Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
127/21.5YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANA CAROLINA CARDOSO
Descritores: EXTRADIÇÃO
REGULAMENTAÇÃO JURÍDICA
GARANTIAS DE INEXECUÇÃO DE PENA DE PRISÃO PERPÉTUA
REPRESENTAÇÃO OFICIAL DO ESTADO REQUERENTE
RECUSA FACULTATIVA DE EXECUÇÃO
Data do Acordão: 01/19/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: EXTRADIÇÃO
Decisão: AUTORIZADA
Legislação Nacional: ART. 3.º, 6.º, N.ºS 1, ALS. E) E F), E 2, AL. B), E 18.º, N.º 2, DA LEI 144/99, DE 31-08; ART. 3.º, AL. A), DA CONVENÇÃO SOBRE RELAÇÕES DIPLOMÁTICAS; ARTS. 4.º, AL. B), E 50.º, DA LEI DE EXTRADIÇÃO DA REPÚBLICA POPULAR DA CHINA
Sumário: I – A extradição (passiva) rege-se pelas normas dos tratados internacionais de que o estado requerente e Portugal sejam parte, pelas convenções e acordos internacionais que vinculem o Estado Português – no caso revelado nos autos, o Tratado de Extradição celebrado entre a República Portuguesa e a República Popular da China, assinado em 31-01-2007, aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 31/2009, de 06-03-2009, ratificado pelo Decreto do Presidente da República (n.º 43/2009) em 30-04-2009, e publicado no DR, 1.ª Série, n.º 84, de 30-04-2009 – e, na sua falta ou insuficiência, pelas normas da Lei n.º 144/99, de 31-08, sendo subsidiariamente aplicáveis as disposições do Código de Processo Penal (artigo 3.º do referida Lei).

II – Da conjugação das normas previstas no artigo 3.º, al. a), da Convenção sobre Relações Diplomáticas, celebrada em Viena a 18-04-1961, aprovada em Portugal pelo DL n.º 48295, de 27-03-1968 –, convenção que foi igualmente subscrita pela República Popular da China –, e no artigo 50.º da Lei de Extradição da República Popular da China decorre que o Chefe da Missão deste Estado num terceiro país, no caso o Embaixador (artigo 4.º da dita Convenção), pode assumir, em nome do seu Governo, o compromisso oficial de não vir a ser aplicada ao extraditando a pena de prisão perpétua, não sendo necessário que comprove encontrar-se formalmente autorizado quer pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, quer pelo Supremo Tribunal Popular.

III – A instabilidade ou rutura familiar provocada pela extradição do requerido não constitui motivo bastante para a recusa prevista na alínea b) do artigo 4.º do Tratado de Estradição celebrado entre a República Portuguesa e a República Popular da China.

IV – De facto, o afastamento da família é para o extraditando uma consequência inevitável da extradição que não se sobrepõe ao superior interesse da cooperação internacional no prosseguimento da boa administração da justiça.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:


I.

Relatório:


1. O Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal promoveu, nos termos do artigo 50.º, n.º 2, da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, o cumprimento do pedido de extradição da cidadã chinesa HZ - casada, nascida em (…), na província de (…), titular do passaporte chinês n.º (…), emitido em (…) a (…), válido até (…), residente na Rua (…), nº (…), 5º andar [atualmente na Quinta (…), (…)], em (…), Portugal, apresentado pela República Popular da China para efeitos de procedimento criminal relativo à indiciada prática de um crime de obtenção de fundos por meios fraudulentos, praticado de outubro de 2013 a agosto de 2018, punível pelo art.º 192º da Lei Criminal da República Popular da China com pena de prisão perpétua.

Invoca o Ministério Público que a extraditanda é procurada pelas autoridades judiciárias da República Popular da China – Procuradoria Popular de Pudong, Xangai, por ter promovido publicamente, como representante legal da sociedade (…), produtos financeiros de private equity junto de pessoas, pelo telefone e de viva voz, em conluio com outros, usando como chamariz um elevado rendimento de 7,5% a 16%, assim tendo logrado receber ilegalmente 2,098 biliões de CNY de um conjunto de pessoas não especificadas, mas superior a 414, que utilizou para a compra de imóveis e para consumo pessoal, causando o não pagamento de 612 milhões de CNY, o que à taxa de câmbio atual equivale à quantia de cerca de 79 milhões de euros.

A arguida foi detida na cidade de (…) a (…), ouvida neste Tribunal da Relação a (…), no âmbito do processo de validação de detenção n.º (…), da (…) seção, apenso, confirmada a detenção, que posteriormente foi substituída pelas medidas de coação de apresentações periódicas e proibição de se ausentar para o estrangeiro.


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2. Após a prolação de despacho liminar, procedeu-se à audição da extraditanda, nos termos previstos no artigo 54.º da referida Lei n.º 144/99, tendo a mesma manifestado a sua oposição ao pedido de extradição formulado pela República Popular da China, e não tendo renunciado ao princípio da especialidade.

Foi-lhe aplicada a medida de coação de apresentações periódicas.

Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 55.º do citado diploma legal, veio a requerida deduzir oposição ao pedido de extradição, invocando, para o efeito, fundamentos que enunciou da seguinte forma:

a) Nulidade dos autos por inexistência do Despacho do Sr. Secretário de Estado;

b) Invalidade da garantia apresentada pela Embaixada Chinesa por não estar completa a Nota nº 27;

c) Insuficiência da Garantia por não incluir a decisão tomada pelo Supremo Tribunal Popular;

d) Insuficiência e falta de clareza na vinculação do Ministério dos Negócios Estrangeiros;

e) Insuficiência e falta de clareza no texto da “Garantia”, suscitando dúvidas se a garantia foi efetivamente prestada;

f) Razões humanitárias relacionadas com a situação da Extraditanda e de sua Família; e

g) Erros factuais constantes da matéria que fundamenta o pedido de extradição.


