Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
210/03.9TASEI.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ESTEVES MARQUES
Descritores: CRIME DE ABUSO SEXUAL
RECURSO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
LIVRE CONVICÇÃO DO JULGADOR
VALORAÇÃO DA PROVA
DEPOIMENTO INDIRECTO PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO REO
MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 07/07/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE SEIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS ART.º 30º, Nº2, 50º,71º,172º, NºS 1, 2 E 3 AL. B) E 177º, Nº 1, AL. A) (REDACÇÃO ENTÃO VIGENTE), A QUE ACTUALMENTE CORRESPONDEM OS ARTIGOS 30º, Nº 2 E 3, 171º, NºS 1, 2 E 3 AL. B) E 177º, Nº 1, ALÍNEA A), 154º, Nº 1, E 155º, Nº 1, ALÍNEA B), FORMA CONTINUADA, NOS TERMOS DO Nº 2 DO ARTIGO 30º, ABRANGENDO AS CONDUTAS TIPIFICADAS PELO ART. 172º, NºS 1 E 3 AL. B), DO CÓDIGO PENAL, NA REDACÇÃO ENTÃO VIGENTE, A QUE ACTUALMENTE CORRESPONDEM OS ARTIGOS 30º, Nº 2 E 3, 171º, NºS 1, E 3 AL. B) DO CÓDIGO PENAL (REDACÇÃO INTRODUZIDA PELA LEI Nº 59/2007 DE 4 DE SETEMBRO TODOS DO CP; 124º,125º,127º410º412º 2 428º DO CPP
Sumário: 1.Nos crimes de natureza sexual, desde que seja credível e esteja em sintonia com as regras da experiência comum, assume especial relevância o depoimento da vítima.
2.Para que o depoimento indirecto sirva como meio de prova, exige-se a sua confirmação pela audição das pessoas de quem se ouviu dizer, salvo se a inquirição destas não for possível pelos fundamentos previstos no nº2 artigo 129º do CPP.
3. O violação do princípio do in dúbio pro reo pressupõe um estado de dúvida no espírito de julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.
4.É equilibrada a pena de seis anos de prisão, em cúmulo jurídico, resultante das penas parcelares de 5 anos e 6 meses de prisão pela prática do crime de abuso sexual de forma continuada de criança, e de 1 ano e 2 meses de prisão pela prática do crime de coacção grave de forma continuada, aplicada a agente, avô da menor, que durante quatro anos praticou aquelas infracções, pese embora se tratar de delinquente primário e ter 76 anos de idade.
Decisão Texto Integral: 32
Proc. nº 210/03.9TASEI.C1

RELATÓRIO

Em Processo Comum Colectivo do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Seia, por acórdão de 09.06.03, foi, além do mais, decidido:
a) Condenar A. pela prática de um crime de abuso sexual de criança, na forma continuada, nos termos do nº 2 do art.º 30º do Código Penal, abrangendo as condutas tipificadas pelos artigos 172º, nºs 1, 2 e 3 al. b) e 177º, nº 1, alínea a), do Código Penal (redacção então vigente), a que actualmente correspondem os artigos 30º, nº 2 e 3, 171º, nºs 1, 2 e 3 al. b) e 177º, nº 1, alínea a), do Código Penal (redacção introduzida pela Lei nº 59/2007 de 4 de Setembro), na pena de cinco anos e seis meses de prisão anos de prisão, e de um crime de coacção grave, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 30º, nº 2, 154º, nº 1, e 155º, nº 1, alínea b), do Código Penal, na pena de um ano e dois meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena de seis anos de prisão.
b) Condenar C. pela prática de um crime de abuso sexual de criança na forma continuada, nos termos do nº 2 do artigo 30º, abrangendo as condutas tipificadas pelo art.º 172º, nºs 1 e 3 al. b), do Código Penal, na redacção então vigente, a que actualmente correspondem os artigos 30º, nº 2 e 3, 171º, nºs 1, e 3 al. b) do Código Penal (redacção introduzida pela Lei nº 59/2007 de 4 de Setembro) na pena de dois anos e oito meses de prisão, que, atendendo à ausência de antecedentes e inserção social deste arguido, e intensidade de preenchimento do ilícito, se suspende na sua execução por igual período, art.º 50º do Código Penal, sendo a suspensão acompanhada de regime de prova.
c) Absolver C da imputada prática de um crime de abuso sexual de criança na forma continuada, p. e p. pelos artigos 30º, nº 2, e 172º, nº 2, do Código Penal.
Inconformado, veio o arguido A interpor recurso, não apresentando qualquer conclusão, mas percebendo -.se, no entanto, as razões da sua discordância, pelo que atendendo ao lapso de tempo decorrido, se irá conhecer do seu recurso.
Também o arguido C interpõe recurso, concluindo:
1 Impugnam-se especificamente os facto provados de 25 a 37, por inexistirem provas suficientes para a sua ocorrência.
2 O único depoimento directo sobre os concretos factos pelos quais o arguido foi condenado é o da menor L, sendo este dúbio, por contrariar outras provas e as regras da experiência comum, nos termos alegados.
3. Assim sendo, não pode este depoimento ser valorado como verdadeiro, por ele criar a incerteza sobre se os factos relatados pela menor ocorreram mesmo ou foram por si inventados.
4. Esta incerteza impede que dê como provada a factualidade vertida nos factos provados 25 a 37, porquanto inexiste “uma via racionalizável ao menos à posteriori tenha logrado a afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse Ac. Relação Coimbra 376/040GAALB.C1, Relator Desembargador Esteves Marques in www.dgsi.pt
5.Os demais depoimentos são todos indirectos quanto aos concretos factos que levaram à condenação deste arguido, pelo que não podem ser usados para prova dos factos 25 a 37, no que diz respeito a condutas de cariz sexual que se imputam ao arguido, sob pena de violação do artigo 1º do CPP.
6. A testemunha P não pode ser valorada do modo que foi porque:
a. Não está demonstrado nos autos que a mesma possua conhecimentos técnicos específicos em matéria de abuso sexual de crianças, pois a mesma não possui qualquer habilitação específica nesta área, e dos seis casos que disse ter sinalizado nenhum foi concluído com a condenação de qualquer abusador.
b. O seu depoimento é indirecto quanto aos concretos factos vertidos na sentença, e não foi o mesmo reafirmado especificadamente pela menor, para ser valorado ao abrigo do artigo 129º 1 do CPP.
c. Inexiste nos autos prova de que os sintomas que a mesma diz ter verificado na menor, tenham sido causados por condutas do arguido.
d. Inexiste nos autos qualquer comprovação científica do que são “flash backs” e de que, caso estes tenham existido, se referissem a memórias relacionadas com o arguido C.
7. O relatório de fls 114 demonstra os vários problemas de que padece a menor e a sua conclusão final não fornece, antes peto contrário, qualquer grau de certeza de que os abusos ocorreram, por um lado, e de que ocorreram especificamente os abusos pelos quais o arguido foi condenado, e de que tenham sido praticados por ele, pelo que não pode o mesmo servir como meio de prova contra o arguido.
8 O relatório psiquiátrico coloca, de forma clara, a possibilidade técnica de os sintomas verificados na menor serem oriundos de uma situação de abuso como de uma situação em que a criança tem um progenitor deprimida (mãe)”, ficando “expostas de forma continuada a este ambiente e sem outro adulto protector que minimize o impacto da doença (depressiva) dos ilhós, também podem apresentar esses sintomas emocionais/comportamentais
9. Resulta dos autos que a mãe da menor padeceu de uma depressão (facto provado n.02), que o Pai estava no estrangeiro (facto provado n.03> e que esta passou 4 anos ao cuidado de uma ama (facto provado n. 04) o que implica a verificação na menor de todos os requisitos para que a sua sintomatologia que nela foi verificada pelos peritos se pudesse reconduzir a essa problemática.
10. As provas têm valores diferentes e inexiste nos autos qualquer elemento probatório que suplante o valor da prova pericial, inexistindo assim qualquer prova que tenha desfeito a dúvida colocada no relatório psiquiátrico de fls. 356 a 367 dos autos sobre a causa da sintomatologia.
