Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
152/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: RUI BARREIROS
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
AUTO-ESTRADA EXPLORADA PELA BRISA
Data do Acordão: 04/12/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE OURÉM
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 762º, 798º E 799º DO CC.
Sumário: Entre o utente da auto-estrada e a Brisa estabelece-se um contrato civil, ao lado do contrato de direito público que existe entre o Estado e a Brisa
A responsabilidade contratual da Brisa face a utente que sofreu danos em acidente provocado pela circulação de um cão só será afastada se a devedora fizer a prova de que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua.
Decisão Texto Integral:


I – Relatório.
1. Autora: S, Lda, ... .
2.1. Ré: Brisa - Auto-Estradas de Portugal, S.A, ... .
2.2. Interveniente: Companhia de Seguros Fidelidade, S.A, ... .
3. Pedido: condenação da ré a pagar-lhe a quantia de 1.302.712$00, acrescida de juros moratórios legais, contados a partir da citação até integral pagamento.
4. Causa de pedir: danos sofridos num veículo da sua propriedade e que circulava na A1 no sentido Sul-Norte, devido ao embate com um animal de raça canina de grande porte que surgiu na auto-estrada e apareceu junto ao separador Central.
...
II – Fundamentação.
8. Factos dados por provados.
8.1. Dos Factos Assentes:
...
G) E que constatou também a existência de um cão morto que imediatamente removeu do local.
8.2. Da Base Instrutória:
1) Ao chegar ao Km 106.325 daquela A1 atento o seu sentido de trânsito, de repente, e sem que algo o fizesse esperar, surgiu um animal de raça canina de grande porte, junto ao separador central.
2) O qual, correu espavorido, perpendicularmente para a faixa de rodagem por onde circulava o Mercedes.
3) O condutor deste accionou prontamente o sistema de travões do veículo.
4) Porém, e apesar dos esforços, não pode evitar a colisão com o animal, com a parte da frente lado direito do Mercedes.
...
11) Nas imediações do local onde ocorreu o sinistro existem diversas habitações e mesmo até estabelecimentos fabris.
12) Quer nas habitações, quer nos estabelecimentos fabris são utilizados cães de guarda, sendo alguns de grande corpulência.
13) A rede de vedação da A1 foi ultrapassada pelo referido cão.
14) O qual se evadiu e apareceu súbita e inesperadamente na via pública.
15) As vedações existentes que ladeiam a auto-estrada no local do acidente encontravam-se e encontram-se em bom estado de conservação.
16) No dia do alegado acidente foi efectuado patrulhamento no referido sub-lanço da A1.
17) Os funcionários da BRISA durante o patrulhamento não detectaram a presença de qualquer cão ou deficiência na vedação.
18) Também não foi comunicada à BRISA, qualquer deficiência na vedação ou a eventual presença de qualquer cão na Auto-Estrada.
19) Vistoriada a vedação nos dias imediatos pelo sector da obra civil que faz a manutenção da via, nada foi encontrado de anormal na vedação, que se encontrava em bom estado.
9. O Direito.
O objecto do recurso tem a ver com a controversa questão da responsabilidade da concessionária pelas auto-estradas em Portugal, a Brisa, pelos danos provocados por acidentes ocorridos nos espaços concessionados.
9.1. Uma afirmação que poderemos dizer recorrente é a de ela dividir as opiniões da jurisprudência. E se se faz esta afirmação, repetida por vários Acórdãos, não é para que ela se possa qualificar como de “La Palisse”, mas para a tentar enquadrar, de uma forma mais completa. E uma das razões, e importante para nós, é que as questões demasiadamente controvertidas na jurisprudência não beneficiam nem o utente do serviço, de um serviço público - os cidadãos -, nem o prestígio desse serviço. Com isto não queremos dizer que seja negativa a diferença de opiniões na jurisprudência, porque, em última análise, isso é uma garantia do que os cidadãos e o próprio Estado de Direito esperam do poder judicial, sinal e garantia de evolução de procura de outras posições. Mas, por outro lado, isso também não quer dizer que não possa e não deva fazer-se um esforço no sentido de uma procura da uniformidade possível, já que não é fácil, para os cidadãos, compreenderem e, sobretudo, viverem com decisões diferentes - para uns a decisão é uma, para outros, outra -.