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3. A requerida juntou prova documental e requereu a inquirição de testemunhas.

Procedeu-se à inquirição das testemunhas.

Nas alegações finais que apresentaram, o Ministério Público e a extraditanda reafirmaram as posições antes assumidas.
Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.


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II.

Fundamentação

1. Questão prévia:


- Nulidade do processo

Nas suas alegações escritas, suscitou a extraditanda a questão prévia da inexistência nos autos do despacho a que se refere o art. 48º da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto (doravante designada abreviadamente por LCJ).

O processo de extradição comporta duas fases distintas: uma administrativa, cabendo à Procuradoria Geral da República receber o pedido de extradição, que tem de se encontrar instruído com os elementos referidos nos arts. 23º e 44º da LCJ, elaborar um parecer e remetê-lo para o Ministro da Justiça, que decide pelo deferimento ou deferimento do pedido; e uma fase judicial, precedida do despacho de deferimento do pedido de extradição pelo Ministro da Justiça, cabendo o impulso processual ao Ministério Público do Tribunal da Relação competente para o processo de extradição – arts. 48º e 50º da LCJ.

É este despacho, condição para o início do processo judicial, que a extraditanda refere não ter sido proferido.

Vejamos:

No art. 5º do requerimento inicial, refere o Ministério Público o seguinte: “O pedido Formal de Extradição foi apresentado às Autoridades Portuguesas, tendo Sua Excelência o Secretário de Estado Adjunto e da Justiça, por competência delegada de Sua Excelência a Ministra da Justiça, por despacho de 04 de agosto de 2021, considerado admissível o pedido de extradição”.

Porém, e como afirma a extraditanda, não foi junto tal despacho.

Sucede que o Ministério Público junto deste Tribunal da Relação, notificado da oposição, veio juntar aos autos o original do despacho que refere, cujo original se encontra a fls. 165 dos autos, e cujo teor é o seguinte:

«A República Popular da China solicita à República Portuguesa a extradição da cidadã de nacionalidade chinesa HZ, ao abrigo do Tratado entre a República Portuguesa e a República Popular da China sobre Extradição, assinado em Pequim em 31 de janeiro de 2007.

No âmbito do processo-crime que corre termos no Departamento de Investigação do Crime Económico do Ministério da Segurança Pública da República Popular da China, a extraditanda é suspeita da prática de (1) um crime de fraude para arrecadação de fundos, previsto e punido pelo artigo 192º da Lei Penal da República Popular da China, com pena máxima abstratamente aplicável de prisão perpétua, por factos praticados de outubro de 2013 a agosto de 2018.

Os factos imputados a HZ pelas autoridades judiciárias chinesas, encontram correspondência no ordenamento jurídico português nos crimes de burla qualificada e de exercício da atividade ilícita de receção de depósitos e outros fundos reembolsáveis, previstos e punidos, respetivamente, pelos artigos 217º e 218º, n.º 2, al. a), do Código Penal e artigo 200º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pela Lei n.º 28/2009, de 19 de junho, com pena máxima abstrata aplicável de 8 e 5 anos de prisão, respetivamente.

Nos termos do disposto no artigo 118º, n.º 1, alínea a), do Código Penal e de acordo com o preceituado no artigo 87º, n.º 2m, da Lei Penal da República Popular da China, o respetivo procedimento criminal não se mostra extinto por efeito da prescrição.

A aplicação de pena de prisão perpétua é proibida pelo ordenamento jurídico português e, consequentemente, a sua verificação, no caso concreto, encontra-se identificada, no artigo 3º, n.º 1, alínea h), do Tratado Bilateral já citado, como fundamento imperativo de recusa.

Contudo, o artigo 6º, n.º 2, alínea b) e n.º 3, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, admite que a cooperação, no caso de extradição por crimes puníveis com pena de prisão perpétua, possa ter lugar se o Estado requerente oferecer garantias de que tal pena não será aplicada ou executada.

Assim, conforme resulta das Notas Verbais de 16 e 22 de junho de 2021, o Governo da República Popular da China garante, nos termos do artigo 50º da Lei interna de extradição da República Popular da China, com base em decisão do Supremo Tribunal Popular da República Popular da China que, no caso de HZ ser extraditada de Portugal para a China e condenada por um tribunal chinês pelos factos pelos quais a extradição foi requerida, o Tribunal de julgamento não a condenará em pena de prisão perpétua.

Esta garantia é, nos termos da referida disposição legal, vinculativa para todos os tribunais chineses.

Analisado o pedido e os seus fundamentos de facto conclui-se que, mediante a prestação de garantias, foram ultrapassadas as causas de recusa previstas pelo artigo 3º do Tratado entre a República Portuguesa e a República Popular da China sobre Extradição e não se verificam as recusas que resultam da lei interna, nomeadamente porque a extraditanda não é nacional portuguesa, o crime que lhe é ora imputado mostra-se igualmente previsto pelo ordenamento jurídico português e foram prestadas garantias relativamente à causa de recusa a que alude o artigo 6º, alínea f), da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto.