11 Assim, sendo o depoimento da menor inconsistente e contraditório, não havendo meio de prova directa que o corrobore, havendo prova pericial que legitima a dúvida sobre a origem da sintomatologia da menor, não havendo sido estabelecido qualquer nexo causal entre essa sintomatologia e as condutas pelas quais o arguido foi condenado, não estando por isso demonstrado, quer directa, quer indirectamente, que as mesmas ocorreram, mantém-se a dúvida da realidade dos mesmos como inultrapassável, pelo que os factos dados como provados de 25 a 37 do Acórdão não o poderiam ter sido, por falta de provas.
12. Devendo o arguido ser absolvido por falta de provas ou, em ultima instância, com a aplicação do principio “in dúbio pro reo”.
13. Não se tendo produzido provas suficientes para determinar a autoria, pelo arguido C, de qualquer das condutas por que veio a ser condenado, não se encontram assim preenchidos os pressupostos objectivos e subjectivos da punibilidade pelo crime de abuso sexual.
14. Não havendo prova, não há verificação do tipo de crime, e assim sendo, o único caminho é a absolvição.
15. Foram violadas as seguintes normas: 129º, 163º, 368º, 374º nº 2 do CPP e o actual art.0 171º, n0s 1 e 3 al. b). do Código Penal, na redacção então vigente, a que actualmente correspondem os artºs 171º nºs 1 e 3al. b) do C. Penal (redacção introduzida pela Lei59/2007 de 4 de Setembro.”.
O Ministério Público respondeu aos recursos, concluindo que os mesmo devem ser julgados improcedentes.
A Exmª Procuradora-Geral Adjunto nesta Relação, emitiu douto parecer no sentido do improvimento do recurso do arguido C e no provimento parcial do recurso do arguido A
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO

Na 1ª instância deu-se como provada a seguinte factualidade:
1. A e C são, respectivamente, avô paterno e tio paterno de L, nascida a 24 de … de 1993, filha de AM e de CD.
2. A mãe foi acometida de uma depressão, andando em tratamento, sendo uma pessoa instável emocionalmente.
3. O pai da L exerceu a sua actividade profissional no estrangeiro desde que esta tinha cerca de meio ano de idade até Dezembro de 2005.
4. Desde os seis até aos dez anos de idade, nos dias úteis a L viveu em casa de uma ama, jantando diariamente com a mãe, com quem, também, geralmente, passava os fins-de-semana. A partir dos onze anos de idade, L foi viver para casa da mãe, com os avós maternos.
5. Entre os seis e os onze anos de idade, L e a sua mãe frequentavam a casa dos avós paternos da menor, aí conviviam e tomavam refeições, sobretudo em dias de fim-de-semana e de férias escolares, onde L, por vezes, também pernoitava.
6. Em datas não concretamente apuradas, mas que se situam entre o 7º (sétimo) e o 11º (décimo primeiro) ano de vida de L quando a neta se encontrava em sua casa, A costumava chamá-la para locais mais recônditos da casa, designadamente para a área da garagem, composta por várias dependências, entre as quais uma casa de banho, um quarto e arrumos.
7. Em data não concretamente apurada, no período temporal referido em 6., o A, desenhou numa folha uma figura masculina com o pénis erecto e outra feminina, com os órgãos genitais expostos e nela escreveu “amor dos dois perpara-te para receberes esta grande piroca Será que Até Vais xorar? Respondes sim o não eu digo (..) tu dises Não?”, folha esta que entregou à neta num dos dias em que a chamou para a área da garagem da sua casa, afastando-a da vigilância de outros familiares.
8. Nas mesmas circunstâncias temporais, A. escreveu numa folha pautada, a qual entregou à menor “Eu quero que digas ao Avô o que se passa contigo que não mais ligas-te? Respondes.”.
9. Noutras ocasiões, no período temporal referido e no mesmo local, A, entregou a L folhas com frases e desenhos por si elaborados nos quais representava os órgãos sexuais femininos e masculinos, lhe perguntava se gostava dele e se gostava das coisas que ambos faziam, referindo-se a contactos sexuais.
10. Por uma vez, no seu quarto conjugal quando a neta, aos sete anos de idade, aí foi deixada para adormecer A acariciou-a nos seios e na vulva.
11. Naquele período temporal – entre os sete e os onze anos - e na garagem de sua casa, A diversas vezes beijou L nos lábios.
12. Também nestas mesmas circunstâncias espácio-temporais, A acariciou L nos seios e na vulva.
13. Nestas ocasiões, mandava que a neta tirasse todas as peças de roupa que trazia e despia as calças expondo perante L os seus órgãos genitais, depois mandava que com a mão lhe tocasse no pénis, o que esta fazia.
14. Algumas vezes, metia o pénis na boca de L e mandava que esta o chupasse, o que fazia, só parando A depois de ter ejaculado no chão.
15. Por diversas vezes, em número não inferior a 10 (dez), A friccionou o pénis na vulva da neta tentando a penetração, até L se queixar com dores.
16. Sempre que procedia da forma descrita, na garagem e no período temporal referidos, A dizia a L para não contar a ninguém sobre os actos que praticavam, dizendo-lhe também que, se o fizesse, a afastaria da família e, pelo menos por quatro vezes, disse, ainda, que lhe bateria.
17. Conseguiu assim que L não contasse sobre os escritos e desenhos e o sucedido na garagem, até perfazer 11 (onze) anos.
18. Com as condutas descritas quis A manter os actos de natureza sexual com L, bem sabendo que era sua neta e qual a sua idade.
19. Bem sabia que os escritos e desenhos, que apresentava à sua neta L, eram contrários à decência e ao pudor e susceptíveis de prejudicar gravemente o livre e harmonioso desenvolvimento da personalidade desta na esfera sexual.
20. Pretendeu, através desses desenhos e textos escritos, satisfazer os seus instintos libidinosos e importunar, como importunou, a menor, sabendo que a actuação sobre L por aquele meio lhe era proibida e punida por lei penal.
21. Ao actuar da forma descrita, A agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, e actuou com o intuito de se excitar sexualmente e movido pelo desejo de satisfazer os seus impulsos sexuais, designadamente através de beijos, carícias, friccionar o pénis na vulva, tentando a penetração, até L se queixar com dores, e coito oral com a sua neta L, apesar de saber que as condutas que praticava relativamente à mesma ofendiam os mais elementares princípios da moral sexual e que atentavam contra a liberdade de autodeterminação daquela, bem sabendo que os seus comportamentos eram proibidos e punidos pela lei penal.
22. Agiu também A de forma deliberada, livre e consciente, com o propósito de impedir que L contasse os actos que praticava consigo, por recear ser afastada da família e/ou batida se o fizesse, bem sabendo que a idade da menor, a qual conhecia, a tornava particularmente sujeita e vulnerável àquela forma de constrangimento para que não contasse nada, como seria a sua vontade e tendência natural, o que o arguido previa, bem sabendo que tal conduta é proibida e punida por lei penal.
23. Beneficiou, para a prática dos seus actos, da circunstância de a neta permanecer em sua casa longos períodos e de, após a prática dos primeiros actos, nada ter contado a ninguém.
24. A praticou tais condutas reiteradamente durante um período de tempo relativamente alargado, no quadro de situação exógena que facilitou a sua actuação e que propiciava os actos praticados.
25. L frequentava também a casa de C onde permanecia por várias horas em convívio e tomando refeições, sobretudo ao fim-de-semana e no período de férias escolares, bem como recebia a visita do arguido em sua casa e saía com ele e outros familiares, designadamente deslocando-se a casa de outras pessoas e à praia.
26. Em datas não concretamente apuradas, mas que se situam entre o 7º (sétimo) e o 11º (décimo primeiro) ano de vida de L , pelo menos dez vezes, algumas destas, na casa de banho da casa do arguido C, sita …, em S. Romão, outras, na garagem da casa do cunhado deste, A, sita …, S. Romão, outras, ainda, na casa de banho da casa da sua sobrinha L,…. S. Romão, Seia, C beijou-a na boca e acariciou-a nos seios e na vulva.