Fazemos esta ligeira referência porque, por um lado, por esta última razão, damos sempre importância às posições que são maioritárias, mas, por outro lado, pela referida razão, digamos, garantística, não deixamos de seguir a minoritária quando concluímos haver razões suficientes para tal. E, neste caso, estamos com a jurisprudência minoritária, com a que subsume os acidentes de viação ocorridos nas auto-estradas pagas na responsabilidade contratual [1]. Subsiste o conflito a que nos referimos. Mas, então, ele só pode ser resolvido pelo legislador [2].
Conforme se refere no Acórdão desta Relação, de 8 de Maio de 2000[3], «caminhar num ou noutro sentido não é socialmente indiferente, e não pode esquecer-se que o direito não é algo de asséptico ou neutro, algo que possa e deva pensar-se em si mesmo. O direito destina-se a regular situações sociais e o aplicador do direito não pode, pois, divorciar-se das condições concretas em que procede à imediação entre a norma e a realidade que lhe subjaz. Só assim a norma cobra o sentido que a sua formulação pretendeu incorporar de forma geral e abstracta». É importante ter presente esta atitude perante o direito, para que se possa ter em vista os interesses do homem na sua convivência social; e, assim, não pode deixar de se ter presente que «não é indiferente colocar o ónus da prova da culpa da produção de um determinado evento danoso na esfera da obrigação do lesado (o utente da auto-estrada) ou, ao contrário, fazer recair esse ónus sobre a entidade a quem está cometida a segurança de quem circula (a concessionária)» [4].
O que não significa que não se respeitem os princípios e as regras definidoras da ciência jurídica; não seria aceitável qualificar determinada situação ou procurar determinado instituto só em função daquela perspectiva.
Mas, se, porventura, a situação jurídica puder ser enquadrada na responsabilidade contratual, então, deve ter-se em conta a solução que melhor sirva os interesses dos protagonistas da vida sócio-jurídica. E, dessa maneira, deve ter-se presente o conflito que existe entre o utente da via - a quem impor o ónus da prova é consagrar «uma visão fatalista das coisas, visto que o lesado não tem qualquer possibilidade de controlo sobre a fonte de perigo» [5] - e a concessionária - que «tem a possibilidade … [6] bem como os conhecimentos e os meios técnicos e humanos, para controlar a fonte dos perigos» [7]. Entre um lesado individual e ocasional e uma empresa que, além do mais, ainda pode repercutir no preço do que vende a alea que aquele teria de suportar sozinho, parece não poderem sobrar dúvidas sobre a correcção de optar por esta solução.
9.2. E a questão é que vemos no acto de escolher transitar pela auto-estrada, pagando determinado preço [8] uma relação contratual, pelo que nenhum embaraço vemos em alinhar pela jurisprudência que impõe à concessionária das auto-estradas o ónus de prova de ausência de culpa relativamente a um evento ilícito e danoso na área concessionada.
9.2.1. Não pomos em causa que entre a Brisa e o Estado português exista um contrato de concessão de obras públicas [9], de natureza administrativa [10]. O que entendemos é que, ao lado desse contrato, existe um outro de natureza não administrativa, entre a concessionária e o utente.
Actualmente, na economia, já não há a fronteira rígida entre o sector público e o privado, pois, cada vez mais, os particulares desenvolvem actividades tradicionalmente a ele cometidas; quer esta realidade decorra de concepções liberais ou neo-liberais, de redução máxima do papel do sector público, quer sociais-democratas, de combinação e diversificação das formas de intervenção na economia, a verdade é que, relativamente a actividades tradicionalmente fornecidas pelo Estado, temos vendedores e compradores privados e um determinado mercado [11]. Isto acontece na saúde, com a existência de unidades privadas ao lado de outras públicas, para além de outras realidades, como os Hospitais S.A., no caminho da privatização, ou a empresarialização. O mesmo acontece no ensino, em que o Estado também fomenta a iniciativa privada [12]. Isso acontece em muitos outros sectores. O que não pode é dizer-se que as entidades privadas, ao contratarem com o Estado essas formas de intervenção na economia, não assumam, depois, contratos privados com os utentes dos serviços que se comprometeram com o Estado a disponibilizar [13]. E, sendo assim, não se pode defender que a concessionária obtenha lucros com a sua actividade [14], mas não tenha as correspectivas obrigações [15]. Na verdade, estas empresas, além de receberem do Estado quantias pela amortização e pela remuneração do capital investido, ainda têm lucros, o mesmo acontecendo com os empresários privados - amortização, remuneração do capital e lucro -, mas com deveres perante os que com eles contratam.