Assim, nos termos acima explanados, ao abrigo do disposto no Tratado entre a República Portuguesa e a República Popular da China sobre Extradição, assinado em Pequim a 31 de janeiro de 2017 e no artigo 48º, n.º 2, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, considero admissível o pedido de extradição efetuado pela República Popular da China relativamente a HZ. (assinado Pel’A Ministra da Justiça Francisca Van Dunem, de forma digital, Mário Belo Morgado)».

Notificada a extraditanda da junção do documento, nada disse.

Tendo o despacho a que se refere o art. 48º da LCJ sido proferido em tempo, e no sentido da admissibilidade da extradição, com a sua junção aos autos ficou suprida a irregularidade de que os autos enfermavam.


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2. Fundamentação de facto

a) Factos provados (relevante para a decisão da causa)


1 - Ao abrigo do Tratado entre a República Portuguesa e a República Popular da China sobre Extradição, assinado em Pequim a 31 de janeiro de 1007, as autoridades competentes da República da República Popular da China solicitaram ao Estado Português a extradição da cidadã HZ, acima melhor identificada, para efeitos de procedimento criminal relativo aos crimes descritos no ponto n.º 1 do “Relatório”, acima.

2 - Por despacho proferido, ao abrigo do disposto no n.º 2 do art. 48.º da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, em 4 de agosto de 2021, Sua Excelência o Secretário de Estado Adjunto e da Justiça, por competência delegada de Sua Excelência a Ministra da Justiça, considerou admissível o pedido de extradição, face às garantias enviadas pelas Autoridades da República Popular da China de que a pena de prisão perpétua não será aplicada à extraditanda.

3 - Os factos que estão na base do procedimento criminal, e que se respigam do pedido de cooperação, são os seguintes:
a) ZH formou uma equipa de vendas especial em (…), de (…) a (…), sem a aprovação da autoridade financeira nacional, para vender fundos de private equity estabelecidos em nome da Huying Investment Company através da Huying Asset Company para absorver ilegalmente depósitos do público;
b) ZH havia sido contratada por JJ, pessoa que controla o Grupo (…), tendo este grupo estabelecido a Huying Investment Company, para o cargo de gerente geral para vender aqueles fundos de private equity;
c) ZH ficou responsável pela administração e operação da Huying Asset Company, e acorda com JJ que a equipa de vendas de ZH receberia uma comissão de 6% do valor das vendas totais dos fundos;
d) Além de treinar as equipas de vendas em habilidades de fala, ZH formulou um sistema de gestão de salários dos vendedores;
e) A equipa formada vendeu fundos de private equity, sem projetos reais, usando como isca retornos de 7,5% a 16%, por meio de ligações telefónicas, boca a boca e outros;
f) Por esta forma, absorveu 2,098 bilhões de yuans de 414 vítimas, sabendo que o Grupo (…) e as suas empresas filiais não tinham as qualificações relevantes para absorver depósitos do público e vender fundos de private equity e que a maioria dos fundos de private equity não eram registados na (…) e os projetos de investimento relacionados não existiam;
g) Causou uma perda de 612 milhões de yuans, e fugiu para o exterior.

4 – Os factos sumariamente descritos indiciam a prática pela extraditanda de um crime de obtenção de fundos por meios fraudulentos, punível pelo art.º 192º da Lei Criminal da República Popular da China com pena de prisão perpétua

5 - Não corre perante tribunais portugueses qualquer processo criminal contra o extraditando pelos mesmos factos que fundamentam o presente pedido de extradição.

6 – Com data de 16.6.2021 foi emitida pela Embaixada da República Popular da China a Nota n.º (2021) 24, do seguinte teor:

A Embaixada da República Popular da China na República Portuguesa apresenta os seus cumprimentos à Procuradoria-geral da República Portuguesa e tem a honra de informar o seguinte:

De acordo com o artigo 50 da Lei da Extradição da República Popular da China e a decisão do Tribunal Supremo do Povo da República Popular da China, no caso da extradição da ZH de Portugal para a China, se a ZH for condenada por um tribunal chinês pelos factos subjacentes ao pedido de extradição, o tribunal que a julgará não imporá uma sentença acima de prisão perpétua (incluindo a prisão perpétua) em conformidade com a lei. (…)”

7 – Posteriormente, emitiu a mesma entidade a Nota (2021) N.º 27, do seguinte teor:

A Embaixada da República Popular da China na República Portuguesa cumprimenta atenciosamente a Procuradoria-geral da República Portuguesa e tem a honra de fazer referência ao caso de ZH, suspeita cuja extradição foi pedida pela parte chinesa à parte portuguesa, e presta os seguintes esclarecimentos e garantia sobre a aplicação da pena sobre o caso referido.

ZH é uma suspeita do crime de fraude na angariação de fundos. Ao abrigo do artigo 192º do Código Penal da República Popular da China, as penas aplicáveis para esse crime incluem pena de prisão e pena de prisão perpétua. Ao abrigo do Código Penal da República Popular da China e do Código de Processo Penal da República Popular da China, se a conduta de ZH constitui um crime e se e que tipo de penalidade ZH deve ser condenada, compete ao tribunal de julgamento pronunciar, com base nos fatos, meios de prova e leis relevantes depois de ZH ser extraditada para a China. O texto do artigo 192º do Código Penal da República Popular da China foi citado no pedido de extradição”.

