Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
439/08.3TBMGL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL FONSECA
Descritores: CAMINHO PÚBLICO
Data do Acordão: 05/12/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MANGUALDE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 202º, Nº2, 1383º E 1384º DO C.C.
Sumário: Na sequência do Assento de 19/04/1989 e subsequente interpretação que a jurisprudência dele vem fazendo, a qualificação de um caminho como público pode ter por fundamento:
a) o seu uso directo e imediato pelo público, desde tempos imemoriais, com o fim de satisfação de interesses colectivos relevantes (interpretação restritiva); ou

b) o facto de ser propriedade de uma entidade de direito público e estar afecto à utilidade pública (interpretação extensiva).

Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

1. RELATÓRIO

A... e esposa B... , C... e esposa, D... , E... e esposa, F... propuseram contra G... e esposa H... , I... e marido, J... , L...e marido, M... , N... , O... e marido P... , Q... e mulher R... e O... , o presente procedimento cautelar comum, pedindo que o tribunal ordene aos requeridos:

a) que não mais coloquem quaisquer obstáculos no caminho ou, por qualquer forma, impeçam ou dificultem a circulação de pé e de carro pelo mesmo;

b) que não mais realizem quaisquer trabalhos ou obras no caminhos e nos respectivos muros de suporte que impeçam ou dificultem a circulação de pé e de carro pelo mesmo;

c) que retirem todos os obstáculos que impedem a circulação de pé e de carro através do referenciado caminho e procedam ao aterro da cratera identificada no artigo 52.º do requerimento inicial e reconstrução do muro de suporte por forma a ser possível a circulação de veículos pelo caminho;

d) que não impeçam ou dificultem a realização pelos requerentes de quaisquer obras no caminhos necessárias a permitir a circulação através deste de pé e de carro.

Para fundamentar a sua pretensão invocam, em síntese, que são proprietários de prédios sitos em Ponte Nova, freguesia de Germil, prédios aos quais sempre acederam por um caminho público, até que os requeridos, que questionam a pública dominialidade do caminho, invocando que o mesmo lhes pertence, obstruíram o mesmo, impedindo que os requerentes por aí passem; em virtude dessa actuação os primeiros requerentes tiveram de suspender as obras de construção de uma habitação no seu prédio, sendo que a licença da obra terminará em 25 de Março de 2009, os segundos requerentes cultivam o prédio rústico de sua propriedade e nele construíram um barracão, no qual tinham uma cabra que foi morta recentemente e os terceiros requerentes deixaram de aí poder passar os fins de semana.

Subsidiariamente, e para o caso de se reconhecer que o caminho pertence aos requeridos, sempre se teria constituído a favor dos prédios dos requerentes o direito de servidão de passagem, pelo instituto da usucapião, uma vez que os requerentes, há mais de 30 anos, por si e antecessores utilizam o referido caminho, de pé e de carro, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, ignorando que lesavam os direitos de outrem e no convencimento de exercerem um direito próprio.

Os requeridos apresentaram oposição, impugnando a factualidade invocada pelos requerentes. Sustentam, em síntese, que o leito do caminho está implantado no seu prédio, sendo sua propriedade e sempre se destinou ao uso dos donos da Quinta da Retorta e que os requerentes podem aceder aos seus prédios por dois caminhos públicos, pelo lado de Germil e Ponte do Cavalo, querendo passar pelo caminho dos requeridos apenas para “encurtarem distância”; aqueles caminhos são absolutamente transitáveis e mesmo que não estejam, eventualmente, nas melhores condições só a inércia e negligência dos requerentes e da Junta de Freguesia de Germil se deve.

Procedeu-se à audiência final.

Proferiu-se sentença, que concluiu da seguinte forma:

“Atento o exposto, julgo o procedimento cautelar improcedente e, em consequência, absolvo os requeridos do pedido mencionado nas als. a) a d) de fls. 47.

Custas do procedimento pelos requerentes.

Registe e notifique”.

Não se conformando, os requerentes apresentaram recurso formulando as seguintes conclusões:

“a) A prova decorrente dos depoimentos testemunhal e documental, identificados em II-8, impõem decisão diversa da recorrida quanto aos artigos 78.°, 79.° e 80.° do requerimento inicial e aos pontos 3.14, 3.26, 3.64 e 3.71 da sentença "a quo", bem como quantos às alíneas a) e s), enfermando a decisão proferida de deficiente e errónea analise critica da prova produzida violando o disposto 653° n° 2 CPC.

b) Relativamente à matéria de facto dos artigos 78.°, 79.° e 80.° do requerimento inicial deve ser sempre considerada provada bem como, deverá ser alterado o teor da resposta dada à matéria de facto constante do ponto 3.71 da sentença "a quo", o qual deverá passar a ter o conteúdo indicado no último parágrafo de II-1.

c) Da análise em conjunto da prova produzida não poderá resultar entendimento diverso relativamente ao título a que foi cedido o caminho e quanto ao animus da sua utilização pelos requerentes devendo ser considerado em ambos os casos como público ou, subsidiariamente, como particular.

d) Relativamente à matéria de facto considerada provada dos pontos 3.14 e 3.26 e não provada nas alíneas a) e s) da sentença, considerando o pedido principal formulado de reconhecimento da pública dominialidade do caminho, deverá ser alterado o conteúdo das respostas consideradas provadas passando estas a ter o conteúdo indicado em II-4.

e) Subsidiariamente à pretensão formulada na alínea anterior e, para o caso de não proceder tal pretensão, então deverá ser alterado o teor da resposta dada à matéria de facto dos pontos 3.14, 3.26 e 3.63 da sentença passando estes a ter o conteúdo indicado em II-5.

f) A qualificação de um caminho como público pode fundamentar-se em dois fundamentos distintos:

- No facto de ser propriedade de entidade de direito público resultante da sua afectação a entidade pública pelo anterior proprietário e estar afecto a tal utilização, não sendo necessária a verificação do requisito da imemorialidade;

- No seu uso directo e imediato pelo público, desde tempos imemoriais, visando a satisfação de interesses colectivos relevantes.

g) O anterior proprietário do terreno onde se situa o caminho de pé e de carro identificado nos autos afectou-o ao uso público e este encontra-se afecto a tal utilidade pelo que, o caminho é público.

h) O primitivo carreiro por onde se circulava de pé é imemorial, por os vivos não se recordarem da data da sua construção e afectação ao uso público.

i) Tendo ocorrido mudança do local onde se situava o carreiro e mantendo-se a sua afectação a uso público estamos perante situação enquadrável analogicamente em mudança de servidão, mantendo o novo caminho o requisito da imemorialidade para efeitos de classificação como caminho público.

j) Os requerentes formularam no requerimento inicial, a título subsidiário, o pedido de reconhecimento de servidão de passagem de pé e de carro.

A contraditoriedade do pedido subsidiário com o pedido principal não determina ineptidão do requerimento inicial por aquele só dever ser considerado para o caso de improcedência do pedido principal.

k) Não se reconhecendo a existência de caminho público deverá então ser reconhecida a existência de servidão de passagem de pé e de carro a favor dos prédios dos requerentes e sobre o prédio dos primeiros requeridos nos termos constantes da matéria de facto provada.

1) Nos autos encontra-se provada a probabilidade séria de existência do direito dos requerentes, fundado receio de que o seu direito sofra lesão grave e dificilmente reparável, adequação da providência solicitada para evitar a lesão, não ser o prejuízo resultante do decretamento da providência superior ao dano que se pretende evitar e não existe providência cautelar especificada que acautele aquele direito pelo que, deverá ser decretada a providência requerida”.

