Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
844/07.2TBCNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: DIVÓRCIO
VIOLAÇÃO DOS DEVERES CONJUGAIS
Data do Acordão: 11/03/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CANTANHEDE - 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1779º, 1674º E 1675º DO C.C.
Sumário: I - A gravidade dos actos consubstanciadores de violação de deveres conjugais que permita preencher a previsão legal que atribui o direito ao divórcio deve ser aferida não apenas em função das circunstancias do caso concreto, mas, outrossim, na ponderação das concepções ético-valorativas hodiernamente vigentes na comunidade portuguesa.

II - Destarte, assiste jus ao divórcio à impetrante que prova, para além do mais, que o cônjuge: não a informa sobre negócios que desenvolve sendo interpelada por credores do marido para o pagamento de dívidas; que este afirmou a terceiro que a esposa o trai e, por isso, ele a há-de “rebentar”; Que, pelo menos uma vez, disse à esposa que a matava; que arrombou as fechaduras das portas da casa de morada de família e que furou os pneus do automóvel da A.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

            1.

A... intentou acção declarativa, constitutiva, com pedido divórcio, contra seu marido, B... .

Pediu:

 O decretamento da dissolução do casamento por si celebrado com o réu com culpa exclusiva deste, tudo com as legais e devidas consequências.

Para tanto invocou em síntese:

Desde há muito que o demandado faz uma vida totalmente separada da demandante, não lhe fornecendo qualquer informação sobre os negócios em que se envolve, vindo apenas a A. a ter deles conhecimento quando interpelada por credores a reclamar-lhe o pagamento de dívidas; ao manifestar ao Réu a sua tristeza por ser por ele ignorada, é a A. apelidada de “parva”, acrescentando não ter ela nada que ver com a sua vida.

Que o Réu é muito ciumento, vendo amantes em todo o lado e insinuando, mesmo diante de amigos e familiares, que a A. o trai, ameaçando-a de morte.

Que o Réu partiu vidros e tubos do radiador do automóvel da A.,  e introduziu água no respectivo depósito,  furou os pneus,  e arroubou asfechaduras das portas de casa.

 Ora, a A. é uma pessoa muito trabalhadora, boa mãe, de elevada educação e apurada sensibilidade moral.

E que os cônjuges tomam as refeições em separado e não dormindo juntos há mais de três anos, apenas partilhando a mesma casa porque o demandado se recusa a sair dela.
Contestou o réu.
Dizendo, e em síntese, não corresponder à verdade o que a A. alegou na sua douta petição inicial, designadamente quanto aos comportamentos imputados ao contestante, pelo que inexistindo fundamentos para a decretação do divórcio pretendido pela A., pugnou  pela improcedência da acção.

2.
Prosseguiu a acção os seus legais ermos, tendo, a final, sido proferida sentença que:
– Decretou o divórcio entre a A. e o Réu, declarando, assim, dissolvido o seu casamento.

– Declarou o Réu exclusivo cônjuge culpado pela dissolução do casamento.

3.

Inconformado apelou o réu.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões;

Dos factos provados não se pode concluir que ele violou os deveres conjugais estatuídos no artº 1672º e segs do CC.

Dos mesmos factos apurados não decorre a separação de facto por mais de três anos prevista no artº 1782º  nº1do CC.

A nova legislação aplicável ao regime do divórcio – Lei 68/2008 de 31/10 – não se aplica aos presentes autos colocados em juízo em data anterior à vigência da mesma.

A sentença violou os artºs 1779º, 1672º, 1673º, 1674º, 1675º e 1676º do CC.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 684º e 690º do CPC - de que o presente caso não constitui excepção - o teor das conclusões define o objecto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:

Consubstanciam, ou não, os factos provados violação dos deveres conjugais e/ou separação de facto por mais de três anos.

5.

