a constituição. De forma clara, a referência de que a agressão foi «bastante leve» encontra-se na parte da decisão que motiva a escolha e graduação da pena e não significa a assunção de insignificância ou de ligeireza social da conduta. Trata-se apenas da indicação de que, no universo das condutas passíveis de subsunção no tipo penal, aquela desenvolvida pelo arguido devia situar-se no plano inicial - gravidade ligeira - da esfera de protecção da norma.
Não se veja, então, na decisão recorrida, nem, acrescente-se, nesta decisão, o que manifestamente nela(s) não se contém – entendimento distinto do recorrente quanto ao alcance do princípio da subsidiariedade consignado no artº 18º, nº2, da CRP e à exigência de importância social relativamente às condutas susceptíveis de integrar a prática do crime p. e p. pelo artº 143º do CP – mas tão somente diferente ponderação relativamente à ultrapassagem, em concreto, desse limiar mínimo de adequação social na perseguição e censura penal.
Assim, e em síntese, conclui-se que a conduta de alguém que empurra voluntariamente outrem, querendo e conseguindo causar-lhe dor, preenche todos os elementos do tipo contido no artº 143º, nº1, do CP. Bem andou, por conseguinte, o tribunal a quo na condenação do arguido.
Da medida da pena
Afirmada a falência do seu primeiro fundamento, cumpre agora tomar a segunda dimensão do recurso, na qual o recorrente sustenta que a determinação concreta da pena de multa foi exagerada, por ultrapassar a sua culpa. Salienta ainda a presença de exigências de prevenção especial não elevadas e pugna pela aplicação de pena de multa não superior a 20 dias, indicando aceitar a taxa diária fixada (€10,00). Ao invés, o MºPº sustenta em ambas as instâncias o acerto da pena fixada na decisão recorrida.
Na ponderação concreta da pena, tendo em atenção os critérios do artº 71º do C.P., a medida da sanção determina-se em função das exigências da prevenção de futuros crimes e encontra como limite e suporte axiológico a culpa do agente, sem esquecer que a finalidade última da intervenção penal é a reinserção social do delinquente e incompatível com o Estado de Direito Democrático a finalidade retributiva [[xv]].
De acordo com o regime penal vigente, norteado, como decorre do artº 40º do CP, pelo binómio prevenção-culpa, cumpre encontrar primeiro uma moldura de prevenção geral positiva, determinada em função da necessidade de tutela das expectativas comunitárias na manutenção e reforço da validade da norma violada [[xvi]]. Fixada esta, correspondendo nos seus limites inferior e superior à protecção óptima e protecção mínima do bem jurídico afectado, deve o julgador encontrar a medida concreta da pena em conjugação com as exigências de prevenção especial de socialização do agente, sem ultrapassar a culpa revelada na conduta antijurídica. Nesta tarefa, os critérios do artº 71º do CP «têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha e medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação de valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento, ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente)» [[xvii]].
A decisão recorrida, depois de decidir pela escolha de pena não privativa da liberdade, fundamentou a medida da multa da seguinte forma:
Assim, a pena deve fixar-se, nos termos do art. 71°, n° 1, do Código Penal, em função a culpa do agente e das exigências de prevenção, não podendo em caso algum a pena ultrapassar a medida da culpa, conforme estabelecido no art. 40º, n° 2, do mesmo código.
Na determinação da medida concreta da pena ter-se-á em conta o disposto no art. 72°, n°2, do Código Penal, ou seja, o Tribunal deve atender a todas as circunstâncias que deponham a favor ou contra o agente, abstendo-se, no entanto, de considerar aquelas que já fazem parte do tipo de crime cometido
Em desfavor do arguido milita a ilicitude do facto, que é elevada, tendo em conta que este crime atinge bens jurídicos pessoais de terceiros, sendo que bens como a vida e a integridade física de terceiros são dos mais fundamentais e que mais devem ser respeitados.
No tocante ao modo de execução do crime nada de relevante há a referir, aparecendo os factos como reacção imediata a um momento de exaltação, não resultando os mesmos de qualquer premeditação ou preparação, nem requerendo um particular empenho de meios ou esforço do arguido na sua execução.