8 – E em anexo:

Artigo 50º da Lei de Extradição da República Popular da China:

No caso de o Estado requerido conceder a extradição com condições adicionais, o Ministério dos Negócios Estrangeiros pode, em nome do Governo da República Popular da China, apresentar garantia desde que a soberania, os interesses nacionais e os interesses públicos da República Popular da China não sejam prejudicados. A garantia com respeito a restrição do processo será sujeita à decisão da Suprema Procuradoria Popular, e a garantia com respeito a aplicação da pena será sujeita à decisão do Supremo Tribunal Popular.

Ao investigar a responsabilidade criminal da pessoa extraditada, os órgãos judiciais devem ser vinculados pela garantia prestada.

9 - A Extraditanda é casada com um cidadão chinês, e tem três filhos: YG1, nascido a (…); YG,2 e YG3, ambos nascidos a (…). O filho mais velho tem a nacionalidade chinesa, e os dois mais novos, nascidos já em Portugal, têm a nacionalidade Portuguesa.

10 – O marido da Reqda. é uma pessoa doente, com diabetes e displipidemia grave com mau prognóstico.

11 – A Requerida foi detida no dia (…), em cumprimento da ordem de captura emitido pelas autoridades chinesas, e manteve-se em detenção provisória.

12- Na sequência de comunicação da situação de detenção da requerida aos serviços de Segurança Social de ..., foi elaborado relatório social com data de 16.6.2021, onde consta designadamente o seguinte:

No dia 20 de maio de 2021 esta EMAT procedeu à avaliação da situação do agregado familiar. Foi realizada entrevista ao progenitor em contexto de visita domiciliária, não se tendo verificado que as crianças estivessem em situação de perigo, contudo a progenitora era quem desempenhava as funções de cuidadora e, atendendo à ausência de figura materna, pelo motivo de se encontrar detida no estabelecimento prisional de ..., e atendendo às dificuldades do progenitor em conciliar as rotinas domésticas com os cuidados às crianças uma vez que se trata de duas crianças com dois anos de idade e que exigem atenção permanente de um adulto, esta EMAT diligenciou pela integração das crianças YG2 e YG3 em equipamento escolar.

Após estes serviços assegurarem vaga em creche, YG2 e YG3 integraram contexto escolar no dia (…), na creche (…). De acordo com a educadora de infância a integração decorreu com normalidade.

Foi contactada ainda a diretora do Colégio (…), estabelecimento frequentado pelo jovem YG1. De acordo com a diretora do colégio, o jovem está bem integrado, sendo um aluno empenhado com bom rendimento escolar e comportamento exemplar com toda a comunidade educativa.

A situação da família estava acautelada, as crianças e o jovem estavam em equipamento escolar durante o dia, permitindo ao pai o autocuidado e a organização das rotinas de vida diária, face ao papel de cuidador a tempo inteiro, fomentando desta forma um ambiente familiar mais calmo.

Contudo o estado de saúde do progenitor agravou-se, subitamente, colocando o jovem e as crianças numa situação de vulnerabilidade. No dia (…) decorrente de episódio de urgência hospitalar, na sequência de estado de hiperglicemia e complicações cardíacas, o progenitor ficou internado para observação médica, com alta clínica no dia (…). Esta situação foi sinalizada à linha de emergência médica 112, pelo amigo de família (…), a residir no ....

O agregado não tem retaguarda familiar, atualmente contam com o apoio da filha e genro de (…), (…) e (…), respetivamente que se deslocaram a (…), no dia (…) para apoiar o progenitor, crianças e jovem. Não obstante, o apoio de (…) é pontual, uma vez que o casal tem de regressar a ... hoje (16/06/2021), no final da tarde (por volta da 17:00h), por motivos de trabalho, ficando assim o agregado familiar em situação de grande vulnerabilidade. (…)

Informamos ainda que o casal amigo, (…) e (…), está a providenciar pela contratação de uma empregada doméstica para prestar apoio ao progenitor, no que respeita à organização e higienização da habitação e rotinas de vida diária, face ao agravamento da sua situação de saúde, para facilitar a recuperação deste pai. Desta forma e caso esta situação se venha a verificar a proteção do jovem YG1 ficará salvaguardada, uma vez que, de acordo com o que podemos apurar, este é responsável e revela capacidade de interação, autonomia e maturidade que lhe permite adequação ao nível relacional com o pai e irmãos e adequação afetiva e comportamental. (…)

Em face do agravamento da situação de saúde do progenitor, na salvaguarda do bem-estar do jovem YG1 (14 anos de idade), propomos a aplicação da medida de promoção e proteção de apoio junto do pai.

No que respeita às crianças YG2 e YG3 (2 anos de idade), atenta a falta de retaguarda do casal amigo, a partir do final da tarde do dia de hoje (por volta das 17:00h), a sua desproteção, pode vir a agravar a situação familiar e colocar o jovem YG1 em perigo e comprometer todo o equilíbrio do sistema familiar. Neste sentido, na salvaguarda do bem-estar das crianças YG2 e YG3, pelas necessidades desenvolvimentais específicas e pela exigência de maiores cuidados, e apenas pelo período estritamente necessário à recuperação do pai, somos a propor a aplicação da medida de promoção e proteção de acolhimento residencial em Centro de Acolhimento Temporário, próximo da área de residência do progenitor, no CAT da Santa Casa da Misericórdia de (…). Atenta a fragilidade do estado de saúde, o pai aceita a aplicação da medida (…)”

13 – Nesta mesma data (….) a medida cautelar aplicada à requerida foi alterada para apresentações periódicas e proibição de se ausentar para o estrangeiro, no âmbito do processo de validação de detenção apenso.