E os factos dados como assentes no tribunal a quo e que importa respeitar e analisar são os seguintes:

1 – A. e Réu celebraram casamento entre si no dia 9 de Junho de 1974, sem convenção antenupcial;

2 – C... nasceu no dia 28 de Fevereiro de 1992, e é filho da demandante e do Réu;

3 – A A. e o Réu tomam refeições em separado e dormem em camas separadas desde momento não concretamente apurado;

4 – O Réu não informa a A. sobre alguns dos negócios em que tem estado envolvido;

5 – A A. é interpelada por credores do demandado, que reclamam dela o pagamento de dívidas;

6 – O Réu já disse, pelo menos uma vez, a terceira pessoa (in casu, a irmã da A., D... ) que a A. o trai e, por isso, ele a há-de “rebentar”;

7 – Pelo menos uma vez, o Réu disse à demandante que a matava;

8 – O Réu arrombou as fechaduras das portas da casa de morada de família;

9 – O Réu já furou os pneus do automóvel da A.;

10 – A demandante é que paga a electricidade e, por vezes, o Réu acende e mantém acesas diversas luzes da casa de morada de família durante várias horas da noite, sem qualquer motivo aparente;

11 – Por vezes, o Réu liga o aparelho de televisão durante a noite, com o volume elevado, perturbando o sono e o descanso da A.;

12 – A. e Réu não conversam entre si;

13 – Por vezes, o Réu sai de casa por algum tempo, sem que a A. saiba para onde vai; todavia, tem igualmente acontecido estar o Réu fora de casa durante alguns períodos de tempo, em trabalho, em países estrangeiros, o que é do conhecimento da demandante.

6.

Apreciando.

6.1.

Previamente:

Decorre do teor das conclusões de recurso que o Sr. Juiz a quo terá sustentado a sua decisão na nova e actual legislação do divórcio e que ele terá outrossim decretado o divórcio com base no fundamento da separação de facto.

Porém, nada disto é verdade.

 Pois que conforme ressumbra do expresso teor da decisão recorrida, nela, adrede e inequivocamente, se expendeu que a lei aplicável é a anterior à entrada em vigor da lei n.º 61/2008, de 31/10.

E que: «…mesmo defendendo …que os factos referidos quanto à não partilha do leito conjugal, das refeições e até do diálogo entre A. e Réu denunciam uma cessação ou ausência de comunhão de vida entre eles), apenas sabemos que tal estado de coisas dura há algum tempo… assim, falece a demonstração (que à A. cabia – art. 342º/n.º 1 C.C.) dos três anos consecutivos da existência de uma situação de separação de facto…Portanto, por esta via, o pedido de divórcio da A. não pode proceder.» (sic, com realce nosso).

O thema decidendum do recurso consubstancia-se pois, atento o decidido na primeira instância e o teor das conclusões devidamente interpretadas e concatenadas com aquela decisão, em saber se, perante os factos provados, se pode concluir que o réu violou os deveres inerentes ao contrato de casamento com gravidade e relevância bastantes para que à autora assista jus ao divórcio.

6.2.

Nos termos do artº 1672º do CC os conjuges estão recíprocamente vinculados aos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência.

E nos termos do artº 1779º, o divórcio só pode ser decretado  se :
-Se verificar uma violação de um ou mais dos referidos deveres conjugais;

-Se tal violação for culposa;

-Se a mesma violação, pela sua gravidade e/ou reiteração, comprometer a possibilidade de vida em comum.

Desde já há que dizer que se mostram acertadas – atenta a melhor doutrina e jurisprudência atinentes -  as considerações do Sr. Juíz a quo quer no que tange à configuração teórico-dogmática dos aludidos deveres conjugais, quer no que concerne ao elemento culpa e à repartição do ónus da sua prova, quer, enfim, no que respeita à caracterização e condicionantes da gravidade da violação e do comprometimento da vida em comum.

Assim sendo e corroborando, no essencial, os seus argumentos, dir-se-á o seguinte:

6.2.1.

Respeitar o outro cônjuge é, antes de mais, não lesar a sua integridade física ou moral, nem ofender os seus direitos individuais, os direitos conjugais que a lei lhe atribui e os seus interesses legítimos – cfr. Abel Delgado, O Divórcio, 1980, p.48 e Antunes Varela, Direito da Família, 1987, p.345 e sgs.

São factos ofensivos da integridade moral, quaisquer palavras ou actos de um dos cônjuges que ofendam a honra do outro: a honra em geral e aquela honra especial ligada ao casamento – cfr. Abel Delgado, ob. cit. p. 52.