Há que ponderar no tocante à culpa do arguido e a modalidade dolosa da sua conduta, no entanto haverá aqui a ponderar, como atenuante, o facto de o arguido à data dos factos andar nervoso e exaltado por causa da morte recente dum filho.
Também são elevadas as exigências de prevenção geral, pois é crime que ocorre, muitas vezes por motivos absolutamente fúteis ou até sem qualquer justificação, com muita frequência, impondo-se necessidades de repressão.
No tocante às consequências do crime as mesmas não foram de todo graves, nem duradouras, que se curaram por si próprias, sem intervenção médica e sem incapacidade permanente ou sequer temporária.
Pondera-se também que a agressão em questão foi bastante leve, consubstanciada num empurrão.
Há que referir que o arguido possui antecedentes criminais, no entanto referem-se a crime praticado há mais de 10 anos.
A favor do arguido também milita o facto de ser pessoa bem integrada na comunidade, familiar e profissionalmente inserido e aparecendo estes factos mais como um momento de descontrole do que denotados de personalidade criminógena, assim se afigurando não serem muito elevadas as exigências de prevenção especial.
No caso, afigura-se que as exigências de prevenção quer gerais, quer especiais ficam satisfeitas com a aplicação ao arguido de uma pena de multa.
Tendo em conta os respectivos limites mínimos e máximo e ponderando todas as circunstâncias supra referidas julgo adequado condenar o arguido na pena de 90 (noventa) dias e multa.
Destacado o raciocínio seguido na decisão recorrida, cumpre dizer que o mesmo se configura como globalmente correcto, excepto no que se refere à afirmação do grau de ilicitude do facto. Essa aferição deve ser feita em função da esfera de protecção da norma incriminadora e dos limites da moldura penal, nos quais o legislador já reflecte a natureza e densidade do bem jurídico protegido, todas as formas de ataque ou violação ao mesmo e ainda as finalidades preventivas da punição penal. Nessa medida, não pode dizer-se que a concreta ilicitude do comportamento típico do arguido é elevada apenas porque se protege bem jurídico pessoal, tanto mais que, adiante, é dito que a agressão foi «bastante leve» e que não se verificaram consequências de maior.
Tendo em atenção esse conteúdo de ilicitude reduzido mas também que o crime de ofensa à integridade física constitui uma das formas de criminalidade mais frequente, o que reclama cuidados especiais no domínio da prevenção geral positiva, o dolo directo e a exaltação que envolveu a conduta, sem esquecer a conduta que se lhe seguiu, denotando, no mínimo, deficiências de autocontrolo, a pena adequada às exigências preventivas situa-se em 70 (setenta) dias de multa. Acresce que essa sanção, bastante próxima dos limites mínimos, respeita plenamente o princípio da culpa, na medida em que, mesmo que se considere que o arguido estava condicionado negativamente pelo desgosto emergente do falecimento recente de um filho, não se vê que essa circunstância permita dizer que agiu dominado por pulsão incontrolável ao ponto de limitar a pena a nível ainda menor.
Procede, assim, em parte o recurso.
Dispositivo
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em:
Julgar parcialmente procedente o recurso;
Fixar a pena pela prática pelo arguido … de um crime de ofensa à integridade física p. e p. pelo artº 143º, nº1, do CP, em 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de €10,00 (dez euros), perfazendo €700,00 (setecentos euros);





[i] Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, II, 2ª ed., Ed. Verbo, pág. 335 e Ac. do STJ de 99/03/24, in CJ (STJ), ano VII, tº 1, pág. 247.
[ii] Cfr., entre outros, os artºs 119.º, n.º 1, 123.º, n.º 2, 410.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), do CPP e acórdão de fixação de jurisprudência do STJ de 19/10/95, publicado sob o n.º 7/95 em DR, I-A, de 28/12/95.