Os requeridos apresentaram contra alegações, propugnando pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II. FUNDAMENTOS DE FACTO

A 1ª instância deu como provada a factualidade que segue, procedendo esta Relação, nos termos do art. 667º do C.P.C., à correcção de um lapso que é evidente e decorre do próprio texto, ponderando o sentido da alegação dos requeridos – no art. 43º da oposição referiu-se que “todos os requeridos, como já se referiu, têm os caminhos/acessos públicos que sempre tiveram, pelo lado de Germil e Ponte do Cavalo, não constando a existência de outro no local”, quando se queria manifestamente aludir aos “requerentes”, lapso que passou para o texto da decisão, sob o ponto 3.77 – bem como à alteração da inserção da factualidade enunciada sob o ponto 3.64, que corresponde a alegação dos requerentes (art. 80º) mas foi colocada na decisão na parte alusiva aos “Factos indiciados emergentes da oposição”:

Do requerimento inicial:

3.1 A requerente B... é dona e legítima proprietária do seguinte prédio:

“Casa de habitação de dois pisos e duas dependências com a superfície coberta de 166m2, dependências com 27m2 e superfície descoberta com 784m2, sito no lugar de Moinhos do Pisão, Ponte Nova, freguesia de Germil, concelho de Penalva do Castelo, a confrontar de norte com Rio Dão, sul e poente caminho e nascente T..., inscrito na matriz predial urbana da dita freguesia sob o artigo 543º e descrita na Conservatória do Registo Predial de Penalva do Castelo sob o n.º 0680.” – Doc. n.º 1 junto a fls. 49 a 51 e que aqui se dá como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

3.2 O referido prédio adveio à posse da requerenteB...por partilha das heranças abertas por óbitos de U... e V..., efectuada por escritura de 04 de Maio de 2005, lavrada no Cartório Notarial de Penalva do Castelo exarada a fls. 107 a 109 do livro 75-E. – Doc. 2 junto a fls. 52 a 57 e que aqui se dá como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

3.3 A requerente D... é dona e legítima proprietária do seguinte prédio:

“terra de cultura com videiras, oliveiras e fruteiras, com a área de 1.540m2, sita ao Lameirinho, Ponte Nova, freguesia de Germil, concelho de Penalva do Castelo, a confrontar de norte com herdeiros de X..., sul caminho, nascente V... e poente herdeiros de Z..., inscrito na matriz predial rústica da dita freguesia sob o artigo 1180º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Penalva do Castelo sob o nº 0759.” – Doc. nº 3 junto a fls. 58 e ss. e que aqui se dá como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

3.4 Os requerentes E... e mulher F...são donos e legítimos proprietários do seguinte prédio:

“Terra de pastagem com oliveiras, fruteiras e videiras em cordão com a área de 7.800m2 e casa de rés-do-chão destinada a arrumações com a superfície coberta de 60m2, sita aos Cadavais, Ponte Nova, freguesia de Germil, concelho de Penalva do Castelo, a confrontar de norte com caminho, sul com Y..., nascente K...e poente com herdeiros de X..., inscrita na matriz sob os artigos rústico 1178º e urbano 452º, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Penalva do Castelo sob o nº 00268.” – Doc. nº 4 junto a fls. 60 a 62 e que aqui se dá como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

3.5 O supra identificado prédio adveio à propriedade dos terceiros requerentes por doação efectuada por Maria do Nascimento em 19 de Setembro de 1974 lavrada no cartório Notarial de Penalva do Castelo, exarada a fls. 89 verso a 90 verso do livro 92-A. – Doc. nº 5 junto a fls. 63 a 66 e que aqui se dá como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

3.6 Os requerentes acima referidos, por si e por quem os antecedeu, têm andado na posse dos supra identificados há mais de 20 ou 30 anos, de forma ininterrupta e exclusiva, sem a oposição de quem quer que seja, ocupando-os, no convencimento de exercerem direito próprio.

3.7 Os requeridos G...e mulher H... donos e legítimos proprietários de um prédio misto constituído por casa de habitação e terreno de cultura sito à Quinta da Retorta, Darei, limite da freguesia e concelho de Mangualde, com a seguinte composição:

“Terra de regadio e sequeiro com videiras, pastagem, pinhal e mato, com a área de 41.467,16m2 e casa de dois pavimentos, com a superfície coberta de 67,16m2, sito à Retorta –Darei, freguesia e concelho de Mangualde, a confrontar de nascente com rio Dão e Lodares, sul com Manuel Nunes e poente com Ç..., inscrita na matriz sob os artigos rústico 2683º e urbano 1818ºº, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Penalva do Castelo sob o nº 01444.” – Docs. 5ª e 5B juntos a fls. 67 a 69 que aqui se dão como integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.

3.8 No referido lugar de Quinta da Retorta existe um caminho que tem início a sul da estrada nacional, ainda no concelho de Mangualde e atinge o concelho de Penalva do Castelo.

3.9 Na zona de confinância com a referida estrada nacional existe uma abertura livre de quaisquer obstáculos, com a largura de 3,5 metros e início a sul daquela estrada, visível nas fotografias juntas como documentos n.ºs 6 e 7, a fls. 70, que aqui se dão como reproduzidas para todos os efeitos legais.

3.10 Através de tal abertura acede-se de pé e de carro da estrada nacional para o caminho.

3.11 A referenciada abertura prossegue em trilho, com largura variável entre 3,30 e 2,00 metros, pisado pela passagem de pessoas e veículos, não cultivado, que se prolonga no sentido norte/sul, numa distância de cerca de cerca de cinquenta metros, flectindo depois ligeiramente para poente prosseguindo no sentido norte/sul numa distância de cerca de cinquenta metros até atingir uma ponte de ferro construída sobre o rio Ludares que delimita a freguesia de Mangualde, do concelho de Mangualde, da freguesia de Germil, do concelho de Penalva do Castelo, visível nas fotografias juntas como docs. n.ºs 6 a 9, a fls. 70 e 71.

3.12 Após atravessar a referenciada ponte o caminho prossegue em trilho, com a largura de cerca de três metros, pisado pela passagem de pessoas e veículos, não cultivado, na freguesia de Germil, concelho de Penalva do Castelo, numa distancia de cerca de 1 Km, terminando na estrada municipal, à qual dá acesso, próximo da escola de ensino básico de Germil – visível o início do caminho, ao fundo e após a ponte de ferro, nas fotografias juntas como docs. n.ºs 9 e 10 a fls. 71 e 72 (com o esclarecimento de que este troço do caminho localizado na freguesia de Germil do concelho de Penalva do Castelo será por nós designado de “caminho de Germil”, sendo que no procedimento cautelar só está em causa o troço situado na freguesia e concelho de Mangualde, ou seja, até chegar ao Rio Ludares).

3.13 Caminho esse que se revela por sinais visíveis e permanentes como sejam o trilho pisado, não cultivado e a abertura para acesso às referenciadas estradas nacional municipal.

3.14 O referenciado caminho, com a actual configuração (com excepção da ponte de ferro, só construída no ano 2000 – veja-se o facto 3.18), tem estado desde há mais de 20 ou 30 anos no uso de toda a gente que dele precisa, nomeadamente dos residentes das freguesias de Mangualde e Germil, por isso no uso público, transitando livremente por ele, sem oposição de quem quer que seja, designadamente dos requeridos (pelo menos até ao ano 2004), ignorando que lesavam o direito de outrem e no convencimento de exercerem direito próprio de uso de coisa pública.

3.15 Utilização essa que é feita nomeadamente para aceder aos identificados prédios dos requerentes bem como para acesso entre as referidas localidades de Mangualde e Germil por qualquer pessoa que pretenda usar tal caminho, nomeadamente com veículos motorizados e de pé para aceder a transportes públicos e escolas.