Assim e como se expende na sentença: «Tal dever de respeito é susceptível das mais variadas formas de violação. Desde rudes e brutais ofensas à integridade física (ofensas corporais, maus tratos físicos) até à “subtileza” de outras atitudes (como, por exemplo, a falta de prestação de alimentos que deliberadamente vise e efectivamente provoque uma ofensa na integridade física do cônjuge); desde as ameaças até às ofensas à integridade moral do cônjuge (actos ou palavras que tendam a ofender a honra pessoal ou conjugal, a sua reputação e imagem social); desde comportamentos de vivo e injustificado repúdio até atitudes de completo desprezo ou desinteresse manifesto e público pelo cônjuge; desde condutas que ofendam as liberdades de expressão e informação até actos que cerceiem a manifestação das liberdades de consciência, religião ou culto, de criação cultural, de aprender e ensinar, de escolha de profissão, etc

Os deveres de respeito e de coabitação aparecem autonomizados pela primeira vez com a reforma ao Código Civil introduzida pelo DL 496/77 de 25 de Novembro.

Tal autonomização e referência expressas foram introduzidas pelo legislador porque assumem de facto um especial significado entre os cônjuges.

Na verdade o casamento  é mais do que um simples contrato com fitos de cariz meramente patrimonial.

Com ele pretende-se uma plena comunhão de vida  - art. 1577º C.C. -, pelo que, e tal como, outrossim, se refere na decisão sub sursis, sufragada em jurisprudência do nosso mais alto tribunal «(…) no casamento as relações conjugais são fundamentalmente dominadas por princípios de ordem moral que se integram na própria essência dos deveres dos cônjuges»

Destarte, concorda-se com o entendimento de que, no âmbito do casamento, o dever de respeito assume um cariz especial ou qualificado de preservação e consideração da personalidade global do outro cônjuge.

Daí que a violação dos deveres conjugais, vg. do dever de respeito merecerá «(…) um juízo de desvalor mais forte (…)» que aquele que poderíamos dirigir à ofensa perpetrada por um estranho à união conjugal…»

Trata-se  ainda de um dever de cariz residual.

Pois que o adultério, o abandono da residência da família, a falta de contribuição para os encargos da vida familiar também são faltas de respeito, mas constituem violações autónomas dos deveres de fidelidade, de coabitação e de assistência, respectivamente - cfr. Leonor Beleza in Reforma do Código Civil, 1981, p.112

Assim, só são violações do dever de respeito actos ou comportamentos que não constituam violações directas de qualquer dos outros deveres mencionados no artº. 1672º.

O dever de respeito é um dever ao mesmo tempo negativo e positivo.

Como dever negativo, ele é, em primeiro lugar, o dever que incumbe a cada um dos cônjuges de não ofender a integridade física ou moral do outro, compreendendo-se na "integridade moral" todos os bens ou valores da personalidade: a honra, a consideração social, o amor próprio, a sensibilidade e ainda a susceptibilidade pessoal. Infringe o dever de respeito o cônjuge que maltrata ou injuria o outro.

Mas o dever de respeito como dever de non facere é ainda, em segundo lugar, o dever de cada um dos cônjuges não se conduzir na vida de forma indigna, desonrosa e que o faça desmerecer no conceito público.

 Embora não dirigidas directamente ao outro cônjuge, a relevância destas injúrias funda-se na ideia de que o casal é uma "unidade moral", de tal modo que a dignidade, a honra e a reputação de um dos cônjuges são ao mesmo tempo a dignidade, a honra e a reputação do outro.

Dir-se-á que o dever de respeito como dever negativo é também o dever de não praticar actos ou adoptar comportamentos que constituam "injúrias indirectas". Se um dos cônjuges se embriaga ou se droga com frequência, ou comete um crime infamante, está a violar o seu dever de respeito ao outro cônjuge.

O dever de respeito é porém ainda um dever positivo.

 Não o dever de cada um dos cônjuges amar o outro, pois a lei não impõe nem pode impor sentimentos. Mas o cônjuge que não fala ao outro, que não mostra o mínimo interesse pela família que constituiu, que não mantém com o outro qualquer comunhão espiritual, não respeita a personalidade do outro cônjuge e infringe o correspondente dever.

 Importa, pois, que o cônjuge tenha uma conduta positiva e afirmativa no sentido contrario ao referido e que obvie às nefastas consequências mencionadas.