[iii] Paula Faria, Comentário Conimbricense, Tomo I, Coimbra Ed., 1999, pág. 203. Sobre o problema no país vizinho, Vivés Anton, Derecho Penal, Parte Especial, 3ª ed., Tirant lo blanch, 1999, 121, Juan Rus, Curso de Derecho Penal Español, Parte Especial, Marcial Pons, 1996, I, pág. 140
[iv] No domínio das manifestações psico-somáticos, é plenamente aceite na ciência médica que no conjunto de reacções do organismo a agressões externas inscrito no fenómeno do stress contam-se também as agressões psíquicas. Nessa linha, e do ponto vista médico-legal, Fernando Sá, RPPC, 1991, pág. 413, salienta que, sendo o conceito médico-legal de saúde contraposto ao conceito de doença, esta abrange o “abalo” psíquico, enquanto determinante de alteração funcional do organismo, geral ou local, mesmo que não requeira intervenção terapêutica ou rebate geral apreciável do organismo.
[v] Defendendo a autonomização do bem jurídico integridade pessoal, posiciona-se José de Faria Costa, Direito Penal Especial, Coimbra Ed., 2004, págs. 42-51. 
[vi] Como assinala Faria Costa, ob. cit, pág. 53, na enunciação dos vários tipos legais, enquanto reflexo dos valores essenciais da comunidade, realiza-se a função descritiva das representações e valorizações colectivas. Essas representações ganham consistência e são assumidas com maior intensidade no momento em que surgem englobadas em uma qualquer unidade, preenchendo então o núcleo essencial de segunda função – a função aglutinadora das representações e valorações colectivas.
[vii] Faria Costa, ob. cit., pág. 69.
[viii] Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, Coimbra Ed, 2ª edição, 2007, pág. 132.
[ix] Na primeira entrada do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, o verbo empurrar é assim definido:  «impulsionar com força, impelir com vigor». Por seu turno, na segunda entrada do Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, 2006, empurrão é descrito como «impulso forte que faz mover a pessoa ou o objecto afectados».
[x] Não cremos que tenha aqui aplicação a doutrina do consentimento, ou seja, que se possa ficcionar um consentimento geral relativo a tais comportamentos por quem escolhe a utilização de transportes colectivos. A questão colocava-se em bases diferentes se existissem em Portugal assistentes especialmente destinados a empurrar os passageiros para dentro de carruagem de metro, como em alguns países asiáticos.
[xi] Independentemente da afirmação de censura moral, plano de que não cuidamos.
[xii] À semelhança do que faz a decisão recorrida e o MºPº, cabe apontar o que se decidiu no Assento do STJ de 18/12/91, publicado no DR, 1ª série, de 08/02/92, mesmo que relativo ao artº 142º da versão original do CP e relativo a outra forma de agressão – bofetada: «Em suma, a lei pune hoje no artº 142º do Código Penal a mera ofensa no corpo e esta tem lugar quando uma agressão voluntária é praticada no corpo de alguém, mesmo quando dela não resulte ofensa na saúde do visado por ausência de quaisquer efeitos produtores de doença ou incapacidade para o trabalho, pelo que uma simples bofetada dada com intenção de agredir é susceptível de integrar tal ilícito penal quando não gere dor nem se lhe sigam os mencionados efeitos».
[xiii] Paula Faria, ob. cit., pág. 206, §11, referindo a produção de dor como lesão da integridade psíquica que simultaneamente comporta um efeito somático.
[xiv] Cabe referir que o recorrente limita-se a indicar tais circunstância como “não indiferentes”, sem explicitar a respectiva relevância para o afastamento da verificação do crime, mesmo na sua perspectiva de inadequação social. Ficamos então sem saber se o recorrente considera que de todos os cidadãos do sexo masculino é social esperado tolerância à agressividade gratuita alheia e banal que um homem mais novo sofra empurrão de outro mais velho. 
[xv] Figueiredo Dias, Fundamento, sentido e finalidades da pena criminal, Coimbra Ed., 2001, pág. 104 e segs.
[xvi] Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Ed. Aequitas, 1993, pág. 227.
[xvii] Ac. do STJ de 28/09/2005, Pº 05P2537, relator Cons. Henriques Gaspar, www.dgsi.pt.