3.16 Em data incerta, mas não posterior a 1979, foram colocados a mando da administração autárquica postes de condução de energia eléctrica, com iluminação pública, na margem do caminho que o iluminam em toda a extensão do troço situado no concelho de Mangualde (troço aqui em questão), que se mantêm de forma permanente e ininterruptamente até à presente data, com excepção da iluminação pública, que foi cortada em Janeiro de 2006 (os postes são visíveis nas fotografias juntas como docs. n.ºs 6 a 8 a fls. 70 e 71).

3.17 Postes de iluminação que também foram colocados no troço do caminho situado na freguesia de Germil para transporte de energia para as casas de habitação e iluminação do caminho.

3.18 A actual ponte de ferro sobre o rio Ludares foi construída no ano de 2000 pela Câmara Municipal de Penalva do Castelo em colaboração com a Junta de freguesia de Germil – doc. n.º 12 junto a fls. 73 a 75, que aqui se dá como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

3.19 Anteriormente, no local onde se situa a ponte, existiu durante várias décadas uma pequena ponte de pedra com cerca de 60 cm de largura que permitia apenas a passagem a pé e com carros de mão, entre os concelhos de Mangualde e Penalva do Castelo (é a ponte que se vê na fotografia de fls. 368).

3.20 Não obstante tal, já se circulava com veículos motorizados, nomeadamente com tractores, pelo referenciado caminho.

3.21 No troço situado na freguesia de Mangualde (o troço aqui em questão) o trânsito com veículos era efectuado desde a estrada nacional até ao início da ponte de pedra sobre o rio Ludares.

3.22 Os veículos faziam inversão de marcha na zona do prédio rústico dos requeridos, situada imediatamente antes do rio Ludares

3.23 No troço situado na freguesia de Germil o trânsito com veículos era efectuado desde a identificada estrada municipal até ao início da ponte sobre o rio Ludares, fazendo inversão de marcha num terreno próximo do rio.

3.24 Circulação essa com veículos motorizados que ocorre no troço situado na freguesia de Mangualde (portanto, entre a Estrada Nacional e a ponte sobre o Rio Ludares), ininterruptamente, desde data incerta dos anos 1972 a 1974 até à presente data; em data incerta dos anos 1972 a 1974, procedeu-se ao alargamento do carreiro aí existente (com a largura inerente à passagem de uma pessoa), passando a ter uma largura suficiente para a circulação de um veículo automóvel ou um tractor.

3.25 Alargamento esse efectuado com autorização dos então proprietários do terreno sito à Quinta da Retorta, presentemente propriedade dos requeridos, que acompanharam as obras realizadas.

3.26 O referenciado carreiro esteve primeiramente implantado alguns metros abaixo do actual caminho; numa segunda fase, o carreiro foi deslocado para alguns metros acima do actual caminho, transpondo um cabeço aí situado, e só numa terceira fase é que foi implantado no actual leito e posteriormente alargado, como se referiu em 3.24; o carreiro, desde a sua localização inicial, está afecto à circulação e ao uso directo e imediato pelo público há, pelo menos, 50 anos, sendo utilizado livremente por todas as pessoas, inicialmente apenas de pé e carro de mão e a partir de data incerta de 1972 a 1974 também com veículos motorizados.

3.27 A freguesia de Mangualde, desde o ano 2002, no troço do caminho situado no concelho de Mangualde, procedeu a trabalhos de conservação desse troço do caminho, designadamente obras de regularização do piso; a freguesia de Germil, desde pelo menos 1980, no troço do caminho situado no concelho de Germil, procedeu a trabalhos de conservação desse troço do caminho, designadamente obras de regularização do piso.

3.28 No ano 2005, funcionários da Freguesia de Mangualde deslocaram-se ao caminho na área situada naquela freguesia, com o propósito de realizarem no mesmo trabalhos de regularização do piso, no que foram impedidos por pessoa não identificada.

3.29 O Processo de Inquérito n.º 319/05.4GAMGL, por factos relacionados com o caminho aqui em questão, foi arquivado por despacho de 18.09.2005, notificado por carta de 19.09.200 com fundamento no facto de se tratar de assunto do domínio civil. – doc. n.º 13 (fls. 76 e 77).

3.30 Em data não apurada do ano 2005, os 1.ºs Requeridos colocaram ou mandaram colocar no identificado caminho, no seu início junto à Estrada Nacional, uma placa com os dizeres “QUINTA PRIVADA” e uma corrente de ferro impedindo a circulação de veículos.

3.31 A freguesia de Mangualde instaurou contra os requeridos o procedimento cautelar nº 608/05.8TBMGL do 2.º juízo na qual foi decidido o seguinte:

 “Face ao exposto, julgo o procedimento cautelar totalmente procedente e ordena-se:

a) A restituição à Requerente da posse do caminho identificado nos artigos 5.º a 10.º da petição

b) A retirada de todos os obstáculos que impedem a circulação de pé e de carro através do referenciado caminho

c) Aos requeridos que não coloquem quaisquer obstáculos no caminho ou, por qualquer forma impeçam a circulação de pé e de carro pelo mesmo ” – Doc. n.º 14 junto a fls. 78 a 89 e que aqui se dá como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

3.32 Os requeridos deduziram oposição à referida decisão a qual foi indeferida. – Doc. nº 15 junto a fls. 90 a 94 que aqui se dá como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

3.33 De tal decisão foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra que foi julgado procedente decretando o levantamento da providência decretada. – Doc. nº 16 junto a fls. 95 a 102 que aqui se dá como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

3.34 A Junta de Freguesia de Mangualde tem efectuado diversas diligências para manter a livre circulação através do caminho nomeadamente removendo pedras e correntes que os primeiros requeridos têm colocado ou mandado colocar neste, impedindo a circulação.

3.35 Os primeiros requeridos não acatam as ordens que lhes são transmitidas para que não impeçam a livre circulação de pessoas e viaturas através do caminho.

3.36 A Junta de freguesia de Mangualde não obstante ao seu empenho não tem conseguido manter aberto o caminho de forma a que neste se circule dado que os primeiros requeridos e bem assim os requeridos I..., J..., L...,Q... e R..., logo que os funcionários daquela se retiram colocam novamente obstáculos impedindo a circulação.

3.37 Presentemente o caminho (na parte situada em Mangualde) encontra-se obstruído não podendo os requerentes aceder aos seus prédios com veículos automóveis através do mesmo.

3.38 Os primeiros requeridos, na zona de interacção entre o caminho e a Estrada Nacional, colocaram ou mandaram dois pilares unidos por corrente em ferro, pedras e placa com o dizer “Quinta Privada”. Docs. 6 e 7 (fls. 70) e 21 a 24 (fls. 105 a 106).

3.39 Sensivelmente a meio do caminho os primeiros requeridos derrubaram ou mandaram derrubar o muro de suporte em granito e retiraram deste terra provocando uma cratera.

3.40 Alguns utilizadores do caminho, para poderem circular neste, aterraram a cratera com resíduos de obras – Docs. nºs 19 e 20 (fls. 104).

3.41 Os primeiros requeridos procederam ou mandaram proceder à retirada do aterro de obras, voltando a criar uma cratera com cerca de 1 metro de profundidade e dimensões de 2 x 2,5 metros – Doc. 17 (fls. 103).

3.42 Participaram ao Ministério do Ambiente do aterro efectuado o que determinou o levantamento de auto de contra-ordenação – Doc. nº 25 junto a fls. 107 a 112 que aqui se dá como integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.

3.43 No terminus do caminho junto ao pontão sobre o rio Ludares, os primeiros requeridos colocaram ou mandaram colocar dois pilares unidos por arame ocupando toda a largura do caminho e impedindo a circulação através deste – Docs. 9, 10 e 18, juntos a fls. 71, 72 e 103.