27. Em data não apurada daquele período temporal em 26., na praia da Barra, em Aveiro, estando sozinho com L, C acariciou-a nos seios e na vulva, por cima da roupa que esta vestia.
28. Por uma vez, quando ambos se encontravam a sós, na casa de banho da casa dele, C pediu a L que lhe segurasse o pénis e que lhe mexesse, o que esta fez.
29. No final das condutas descritas sob os pontos 26. a 28, pediu a L que não contasse a ninguém.
30. Em data não apurada daquele período temporal em 26.,C em sua casa, aproveitando-se do facto de ter ficado a sós com L fê-la visionar na sua companhia, um filme com cenas de sexo explícito em que homens e mulheres se envolviam em práticas sexuais com exibição dos órgãos genitais.
31. Com as condutas descritas quis C manter os actos de natureza sexual acima descritos com a menor L, bem sabendo a idade que esta tinha.
32. Ao actuar da forma descrita, C agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, tendo conhecimento da idade de L, actuando com o intuito de se excitar e movido pelo desejo de satisfazer os seus impulsos sexuais, apesar de saber que as condutas que praticava relativamente à menor ofendiam os mais elementares princípios da moral sexual e que atentavam contra a liberdade de autodeterminação daquela, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.
33. C pretendeu também, através da exibição do filme pornográfico, satisfazer os seus instintos libidinosos e importunar, como importunou, L, bem sabendo que a exibição perante a sobrinha de imagens com cenas de sexo e a exposição dos órgãos genitais de adultos é contrária à decência e ao pudor e susceptível de prejudicar gravemente o livre e harmonioso desenvolvimento da personalidade desta na esfera sexual.
34. Igualmente sabia que as condutas descritas lhe eram proibidas e punidas por lei penal.
35. Beneficiou, para a prática dos actos descritos, da circunstância de L permanecer muito tempo próxima de si, no interior da sua residência ou em locais de convivência familiar, e de após a prática dos primeiros factos, esta nada ter contado.
36. Praticou tais condutas reiteradamente durante um período de tempo relativamente alargado, no quadro de uma situação exógena que facilitou a sua actuação e propiciou os actos praticados.
37. Durante o período de tempo mencionado, L em consequência dos actos que A e C praticavam nela e com ela, mostrou tristeza, nervosismo, ansiedade, agressividade e perturbações psicossomáticas, revelando conhecimentos a nível do relacionamento sexual nada comuns na sua idade,
38. sofreu de tendências suicidas,
39. sofreu de bulimia, tomando vinagre com sal, por outras crianças a chamarem de gorda.
40. isolou-se, não convivendo, nem procurando estabelecer relações de amizade com os colegas.
41. Sentia falta de carinho e atenção da mãe, temendo, quando passou a dormir em casa da ama que esta fosse tirar o lugar daquela.
42. De acordo com a informação clínica a fls. 114, em 15 de Março de 2006, apresentava um discurso que demonstrava ausência de ressonância afectiva.
43. De acordo com o relatório de avaliação psicológica, a fls. 36 a 49, L refere que nunca muito gostou do avô paterno.
44. L, com seis ou sete anos de idade, foi deixada a dormir sozinha, sem qualquer aviso lhe tenha sido feito, pela tia, pelo que, ao acordar e ao não ver-se só, sentiu-se em pânico, correndo a rua, a chorar indo para casa da tia, dizendo que a mãe tinha morrido.
45. Em determinada altura, fugiu de casa para a Sra. do Desterro
46. Após a instauração do processo e a intervenção da comissão de protecção L sente-se mais próxima da mãe.
47. A e C não têm antecedentes criminais.
48. A tem de habilitações literárias a 3ª classe.
49. Aufere uma reforma de cerca de duzentos e vinte e cinco euros, recebendo a mulher uma pensão de aproximadamente cento e cinquenta euros.
50. C tem o 6º ano de escolaridade.
51. É pedreiro, recebe um salário de cerca de € 650,00. A mulher é operária fabril auferindo o ordenado de aproximadamente quinhentos euros. Vive em casa própria, pagando de prestação € 280,00. Tem uma filha de doze anos de idade.”
Factos não provados:
“Não se provaram outros factos com relevância para a decisão da causa, e designadamente que:
1. Algum episódio de cariz sexual na cama, além do supra descrito sob o ponto 10º, e, designadamente, se por alguma ocasião, em qualquer leito, A deu beijos, carícias à neta, ou que aí, alguma vez tenha friccionado o pénis na vulva da neta, ou mantido coito oral ou vaginal com a neta;
2. A ejaculava dentro da boca da neta;
3. Alguma vez penetrou vagina,
4. tentava a penetração até ejacular.
5. Na cama de A e em sua casa, em data não concretamente apurada do ano de 2002 ou 2003, encontrando-se a L deitada na cama, aquele mandou que aquela tocasse com as mãos no seu pénis, ao que esta obedeceu, a seguir, A despiu-se a si e à neta, após, pegando na L colocou-a em cima do seu corpo nu, friccionou o pénis na vulva da menor e forçou a penetração da vagina pelo pénis, só parando quando a neta se queixou de dor, fazendo menção de gritar.
6. Noutra ocasião, colocado frente a frente com a L, levantou-lhe uma perna com a mão e colocou o pénis à entrada da vagina da menor, forçando a penetração desta, só parando quando a menor revelou sentir dor.
7. C mandou a L que lhe chupasse aquele o pénis, o que esta fez;
8. em casa de outro tio de L,, mostrou-lhe o pénis pedindo que o tocasse e depois que esta o chupasse, o que fez até o retirar da sua boca e ejacular para o chão na sua presença.
9. Na casa de L e no interior da casa de banho, C mostrou-lhe o pénis, pediu-lhe que o tocasse com as mãos,
10. bem como que o chupasse, ejaculando depois para a sanita na presença da sobrinha.
11. Noutras ocasiões, que não a relatada sob o ponto 28., na sua casa e no interior da casa de banho, C , mostrou o pénis à sobrinha, pediu-lhe que o tocasse com as mãos;
12. Alguma vez lhe pediu que o chupasse, ejaculando depois para a sanita na sua presença.
13. C repetiu os actos de exibir o pénis, pedir a L que o tocasse e o chupasse, um número de vezes não inferior a 10 (dez), terminando sempre por ejacular na presença da L
14. Na ocasião referida sob o ponto 30. o arguido C retirou a exibição do programa que L via.
15. L inventou que estava a ter uma visão de um anjo, na Igreja de S. Romão, havendo quem a acreditasse; caindo a mentira por intervenção da ama que alegou ser a criança muito mentirosa;
16. L escondeu-se numa zona de mimosas foi encontrada por uma pessoa de mota, que revelou o seu esconderijo à família. Como não aceitou que o plano fosse desfeito pela pessoa em causa alegou que a mesma a havia tentado violar, tendo sido chamada a GNR, a quem veio a repetir o que se veio a apurar ser mentira, e apenas um acto de vingança por a sua fuga ter sido frustrada.
17. Acusou o pai do seu namorado que era contra o namoro de ter sido o causador de incêndio na zona de Quintela
18. Quem ajudou a criar L foi o tio C ora arguido e a mulher, com o nascimento da filha deste casal, L sentiu muitos ciúmes;
19. Foi influenciada pela mediatização dos processos criminais «Casa Pia», e de «S. Romão» cujo objecto eram crimes sexuais.
20. Aparentava fisicamente uma idade superior à real.”.
Motivação de facto:
“ No que respeita ao evento, a convicção do Tribunal baseou-se na apreciação crítica de toda a prova produzida – declarações dos arguidos e de L, depoimentos das testemunhas, perícias e documentos juntos aos autos.
Concretamente, no respeitante à prova respeitante data de nascimento e filiação de L, e relações familiares com os arguidos (p. 1 da matéria de facto provada) atendeu-se às certidões de assento de nascimento a fls. 11., e juntas na sessão de 8 de Julho de 2008, bem como às declarações dos arguidos e da menor.