9.2.2. O facto do preço da utilização da auto-estrada não ser negociado por uma das partes - o utente -, e ser até imposto através do contrato administrativo celebrado entre o Estado e a Brisa, não significa que, depois, não se estabeleça um contrato civil entre esta e o utente. Este tem a liberdade de negociar ou não, primeira vertente, do princípio da liberdade contratual [16]. Não tem a segunda, de participar na conformação do negócio, mas isso é o que acontece cada vez mais com a passagem do liberalismo económico para o intervencionismo estatal [17]; com os contratos normativos, com a introdução de normas imperativas [18], com os contratos de adesão; nestes, um dos contraentes aceita, ou não, as condições apresentadas pelo o outro «não sendo possível modificar o ordenamento negocial apresentado» [19].
Não estamos numa realidade diferente de outras semelhantes e em que não há dúvidas sobre a qualificação: com a privatização de serviços públicos, os particulares ficaram com a sua margem de negociação muito limitada; com a privatização, mas também sempre que há uma situação de monopólio. Muitas vezes, nem sequer se pode dizer que possam ou não negociar, como o automobilista pode fazer, escolhendo entre a auto-estrada e a estrada nacional ou a municipal [20]; é o que acontece com a actividade dos seguros, do fornecimento da água e energia eléctrica. Noutras vezes, quer a possibilidade de contratar, quer a de intervir na formação do preço estão completamente arredadas: o doente não pode escolher entre tomar ou não o remédio e paga o preço que foi previamente fixado pelo Estado, uma vezes através de negociação com a entidade que vende o medicamento, outras vezes unilateralmente. De forma que ver esta realidade também no sector das comunicações rodoviárias não é novidade nem impressiona.
9.3.3. A questão não deverá ser resolvida a partir da qualificação de receita coactiva [21] ou voluntária, de taxa ou de receita patrimonial. Essas qualificações relevam no direito constitucional, administrativo, financeiro e fiscal. Se o utente da via estivesse numa relação jurídica com o Estado, teria importância saber se a quantia que pagava era taxa ou imposto para saber da constitucionalidade da sua criação e fixação; para saber de isenções, caso as houvesse e tivesse qualidade para delas beneficiar. Nesse caso, poderíamos aceitar tratar-se de uma taxa, mas, diga-se, entretanto, para contrapartida de um bem de utilização voluntária [22].
Mas, sendo o utente um particular e a concessionária uma empresa privada, a única relação que pode haver entre eles é de direito civil, não obstante, esta relação poder sofrer influências do contrato que, por outro lado, se estabeleceu entre a concessionária e o Estado; mas, influência de outras relações jurídicas, sempre as pode haver, quer nas relações de direito público, quer nas de direito privado; não é essa realidade lateral que altera a classificação e a essência da estrutura da relação jurídica qualificanda. Assim como não é vinculante o nomen que o legislador deu ao preço [23].
Assim, o que interessa ver é a realidade aparente e funcional que temos à nossa frente. A realidade aparente é a de dois particulares - a empresa concessionária e um cidadão - a fazerem a troca de bens jurídicos mediante um preço, ou seja, determinada quantidade de moeda a ser permutada por um bem. Preço este que tem a mesma função que têm os restantes - do que o cidadão paga para ver cinema, para comprar bens alimentares, para comprar um bilhete de combóio, para pagar a prestação de um serviço, etc. - : limitação da procura e transferência para os utilizadores do bem da totalidade ou de parte das despesas com a sua produção [24].
Dir-se-á que o bem permutado é um bem semi-público [25], tradicionalmente produzido pelo Estado, cuja prestação lhe é imposta, não só politica, mas também juridicamente. Pode ser verdade, sê-lo-á relativamente a certas prestações, numa economia de inspiração social-democrata, pode já não o ser numa liberal ou neo-liberal, o que mostra que esse critério é, à partida, falível, pelo menos para o efeito que tratamos. Mas, mesmo aceitando a afirmação, o que nos interessa não é saber quem é o devedor originário da prestação, mas sim quem o presta realmente e de que forma: se é uma empresa particular, que estabelece relações jurídicas privadas e vem a obter lucros com a sua actividade [26], temos relações jurídicas privadas. Então, o que interessa é o ponto de vista funcional, sendo que tudo o resto são formas de gerir a actividade político-económica:
a) É o Estado o sujeito prestador, teremos, algumas vezes, receitas de direito público; algumas vezes, só, porque, noutras, quando o Estado obtém receitas «por processos idênticos aos dos particulares, isto é, mediante o exercício de actividades económicas em regime semelhante ao das actividades económicas privadas», já temos receitas de direito privado [27]. Agora, se em vez de ser o Estado, na referida lógica, é um particular, com essa mesma lógica, embora em sua substituição, por maioria de razão.