3.44 Colocaram ou mandaram igualmente colocar uma placa com o dizer “Quinta Privada” e arrancaram as pedras de suporte do caminho e efectuaram desaterro criando cratera – visível nas fotografias que junta como docs. nºs 8, 9 e 18, juntas a fls. 71 e 103.

3.45 As descritas obras são impeditivas do acesso, através do referido caminho, com veículos automóveis ao prédio dos requerentes e dificultam o acesso de pé.

3.46 Os primeiros requerentes iniciaram obras de reconstrução da habitação supra identificada em 3.1, tendo para tal obtido licença de obras de reconstrução e ampliação junto da Câmara Municipal de Penalva do Castelo – Docs. nºs 26 a 30 juntos a fls. 113 a 115 que aqui se dá como reproduzidos para todos os efeitos legais.

3.47 Por causa do descrito comportamento dos primeiros requeridos tiveram de suspender as obras de reconstrução por aqueles não permitirem a deslocação, no troço do caminho aqui em questão situado na freguesia e concelho de Mangualde, de veículos motorizados com os materiais necessários à realização da obra, nomeadamente transportando tijolos, cimento, mosaico e azulejo, esclarecendo-se que o chamado caminho da Ponte do Cavalo não permite, no seu estado actual, a deslocação de veículos motorizados de quatro rodas, e o chamado caminho de Germil (que corresponde ao troço do caminho acima referido, mas apenas na parte situada na freguesia de Germil), em terra batida e com algumas zonas íngremes, apresenta riscos de acidente para veículos motorizados que não sejam de todo o terreno e, mesmo para estes, quando aí circulem com cargas de peso considerável, sendo estes três os únicos caminhos que permitem o acesso àquele lugar do Pisão onde se situa o prédio da primeira requerente.

3.48 Os primeiros requerentes pretendiam concluir a reconstrução para residir no prédio com familiares, no que na prática estão impedidos, nos termos esclarecidos na parte final do anterior facto.

3.49 A licença de obra terminará em 25 de Março de 2009 e a não se pôr cobro urgente ao comportamento dos requeridos não lhes será possível concluir a reconstrução, caducando a licença – Doc. 26 junto a fls. 113.

3.50 A emissão de nova licença obrigará a alteração do projecto da obra em consequência das exigências impostas pela entrada em vigor da Lei n.º 60/2007, de 04 de Setembro, obrigando à elaboração de projecto térmico e instalação de painéis solares.

3.51 O atraso de conclusão da obra provoca prejuízos financeiros decorrentes do acréscimo de custo.

3.52 Bem como se vêem impedidos de residir no local que projectavam por a obra não estar concluída.

3.53 Os segundos requerentes cultivam o prédio rústico sua propriedade e neste construíram barracão no qual tinham uma cabra, que foi morta recentemente – Docs. nºs 31 e 32, junto a fls. 116

3.54 Os terceiros requerentes reconstruíram o barracão situado no seu prédio e neste passavam períodos de ferias e fins-de-semana – Docs. nºs 33 e 34, juntos a fls. 117.

3.55 Faziam o acesso de carro para o seu prédio através do caminho obstado pelos primeiros requeridos, estando presentemente impedidos de o fazer por aí, esclarecendo-se que os terceiros requerentes têm agora acesso de carro ao seu prédio através de um caminho que abriram em terrenos de particulares, por obséquio destes.

3.56 O referenciado caminho, no troço situado na freguesia de Mangualde, além de ser utilizado para aceder às propriedades dos requerentes era utilizado por outros proprietários de prédios situados no local bem como, por residentes nos lugares de Darei, em Mangualde, e Ponte Nova, em Penalva do Castelo.

3.57 Através de tal caminho os requerentes efectuaram ao longo dos tempos o transporte de produtos agrícolas, nomeadamente fruta, batata e vinho.

3.58 Presentemente só os segundos requerentes cultivam o prédio da requerente D..., sendo que os produtos aí cultivados devem ser retirados nas épocas das colheitas, em diversas épocas do ano.

3.59 Envolvendo muito esforço a retirada e transporte desses produtos a pé com recurso a vasilhame, às costas, face ao seu peso, através do troço do caminho aqui em questão, cuja circulação a pé ainda é possível.

3.60 O chamado caminho de Germil (que corresponde ao troço do caminho acima referido, situado na freguesia de Germil) tem troços íngremes e em mau estado de conservação, tornando arriscada a circulação de veículos que não sejam de todo o terreno e mesmo destes quando aí circulem com cargas de peso considerável.

3.61 Acresce que a circulação pelo chamado caminho de Germil, no concelho de Penalva do Castelo, no sentido de trânsito da escola primária em direcção ao lugar de Pisão (ou seja, partindo do lugar de Ponte Nova e seguindo pela Estrada Nacional, divergindo depois para uma estrada municipal até alcançar a localidade de Germil, onde se situa a referida escola primária, só então se iniciando o chamado caminho de Germil, mas em sentido descendente, até ao Rio Ludares), para aceder aos prédios sitos junto ao rio Ludares por aqueles que residem na Ponte Nova implica um trajecto de vários quilómetros, quando deslocando-se pelo troço da freguesia de Mangualde não excede 300 metros, provocando assim um acréscimo de tempo e despesa de deslocação.

3.62 Os requeridos questionam a pública dominialidade do caminho, invocando ser este propriedade dos primeiros requeridos.

3.63 Os requerentes há mais de 20 ou 30 anos por si e por quem os antecedeu na posse dos seus prédios, têm utilizado o supra identificado caminho (troço situado em Mangualde) para acesso permanente de pé e de carro aos seus identificados prédios, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, designadamente dos donos ou possuidores do prédio dos primeiros requeridos, ignorando que lesavam o direito de outrem, ininterruptamente, e no convencimento de exercerem direito de uso de coisa pública.

3.64 O local por onde vinha sendo efectuada a circulação de pessoas e veículos no troço do caminho aqui em questão, situado na freguesia e concelho de Mangualde, tem sido destinado, ao longo de décadas, exclusivamente a tal fim, não prejudicando qualquer actividade agrícola dos primeiros requeridos ou a privacidade da sua residência.

Factos indiciados, emergentes da oposição:

3.65 As freguesias de Germil e Mangualde não abriram o caminho em questão no troço situado na freguesia e concelho de Mangualde (tal troço de caminho, com a configuração de largura referida em 3.11, que permite a circulação de veículos motorizados de quatro rodas, foi aberto pelo Sr. V..., pai da requerente B...) e repararam-no nos termos enunciados em 3.27 e 3.28.

3.66 Numa fase inicial, as pessoas que utilizavam o carreiro referido em 3.26 atravessavam o Rio Ludares para o outro lado (Freguesia de Germil) por umas “poldras”;

3.67 Tais pedras (“poldras”) foram, mais tarde, substituídas por um pequeno “pontão” de pedra de granito com as características assinaladas em 3.19.

3.68 Sendo certo que, pelo menos na margem do lado da freguesia de Mangualde, existiam duas pedras que serviam de “degraus” de descida para o pontão, desnivelado este cerca de 30/40 cms em relação àquela margem.

3.69 Quer as ditas “poldras”, quer o referido pequeno “pontão” ficavam submersos em períodos de chuva intensa.

3.70 Era pelo caminho vicinal que liga a casa e moinho (do Sr. Y.. à Ponte de Cavalo (é o chamado caminho da Ponte do Cavalo, que na zona do Pisão, onde situa a propriedade da primeira requerente, se liga ao caminho de Germil, já na freguesia de Germil e concelho de Penalva do Castelo) que o Sr. V... e esposa e as demais pessoas que ali tivessem propriedades tinham acesso de pé quando as poldras ou o pontão ficassem submersos nas águas do Rio Ludares ou de carro, no período anterior à construção da ponte de ferro e betão (ano 2000), caso desejassem levar as viaturas até às suas propriedades.