14 - Foi iniciado um Processo de Promoção e Proteção de Menores no Juízo de Família e Menores de (…) em (…),tendo nessa data sido proferido despacho que aplicou cautelarmente às crianças YG2 e YG3 a medida de acolhimento residencial urgente, ficando acolhidas no CAT da (…), e à criança YG1 a medida de apoio junto do pai, pelo prazo de 6 meses, até se decidir o melhor encaminhamento para estas crianças e enquanto perdurarem os problemas de saúde incapacitantes do progenitor.

 que conduziu ao internamento em CAT das crianças, e medidas de apoio ao jovem.

15 – Nesta mesma data foi junta àquele processo a seguinte informação do NIJ: “Os técnicos constataram que com o regresso da progenitora, atualmente o agregado familiar reúne condições para a salvaguarda do bem-estar das crianças e jovens, pelo que a situação de perigo em que as crianças se encontravam, atualmente, não se verifica, tendo inclusive o casal demonstrado vontade no regresso das crianças para junto de si” – o que sucedeu, tendo sido aplicada a medida de apoio junto aos pais.

16 - Os gémeos estiveram dois dias no CAT.

17 – A Reqda. é atualmente, como já era anteriormente, a pessoa que cuida dos filhos, e agora também do marido, devido ao seu estado de saúde.

18 - Os menores não têm quaisquer outros familiares em Portugal para além dos seus pais.

19 – O jovem YG1 frequenta a escola em ... estando perfeitamente integrado e provocando nos professores a melhor impressão.

20 – A requerida e seu marido não trabalham, e não têm rendimentos em Portugal.

21 – Adquiriram imóveis em Portugal, nas cidades do ... e de ..., e não falam português.


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b) Factos não provados:


- O marido da Extraditanda encontra-se completamente incapacitado para cuidar dos filhos, designadamente dos gémeos de três anos de idade;

- Os 2 dias de internamento no CAT foram suficientes para provocar nos filhos mais novos da requerida alterações de comportamento;

– Após a saída do CAT e a sua entrega à mãe, as crianças passaram por crises de ansiedade, chorando sempre que a mãe se separava deles por qualquer motivo, ainda que por pouco tempo;

– Durante largas semanas, as crianças acordavam de noite e choravam chamando a mãe, e só voltavam a adormecer quando a mãe estava junto deles;

– A ausência da mãe foi geradora de situações de ansiedade para as crianças;

– A situação de (…) tem vindo a agravar-se, e hoje ele não tem quaisquer condições para cuidar de qualquer dos filhos, incluindo o mais velho;

- A extradição da Reqda. irá dissolver a família, e irá perturbar perigosamente, quiçá de forma irreversível, o normal desenvolvimento dos filhos;

- Caso a requerida seja extraditada para a China, o destino dos seus filhos seria a institucionalização;

– (…) teria de ser internado em instituição hospitalar para poder receber os cuidados de que necessita; e os filhos teriam de ser entregues a Centros de Acolhimento, provavelmente com separação dos irmãos, tendo em conta a diferença de idades, e muito certamente sem qualquer possibilidade de voltarem a ver o progenitor.

– O mesmo se dirá em relação à mãe, sendo improvável o seu regresso a Portugal;

– Os menores, com a extradição da mãe, terão toda a sua formação futura completamente em risco, colocados que sejam em Centros de Acolhimento, em ambientes e culturas largamente diversas das que são as suas.

– Os menores, designadamente as crianças, já de nacionalidade portuguesa, iriam crescer sem qualquer contacto com os progenitores;

– E o jovem, em idade crucial para a formação da personalidade, iria igualmente ser subtraído ao ambiente familiar, sem contactos com os progenitores e sem qualquer outra referência com os hábitos de vida e de cultura que sempre teve na sua família, com os seus pais.

- Provavelmente essa situação iria ser profundamente alterada com a extradição da mãe, certamente até com mudança de escola.

E ainda:

- A extraditanda não tem neste momento quaisquer ligações à República Popular da China, nem aí terá qualquer apoio, para si e sua família, se for extraditada;

- Os pais da extraditanda têm 70 anos; o seu pai internado na semana passada, com cancro no fígado, e aguarda uma intervenção cirúrgica; a mãe tem problemas coronários e sofre de depressão;

- Os pais da extraditanda vivem com dificuldades, pois foram muito afetados pela falência da empresa onde a filha trabalhava;

- O marido da extraditanda, (…), tem a mãe viva, com mais de 80 anos, que vive num lar;

- Devido ao facto de a extraditanda ter um processo em tribunal está afastada dos seus amigos, pois os problemas judiciais são muito mal vistos na China;

- Não tem casa onde viver, pois a casa que tinha foi apreendida;

- O seu marido não tem seguro de saúde e terá muitas dificuldades em ir ao hospital para tratamento;

- O filho mais velho não poderá continuar a estudar; a escola em Xangai onde estudava pediu aos pais que assinassem um documento de desistência antes de saírem, e não poderá voltar a matricular-se;

- Os filhos mais novos, como têm nacionalidade portuguesa, não poderão frequentar a escola pública, mas apenas escolas internacionais, que são muito caras;

- O mesmo se passa relativamente à assistência médica, pois não terão direito a hospitais públicos, salvo se tiverem um seguro de saúde.