b) É uma empresa particular, numa lógica de oferta e de procura, com preços e lucros, temos relações de direito privado, com influências das mais variadas, quer gerais - como as atrás referidas derivadas da mutação de modelos económicos -, quer particulares - por opções concretas do Estado dentro de determinado modelo económico ou independentemente dele -.
Mas, esta realidade socio-económica tem de ter correspondência no direito, sob pena de acabarmos com distorções graves, já atrás referidas: a concessionária não é particular, pelo que está fora do direito civil, mas não é o Estado, pelo que está fora do direito público; fora do direito público, relativamente aos utentes, claro, que, entretanto, pagam a quem não é responsável perante eles, não tendo os mesmos direitos de quem contratou a concessão.
9.3.4. Estamos, assim, dentro da linha, pelo menos em certas partes, dos Acórdãos do STJ de 17 de Janeiro de 2000 [28], de 22 de Junho de 2004 [29], da Relação do Porto, de 31 de Outubro de 2002 [30], da Relação de Coimbra, de 13 de Janeiro de 2004 [31], para além do já citado Acórdão da Relação de Coimbra, de 8 de Maio de 2001, entre outros [32]. E com a qualificação que o Prof. Sinde Monteiro faz na RLJ 133º, 60, 1ª col.: contrato de direito privado.
9.4.1. E não se queira tirar a conclusão contrária com o argumento de que se mantém a responsabilidade da concessionária nas vias sem pagamento, porque isso situa-se na esfera do contrato administrativo, aquele que tem como sujeitos o Estado e a Brisa e tem por objecto a obrigação de assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade a circulação rodoviária [33], ou seja, na parte em que a concessionária se obriga a, substituindo o Estado, servir o interesse público. Nesses casos, é óbvio que, depois, não se estabelece nenhum contrato entre a concessionária e os particulares, visto que não há pagamento de preço [34].
Pode procurar-se uma situação paralela na fiscalização que compete ao IEP relativamente à vigilância das vedações que ladeiam a auto-estrada [35]; também aí estamos no domínio da responsabilidade administrativa. Mas, isso não quer dizer que o utente que pagou para ir mais depressa, com comodidade e segurança, não possa pedir responsabilidade contratual à entidade que, oferendo-lhe todas essas condições, a troco de pagamento, não cumpre a sua prestação de forma perfeita.
9.4.2. E também não vemos que se nos imponha a responsabilidade extra-contratual pelo facto do contrato administrativo estabelecer que é a concessionária que responde perante terceiros «nos termos da lei» [36]; querendo remeter-se para a responsabilidade civil, esta compreende aquela e a contratual, igualmente; se é certo que a concessionária poderá incorrer na primeira, também poderá ser chamada por responsabilidade contratual e, ainda, por factos lícitos, ou seja, em todas as modalidades da responsabilidade civil. Se a situação que nos ocupa não serve de exemplo, por ser a tese, lembremo-nos dos muitos contratos que a Brisa celebra com outras entidades privadas, no âmbito da concessão, a nível de obras e da prestação de serviços [37], e logo veremos que nunca poderia estar excluída a responsabilidade contratual pelo facto de, ao lado, haver um contrato administrativo com o Estado e pelo facto desse contrato cometer a responsabilidade para com terceiros à Brisa, nos termos da lei.
9.5.1. O aparecimento de um cão numa auto-estrada é um facto com que o utente da via não conta, por ser suposto que não aconteça [38], já que ele decidiu escolher aquela via, pagando para isso - e pagando para além do que os cidadãos em geral já pagam, entregando depois o Estado à Brisa -, pelo que há responsabilidade contratual por parte do devedor, nos termos do disposto nos artigos 762º e 798º do CC.
...
Por isso, não concordamos com a Apelada quando diz que a presença de um animal na auto-estrada não configura incumprimento.