3.71 Em 1992 ou 1993, o Sr. V... e esposa deixou de habitar a casa em menção e já nos anos 2001/2002 deixou de deixou de usar o dito moinho e de “fabricar” as terras.

3.72 Os postes referidos em 3.16 também conduzem a energia eléctrica para a casa dos primeiros requerentes, provinda de Penalva do Castelo, nos termos referidos em 3.17.

3.73 A EDP veio a cortar a iluminação pública nos termos referidos em 3.16, parte final; os primeiros requeridos interpelaram a EDP para retirar a iluminação pública – Doc. n.º 2 junto a fls. 248.

3.74 Também a Câmara Municipal de Penalva do Castelo em colaboração com a Junta de Freguesia de Germil, no ano 2000, sem qualquer autorização do Ministério do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional, construiu sobre o Rio Ludares, em substituição daquele “pontão” de pedra de granito um “pontão de ferro e betão” – cfr. doc. n.º 3 junto a fls. 249.

3.75 O caminho aqui em questão encurta em pelo menos 1.000 metros a distância que os residentes na Ponte de Nova teriam de efectuar, através do caminho da Ponte do Cavalo (referido em 3.47 e 370), que dá acesso às fazendas e/ou prédios situados para lá do Rio Ludares, na Freguesia de Germil, sem prejuízo do que se refere no facto 3.47 a respeito da circulação nesse caminho.

3.76 O requerido G...apresentou queixa constante de fls. 252 a 256, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

3.77 Todos os requeridos têm os caminhos/acessos públicos pelo caminho de Germil e pelo caminho da Ponte do Cavalo, que apresentam as condições de circulação atrás referidas, designadamente nos factos 3.47, 3.60, 3.61 e 3.70.

3.78 A requerida H...é cega de um olho e sofre de doença degenerativa da coluna vertebral e hipertensão arterial.

3.79 A teimosia dos requerentes e outras pessoas, em tentarem passar pelo caminho em causa, no troço de Mangualde, tem impedido que os primeiros requeridos vedem o caminho à vontade.

3.80 O empreiteiro que procedia à reconstrução e ampliação da casa dos primeiros requerentes transportou, quando da interrupção da obra, peças de cofragem e andaimes em viatura automóvel através do caminho de Germil, procurando o tempo seco e dividindo a carga por várias viagens.

III. FUNDAMENTOS DE DIREITO

Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do C.P.C.– salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito –  art.º 664 do mesmo diploma.

Considerando a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelos recorrentes, assentamos que, no caso dos autos, está em causa apreciar, fundamentalmente:

- da impugnação do julgamento da matéria de facto; 

- do conceito de caminho público.

2. A decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação nos casos especificados no art. 712º do C.P.C., a saber:

a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artº 690º-A, a decisão com base neles proferida;

b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;

c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.

Por outro lado, dispõe o art. 690º-A do mesmo diploma:

 “1. Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”.

Vejamos, então, em que termos se deve processar a reapreciação da prova produzida.

Na sequência do alargamento dos poderes de sindicância da decisão sobre a matéria de facto, por parte da Relação, tem a jurisprudência convergido em determinados parâmetros de intervenção.

Desde logo, e fazendo apelo ao preâmbulo do Dec. Lei 39/95 de 15 de Fevereiro [ [i] ],  o recurso não pode visar a obtenção de um segundo julgamento sobre a matéria de facto, mas tão só obviar a erros ou incorrecções eventualmente cometidas pelo julgador.

Depois, não pode o tribunal da Relação pôr em causa regras basilares do nosso sistema jurídico, o princípio da livre apreciação da prova – arts. 396º do C.C. e 655º, nº1 – e o princípio da imediação, sendo inequívoco que o tribunal de 1ª instância encontra-se em melhores condições para apreciar os depoimentos prestados em audiência. O registo da prova, pelo menos nos moldes em que é processado actualmente nos nossos tribunais – mero registo fonográfico –, “não garante a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e dos quais é legítimo ao tribunal retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo”  [ [ii] ].

O que não obsta, necessariamente, à apreciação crítica da fundamentação da decisão de 1.ª instância, não bastando uma argumentação alicerçada em mero poder de autoridade.

                                             *  

Os apelantes insurgem-se contra o julgamento da matéria de facto feito pela 1ª instância referindo que há factos que não foram dados como provados e deviam ter-se considerado como assentes e há outros que foram considerados, indevidamente, como provados.

Impõe-se desde já rejeitar, in limine, a pretensão dos recorrentes relativamente a algumas matérias.

Assim, é notoriamente inadmissível a inclusão, em sede de factos provados, da alegação vertida nos arts. 78º a 80º, primeira parte, do requerimento inicial, que configura matéria conclusiva e de direito –cfr. o art. 646º, nº4 do C.P.C. [ [iii] ]

Quanto à segunda parte do que é alegado no art. 80º do requerimento inicial, nem sequer se percebe a objecção dos recorrentes porquanto essa matéria até foi dada como assente, sob o ponto 3.64 supra indicado.

Relativamente ao aditamento que pretendem seja feito à factualidade enunciada sob o ponto 3.71 – tendo-se dado como provado que “em 1992 ou 1993, o Sr. V... e esposa deixou de habitar a casa em menção e já nos anos 2001/2002 deixou de deixou de usar o dito moinho e de fabricar as terras”, os recorrentes sustentam que deve acrescentar-se que “após tal data e até aos dias de hoje o moinho continuou a ser utilizado agora pela filha destes B..., moendo milho para si e para terceiros, encontrando-se o moinho no interior da casa em construção e tendo a configuração constante da fotografia de fls. 115 dos autos” – trata-se de facto que não foi alegado por nenhuma das partes, nos articulados respectivos. Assim e não consubstanciando esse aditamento mero esclarecimento mas um verdadeiro facto novo, nunca seria admissível a sua ponderação pelo tribunal.

Acrescente-se que apenas a testemunha W... referiu que a filha continuava a utilizar o moinho, nada mais se sabendo a esse respeito, pelo que esse elemento e a fotografia de fls. 115 dos autos são insuficientes para se concluir conforme pretendem os recorrentes.

Feita esta delimitação, temos que os apelantes pretendem que se dê como provado, essencialmente, o seguinte:

a) com relevância para a qualificação jurídica do caminho como constituindo um caminho público, por um lado, que os antecessores dos requeridos, então proprietários do terreno sito na Quinta da Retorta, onde se situa o leito do caminho, “cederam para o domínio público o espaço de terreno ocupado pelo alargamento do carreiro” e, por outro, “a imemorialidade do carreiro (e depois caminho) no troço de Mangualde e da respectiva utilização pelo público em geral”;

b) subsidiariamente, “então deverá considerar-se provada a cedência do terreno para nesta ser exercido o direito de servidão de passagem de pé e de carro e o animus destes da sua utilização como direito próprio no exercício do referido direito de servidão”;

E quanto aos elementos de prova que alegadamente suportam esse circunstancialismo?

À excepção de uma referência mais precisa à testemunha AA... e mesmo assim para, em bom rigor, reproduzir em parte o despacho de fundamentação e tecer a critica correspondente, os recorrentes não indicam as razões pelas quais discordam da apreciação feita pela 1ª instância nem referem, concretamente, em que medida o depoimento das testemunhas e os documentos juntos ao processo permitem a valoração pretendida. Os recorrentes limitam-se a indicar que “as provas que impõem decisão diversa da recorrida é a testemunhal decorrente dos seguintes depoimentos” – seguindo-se a identificação, pelo nome, de sete testemunhas e a referência ao momento temporal dos respectivos depoimentos no registo sonoro em CD – acrescentando ainda “bem como a resultante dos seguintes documentos juntos a fls. 72, 73, 113, 114, 115, 368 e 369 dos autos e auto de inspecção judicial ao local de fls. 359 a 360” –, pelo que só com muita benevolência se pode considerar que foi dado cumprimento ao disposto no art. 685º-B do C.P.C.