No concernente à situação do pai emigrado, doença da mãe e relação com a ama p. 2 a 4 da matéria de facto provada), consideraram-se as declarações dos arguidos e de L, bem como os depoimentos de seus pais, M C e AN, bem como da ama, MA que a tal matéria se referiram.
Relativamente aos contactos de L e sua mãe com os avós paternos e o tio paterno, (p. 5 e 25 da matéria de facto provada) ponderaram-se as declarações dos arguidos A e C respectivamente, bem como os relatos da menor, prestados para memória futura, e em audiência, e de seus pais MC e AN.
Quanto à matéria sob os pontos 6 a 17 – os actos de natureza sexual e constrangimento de A sobre a neta; e 26 a 30, os actos de natureza sexual de C com a sobrinha, consideraram-se as declarações da própria L, prestadas para memória futura, e em audiência, que se afiguraram se afiguraram coerentes e espontâneas, relatando, nesta sede, a menor com serenidade e aparente isenção os actos que lhe foram infligidos, contando o que se lembrava, com objectividade, ficando, ainda assim aquém do que anteriormente referiu.
Pese embora a negação dos arguidos, tais declarações apreciadas em conjugação com os demais meios de prova produzido afastaram a dúvida razoável sobre a verificação de tal matéria.
Assim, quando ainda se encontrava aos cuidados da ama MA, segunda a mesma o referiu, L já se lhe queixara de abusos por parte do avô, utilizando a expressão «o meu avô parece que anda tentado pelo diabo», reportando-se à situação que se passara no quarto deste (sob o p. 10. da matéria de facto provada), ocorrência que veio a recapitular quando cerca de um ano após a saída dos cuidados da ama, a encontra, ocasionalmente, e lhe fala sobre a conversa anterior, acrescentando, então, que também vinha a ser abusada pelo ora arguido C.
Ademais, de acordo com o relatório de avaliação e observação psicológica, a fls. 36 a 49, datado de 26 de Novembro de 2003, cujo teor foi confirmado através do depoimento da sua subscritora P, psicóloga da escola frequentada pela menor, que acompanhou a criança, em articulação estreita com a Comissão, conforme referido, em audiência, pela sua Presidente, Odete Branquinho, e consta de fls. 14, L apresentava:
- onze dos dezoito sinais/ sintomas referidos por Wolf como sinais de alerta (de abuso): agressividade, hostilidade e fraco auto-controlo; mentira; flutuações no rendimento académico; choro sem razão aparente; medos associados a pessoas em particular; isolamento dos colegas; problemas de auto-regulação (apetite, aparência, peso); comportamentos sexuais pouco adequados à idade; conhecimentos e linguagem pouco comum para a idade no âmbito da sexualidade; e comportamentos sedutores;
- perturbação psicossomática, ansiedade, tristeza, e auto-agressão.
Certo é, também que, resulta do relatório de avaliação psicológica que L denotava «graves problemas de relacionamento com os seus pares, recorrendo facilmente à resposta agressiva, muitas vezes para se defender.
Decorrente dos esforços da Directora de turma no sentido de criar laços entre a L e os colegas, verificou-se alguma evolução que deixou de registar-se algum tempo depois.
Era a própria L «a procurar o isolamento»; «teve desmaios e convulsões, chegando a ir para Coimbra numa ambulância do INEM», evidenciando: sinais de um controlo excessivo das emoções; postura muito rígida, tensa; ainda que de forma excessivamente controlada, sinais de inquietude e ansiedade; o medo que não acreditasse nos relatos feitos; utilizar a mentira para se proteger, sendo rápida denotando accionar mecanismos de defesa.
Baseou, assim, tal relatório, cujo teor confirmado não só pelo depoimento da sua subscritora, como também pelos depoimentos da mãe MC, ama MA, e professora AZ a matéria sob os p. s 37. a 40 da matéria de facto provada.
Esta factualidade traduz, não só sinais de alerta de abuso, como de quem está mergulhado numa profunda tristeza, o bem se compreende em quem vem a ser vítima de comportamentos dos arguidos como os provados sob os nºs 6 a 17 e 26 a 30.
E, se é certo que L sentia a falta de atenção da mãe (f. provado sob o p. 41) impressivo foi o depoimento de S. ao contar os flash backs da menor ao recordar-se dos abusos que a vitimizavam, reveladores do intenso sofrimento infligido, e que, segundo um juízo de experiência e razoabilidade, não pode deixar de se considerar causador daqueles sinais e efeitos supra referidos.
Acresce que, do relatório a fls. 356 consta que, L não evidência incongruências entre a comunicação verbal e a não verbal, não aparenta anomalias de forma e conteúdo de pensamento, ou de senso-percepção, aparenta capacidades cognitivas correspondentes às esperadas para a idade.
Certo é que, no relatório a fls. 114, datado de 15 de Março de 2006, se refere que L – então, como se pressupõe - apresentou um discurso confuso, incoerente, de grande fantasia, e excesso de criatividade, com algumas contradições, ausência de ressonância afectiva e presença de grande desinibição, concluindo, no entanto, que apesar do tipo de descrições feitas, não é possível excluir a presença de actividades sexuais praticadas pela criança».
No entanto, quer em sede de declarações para memória futura, quer na audiência de julgamento, L – pese embora a inicial menção de se comover, no que foi atalhada pelo Tribunal, que, logo lhe referiu, que o processo não era contra ela dirigido - relatou de um modo sereno, claro, singelo e discreto e digno, as condutas de que foi alvo.
Patente foi, até, a mágoa que ainda sente pelo que o avô, deixando transparecer, quando confrontada com os desenhos e escritos a fls. 531 a 532, qualificando aquele como sendo aquele «do que mais a marcou» - o que bem se compreende pelo simulacro de relação amorosa patente na expressão «amor dos dois», pela referência ao choro da menor, pela grosseria da linguagem, e pelo exagero dos caracteres sexuais externos de agressor e vítima.
Notória foi também relativa desvalorização do comportamento do tio – certamente, pela menor gravidade «objectiva» dos actos praticados, pela diferente natureza dos laços familiares que os unem - de um ascendente espera-se outra contenção, e uma maior protecção - pelas ameaças de violência física que, o avô fez, mas já não o tio; pela maior diferença de idades relativamente à menor; ou ainda por os abusos terem sido «iniciados» pelo avô.
De acordo com a informação clínica a fls. 114, em 15 de Março de 2006, apresentava um discurso que demonstrava ausência de ressonância afectiva.
De acordo com o relatório de avaliação psicológica, a fls. 36 a 49, L refere que nunca gostou muito do avô paterno, o que aliás é compreensível numa criança a quem vêm a ser infligidos os actos provados, só revelando, até, a sua inteligência emocional.
Referindo-se o relatório de avaliação psicológica a pequenas mentiras com ganhos secundários e comuns em crianças em idade escolar (v.g., para não ter feito os trabalhos de casa), ou que dizia aos colegas que tinha «poderes», e constando do relatório a fls. 114, que disse ter frequentado «sessões de psicologia onde se fazia magia», relatam, as pessoas que com ela contactaram diariamente – a ama, MA, a mãe, C – ou frequentemente – a prof. AZ – uma criança que mente, como as outras, ou que, como refere P, não mente além do esperado em situações de abuso.
Aliás, não se provou – por falta de arrimo em qualquer prova produzida – que: L tenha inventado uma visão de um anjo; se tenha escondido numa zona de mimosas, e encontrada por pessoa de mota, que revelou o esconderijo à família, tivesse alegado que a haviam tentado violar, mentira repetida por vingança perante a GNR; tenha acusado o pai do namorado de ter sido o causador de incêndio; agiu movida pelos ciúmes relativamente à prima, filha de tios, que, a tinham ajudado a criar; ou que tenha sido foi influenciada pelo espectáculo mediático dos processos «Casa Pia», e de «S. Romão» - factos sob os pontos 15 a 19 da matéria de facto não provada.