Não o haveria, se o facto fosse da responsabilidade de terceiro ou se ela tivesse feito a prova que lhe competia. E, contrariamente ao por si defendido, pensamos que a não fez.
9.5.2. Não é suficiente provar que, na zona do acidente, foram tomados os cuidados necessários: ... . Um cão pode entrar por local onde a vedação esteja defeituosa e atravessar a via só depois de percorrer vários quilómetros [39]. E isto independentemente de ter ficado provado que «a rede de vedação da A1 foi ultrapassada pelo referido cão».
Também não se chega a nada de concreto por se ter provado que «vistoriada a vedação nos dias imediatos pelo sector da obra civil que faz a manutenção da via, nada foi encontrado de anormal na vedação, que se encontrava em bom estado». O que seria necessário era explicar a razão da existência do cão num local vedado e de difícil acesso: «essa prova só terá sido produzida quando se conhecer, em concreto, o modo de introdução do animal. A causa ignorada não exonera o devedor, nem a genérica demonstração de ter agido diligentemente» [40].
9.5.3. Esta questão da prova de inexistência de culpa levanta, efectivamente, problemas: pode dizer-se que, a seguir-se o raciocínio que fazemos, então, a concessionária nunca provará a ausência de culpa, por muito que faça.
Mas, isso é precisamente o que se passa com o utente da via na responsabilidade extra-contratual. E já nem nos referimos a situações em que ficou provada a existência de deficiência na vedação, mas a concessionária foi absolvida por não se saber se o cão tinha entrado por esse local ou se teria sido deixado por outro veículo ou por não se saber se a pedra arremessada passou pela rede de vedação ou por cima dela - pois, assim, nunca nada seria provado -; referimo-nos, sim, à dificuldade real de um utente, sinistrado, vir a provar factos que lhe estão muito distantes e, mesmo, de acesso vedado; repare-se que os utentes das auto-estradas estão proibidos de circular a pé e de pararem nas auto-estradas, sendo que, por fora da zona concessionada, muitas das propriedades serão particulares. Este facto, para além de tornar o direito algo de muito longínquo dos cidadãos, traria ainda a possibilidade de uma menor ou acomodada acção de fiscalização por parte da Brisa. Por isso é muito mais justo fazer impender sobre a concessionária o ónus de provar que não teve culpa, nos termos do disposto no artigo 799º do CC [41].
Desde que isso seja possível, do ponto de vista da dogmática jurídica. E só a essa conclusão poderemos chegar se os particulares, para além dos impostos que pagam, ainda têm de pagar o concreto serviço usufruído a uma entidade que, com a sua actividade, obtém lucros, como qualquer empresa privada, para além de subvenções estaduais, pela prossecução de serviço público em substituição do Estado.
A questão da prova é muitas vezes melindrosa e sempre intrinsecamente ligada à questão da efectivação de direitos. Se percorrermos os diversos Acórdãos, quer os que vão num sentido, quer no outro, a forma da concessionária se defender é sempre a mesma, como o foi neste processo: «No dia do alegado acidente foi efectuado patrulhamento no referido sub-lanço da A1. Os funcionários da BRISA durante o patrulhamento não detectaram a presença de qualquer cão ou deficiência na vedação».
Não se põe em causa a veracidade dos depoimentos, mas tem de se ser muito criterioso na sua valoração. Por um lado, tem-se de um lado a entidade que domina tudo para poder fazer a prova dos factos e, do outro lado, quem não a fará seguramente. Por outro lado, quem está em condições de fazer a prova, fá-la através de empregados seus, que têm a obrigação de vigiar, pelo que estarão convencidos que vigiaram, ou por quem está contratualmente ligado à concessionária com a obrigação de efectuar certos serviços (vistoriada a vedação nos dias imediatos pelo sector da obra civil que faz a manutenção da via), pelo que, sujeito a responsabilidade contratual, deporá de acordo com a sua convicção de cumprimento do contrato. Repetimos que não há nestas afirmações nenhuma intenção de pôr em causa a veracidade dos depoimentos, mas a de salientar a enorme desigualdade de armas dos litigantes.