6.2.2.

No que concerne ao dever de fidelidade ele consubstancia-se na proibição de os cônjuges manterem relações sexuais com terceira pessoa.

Havendo, em certas situações de gravidade relevante na pratica de actos de cariz sexual que não impliquem relações de cópula, ou até libidinoso ou sentimental, que dar relevância á designada “infidelidade moral”, vg. consubstanciada nos flirts ou namoros – cfr. Ac. do STJ de 10.12.1996, dgsi.pt, p.96A349.

Sendo certo que hodiernamente e considerando  o desenvolvimento tecnológico – ex vi, p. ex. dos actuais chats ocorridos na Internet - maior acuidade e relevância este tipo de actuação pode revelar, pelo que  com maior  cuidado e exigência ele deve ser apreciado e dilucidado.

6.2.3.

 No atinente ao dever de coabitação estatui o art. 1673º do C.C. que «Os cônjuges devem escolher de comum acordo a residência da família atendendo, nomeadamente,, às exigências da sua vida profissional e aos interesses dos filhos e procurando salvaguardar a unidade da vida familiar», pelo que: «Salvo motivos ponderosos em contrário, os cônjuges devem adoptar a residência da família».

 Daqui decorre que o que  os motivos subjacentes à lei – ratio legis- e o que com ele se pretende consecutir  é que o agregado familiar partilhe, na sua vivência quotidiana, um espaço físico comum, com cariz de estabilidade, de modo a preservar e fomentar uma organização estruturada do núcleo familiar, sempre necessária à manutenção e fortalecimento dos respectivos laços.

6.2.4.

Prescreve o art. 1674º C.C. sob a epígrafe dever de cooperação que o mesmo: «… importa para os cônjuges a obrigação de socorro e auxílio mútuos e a de assumirem em conjunto as responsabilidades inerentes à vida da família que fundaram».

Afigura-se curial o entendimento do Sr. Juiz a quo de que de tal normativo: «parece resultar a ideia de amparo, concertação e entendimento entre os cônjuges na resolução dos seus problemas quotidianos (tanto no que respeita às necessidades e questões materiais, como naquilo que se reporta ao foro espiritual, afectivo, sentimental, à educação dos filhos, à saúde, etc» e que: «este é um dos verdadeiros traços distintivos da relação conjugal enquanto realidade contratual … dotada de uma específica coloração material e espiritual e afectiva, tendo em vista a comunhão de vida entre os consortes (pense-se no dever, tão relevante do ponto de vista existencial, da prestação de entreajuda psicológica para, por exemplo, demover o outro cônjuge do cometimento de suicídio ou da prática de actos criminosos ou para o dissuadir da toxicodependência…».

6.2.5.

Finalmente, o dever de assistência compreende duas obrigações:

A obrigação de prestar alimentos e a obrigação de contribuir para os encargos da vida familiar - art. 1675ºnº1 do CC.

A primeira refere-se apenas aos cônjuges e consiste no dever recíproco de contribuir para o sustento, habitação e vestuário, saúde e educação, na interpretação declarativa lata, ou, até, extensiva, que se deve fazer do artº 2003 do CC;

A segunda abrange também os filhos e parentes a cargo dos cônjuges e consiste em cada um destes ter de participar nas despesas do lar, de acordo com as suas possibilidades, e pode ser cumprido, por qualquer deles, pela afectação dos seus recursos àqueles encargos e pelo trabalho despendido no lar ou na manutenção e educação dos filhos -  art.º 1676º nº1 Cfr. Antunes Varela, Direito da Família, 1982, 1º, p.284.

6.2.6.

Quanto à culpa.

O autor da acção de divórcio litigioso tem o ónus de prova dos factos positivos e ou negativos previstos nas normas substantivas concedentes do concernente direito potestativo, incluindo da culpa - artigo 342º, n.º 1, do CC - Acs. do STJ de 05.02.2004 e de 10.10.2006 em dgsi.pt, p. 04b017 e 06A2736, respectivamente.

  Impendendo sobre o cônjuge a quem se imputa a infracção a prova  de que tal infracção  é justificada porque tem a sustentá-la razão juridicamente válida - art. 342º n.º 2 do C.C.