Ao invés, o que se provou através do relato da própria tia paterna MH foi que, sem qualquer aviso prévio à criança, à data com seis ou sete anos de idade, deixou-a a dormir sozinha em casa da mãe, pelo que, a menor, ao acordar, vendo-se só, entrou em pânico, correndo a rua, a chorar indo para casa da tia, dizendo que a mãe tinha morrido, - facto 44 da matéria de facto provada - o que é, não apenas natural, numa criança dessa idade que se sentiu abandonada, como revela bem a desprotecção da menor e o meio familiar em que se inseria.
Também não se compreende que tenha mentido para obter o ganho de o pai regressar a Portugal, referindo, antes, a psicóloga P, o medo de L de que o pai, sendo familiar dos ora arguidos, neles acreditasse e reagisse mal, bem como o receio de vir a ser afastada da prima (filha do tio C).
Aliás, como declarou, em audiência a própria L, foi (também) o medo de exclusão familiar – utilizado pelo avô, após os abusos, - que a levou a não contar o sucedido.
Razoável, afinal, foi este receio, face ao notório desconforto, em audiência de julgamento, de todos os familiares ouvidos, perante intervenção do Tribunal.
É certo que MH ( filha de A e irmã de C), PA ( neta de A e sobrinha de C) e J A (genro de A e cunhado de C) referiram, nunca terem notado qualquer comportamento suspeito por parte dos arguidos e/ou da menor, mas também, não adiantaram razões para eventual mentira de L.
Já os pais da menor não só não pediram, como seria expectável, explicações aos arguidos, ao menos, confrontando-os com a eventual ocorrência do sucedido, escudando-se em alegados conselhos de terapeutas, como inclusive o pai, conforme o referiu, foi trabalhar para o seu irmão, ora arguido, sem se lembrar de revelar, se não respeito, pelo menos, alguma contenção face aos problemas da filha (que sempre os teria, ainda que tudo por hipótese tudo não passasse de invenção, o que, como se vê se afasta).
Emergindo dos relatórios de avaliação psicológica e de perícia médico-legal, a carência afectiva de L, em particular no respeitante à mãe – cfr. p. provado sob o nº 41 - não se vislumbra como do facto de a menor, na sequência de intervenção da comissão e tribunal - sentir maior proximidade relativamente à progenitora (cfr. p. 46 da matéria de facto provada) seja possível retirar conclusões probatórias no sentido de infirmar ou confirmar a verificação factos imputados e/ou da sua autoria pelos arguidos.
Assim, face à situação de menor abusada por familiares próximos, em quem a restante família não (quer) acredita(r), não admira, que, como consta do relatório, e foi relatado por ML e pela mãe MC, tenha fugido de casa para a Sra. do Desterro, facto provado sob o p. 45.
Por outro lado, constando da informação de fls. 159, a ausência de registo do arguido C e de sua mulher como assinantes da TV cabo, certo é que, em audiência este arguido confirmou visionar programas pela TV cabo, sendo do conhecimento geral a emissão em sinal aberto de programas de conteúdo pornográfico, em particular até à entrada em vigor da Lei nº 32/2003 de 22 de Agosto.
Julgou-se, por conseguinte, que, em audiência (como já, em declarações para memória futura) L apresentou um discurso claro, coerente, singelo, revelador de alguma mágoa, próprio de uma adolescente, actualmente, com 15 anos a quem, entre os sete e os onze anos foram infligidos actos, como os que relatou, que lhe causaram problemas vários, que desde então, graças aos seus recurso internos, mas também, por força do acompanhamento técnico e da protecção que tem vindo a beneficiar em cumprimento de acordo de promoção e protecção, cfr. informação a fls. 149, subscrito por G na qualidade de membro da CPCJ de Seia, ouvida em audiência - tem vindo a superar.
Especificamente, quanto à matéria sob os p. 7 a 9, foram, ponderadas além das declarações da menor, os documentos a fls. 531 a 532, bem como o relatório pericial a fls. 520 a 527, onde de se conclui que é praticamente provado (probabilidade superior a 95%) que, como L o referiu, os caracteres tenham sido manuscritos pelo punho de A
Inversamente, não se provou que A penetrou da vagina, ou tentava a penetração até ejacular (factos sob os pontos 3 e 4 da matéria de facto não provada).
Ponderou-se nesta parte (1.) não só a pouca firmeza das declarações de L, a que não será alheia não só a estranheza da situação para uma criança que, em termos práticos, a não a podia esclarecer com quem quer que fosse, e quem restava retirar as suas próprias conclusões, na situação traumática que vinha vivenciando, (2.) a natural desproporção entre os órgãos sexuais masculinos de um adulto e femininos de uma criança (3.) sem olvidar o resultado de fls. 82, afigurando-se inútil, até, pela assumida experiência sexual posterior sujeitar a menor à agressividade de um outro exame médico-legal, (4.) e a negação do arguido, o que tudo suscitou no espírito do julgador, a dúvida razoável sobre a respectiva verificação, a resolver, em obediência ao princípio in dubio pro reo.
Também face à negação dos arguidos, e na ausência, em audiência, de descrição por L das situações relatadas sob os 1. e 2., 5. a 14. da factualidade não provada, afigurou-se ao tribunal, insuficiente a prova, pese embora o seu relato em sede declarações para memória futura, para afastar a dúvida razoável sobre a respectiva verificação.
No respeitante aos pontos provados sob os nºs 18 a 22 e 31 a 34 (elementos subjectivos que respectivamente acompanhavam as condutas objectivamente descritas sob os p.s 6 a 17, e 26 a 30) atendeu-se às declarações dos próprios arguidos, conjugadas com os depoimentos de todos os seus familiares supra identificados, apreciados segundo um juízo de experiência, dos quais emerge que, possuem um intelecto normal, sendo dotados de capacidade crítica da realidade, e de distinguirem o lícito do ilícito, podendo actuar de acordo com tal avaliação, e, que, portanto, tendo praticado as condutas de natureza sexual referidas, pretenderam satisfazer os seus instintos libidinosos, querendo e sabendo A cometer o constrangimento referido, pese embora compreendessem o alcance dos seus actos, bem como os efeitos que teriam L, cuja idade, como neta, e sobrinha conheciam
As situações exteriores que acompanhavam os actos cometidos l – pontos provados sob os nºs 23 e 24, e 35 e 36, relatadas na pronúncia, na sequência, do libelo acusatório, redundando aliás, em benefício dos arguidos, decorreram da apreciação de todos os depoimentos supra referidos.
A ausência de antecedentes criminais (facto provado sob o p. 47) emerge das informações juntas aos autos, enquanto a prova das condições pessoais dos arguidos (provadas sob os pontos 48 a 51) resultam das respectivas declarações.
Como supra melhor se referiu sobre a matéria descrita sob os pontos 1. a 19., e ainda sob o ponto 20. da matéria de facto não provada, não recaiu prova – v.g. declarações, depoimentos, relatórios periciais, ou documentos - que, com a necessária segurança a suportasse.”.

*
Face ao conteúdo das conclusões, as questões colocadas nos recursos, pela ordem em que serão apreciadas, são as seguintes:
- Impugnação da matéria de facto;
- Violação do princípio in dubio pro reo;
- Vícios de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova;
- Medida da pena aplicada ao arguido A.
Passemos à sua apreciação.
A) Da impugnação da matéria de facto provada
Conforme se alcança da leitura da motivação do arguido A e das conclusões do arguido C, estes pretendem que sejam dados como não provados os factos referidos nos pontos 6 e 10 a 37.
Alegam para o efeito que foram condenados apenas com base no depoimento directo da ofendida L , sendo que ambos negaram peremptoriamente a prática de qualquer acto de cariz sexual com aquela, não merecendo aquela, segundo o ponto de vista de ambos, credibilidade, para além do que todos os outros depoimentos foram indirectos, pois nenhuma das testemunhas assistiu a esses factos e por isso não podem ser utilizados.
Invocam os depoimentos de MM MF, P, O. G, MC, AZ MH PA, ML , AM, JM.
Mas desde já se avançará dizendo que nenhum dos recorrentes tem razão.
É que ambos colocam o problema no âmbito da valoração da prova, pois na sua perspectiva a criança inventou o abuso e o constrangimento sexual de que foi vítima.