Por outro lado, como se referiu no Acórdão da Relação de Coimbra de 5 de Novembro de 2002, «deve exigir-se que tais operações sejam efectivas e eficazes, de modo a detectar, em tempo oportuno, as potenciais fontes dos riscos de circulação automóvel» [42]. No contexto e no caso em que esta afirmação foi feita, ela é mais defensável do que no nosso caso, convenhamos; contudo, ainda há espaço para querer saber como é que é feito o patrulhamento e a vistoria, porque tal não foi esclarecido; pode dizer-se que toda a gente vê carros da Brisa a circular fora da faixa de rodagem da auto-estrada a uma velocidade muito reduzida com pessoas a olharem para a área adjacente; mas, o que faltaria saber é se essa acção é eficaz, atendendo à distância, à existência de arbustos e ervas e à possibilidade das eventuais falhas na rede serem pouco perceptíveis ou não o serem mesmo, como o caso da entrada de um texugo por baixo da rede, o que já aconteceu, e pode deixar espaço para a entrada de canídeos.
Ou seja, sem que se caia na responsabilidade objectiva, a verdade é que a prova tem de ser segura (por parte de quem a pode fazer) uma vez que são exigíveis níveis de segurança elevados, concordantes com a confiança e as condições com que os utentes circulam nas auto-estradas, para o que pagam.
...
III – Decisão.
Nestes termos, julgam procedente a apelação e, consequentemente, condenam as ré “Brisa - Auto Estradas de Portugal, S.A.” a pagar à autora a quantia de € 6.497, 90 (seis mil quatrocentos e noventa e sete euros e noventa cêntimos), acrescida de juros legais desde a citação.
Custas pela apelada, nesta e na primeira instância.

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[1] dizemos que é a posição minoritária, mas, por outro lado, apesar de não termos feito uma procura sistematizada, parece-nos que é uma posição que, ultimamente, tem vindo a ganhar cada vez mais adesões.
[2] «Porventura se deveria caminhar mais afoitamente para a protecção do lesado e, portanto, para a responsabilidade objectiva ou, pelo menos, para mais situações de presunção de culpa» (Acórdão do STJ, de 12 de Novembro de 1996, in BMJ 461, 411 e ss).
[3] relatado pelo, então, Desmb. Pires da Rosa, in CJ XXVI, 3, 9.
[4 ibidem.
[5] Prof. Sinde Monteiro, RLJ 133º, 66, 2ª col..
[6] (e o dever, ligado à custódia), afirmação que resulta do Autor partir da responsabilidade de «quem tem em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, …» (artigo 493º, nº 1, do CC).
[7] ibidem.
[8] cf. Prof. Teixeira Ribeiro, RLJ 117º, 293 e 294.
[9] Base II do Anexo ao Decreto-Lei nº 294/97, de 24 de Outubro.
[10] cf. o Acórdão da Relação de Évora, de 7 de Fevereiro de 2002, in CJ XXVII, 1, 268, 1ª col..
[11] cf. Prof. Teixeira Ribeiro, RLJ 117º, 293, 2ª col., 2º §: «Mas quem diz que não é mercado, embora sem mercado livre, a relação entre a oferta de unidades de ensino por certa quantia e a procura de tais unidades?» (o Autor refere-se ao pagamento de propinas, no ensino público, que já qualificara como taxas).
[12] mas, quando é o Estado o sujeito da relação jurídica, o consumidor paga propinas, quando é um particular, paga mensalidades, mesmo que, a par das mensalidades haja subvenções do Estado (cf. Prof. Teixeira Ribeiro, RLJ 117º, 290. 1ª col., último §).
[13] até em relação ao Estado e às empresas públicas há hoje a tendência para a equiparação aos particulares (cf. RLJ 133º, 30, 1ª col.).
[14] do site da “Brisa”: «A Brisa é uma empresa integralmente privada, com uma capitalização bolsista de cerca de 3 mil milhões de Euros, é o 5º maior grupo português cotado em bolsa, integrando o índice de referência PSI20, e o EURONEXT 100, principal índice da plataforma de bolsa pan-europeia- Euronext. Para além do reconhecido desempenho económico-financeiro, com atractivas taxas de remuneração para o accionista, a Brisa apresenta também elevados critérios de sustentabilidade. Possui uma participação de 17,9% na CCR - Companhia de Concessões Rodoviárias no Brasil, 4% da Abertis - concessionária de auto-estradas em Espanha». Ver, ainda, RLJ 133º, 30, 1ª col.: «Para mais estando a exploração das auto-estradas entregues a empresas com finalidade lucrativa».