Na verdade o direito ao divórcio litigioso não deriva apenas dos factos formal e objectivamente infractores dos deveres conjugais, porque a lei também o faz depender, como seu elemento constitutivo, da prova do seu elemento subjectivo, ie. da culpa – Ac. do STJ de 12.03.2009, dgsi.pt, p.09B0509.

Havendo, outrossim, que apreciar se tal violação é ainda subjectivamente reprovável, ie. se sobre o autor dos factos objectivos e perante as circunstâncias concretas em que esse cônjuge agiu, é possível emitir um juízo de censura, numa perspectiva ético-jurídica.

A culpa consubstancia-se, pois, na ideia que o cônjuge infractor deve ter consciência, pelo menos a título de dolo eventual, que os factos por ele praticados, violam os deveres conjugais cfr. Abel Delgado, in O Divórcio. P.57 e, entre outros, Ac. do STJ de 31.01.1980, BMJ, 293º,401.

 O que releva, para determinação da culpa dos cônjuges na dissolução do casamento, é o padrão comum de valores geralmente aceite na comunidade e na época em que a questão é apreciada - Ac. do STJ de 17.06.2004, dgsi.pt, p.04B1819.

Sendo que a declaração de culpa no divórcio supõe um juízo de censura sobre o casamento globalmente considerado, devendo os factos, conflitos e disputas ser analisadas no seu todo e inseridos num contexto de vida em comum, que não isoladamente - Ac. do STJ de 08.09.2009, dgsi.pt, p.464/09.7YFLSB.

6.2.7.

Não é porém qualquer violação culposa dos deveres conjugais que concede o direito ao divórcio mas apenas aquela que for grave e/ou reiterada.

Tal gravidade ou reiteração têm de ser apreciadas em função de todas as circunstancias do caso concreto e, mais uma vez, na perspectivação da globalidade da actuação dos cônjuges, designadamente a  culpa que possa ser imputada ao próprio requerente e o grau de educação e sensibilidade moral dos membros do casal - n.º 2 do citado art. 1779º.

 6.2.8.

Finalmente a violação culposa, grave e/ou reiterada dos deveres conjugais há-de perspectivar-se como idónea ou adequada ao comprometimento definitivo da vida em comum.

Tal como bem se diz na sentença, apoiando-se em Pereira Coelho Curso de Direito da Família” citado, págs. 542 a 545: «tal impossibilidade da vida em comum não é um facto. É, antes, um juízo, uma conclusão que o julgador deverá retirar (ou não) da avaliação que fez sobre a gravidade da violação dos deveres invocada. E a ruptura só deverá ser admitida quando a violação dos deveres conjugais assumiu contornos tais que …em face das circunstâncias do caso, seja inexigível a um ou aos dois cônjuges a manutenção da vida conjunta. E esta impossibilidade da vida em comum é algo também a aferir segundo a “doutrina do limite do sacrifício”: se, depois de toda a análise referida, o julgador entender que a manutenção do vínculo conjugal representa um verdadeiro e injustificável sacrifício para os cônjuges ou um deles (o ofendido), não fará qualquer sentido prosseguir em uma situação que continuará… a deteriorar-se no futuro, tal como se deteriorou no passado»

6.3.

In casu.

Relevam os factos provados nos pontos 5 a 11 e 13(1ª parte), a saber:

 O Réu não informa a A. sobre alguns dos negócios em que tem estado envolvido;

A A. é interpelada por credores do demandado, que reclamam dela o pagamento de dívidas;

 O Réu já disse, pelo menos uma vez, a terceira pessoa (in casu, a irmã da A., D...) que a A. o trai e, por isso, ele a há-de “rebentar”;

 Pelo menos uma vez, o Réu disse à demandante que a matava;

 O Réu arrombou as fechaduras das portas da casa de morada de família;

 O Réu já furou os pneus do automóvel da A.;

 A demandante é que paga a electricidade e, por vezes, o Réu acende e mantém acesas diversas luzes da casa de morada de família durante várias horas da noite, sem qualquer motivo aparente;

 Por vezes, o Réu liga o aparelho de televisão durante a noite, com o volume elevado, perturbando o sono e o descanso da A.;

 Por vezes, o Réu sai de casa por algum tempo, sem que a A. saiba para onde vai;

Perante este acervo factual corrobora-se a conclusão do Sr. Juíz a quo que o réu violou os deveres de respeito, cooperação e assistência, atenta a definição e os contornos supra referidos para cada um deles.