Pois bem como é sabido o artº 127º CPP estabelece que, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Tal princípio não é, logicamente uma apreciação imotivável e arbitrária da prova que foi produzida nos autos, já que é com a referida prova que se terá de decidir. É que quod non est in actis non es in mundo.
Como refere Figueiredo Dias Direito Processual Penal, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, pág. 140., essa convicção existirá quando “ o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável. Não se tratará pois, na “ convicção”, de uma mera opção “voluntarista” pela certeza de um facto e quanto à dúvida, ou operada em virtude da alta verosimilhança ou probabilidade do facto, mas sim de um processo que só se completará quando o tribunal por uma via racionalizável ao menos a posteriori, tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse”. Daí que haja necessidade de tais comprovações serem sempre motiváveis.
Na verdade, nos termos do disposto no artº 374º nº 2 CPP “ Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”.
O objectivo dessa fundamentação é, no dizer do Prof. Germano Marques da Silva Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, pág. 294., a de permitir “ a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando, por isso como meio de autodisciplina”.
Como escreve Marques Ferreira Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 229. “ Estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos que em razão das regras de experiência ou de critérios lógicos constituem o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência”.
Também a propósito da fundamentação das sentenças refere Eduardo Correia "só assim racionalizada, motivada, a decisão judicial realiza aquela altíssima função de procurar, ao menos, “convencer” as partes e a sociedade da sua justiça, função que em matéria penal a própria designação do condenado por “convencido” sugere" Parecer da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra sobre o artigo 653º do Projecto, em 1ª Revisão Ministerial, de alteração do Código de Processo Civil, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. XXXVII (1961), pág. 184..
Para além disso não podemos de modo algum ignorar que a livre apreciação da prova é indissociável do princípio da oralidade. É que uma coisa é ouvir, ver, apreciar gestos, as hesitações ou o tom de voz e outra, bem diferente, é ouvir uma gravação..
E é de tal envergadura a importância do princípio da oralidade que o Prof. A dos Reis afirmava Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV, pág. 566. “ A oralidade, entendida como imediação de relações ( contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção ( pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do princípio das livre convicção do juiz, em oposição ao sistema da prova legal.... Ao juiz que há-de julgar segundo o princípio da livre convicção é tão indispensável a oralidade, como o ar é necessário para respirar”.
E estes factores têm de ser tidos em conta mesmo no caso dos presentes autos, em que as provas se encontram gravadas.
De resto, e como é sabido, o recurso sobre a matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, mas antes constitui um mero remédio para corrigir patentes erros de julgamento sobre tal matéria.
Vejamos então.
Como é sabido a prova nos crimes de natureza sexual, por força das circunstâncias, é particularmente difícil, na medida em que escasseia a prova directa, e regra geral só têm conhecimento da maioria dos factos o arguido e a vítima.
Assim quem quer que seja que pratique estes factos, pelo melindre que envolvem e a conotação que lhes está associada, que vai muito para além do próprio processo crime, rodeia-se de cautelas, no sentido de não ser observado por ninguém e no que concerne à prática dos factos, uma vez instaurado o processo criminal, trata de os negar e procurar descredibilizar o depoimento da vítima – é um clássico para quem julga há muito este tipo de criminalidade.

Vejamos então em pormenor a relevância dos depoimentos e declarações invocadas pelos arguidos relativamente à facticidade impugnada.
Como vimos ambos os arguidos negam os factos e dizem que o depoimento da menor não merece credibilidade.
Pois bem ouvida a prova produzida e analisada a documentação junta e designadamente lido o auto de declarações para memória futura e ouvidas as declarações da vítima, nada justifica que não se dê credibilidade à vítima.
Dir-se-á mesmo que as suas declarações mostram-se determinantes no apuramento da verdade dos factos.
Com efeito no seu relato a vítima localizou de forma precisa o início dos abusos, como ocorriam, e os locais onde ocorriam quer por parte do avô quer por parte do tio, referindo a frequência com que os mesmos aconteciam, bem como o motivo pelo qual nunca contou o sucedido, explicando o modo como era ameaçada quer por um quer pelo outro e nos termos em que viriam a ser dados como provados.
Por sua vez releva igualmente o relatório clínico junto a fls. 114, que conclui que não se pode excluir a presença de actividades sexuais praticadas pela criança, e o relatório de avaliação e observação psicológica de fls. 36, que dá conta igualmente que a L revela um conjunto de sinais/sintomas comuns em crianças vítimas de abuso sexual, e finalmente o relatório de perícia médico-legal elaborado pelo Departamento de Pedopsiquiatria e Saúde Mental e Infantil e Juvenil de fls. 356 e ss, e que apresenta as seguintes conclusões:
A menor não apresentou psicopatologia que permita diagnóstico de doença psiquiátrica.
A reduzida fiabilidade global da informação não permite concluir acerca da veracidade dos relatos.
Dada a vulnerabilidade da menor referida na discussão, o seu acompanhamento continuado em consulta de pedopsiquiatria poderia facultar, numa avaliação longitudinal (ao longo do tempo), mais dados clínicos relevantes acerca do seu estado emocional.
A mãe apresenta patologia psiquiátrica que pode condicionar o seu funcionamento psico-emocional, com impacto importante nas suas competências parentais.
Quer dizer em matéria de perícia médica, de relevante concluiu-se que atento o período já decorrido sobre a prática dos factos e a data em que foi realizada a perícia ( 5/6 anos) ( ponto 7- fls. 363), já não era possível concluir pela sua veracidade.
Só que, como vimos há mais elementos no processo que de algum modo suprem a incapacidade reconhecida naquele relatório, designadamente as declarações para memória futura e a que acima já fizemos referência, bem como a avaliação psicológica realizada quatro anos antes daquele e junta a fls. 36, que mereceram igualmente adequada ponderação.
Saliente-se ainda que as imprecisões e mesmo divergências das declarações da L entre o momento em que foi ouvida para memória futura em 4 de Julho de 2006 e em audiência, dois anos depois – 25 de Junho de 2008, não foram de molde a afastar a sua credibilidade. Antes pelo contrário, tais divergências encontram explicação na natureza dos factos em discussão, no longo e penoso período em que teve que os suportar – entre os 7 e os 11 anos de idade - e na necessidade que as vítimas nestes casos têm de os querer esquecer.
É que é de grande brutalidade reviver factos praticados por um avô e por um tio !
Seja como for a menor é peremptória, quando confrontada com essas divergências “na altura lembrava-me melhor”, o que, acrescentamos nós é perfeitamente natural, pois a audição em cima dos factos é merecedora de maior confiança dada a sua proximidade.
Prestou pois declarações consistentes e espontâneas, que não suscitam qualquer dúvida sobre a sua veracidade.
Aliás as folhas de papel entregues pelo avô à menor e que se acham juntas aos autos e que o próprio arguido A assume no ponto 54 das suas alegações, pese embora quando foi ouvido em audiência negasse ser o seu autor, constituem bem a muito censurável ilustração da relação que aquele estabelecia com sua neta.
Aliás deve consignar-se que o relatório do exame pericial junto a fls. 521, é lapidar quando conclui que “ A análise comparativa entre os caracteres questionados apostos nos Doc 1 e 2 com os caracteres manuscritos pelo punho de A , mostra semelhanças entre si o que permite afirmar que é praticamente provado que os caracteres questionados tenham sido manuscritos pelo mesmo punho, isto é, pelo punho de A, a que segundo a Tabela de Significância usada neste Centro para orientar este tipo de perícias, corresponde uma probabilidade superior a 95%”.
Por isso também aqui mais uma vez se lhe recordam.
Assim a fls. 531 está um desenho de uma figura masculina e outra feminina ostentando os seu órgãos sexuais, com as seguintes frases: “ Amor dos dois perpara-te para receberes esta grande piróca Será que até vais xorar ? Respondes sim ou não, eu digo .. e tu dizes..”, e outra a fls. 532, com os seguintes dizeres “ eu quero de digas ão avô o que se passa contigo que não mais ligas-tes ? Respondes”.