[15] o Prof. Sinde Monteiro defende que se compreenderia «mal que as empresas concessionárias das auto-estradas escapassem por um lado ao regime da responsabilidade por actos de gestão pública e por outro lado ao da responsabilidade contratual de direito privado» (RLJ 133º, 30, 2ª col.).
[16] cf. Prof. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 1976, pág. 71: «liberdade de celebração ou conclusão dos contratos».
[17] cf. Prof. Mota Pinto, obra citada, pág. 73.
[18] uma norma imperativa é aquela que visa «directa e imediatamente impor aos particulares a observância de certo comportamento, de forma tal que os particulares ficam com a liberdade de constituir relações jurídicas que caibam dentro dessas normas, mas não de criarem para si regime diferente do pretendido pelo legislador» (Prof. Pires de Lima, Noções Fundamentais de Direito Civil, Coimbra Editora, 1957, vol. I, pág. 57). «Não obstante elas serem predominantes no direito público, também as há no direito privado, sobretudo quando se pretende proteger as pessoas econòmicamente débeis ou as pessoas necessitadas, por qualquer circunstância, da tutela legal e ainda as normas que visam combater abusos ou fraudes do comércio jurídico» (ibidem).
[19] Prof. Mota Pinto, obra citada, pág. 75.
[20] já lemos que nem a liberdade de contratar existe, quer para a concessionária, quer para o utente; para aquele, porque não pode deixar de aceitar a entrada de um utente na auto-estrada; para este porque, em situações de urgência, não deixará de ir pela auto-estrada. Com o devido respeito, não concordamos: 1) há muitos privados que não podem deixar de contratar, sob pena de cometerem factos ilícitos, quer administrativos, quer civis (o taxista, o comerciante, a empresa de transporte rodoviário, etc. etc.); dir-se-á que o taxista pode ficar em casa e não colocar o táxi no mercado; claro, são diferenças, mas de mera quantidade, porque ninguém duvida que o concessionário do bar de um clube de futebol tem de estar aberto, obrigatoriamente, durante o período acordado no contrato de concessão, o que em nada significa que não celebre um contrato de compra e venda quando vende um café a um particular. Agora era só multiplicar este exemplo por as inúmeras situações em que o privado, concessionado por outro privado, celebra negócios jurídicos com outros privados. Ao substituirmos um concessionante privado pelo Estado, todo o outro espaço fica inalterado, sem prejuízo das referidas diferenças quantitativas resultantes do objecto da concessão. Quanto às situações de urgência, que levam à perda de liberdade contratual por parte do utente da auto-estrada, diríamos que, fora das situações de urgência, certamente as que normalmente são vividas, então já haveria essa liberdade; e mesmo naquelas, não é só em relação à auto-estarada que se perde a liberdade.
[21] receita de direito público, porque conseguida mercê do poder de império, portanto sem que haja uma base negocial (Prof. Teixeira Ribeiro, RLJ 117º, 289. 1ª col., 2º §).
[22] cf. Prof. Teixeira Ribeiro, RLJ 117º, 292, 2ª col., nº 5.
[23] Prof. Afonso Queiró, RLJ 94º, 331, 2ª col..
[24] cf. Prof. Teixeira Ribeiro, RLJ 117º, 293, 2ª col., 1º §.
[25] bens que satisfazem necessidades colectivas (como os bens públicos propriamente ditos) e, também, necessidades individuais, ou seja, «necessidades de satisfação activa, necessidades cuja satisfação exige a procura das coisas pelo consumidor» (Prof. Teixeira Ribeiro, RLJ 117º, 291, 1ª col., nº 3).
[26] e já aqui haveria uma grande diferença do ponto de vista da economia política, visto que o lucro, se fosse o Estado, reverteria a favor de toda a comunidade.
[27] Prof. Teixeira Ribeiro, RLJ 117º, 289, 1ª col..
[28] in CJ STJ 00, 1, 107.
[29] «I - O contrato celebrado entre o utente que pretende circular pela auto-estrada e a Brisa, sua concessionária, é um contrato inominado em que o utente tem como prestação o pagamento de uma taxa e a Brisa a contraprestação de permitir que o utente «utilize» a auto-estrada, com comodidade e segurança» (ponto I do sumário do Acórdão, relatado pelo Cons. Afonso Correia; www.dgsi.pt).
[30] CJ XXVII, 4, 195.