Em todo o caso, percebendo-se minimamente o que os recorrentes pretendem, cumpre, sem mais delongas, verificar se foi ou não correcta a valoração feita pela 1ª instância.

Ouvidos os depoimentos indicados pelos recorrentes e compulsados os documentos referidos, adiantamos já que os recorrentes não têm razão.

Assim e no que concerne à prova testemunhal, nenhuma testemunha reportou o caminho,  nos moldes actualmente existentes e descritos na factualidade assente, a um período de tempo que possa considerar-se “imemorial”. Ao invés, as testemunhas referem, quase todas – com este ou aquele pormenor – que o caminho, implantado no leito actual e com as características aludidas, permitindo a circulação a pé e com veículos automóveis e tractores, descrito conforme consta dos pontos 3.8 a 3.14, foi construído ou aberto pelo Sr. V..., pai da requerente B..., em data incerta, entre 1972 a 1974 – a testemunha BB... referiu que o caminho foi aberto em 1979 –, com autorização do proprietário da Quinta da Retorta.

Percebe-se que os recorrentes queiram fazer a equivalência entre o actual caminho e um “carreiro” a que as testemunhas também aludiram, sito na mesma propriedade mas noutro local, inicialmente mais abaixo do actual caminho e depois, mais acima – a testemunha BB... referiu cerca de 30 metros mais acima –, exactamente nos moldes descritos pelo Sr. juiz no ponto 3.26, sendo perfeitamente consentânea com o depoimento das testemunhas a factualidade que o Sr. juiz deu por assente nos pontos 3.24 a 3.26, mas só relativamente a esse “carreiro” se pode reportar a utilização “há pelo menos 50 anos”, como indicado na factualidade assente.

No entanto, com os elementos carreados pelas testemunhas e com referência aos factos invocados pelos requerentes não pode dizer-se mais do que o que o Sr. juiz disse.

Na fundamentação do julgamento quanto à matéria de facto, o Sr. juiz escreveu o seguinte:

“Saliento ainda, quanto ao facto não iniciado sob a al. s), que a imemorialidade do carreiro (depois caminho) é entendida com o alcance que deve ter em sede de dominialidade de caminhos públicos e de atravessadouros (reporta-se a estes últimos o art. 1384.º do Código Civil): ou seja, é imemorial sempre que as pessoas vivas não sabem quando começou a utilização do caminho e não o sabem por observação directa nem por tradição oral que lhes chegou dos seus antecessores – ver Pires de Lima e Antunes Varela in “Código Civil Anotado”, Volume III, 2.ª edição revista e actualizada, Coimbra – 1987, pág. 282 e 283 e Ac. do STJ de 13.03.2008, www.dgsi.pt, processo 08A542. Ora, entendida a imemorialidade com este alcance, deve dizer-se que não se fez prova de que a existência do carreiro (não o caminho, pois este foi constituído com a actual configuração na década de 70) já fosse falada pelos “antigos” (as gerações anteriores aos que hoje são velhos, mas que com estes conviveram) sem ideia da datação do seu início.

Além das explicações já dadas a respeito de alguns factos não provados, os demais factos não provados ficaram a dever-se a contrariedade com os indiciados ou ausência de prova bastante”.

Ora, não é aceitável aludir à “imemorialidade do carreiro (e depois caminho)”, em sede de factos provados e nesses precisos termos, como pretendem os recorrentes, sem qualquer outro elemento de facto, devendo antes aludir-se, concretamente, ao número de anos em causa, utilizando aliás as fórmulas habituais, com recurso a expressões como as que foram utilizadas pelos recorrentes no requerimento inicial em que referem, no art. 16º, que “o referenciado caminho tem estado desde tempos imemoriais, há mais de 20, 30 ou 50 anos, no uso de toda a gente …”.

Refira-se que as testemunhas reportaram a utilização do caminho (e do carreiro) ponderando o percurso de vida das próprias testemunhas, através, pois, de conhecimento directo, não se socorrendo de elementos de informação de familiares ou vizinhos mais velhos por exemplo. Assim:

W...tem 49 anos (as testemunhas sempre referiram a sua idade com referência à data da inquirição), indicou que “toda a gente lá passava” e que há mais de 20/30 anos que é assim;

CC...tem 56 anos e foi Presidente da Junta de Freguesia de Mangualde em três mandatos, dois contínuos e o terceiro depois de uma interrupção. A testemunha conhece o caminho e se bem que inicialmente referisse que via entrar o moleiro com a carroça, em 1964, confrontado depois pelo mandatário com o facto de não ser possível circular no carreiro com carroças, mas apenas pelo caminho aberto mais tarde, pelo moleiro, a testemunha referiu que “não posso precisar se era caminho se era carreiro”. Recordou-se, no entanto, ainda, da altura em que o atravessamento do rio era feito através de poldras aí colocadas e aludiu depois ao pontão.

EE...em 42 anos de idade e foi “nascida e criada” no lugar da Ponte Nova, sempre por ali passou, tendo descrito o carreiro – “quando eu fiz a escola aquilo era um carreiro” e “passava mais acima”– e aludido que o caminho foi depois aberto pelo Sr. V..., “com autorização do dono”, teria a testemunha uns oito anos. A instâncias do Sr. juiz a testemunha confirmou que o carreiro estava desviado uns metros – não sabendo quantos – e que quando o caminho foi aberto as pessoas deixaram de passar pelo carreiro.

BB... tem 54 anos, é operador de máquinas florestais e viveu em casa dos terceiros requerentes durante cerca de 10 anos na década de 80, utilizando então com frequência o caminho, cuja abertura a testemunha datou de 1979, como já referimos, confirmando que o Sr. V... pediu para o deixarem abrir o caminho, passando no mesmo com carroças e que quando o caminho foi aberto as pessoas deixaram de utilizar o carreiro.

FF... tem 68 anos, nascido e criado no lugar de Ponte Nova, na proximidade do caminho, foi a pessoa que mais pormenorizadamente descreveu o carreiro (por baixo, na altura em que se atravessava o rio pelas “poldras”, depois mais acima, na altura da construção do pontão) e depois o caminho – “entre 72/73 foi aberto o caminho que agora lá está, eu vi lá andar” o Sr. V... e um cunhado. Analisado o depoimento desta testemunha, não pode deixar de concordar-se com a apreciação feita no despacho de fundamentação, quando aí se alude que “esta testemunha e a testemunha EE....foram fundamentais para datar a época – entre 1972 e 1974 – em que o Sr. V... procedeu ao alargamento do carreiro para a actual configuração de caminho”.

AA... (na sentença, por lapso, que vem já da petição inicial, refere-se Alberto) tem 73 anos e trabalhou para a Casa de Darei, sendo seu patrão o Sr.DD...., a quem pertenceu o imóvel hoje pertencente aos primeiros requeridos. Como se referiu no despacho de fundamentação, foi por “intercedência” da testemunha que aquele proprietário autorizou o Sr. V... a ampliar o carreiro já existente, transformando-o num caminho. A propósito desta testemunha o Sr. juiz referiu ainda o seguinte:

“Já não nos convence a tese de que aquele patrão deu o terreno de ampliação do carreiro ao Sr. V... e a toda a gente que por lá quisesse passar; com efeito, aquele Sr. V... apresentou ao proprietário da Casa de Darei uma necessidade própria de circular com a carroça e burro através daquele local para levar os seus produtos o mais próximo possível do seu moinho e casa; foi em atenção a essa necessidade que o seu pedido foi acolhido”.