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c) Convicção do tribunal:


O Tribunal baseou a sua convicção, relativamente aos factos provados:

- Nos documentos de fls. 6-54 e 55-79 (pedido de extradição, e respetiva tradução, onde constam os fundamentos da mesma) – factos provados em 1 e 3 a 5;

- Nos documentos de fls. 80-81, quanto aos factos provados n.ºs 6 a 8;

- No documento de fls. 97-98, quanto ao facto provado n.º 2;

- Nos documentos de fls. 198-201 e 55-70 do processo apenso, quanto ao facto n.º 9;

- No documento de fls. 268-272 do processo apenso, quanto ao facto n.º 12;

- No documento de fls. 4-11, quanto ao facto n.º 11;

- Nos despachos proferidos no processo apenso quanto às medidas de coação da requerida – factos n.ºs 11 e 13;

- No relatório médico de fls. 127 do processo apenso, e diário clínico de fls. 197 do processo principal – facto n.º 10;

- Nos relatórios sociais de fls. 136-138, 178-184, informações de fls. 140-141 e 144-145, e despacho de fls. 143 – factos n.ºs 14, 15, 16, 17, 18, 19 e 20;

- Nos documentos de fls. 85-93 (proc. apenso), relatório de fls. 183-184, documento de fls. 134 (este no processo apenso), quanto ao facto provado em 21.

Relevou o depoimento da testemunha A., professora no Colégio da (…), em (…), na medida em que o estabelecimento de ensino é frequentado pelo filho mais velho da requerida, YG1, desde o ano letivo 2020/2021. A testemunha confirmou ser sua encarregada de educação a mãe, que em junho falava apenas algumas palavras em português; que em junho o aluno faltou, e ligou ao pai, sabendo que este estava na urgência do hospital e a mãe se encontrava detida; que têm uma amiga no ... que ajuda a família, e que falou com a testemunha; que o menor se mostrou preocupado com a saúde do pai, e a mãe demonstrava receio em voltar para a China.

A testemunha S., advogada na comarca da (…), referiu ter-lhe a requerida sido apresentada em 2019, no ..., através de uma associação de apoio a emigrantes chineses, referindo que a requerida tinha 2 casas, uma nas (…) e outra na (…), e que estava isolada na cidade, apenas falando a língua inglesa; que a requerida não teria igualmente apoio em (…); que o seu marido é diabético, e vê mal; e apenas contactar com a requerida por mensagem, vendo-a como pessoa só, sem amigos ou apoio, não tendo a quem deixar os filhos.

Nesta medida, confirmaram os factos provados em 17, 18, 19, 20 e 21.


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Relativamente aos factos não provados, não foi feita prova que permitisse concluir pela sua verificação, não se encontrando sequer de forma mínima sustentados quer pela prova documental quer pela prova testemunhal produzida no âmbito dos presentes autos.

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Não foram considerados os factos alegados relativos à imputada atuação criminosa da requerida – ponto IV da oposição.

Na verdade, não cabe neste processo apurar se a extraditanda praticou ou não os factos que lhe vêm imputados, uma vez que o processo de extradição não visa o julgamento dos factos que fundamentam o respetivo processo. Aliás, nos termos do art. 46º, n.º 3, da LCJ, tal sindicância probatória está expressamente vedada; e, segundo o art. 55º, n.º 2, da mesma LCJ, a oposição “só pode fundamentar-se em não ser o detido a pessoa reclamada ou em não se verificarem os pressupostos da extradição”, pelo que as provas e os factos relevantes para a decisão deste processo apenas sobre estes pressupostos podem respeitar – o que foi oportunamente consignado em despacho proferido nos autos, e que se reitera ([1]).


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3. Fundamentação de direito

Da Garantia apresentada pela República Popular da China:


Alega a extraditanda que as “garantias” prestadas, consistentes em Notas Verbais emitidas pela Embaixada da República Popular da China, não constituem garantia suficiente de não lhe vir a ser aplicada por um tribunal na China a pena de prisão perpétua,

Vejamos:

Como é sabido, a extradição constitui uma das formas de cooperação internacional em matéria penal, mediante a qual um Estado (requerente) solicita a outro Estado (requerido) e entrega de uma pessoa que se encontre no território deste, para efeitos de procedimento penal ou para cumprimento de pena ou de medida de segurança privativas de liberdade, por crime cujo julgamento seja da competência dos tribunais do Estado requerente.

As condições em que é admissível e pode ser concedida a extradição, quando Portugal seja Estado requerido (extradição passiva), são fixadas primeiramente pelas disposições de tratados internacionais, multilaterais ou bilaterais sobre extradição em que Portugal seja parte, e, em geral, pelas disposições jurídicas, substantivas e processuais, fixadas no regime jurídico relativo à cooperação internacional em matéria penal (Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, doravante designada abreviadamente por LCJ).

A extradição rege-se pelas normas dos tratados internacionais de que o estado requerente e Portugal sejam parte, pelas convenções e acordos internacionais que vinculem o Estado Português e, na sua falta ou insuficiência, pelas normas da LCJ, sendo subsidiariamente aplicáveis as disposições do Código de Processo Penal (art. 3º da LCJ).

Entre a República Portuguesa e a República Popular da China foi assinado, em 31 de janeiro de 2007, um Tratado sobre Extradição, que foi aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 31/2009, de 6.3.2009, ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 43/2009, de 30.4.2009, e publicado no Diário da República, 1ª Série, n.º 84, de 30.4.2009. Será este o Tratado a aplicar primacialmente aos autos, e, complementarmente, outros tratados e convenções de que sejam parte ambos os Estados, a LCJ e o nosso Código de Processo Penal.