[31] «1 - Sempre que ocorra um acidente na auto-estrada originado por uma falha objectiva das específicas condições de segurança, a concessionária encarregada da vigilância e da permanente eficácia daquelas condições, responde pelos danos que estejam numa relação de causa e efeito com essa falha, salvo se provar que não houve culpa da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua. 2 - Tendo ocorrido um acidente na auto-estrada causado pela presença de uma matilha na respectiva faixa de rodagem, e não tendo a concessionária demonstrado que os animais aí penetraram por modo totalmente alheio às condições de segurança, terá de responder pelos consequentes danos» (sumário do Acórdão, relatada pelo Desemb. Coelho de Matos; www.dgsi.pt).
[32] No Acórdão desta Relação, de 5 de Novembro de 2002 (CJ XXVII, 5, 15, nota 1) cita-se a jurisprudência que defende a existência de responsabilidade contratual e a que defende a extra-contratual.
[33] Base XXXVI, nº 2, do anexo ao referido Decreto-Lei.
[34] o utente de uma SCUT também beneficia da mesma protecção se se defender a existência de um “contrato a favor de terceiro” ou de “contrato com eficácia de protecção para terceiros”. Mas, mesmo assim, o argumento contra a perspectiva contratualista continua a não proceder.
[35] cf. ponto III das Contra-alegações, a fls. 191.
[36] «Serão da inteira responsabilidade da concessionária todas as indemnizações que, nos termos da lei, sejam devidas a terceiros, em consequência de qualquer actividade da concessão» (Base XLIX, nº 1, do anexo ao Decreto-Lei nº 249/97, de 24 de Outubro).
[37] do site da “Brisa”: «A Brisa é o maior operador de auto-estradas em Portugal, e um dos principais a nível europeu do sector, com uma concessão de 11 auto-estradas conexas, totalizando uma rede de 1106 Km de extensão. A sua actividade principal é a construção e manutenção da rede de auto-estradas. Dedica-se também ao desenvolvimento de áreas de negócio relacionadas com a oferta de serviços ao automobilista tendo iniciado a reorganização de um conjunto de competências que anteriormente detinha no seu seio, estruturando-as em unidades de negócio autónomas. Constituiu, nesse sentido, uma área de serviços rodoviários».
[38] cf. Base XXXVI, nº 2 (dever de assegurar a circulação «em boas condições de segurança e comodidade») e a Base XXII, nº 5, al. a) (obrigação de vedação da auto-estrada em toda a sua extensão), ambas do Anexo ao DL.
[39] no mesmo sentido, Prof. Sinde Monteiro, RLJ 131º, 111, 2ª col..
[40] Prof. Sinde Monteiro, RLJ 133º, 65, 1ª col., 2º §. No mesmo sentido, o já referido Acórdão do STJ, de 22 de Junho de 20004: «Não será suficiente (ao devedor, a Brisa) mostrar que foi diligente ou que não foi negligente: terá de estabelecer positivamente qual o evento concreto, alheio ao mundo da sua imputabilidade moral, que não lhe deixou realizar o cumprimento. Essa prova só terá sido produzida quando se conhecer, em concreto, o modo de intromissão do animal. A causa ignorada não exonera o devedor, nem a genérica demonstração de ter agido diligentemente» (pontos VI e VII do respectivo sumário).
[41] «no plano da política jurídica, parece acertado, até do ponto de vista da análise económica do direito, o agravamento do estatuto de responsabilidade daquele que domina a fonte de perigo» (Prof. Sinde Monteiro, in RLJ 131º, 112, 1ª col.). Voltemos, ainda, ao Acórdão do STJ, de 22 de Junho de 20004: «O aparecimento de um cão de elevado porte na faixa de rodagem da auto-estrada constitui reconhecido perigo para quem ali circula. Cabe à Brisa evitar essa (e outras) fonte de perigos, essa anormalidade. Não pode pôr-se a cargo do automobilista a prova da negligência da Brisa ou da origem do cão porque não foi a prestação dele que falhou nem ele tem a direcção efectiva, o poder de facto sobre a auto-estrada (como um todo, incluindo vedações, ramais de acesso e áreas de repouso e serviço. V - Só o «caso de força maior devidamente verificado» exonera o devedor (a concessionária) da sua obrigação de garantir a circulação em condições de segurança (art. 799º, nº 1, do CC) e, na hipótese de inexecução, do dever de reparar os prejuízos causados» (pontos IV e V do respectivo sumário).
[42] CJ XXVII, 5, págs. 15 e 16.