Concordamos com esta apreciação. E nem se diga, como os recorrentes fazem, que se deu crédito apenas a uma parte do depoimento da testemunha mas não já a outra parte porque a questão não é essa. O depoimento das testemunhas deve ser analisado com razoabilidade e à luz da experiência comum, procedendo-se ainda a uma análise conjugada dos vários depoimentos entre si e com outros elementos probatórios pelo que, quando estamos perante afirmação que surge descontextualizada e sem apoio em qualquer outro elemento de prova, não deve relevar-se o depoimento, no que a essa matéria concerne, o que não significa que a testemunha não seja credível ou que não possa atender-se a outras informações prestadas pela testemunha. No caso em apreço o depoimento da testemunha, nessa parte, foi contraditório, porque é a própria testemunha que refere que o Sr. V... perguntou ao Sr.DD...., proprietário da Casa de Darei quanto (dinheiro) é que este queria e que este respondeu “o Sr. não dá nada porque o caminho fica para nós”.

Daí que não existam elementos probatórios que suportem a pretendida alteração do ponto 3.25 da factualidade assente – os recorrentes pretendem que se dê como provado que os proprietários do terreno sito na Quinta da Retorta, presentemente propriedade dos requeridos, cederam para o domínio público o espaço de terreno ocupado pelo alargamento, como invocado no art. 27º do requerimento inicial.

A testemunha GG... , com 61 anos, foi o empreiteiro e construtor que vinha procedendo às obras de reconstrução e ampliação da casa dos primeiros requerentes, referindo que quando foi morar para a zona, em 1976, ainda o caminho lá não estava.

Concorda-se, pois, com a valoração feita pela 1ª instância, quando se referiu que não se apurou “a imemorialidade do carreiro (e depois caminho) no troço de Mangualde e da respectiva utilização pelo público em geral”.

Refira-se, por último, que não se mencionou o depoimento da testemunha HH... , com 62 anos, porquanto o depoimento não relevou para a matéria ora em análise, relativamente à qual a testemunha nada adiantou.

Quanto à factualidade invocada a título subsidiário, não foi feita qualquer prova de que os requerentes utilizam o caminho em causa no convencimento de que o fazem no exercício de direito próprio e com vista ao reconhecimento da invocada servidão de passagem a favor dos prédios dos requerentes e onerando o prédio dos requeridos. Pelo contrário, o que resultou do depoimento das testemunhas é que os recorrentes sempre agiram no pressuposto ou “convencimento”, como se referiu na factualidade assente, sob o ponto 3.63, “de exercerem direito de uso de coisa pública”.

Também nesta parte improcede, pois, a argumentação exposta pelos recorrentes.

Relativamente ao que os requerentes invocam sob o nº 6 das alegações de recurso, a factualidade constante da decisão decorre dos depoimentos das testemunhas inquiridas. Aliás, para além do que já se referiu, nem os próprios requerentes indicam, afinal, em que termos pretendem a alteração dessa factualidade, sendo que parte do que aí se descreve corresponde até à factualidade articulada pelos recorrentes no requerimento inicial. Assim e a título exemplificativo:

. a factualidade descrita sob o ponto 3.13 corresponde rigorosamente ao que foi alegado no art. 15º do requerimento inicial;   

 . a factualidade descrita sob o ponto 3.15 corresponde ao art. 17º do requerimento inicial (à excepção da expressão “veículos motorizados”, que substitui o termo “veículos automóveis” utilizado pelos requerentes);

. o mesmo se diga relativamente à factualidade indicada em 3.20, com referência ao art. 22º do requerimento inicial; 

Quanto aos documentos indicados pelos recorrentes – juntos a fls. 72, 73, 113, 113, 115, 368 e 369 – nada se retira em contrário do que se referiu, salientando-se que fls. 72, 73, 114, 115, 368 e 369 são fotografias.

O mesmo se diga relativamente à inspecção judicial realizada – cfr. auto de fls. 359 e 360 –, atentando-se na ressalva que o Sr. juiz fez a esse propósito, quando fundamentou o julgamento da matéria de facto provada.

Concluindo, concorda-se com a valoração da matéria de facto feita pelo tribunal a quo, improcedendo as alegações de recurso.

3. A questão a dirimir no processo é a de saber se o caminho que os autores identificam no requerimento inicial e aludido na factualidade assente, reúne as características necessárias para que se possa qualificar o mesmo como um caminho público.

Vejamos, então, o conceito de caminho público, tal como ele é considerado pela doutrina e jurisprudência e perante a indefinição que resulta do C.Civil de 1966 – encontra-se apenas a referência, inóqua, do art. 202º, nº2, a “domínio público” –, concentrando-nos já no Assento do STJ de 19 de Abril de 1989, publicado no BMJ nº 386, pág. 121 e seguintes (actualmente com valor de acórdão uniformizador de jurisprudência), que fixou jurisprudência no sentido de serem públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais[iv], estão no uso directo e imediato[v] do público, optando-se, pois, pelo critério do uso.[vi]            

Entende-se, porém, justificar-se uma interpretação restritiva do assento [vii] de forma a exigir-se, ainda, como condição para a qualificação do caminho como público, a sua afectação à utilidade pública, ou seja, que o uso do caminho vise a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância sob pena de, a não se entender assim, todos os atravessadouros com posse imemorial terem de ser qualificados como caminho público, com violação do que dispõem os arts. 1383º e 1384º do C.C..[viii]   

Paralelamente, tem-se também entendido que se justifica também uma interpretação extensiva do assento, retomando-se o conceito de “coisas públicas” que constava do art. 380º do C.C. de 1867, de sorte que se considera caminho público aquele que é propriedade de entidade de direito público e está afecto à utilidade pública (“no conceito mais rigoroso de coisa pública”, refere-se). [ix]    

Em síntese, na sequência do Assento de 19/04/1989 e subsequente interpretação que a jurisprudência dele vem fazendo, a qualificação de um caminho como público pode ter por fundamento: a) o seu uso directo e imediato pelo público, desde tempos imemoriais, com o fim de satisfação de interesses colectivos relevantes (interpretação restritiva); ou b) o facto de ser propriedade de uma entidade de direito público e estar afecto à utilidade pública (interpretação extensiva).

Nessa medida, continua a ser válida a distinção tradicional entre caminhos públicos e atravessadouros: “um caminho no uso directo e imediato do público, desde tempos imemoriais, que atravesse prédio particular, será público se estiver afectado à utilidade pública (ou seja, visar a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância); de contrário (na falta desse requisito) e, em especial, quando se destinem apenas a fazer a ligação entre caminhos públicos, por prédio particular, com vista ao encurtamento não significativo de distâncias, os caminhos devem classificar-se como atravessadouros”.[x]

Assim delineado o conceito de caminho público (versus atravessadouro), e não deixando de salientar-se a dificuldade de aplicação prática destes conceitos, temos que, no caso concreto, não podemos deixar de concordar com a decisão proferida pela 1ª instância, que surge perfeitamente contextualizada na melhor doutrina e jurisprudência.

Refere o Sr. juiz que:

“Dito isto, facilmente se alcança que nem sequer o carreiro na sua versão inicial é imemorial, muito menos o caminho com a configuração actual, que remonta à década de 70, o que impede, desde logo, a sua qualificação como caminho público ou atravessadouro não abolido à luz do regime do art. 1384.º do Código Civil de 1966.

Para além disso, a intervenção da Freguesia de Mangualde ao nível da conservação do caminho só recua a 2002 (facto 3.27), embora a iluminação pública do mesmo recue a pelo menos 1979 (facto 3.16), o que está longe de ser tempo imemorial.