Ora, ressalta do art. 6º, n.º 1, als. e) e f), da LCJ que o pedido de extradição é recusado quando o facto a que respeita for punível com pena de morte ou pena de prisão perpétua – como sucede in casu.

No entanto, prevê o n.º 2, al. b), do mesmo preceito que a cooperação ocorra se “o Estado requerente oferecer garantias de que tal pena ou medida se segurança não será aplicada ou executada”.

Não explicita a lei a que garantias se refere.

No caso, temos como provado terem sido emitidas duas Notas Diplomáticas, a primeira (n.º 24) referindo que “o tribunal que a julgará não imporá uma sentença acima de prisão perpétua (incluindo a prisão perpétua)” (sendo evidente que resulta da mesma que não será aplicada a pena de prisão perpétua, pese embora a expressão utilizada - “acima” -, por si sem qualquer significado, uma vez que a garantia refere que não será aplicada); no entanto, posteriormente, e em data que não ficou consignada, emitiu nova Nota Diplomática (n.º 27), foi anexada a norma jurídica da República Popular da China com base na qual assentou a primeira Nota emitida. Refira-se que os contactos foram estabelecidos entre os canais de comunicação previstos no Tratado sobre Extradição celebrado entre Portugal e a China, conforme previsto no seu art. 6º.

A Embaixada, na pessoa do seu Embaixador (Chefe de Missão), representa o respetivo Estado e, por maioria de razão, o Ministério dos Negócios Estrangeiros – art. 3º, al. a), da Convenção sobre Relações Diplomáticas, celebrada em Viena a 18 de abril de 1961, aprovada em Portugal pelo Decreto-Lei n.º 48.295, de 27.3.1968, convenção que foi igualmente subscrita pela República Popular da China.

O art. 50º da Lei da Extradição da República Popular da China, lei a que naturalmente os tribunais da República Popular da China estão vinculados, reza que “O Ministério dos Negócios Estrangeiros pode, em nome da República Popular da China, apresentar garantia…”, que “a garantia com respeito a aplicação da pena será sujeita à decisão do Supremo Tribunal Popular”; e ainda que “Ao investigar a responsabilidade criminal da pessoa extraditada, os órgãos judiciais devem ser vinculados pela garantia prestada”.

Resulta assim claro que nos casos em que o Ministério dos Negócios Estrangeiros da República Popular da China apresente uma garantia ao Estado terceiro que imponha condições adicionais à extradição, os órgãos judiciais chineses ficam vinculados à mesma. Na verdade, se tal garantia se encontrar dependente, internamente, de uma prévia decisão do Supremo Tribunal Popular da República Popular da China, não é a República Portuguesa, no âmbito das relações diplomáticas bilaterais, que tem de controlar ter sido a mesma emitida e a respetiva regularidade, antes resultando do princípio da boa fé vigente nas relações internacionais entre estados soberanos que a informação transmitida por via diplomática corresponde à realidade.

Assim, conjugando as normas referidas, resulta que o Chefe da Missão do Estado num terceiro país, no caso o Embaixador (art. 14º da Convenção sobre Relações Diplomáticas), pode assumir, em nome do seu Governo, o compromisso oficial de não vir a ser aplicada a pena de prisão perpétua – compromisso que, nos termos sobreditos, vincula os órgãos judiciais do respetivo país -, não sendo necessário que comprove encontrar-se formalmente autorizado quer pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, quer pelo Supremo Tribunal Popular - sendo assim desnecessária a comunicação de prestação de garantia pelo próprio órgão judicial, contrariamente ao alegado pela extraditanda.

A garantia decorre do complexo de competências e poderes que é reconhecido às Missões Diplomáticas, que exercem a atividade de representação diplomática do seu país. Acresce que as Missões Diplomáticas emitem Notas, constituindo estas, consabidamente, o meio de comunicação por excelência entre o Estado acreditante e o Estado acreditador. Assim, as Notas Diplomáticas valem pelo seu conteúdo, vinculam o Estado da Missão que a emite, gozando de presunção iuris tantum quanto à sua autenticidade e veracidade – que decorre do já referido princípio da boa fé e do princípio da confiança mútua, vigentes no plano das relações internacionais entre os Estados soberanos ([2]).

Em suma, presume-se a sinceridade do compromisso diplomático.

Por outro lado, sendo na sua maioria transmissões simples e resultantes de informação verbal, as Notas não obedecem a um formalismo estrito, bastando que refiram quem as emite e a quem são dirigidas – sendo totalmente desnecessário que invoquem a qualidade em que são emitidas, o que decorre da própria natureza da Missão Diplomática em causa. Assim, do facto de se não encontrar assinada ou datada não se extrai não se encontrar completa a Nota n.º 27, a que se refere o facto provado em 7/8, antes decorrendo estar completa, uma vez que o anexo a acompanha.

  Assim, assumiu a República Popular da China o compromisso diplomático de não vir a ser aplicada à extraditanda a pena de prisão perpétua, com as fortes garantias inerentes à assunção de um comportamento de um Estado soberano perante outro Estado.