É, aliás, nítida e contundente a violação do magno e relevante dever de respeito.

Esta violação consubstancia-se na prática de múltiplos actos de diversa natureza, com uma clara e extensiva actuação ao longo de um lapso de tempo que se vislumbra amplo, perpassando por largos meses ou até anos.

Consequentemente tal actuação alcança-se como sendo grave e reiterada.

Posto isto há, outrossim, que concluir se afigurar ser a conduta do réu culposa.

Pois que é indubitável, atenta a objectividade dos factos praticados e da relevância que lhes é dada pela comunidade portuguesa contemporânea, considerando as concepções e valores ético-sociais a ela imanentes e nela vigentes, que o réu, ao praticar os factos apurados, teve consciência da violação dos direitos da autora e/ou do não cumprimento dos seus correspectivos deveres, ou, no mínimo, perspectivou a possibilidade daquela violação e com a esta se conformou.

Finalmente conclui-se, considerando ainda os factos apurados e analisando-os perante os valores inerentes ao casal em causa – que, à míngua de prova que aponte noutro sentido, se tem de concluir ser constituído por pessoas e cidadãos comuns ou médios nos seus valores, amor próprio e sensibilidade – bem como atentando nos padrões comuns de valoração da conduta dos cônjuges hodiernamente vigentes na comunidade portuguesa, que aqueles factos comprometem a possibilidade da vida em comum.

Quer porque os mesmos são, em si mesmos e intrinsecamente, graves, quer porque, pelo menos os respeitantes á violação do dever de respeito, foram reiteradamente praticados.

Ora, como do supra expendido em 6.2.8. a vida em comum não deve constituir para o cônjuge ofendido um sacrifício exorbitante e, por isso mesmo, inexigível

Assim, a possibilidade da vida em comum fica comprometida se exceder o limite razoável do sacrifício.

Havendo que ter em conta para aferir da impossibilidade de vida em comum, um cônjuge razoável, um cônjuge de boa formação e são entendimento, imbuído das concepções valorativas socialmente dominantes.

Ora afigura-se-nos meridianamente evidente que estas concepções da sociedade portuguesa contemporânea não toleram no casamento atitudes e actos da jaez dos praticados pelo réu.

Acresce que: «Não há que exigir dos cônjuges que se mantenham unidos e presos pelos laços do casamento, quando o amor desapareceu, quando já não é possível nem o noivado de carne, nem o noivado de espírito, quando o marido e a mulher querem seguir caminhos diferentes, não lhes interessando a vida em comum...»Abel Delgado, ob. cit. pág. 62 e 63.

Indicia-se suficientemente ser o caso dos autos, pelo menos no que concerne à autora, nos quais se constata a sua firme convicção em – desde logo e em termos jurídicos, que é o que primacialmente releva, fundadamente, - terminar o vínculo conjugal.

Assim sendo falece já a este casamento a sua essencial razão de ser e existir, pelo que, outrossim por este fundamento, a sua manutenção e existência se reduzem a uma formal aparência na medida em que já não podem alcançar, com proficuidade, os fitos e desideratos, pessoal, social e legalmente pretendidos.

Também por este motivo a douta sentença não merece censura.

6.4.

Sumariando:

I - A gravidade dos actos consubstanciadores de violação de deveres conjugais que permita preencher a previsão legal que atribui o direito ao divórcio deve ser aferida não apenas em função das circunstancias do caso concreto, mas, outrossim, na ponderação das concepções ético-valorativas hodiernamente vigentes na comunidade portuguesa.

II - Destarte, assiste jus ao divórcio à impetrante que prova, para além do mais, que o cônjuge: não a informa sobre negócios que desenvolve sendo interpelada por credores do marido para o pagamento de dívidas; que este afirmou a terceiro que a esposa o trai e, por isso, ele a há-de “rebentar”; Que, pelo menos uma vez, disse à esposa que a matava; que arrombou as fechaduras das portas da casa de morada de família e que furou os pneus do automóvel da A.

7.

Deliberação.

Termos em que, se acorda julgar improcedente o recurso e, consequentemente,  confirmar a douta sentença.

Custas pelo recorrente