Reconhece-se que não sendo público aquele caminho, aos requerentes (designadamente aos primeiros requerentes com necessidade de conclusão das obras da casa de habitação) será praticamente impossível circular com veículos motorizados no caminho alternativo da Ponte do Cavalo (aliás, tal caminho não permite a circulação de veículos motorizados de quatro rodas – facto 3.47) e será pelo menos arriscado circular no caminho alternativo de Germil (veja-se também o facto 3.47), além de implicarem maior extensão de deslocação (facto 3.61 e 3.75).

Finalmente, deve dizer-se que os factos atinentes à qualificação do caminho como mera servidão de passagem a favor dos prédios dos requerentes não foram integralmente comprovados. Todavia, esta consideração deve ser lida à luz da seguinte ideia: o esforço probatório foi colocado na tese do uso público do caminho, incluindo nesse uso os próprios requerentes (ver factos 3.14 e 3.63), desleixando-se a comprovação da servidão de passagem.

Em suma, não demonstrado o direito dos requerentes (“fumus bonus iuris”) que suportaria o seu pedido cautelar, pelo que este procedimento deve improceder”.

Concorda-se com esta argumentação, porquanto a situação espelhada nos autos é a seguinte: o caminho em causa, que os requerentes invocam ser público, tem o seu leito implantado em prédio pertencente aos requeridos, foi aberto, na década de 70, com autorização do proprietário desse prédio à data – existindo anteriormente um carreiro, em local não inteiramente coincidente, mais antigo, mas ainda assim da década de 50; salienta-se ainda que a utilização desse caminho permite um acentuado encurtamento de distâncias mas os requerentes dispõem de dois caminhos públicos para aceder aos seus prédios, os caminhos alternativos de Ponte do Cavalo e de Germil, sendo certo que compete às entidades públicas – Juntas de Freguesia no caso de caminhos públicos vicinais – o dever de conservação e reparação dos mesmos, em ordem a permitir a respectiva circulação.

Por outro lado, quanto à causa de pedir subsidiária, não se provaram os elementos constitutivos da invocada servidão de passagem, porquanto se apurou que os requerentes utilizam o referido caminho no convencimento de exercerem um direito de uso de coisa pública.  

Improcedem, pois, as conclusões de recurso.

                                             * 

Conclusões

Na sequência do Assento de 19/04/1989 e subsequente interpretação que a jurisprudência dele vem fazendo, a qualificação de um caminho como público pode ter por fundamento:

a) o seu uso directo e imediato pelo público, desde tempos imemoriais, com o fim de satisfação de interesses colectivos relevantes (interpretação restritiva); ou

b) o facto de ser propriedade de uma entidade de direito público e estar afecto à utilidade pública (interpretação extensiva).

                                             *

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a sentença recorrida.

Custas a cargo dos apelantes.

Notifique.

[i] Refere-se no preâmbulo: “A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.

Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1.ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido.

A consagração desta nova garantia das partes no processo civil implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação”.

[ii] Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. II, 1997, pág. 258. Cfr. ainda, o Ac. desta Relação de Coimbra de 11/03/2003, C.J., Ano XXVIII, T.V., pág. 63 e o Ac. do STJ de 20/09/2005, proferido no processo 05A2007, acessível in www.dgsi.pt, podendo ler-se, neste:«De salientar a este propósito, como se faz no acórdão recorrido, que o controlo de facto em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
Na verdade, a convicção do tribunal é construída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im) parcialidade, serenidade, "olhares de súplica" para alguns dos presentes, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos (sobre a comunicação interpessoal, RICCI BOTTI/BRUNA ZANI, A Comunicação como Processo Social, Editorial Estampa, Lisboa, 1997)».

[iii] Atente-se na redacção desses artigos:
78º: A descrita actuação dos Requeridos causa lesão grave e dificilmente reparável, que se agravará com o decurso do período de impedimento, ao direito da Requerente de assegurar o uso do caminho pela generalidade das pessoas e estas obterem os benefícios dai decorrentes.
79º:O decretamento da providência no sentido de restabelecer a circulação no caminho, removendo os obstáculos que o impedem, e aterrando as zonas desaterradas e reconstruindo os muros de suporte é adequado a assegurar a efectividade do direito ameaçado;
80º: Para os requeridos não decorre qualquer dano do decretamento da providência, uma vez que o local por onde é efectuada a circulação se destina exclusivamente a tal fim, não prejudicando qualquer actividade agrícola ou a privacidade da sua residência.   
[iv] Quanto à noção de “imemorialidade”, como se referiu no Ac. STJ de 19/11/2002, atrás referido, “todas as definições são unânimes em relacionar o termo imemorial com a perda (ou desaparecimento) da memória dos homens quanto ao início, começo ou princípio do facto considerado”.     
[v] Marcelo Caetano, in Manual de Direito Administrativo, Coimbra Editora, 9ª edição, vol. II, pág. 897 e seguintes considera que há “uso directo” quando cada indivíduo pode tirar proveito pessoal da coisa pública e “imediato” quando os indivíduos se aproveitam dos bens sem ser por intermédio dos agentes de um serviço público, como sucede com a circulação pelas estradas.   
[vi] Afastando-se da orientação que exigia, ainda, para a qualificação como caminho público, que este fosse administrado pelo Estado ou por outra pessoa colectiva de direito público e estivessem sob a sua jurisdição (critério da construção ou manutenção).        
[vii] Trata-se de interpretação consentida pelo texto do próprio assento, como se salientou no Ac. STJ de 13/01/2004, C.J.(STJ) Ano XII, T.I, pág.21: «Essa interpretação restritiva é, aliás, a que se encontrava na mente dos ilustres signatários do Assento, pois é isso mesmo o que resulta do facto de o corpo do acórdão que o integra referir expressamente que “ quando a dominialidade de certas coisas não está definida na lei, como sucede com as estradas municipais e os caminhos, essas coisas serão públicas se estiverem afectadas de forma directa e imediata ao fim de utilidade pública que lhes está inerente”. Nem outra coisa se compreenderia: é que o uso público relevante para o efeito é precisamente o que pressupõe uma finalidade comum desse uso. Isto é, se cada pessoa, isoladamente considerada, utiliza o caminho ou terreno apenas com vista a um fim exclusivamente pessoal ou egoístico, distinto dos demais utilizadores do mesmo caminho ou terreno, para satisfação apenas do seu próprio interesse sem atenção aos interesses dos demais, não é a soma de todas as utilizações e finalidades pessoais que faz surgir o interesse público necessário para integrar aquele uso público relevante. Por muitas que sejam as pessoas que utilizem um determinado caminho ou terreno, só se poderá sustentar a relevância desse uso por todos para conduzir à classificação de caminho ou terreno público se o fim visado pela utilização for comum à generalidade dos respectivos utilizadores, por o destino dessa utilização ser a satisfação da utilidade pública e não de uma soma de utilidades individuais. (…) Acresce que, para se decidir da relevância necessária dos interesses públicos a satisfazer por meio da utilização do caminho ou terreno para este poder ser classificado como público, há que ter em conta, em primeira linha, por um lado, o número normal de utilizadores, e, por outro lado, a importância que o fim visado tem para estes, à luz dos seus costumes colectivos e das suas tradições e não de opiniões externas”.                  
[viii] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Coimbra Editora, 2ª edição, Vol III, págs 281 e 282.
[ix] Ac. STJ de 02/02/1993, C.J. (STJ) Ano I, T. I, pág. 116; no mesmo sentido, Acs. STJ de 10/11/1993, C.J (STJ), Ano I, T. III, pág. 136, de 15/6/2000, C.J. ano VIII, tomo II, pág.117 e de 21/01/2003, supra referido.      
[x] Ac do STJ de 15/6/2000, supra indicado. Sobre a distinção vd. ainda Carvalho Martins, Caminhos Públicos e Atravessadouros, Coimbra Editora, págs. 47-76.