Quanto às restantes testemunhas que prestaram depoimento em, audiência e que foram invocadas pelo arguido A, após a sua audição, diremos o seguinte:
A MA que foi ama da menor durante 4 anos, dos 6 aos 10 anos de idade e que dormia em sua casa de 2ª a 6º feira, excepto nas férias escolares, de essencial relatou os termos em que a menor lhe contou o que sucedera com o avô, e bem ainda aquilo que então observou, nos seguintes termos:
“ .. um dia ao chegar ao domingo à noite, surpreendeu-me ao dizer que o avô tinha sido tentado pelo diabo. Nessa altura supus que o avô se tinha matado. Ela depois disse eu estava a dormir com a minha avó, a minha avó foi para a cozinha e o avô teve sexo com ela. Na altura tinha 8 ou 9 anos, não fixei muito, porque eu fiquei sem palavras. E eu disse-lhe para contar ao pai porque eu não posso dizer… Depois mandei-a ir lavar-se e ela depois veio e disse que lhe estava a doer muito a “ porquinha”… Ela chorava mesmo com dores e dizia põe-me o remédinho porque me dói muito, depois vi o seu buraquinho vaginal diferente das outras crianças… maior do que costumava ver às outras crianças… e depois encontrei-lhe um pelo russo que guardei.. o pelo era rijo, do pénis, de velho, cor cinza.. da maneira que a L se abriu comigo eu acreditei e depois ainda acreditei mais quando ela noutro final de semana chegou outra vez a chorar que tinha contado ao pai e o pai não acreditou nela e que lhe disse que se voltasse a falar nessas coisas lhe batia. E aí então fiz por nunca falar ao pai nem à mãe… Ela nunca mais falou nada… Passado um ano depois de ter saído de mim, ela foi passar umas horas à minha casa e voltou-me a falar do assunto – lembras-te daquilo que te contei, olha sabes ele continuou e também tinha sido o tio C…”
A MV assistente social que exercia funções na escola frequentada pela L no seu 4º ano relatou aquilo que na altura a L lhe contou, pela seguinte forma:
“ um dia a L disse-lhe que tinha problemas mas que a mãe não a podia ajudar porque não acreditava nela. Depois comecei a questioná-la e ela um dia disse que costumava ir à casa dos avós paternos e que tinha problemas porque o avô costumava puxá-la para a cave, que a despia, que a apalpava, que uma vez a tinha deitado na cama quando a avó não estava lá e depois chegou e que tinha também problemas com o tio, foi tudo de rajada. Quanto ao tio, que a puxava para a casa de banho e que a apalpava. Que achava que o avô e o tio andavam chateados que os dois a queriam. Ela dizia que tinha nojo muito nojo quando o avô a tocava……… A partir desse momento a menor foi encaminhada para a psicóloga da escola que iria frequentar no ano seguinte… A L dizia que ninguém acreditava nela. A L dizia que o avô fazia desenhos e queria que ela fizesse sexo oral… depois a L trouxe-lhe esse desenho com um boneco e uma boneca despidos exibindo os órgãos sexuais e com legendas..”
A psicóloga P, que começou a acompanhar a menor quando ela estava no 4º ano de escolaridade e é autora do relatório de avaliação e observação psicológica junto a fls. 36 e ss, diz-nos que logo na 1ª conversa que teve com ela, esta lhe relatou os factos em questão, apercebendo-se que durante esse relato a L os vivenciava com um olhar de grande tristeza ( flash backs). Mais referiu que a L evidenciava sinais comuns a crianças vítimas de abuso sexual – flutuações no rendimento académico, medos, isolamentos em relação aos colegas, problemas de auto-regulação nomeadamente a nível de apetite, queixas físicas, doença psico-somática, série de conhecimentos e linguagem pouco comum à idade no âmbito da sexualidade, comportamentos sedutores, falta de confiança nos outros, mentira e agressividade.
Mais aludiu ao medo que a menor tinha da reacção do pai quanto a esta denúncia, por se tratarem do avô e pai.
Quanto às mentiras da L, referiu que estas são comuns nas crianças desta idade, e sobretudo para obter desculpas, tipo “ não fez os trabalhos de casa”, não sendo o tipo de relatos feitos e os sinais que emitiu compatíveis com mentiras para chamar a atenção.
Esclareceu também que se os relacionamentos sexuais relatados tivessem sido realizados com outra criança e designadamente o sexo oral, nunca haveria flash backs.
Por sua vez a testemunha O assistente social e que era à data presidente da comissão de protecção de menores, prestou um depoimento sem qualquer relevância, não se entendendo porque é que o recorrente a invoca, pois nessa qualidade limitou-se a dizer que o conhecimento aprofundado sobre a situação era de sua colega G, tendo-se limitado ela a receber a comunicação que foi feita pela Escola.
A testemunha G, psicóloga, membro da Comissão de Menores, relatou que a L tinha problemas de relacionamento com os seus pares e foi acompanhada tecnicamente pela psicóloga P, dando ainda conta que nos contactos mantidos com a L, esta lhe pareceu uma criança ansiosa, tensa quando abordava os factos, manteve bom aproveitamento, pareceu-lhe uma criança que estava a superar a situação porque tinha o apoio da mãe.
Quanto à testemunha C, mãe da L, esta reconheceu que a menor efectivamente dormia por vezes em casa dos avós paternos, recorda que por vezes a menor se isolava e não falava e que também ia a casa do cunhado, arguido C, e que este ficava lá com as crianças aos sábados, quando a mulher e ela iam trabalhar.
Recordou o episódio da ida para a praia para Aveiro, diz que aí dormiram numa tenda.
À pergunta se a menor quando estava consigo em casa do avô ficava sozinha com este, respondeu que “ não andavam atrás uns dos outros”, mas que recorda que a partir de uma certa altura “ela deixou de falar ao avô, mas não sabe porquê”.
A testemunha AA, que foi professora da L no 1º ciclo, referiu no seu depoimento que a menor era triste, cabisbaixo e era implicativa com os colegas e que quanto aos factos, de que diz não se lembrar, foi a técnica P que lhos relatou.
Acrescentou ainda que as mentiras da L, era como qualquer colega “ todas as crianças têm o lado da mentira e da fantasia e a L não fugia á regra”.
Quanto às testemunhas MH, filha do arguido A e irmã do arguido C, P, neta do arguido A e sobrinha do arguido C e ML quanto aos factos nada sabem, não se percebendo por isso porque é que o seu depoimento foi invocado. Mas bom, ouvidos. o resultado é o de não terem qualquer interesse para a apreciação dos factos.
Quanto ao depoimento da testemunha AN, pai da menor, o que do mesmo decorre é que, pasme-se, perante os factos de que era acusado o seu pai e o seu irmão, até passou a trabalhar para este.
Mas, mais, nunca lhes perguntou nada sobre esses factos, nem a sua filha, porque, como diz “ eu penso que o meu pai e o meu irmão estão inocentes. É o que eu penso”.
Quer dizer convenceu-se que era mentira o que a filha contava, embora não tivesse feito qualquer tentativa para o esclarecer, e depois, contraditoriamente afirme que a filha só faz mentiras banais. Mas o certo é que apresentou queixa contra o seu pai e o seu irmão ( cfr. fls. 67).
Por último a invocada testemunha J, genro do arguido A e cunhado do arguido C, sobre os factos também nada sabe, nem nunca falou sobre eles quer com o sogro quer com a sua sobrinha, porque, como diz “ ela percebeu que a gente ficou chateado”.
Argumentam ainda os recorrentes que os demais depoimentos são indirectos por se tratarem de depoimentos prestados por pessoas a quem a menor relatou os factos.
Ora seguramente que os arguidos se referem apenas àqueles que relataram factos que lhe foram transmitidos pela L, e não a todas as testemunhas. É que essas foram apenas as testemunhas MA, AZ e a psicóloga P.
Seja como for também aqui não têm qualquer razão.
Desde logo há que precisar que mesmo estas não se limitaram a relatar apenas aquilo que a menor lhes contou, foram muito mais além, relataram aquilo que elas próprias directamente constataram, como aliás já vimos anteriormente, pelo que dizer que prestaram única e simplesmente um depoimento indirecto, não é verdade.
Na verdade o que se pretende através da proibição do depoimento indirecto é que o tribunal não acolha como prova um depoimento que se limita a reproduzir o que se ouviu dizer a outra pessoa (artº 129º nº 1 CPP).
Para que seja valorado, exige-se a confirmação, com a consequente audição das pessoas de quem se ouviu dizer.
Como referem Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, Vol. I, pág. 713. “ Esta confirmação tem em vista a própria validade e eficácia do depoimento, pois o mérito de uma qualquer testemunha tem muito a ver com a razão de ciência da própria testemunha.
Por isso, o depoimento “ por ouvir dizer” só após confirmação será eficaz como meio de prova”.
E compreende-se que assim seja, até porque se não houver a confirmação da alegada conversa, nada nos diz que a mesma tenha de facto ocorrido.
Ora o essencial do depoimento da menor confirma o relato feito quer por P através do seu relatório, quer por MA quer por AZ pelo que têm plena validade.
Em suma diremos que da conjugação desses depoimentos com aqueles relatórios, resulta que a matéria de facto que foi considerada provada nos pontos impugnados pelos arguidos tem suporte na referida prova e, como tal se confirma integralmente.
Termos em que improcede o recurso neste segmento.
B) Da violação do princípio in dubio pro reo
Ambos os recorrentes alegam que o arguido deveria ter sido absolvido por falta de provas, e falta de credibilidade da ofendida, em homenagem ao aludido princípio.
Contudo tal não significa que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio.
É que a violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito de julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.
Esta dúvida a favor do arguido, é consequente do princípio da presunção de inocência.
Ora não resultando do texto do acórdão, confirmado pela apreciação da matéria de facto feita anteriormente, que tenha havido qualquer dúvida sobre os factos considerados provados, improcede também o recurso neste ponto.
No caso vertente, tal principio só teria sido violado se da prova produzida e documentada resultasse que, ao condenar o arguido com base em tal prova, o juiz tivesse contrariado as regras da experiência comum ou atropelasse a lógica intrínseca dos fenómenos da vida, caso em que, ao contrário do decidido, deveria ter chegado a um estado de dúvida insanável e, por isso, deveria ter decidido a favor do arguido.
Ora, se a fundamentação não viola o princípio da legalidade das provas e da livre apreciação da prova, estribando-se em provas legalmente válidas e valorando-as de forma racional, lógica, objectiva, e de harmonia com as regras da experiência comum, não pode concluir-se que a mesma prova gera factos incertos, que implique dúvida razoável que afaste a valoração efectuada pelo tribunal para que deva alterar-se a decisão de facto recorrida, sendo por conseguinte, lícita e válida a decisão de facto. Improcede por isso também o recurso quanto a este ponto.
Aliás deve dizer-se que depois de prova tão cabal é necessária alguma ousadia para vir esgrimir com a violação de tal princípio.
C) Dos vícios de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova
E exactamente com os mesmos fundamentos que serviram para suportar o recurso da matéria de facto, invoca o recorrente A os aludidos vícios.
Ora o primeiro dos alegados vícios previsto no artº 410º b) CPP, verifica-se, segundo Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, pág. 739., “ quando de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que essa fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente, dada a colisão entre os fundamentos invocados.”
E referem ainda os referidos autores que “ Por contradição, entende-se o facto de afirmar e de negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade ou na qualidade.
Para os fins do preceito ( al. b) do nº 2) constitui contradição apenas e tão só aquela que, como expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras da experiência”
E acrescentam os referidos autores que “ As contradições insanáveis que a lei considera para efeitos de ser decretada a renovação da prova são somente as contradições internas, rectius intrínsecas da própria decisão considerada como peça autónoma.”
E compreende-se que assim seja, porquanto nos termos do Artº 410º nº 2 CPP o vício tem de resultar do texto da sentença recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Por outro lado o erro notório na apreciação da prova consiste, no erro ostensivo, patente e de tal modo crasso que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de qualquer exercício mental.
Como refere o AcSTJ 98.04.16 (BMJ 476, 253) “ só existe erro notório na apreciação da prova quando da factualidade provada se extraiu uma conclusão ilógica, irracional e arbitrária ou notoriamente violando as regras da experiência comum”.
Ora como vimos aquilo que o arguido pretendia e fez foi impugnar a matéria de facto, tendo invocado expressamente documentação juntas aos autos, declarações de arguidos e depoimentos de testemunhas, o que não pode servir também para suportar a alegação de vícios, pois como já referido estes têm forçosamente de resultar exclusivamente da própria sentença e não de elementos a ela estranhos.
É uma clara divergência quanto à forma como o tribunal apreciou a prova.
É pois com base no que consta do acórdão e não naquilo que dele não consta, que se podem invocar os referidos vícios.
Em resumo diremos que, tendo a impugnação da matéria de facto sido já objecto de apreciação e não se vislumbrando a existência de qualquer um dos vícios a que alude o artº 410º nº 2 CPP, se considere a matéria de facto provada, como definitivamente assente.
D) Da medida da pena aplicada ao arguido A
Entende este arguido que a pena aplicada é pesada, face à sua idade ( 74 anos), inserção social, ausência de antecedentes criminais, modesta situação económica e lapso de tempo já decorrido.
Porém desde já se dirá que não vislumbramos que tais razões sejam motivo justificativo para a alteração da decisão recorrida neste ponto.
Vejamos.
Nos termos do artº 79º CP, o crime continuado é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação.
No caso vertente estão em causa as condutas tipificadas no artº 172º nºs 1, 2 e 3 b) e 177º nº 1 a) CP, sendo que a mais grave, isto é referente à alínea b), é punida com pena de prisão de 4 anos a 13 anos e 4 meses.
Por sua vez o crime de coacção grave p. e p. pelos artºs 154º nº 1 e 155º nº 1 b) CP é punido com a pena de prisão de 1 a 5 anos.
Como é sabido a medida da pena é determinada em função da culpa do arguido e das exigências da prevenção geral e especial das penas, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele (artº 71º nºs 1 e 2 CP).
E em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (artº 40º nº 2 CP).
Como refere Figueiredo Dias Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 229., “ a medida da pena não pode em caso algum ultrapassar a medida da culpa. A verdadeira função desta última, na doutrina da medida da pena, reside, efectivamente, numa incondicional proibição de excesso; a culpa constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas – sejam de prevenção geral positiva ou antes negativa, de integração ou antes de intimidação, sejam de prevenção especial positiva ou negativa, de socialização, de segurança ou de neutralização. Com o que se torna indiferente saber se a medida da culpa é dada num ponto fixo da escala penal ou antes como uma moldura de culpa: de uma ou de outra forma, é o limite máximo da pena adequado à culpa que não pode ser ultrapassado. Uma tal ultrapassagem, mesmo em nome das mais instantes exigências preventivas, poria em causa a dignitas humana do delinquente e seria assim, logo por razões jurídico-constitucionais, inadmissível”.
Assim face a todo o circunstancialismo provado, o elevadíssimo grau de ilicitude dos factos e o seu modo de execução prolongado durante quatro anos, o dolo, que é directo e intenso, as necessidade de prevenção geral neste tipo de criminalidade que, infelizmente se vem acentuando e por isso se impõem sentidas e acrescidas necessidades dos tribunais darem uma resposta vigorosa e firme a este tipo de criminalidade, a humilde condição social do arguido, o facto de ser primário, a sua idade ( 76 anos) entendemos como muito justas e equilibradas as penas de 5 anos e 6 meses pela prática do crime de abuso sexual de criança e de 1 ano e 2 meses pela prática do crime de coacção grave e por isso a merecer o nosso aplauso.
E igualmente não merece censura o cúmulo jurídico efectuado entre as referidas penas, o qual se acha de harmonia com o disposto no artº 77º nº 2 CP e, como tal se confirma.

DECISÃO

Por todo o exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento aos recursos, confirmando-se inteiramente a douta decisão recorrida.
Fixam a taxa de justiça devida pelo recorrente A em seis Ucs e pelo recorrente C em cinco UCs.
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (artº 94º nº 2 CPP)

Coimbra, 7 de Julho de 2010.