  O mesmo foi entendido pela Ministra da Justiça Portuguesa, que, no despacho proferido ao abrigo do disposto no art. 48º, n.º 2, da LCJ, menciona o seguinte: “Assim, conforme resulta das Notas Verbais de 16 e 22 de junho de 2021, o Governo da República Popular da China garante, nos termos do artigo 50º da Lei interna de extradição da República Popular da China, com base me decisão do Supremo Tribunal Popular da República Popular da China que, no caso de HZ ser extraditada de Portugal para a China e condenada por um tribunal chinês pelos factos pelos quais a extradição foi requerida, o Tribunal de julgamento não a condenará em pena de prisão perpétua” – condição para a admissibilidade da extradição da requerida.

  E quanto à possibilidade de aplicação de uma PENA DE DURAÇÃO INDEFENIDA, a que se refere igualmente a causa de recusa de extradição prevista no mesmo art. 6º, n.º 1, al. f), da LCJ?

  Trata-se de pena contrária aos princípios constitucionais vigentes em Portugal, e, assim, fundamento imperativo de recusa da extradição estatuído no próprio Tratado sobre Extradição celebrado entre Portugal e a China, como bem referem quer a extraditanda quer o Ministério Público –art. 3º, n.º 1, al. h): “A extradição será recusada se: a execução do pedido colocasse em causa a soberania, a segurança, a ordem pública ou outros interesses públicos essenciais da Parte requerida ou se fosse contrária aos princípios fundamentais do seu direito interno”.

  A propósito desta alegação da extraditanda, juntou aos autos o Ministério Público informação a propósito prestada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros da República Popular da China (fls. 168), informando que a pena máxima a aplicar à extraditanda será de 15 anos de prisão, nos termos do art. 45º do Código Penal do mesmo país. Esta norma, inserta na secção relativa à “Prisão por tempo determinado e Prisão perpétua” dispõe que “A duração da pena de prisão por tempo determinado não pode ser inferior a 6 meses nem superior a 15 anos, salvo se de outro modo estipulado nos Artigos 50º e 69º da presente lei”. (fls. 167).

A norma incriminadora (art. 192º do Código Penal da República Popular da China) reza o seguinte: “O indivíduo que, com finalidades de posse ilegal, arrecada fundos por meios fraudulentos, se o montante for relativamente grande, será sentenciado a prisão determinada de não superior a cinco anos ou detenção penal e multado em não inferior a 20.000 yuan, mas não superior a 200.000 yuan; se o montante for grande ou houver outras circunstâncias graves, será sentenciado a prisão determinada de não inferior a 5 anos, mas não mais de 10 anos, e multado em não inferior a 50.000 yuans, mas não superior a 500.000 yuans; se o montante for particularmente elevado ou houver outras circunstâncias particularmente graves, deve ser condenado a mais de 10 anos de prisão ou prisão perpétua, e cumulativamente multado em mais de 50.000 yuans e menos de 500.000 yuans ou confisco de propriedade”.

Perante estas normas, e conforme informação veiculada pela República Popular da China – que terá de ser havido como correspondente à realidade naquele País -, a extraditanda não poderá ser condenada numa pena de prisão de duração indefinida, sendo o máximo da pena de prisão a que ficará sujeita de 15 anos de prisão. Aliás, o próprio tipo legal de crime nem sequer prevê a aplicação de uma prisão de duração indefinida.

Pelo exposto, nada obsta a que se considere totalmente séria e válida a garantia prestada, para os efeitos do art. 6º, n.º 2, al. b), da LCJ.


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b) Da Recusa de Extradição por Razões Humanitárias:


O art. 4º, al. b), do Tratado sobre Extradição celebrado entre a República Portuguesa e a República Popular da China dispõe sobre os Fundamentos para recusa opcional, estatuindo que “A extradição pode ser recusada se: A extradição for incompatível com considerações humanitárias em virtude da idade, saúde ou outras condições da pessoa reclamada”.

No mesmo sentido, reza o art. 18º, n.º 2, da LCJ: “Pode ainda ser negada a cooperação quando, tendo em conta as circunstâncias do facto, o deferimento do pedido possa implicar consequências graves para a pessoa visada, em razão da idade, estado de saúde ou de outros motivos de caráter pessoal”.

Cotejando os factos provados e até os próprios fundamentos da oposição, é patente a inexistência de quaisquer razões relacionadas com a idade, saúde ou outros motivos de carácter pessoal da requerida que tornem a extradição especialmente gravosa para a mesma.

Na verdade, a extraditanda mais não faz do que apelar para a sua situação familiar, social e económica e, designadamente, para as difíceis condições de vida em que poderá ficar o seu marido, pessoa, essa sim, doente, e os seus três filhos menores de idade.

Da factualidade que alegou, vejamos o que logrou provar:
Ø A extraditanda é casada com um cidadão chinês, e tem 3 filhos, de 15 e gémeos de 3 anos de idade, sendo os mais novos de nacionalidade portuguesa;
Ø A extraditanda e seu marido não trabalham em Portugal, e não falam a língua portuguesa;
Ø O marido da extraditanda é pessoa doente, sofrendo de diabetes e displipidemia ([3]) grave, com mau prognóstico;
Ø Não têm família em Portugal, e mantêm escassas relações com terceiros;
Ø É a extraditanda e o marido que asseguram os cuidados dos filhos;
Ø Quando a extraditanda esteve detida provisoriamente, entre 19.4 e 16.6.2021, foi o seu marido que cuidou dos 3 filhos do casal;
Ø O filho mais velho frequenta um colégio privado, e os gémeos foram integrados numa creche, após a detenção da mãe, e por intervenção da Segurança Social;
Ø O marido da extraditanda cuidava e organizava as rotinas diárias da família durante a ausência da requerida, de forma adequada, até que o seu estado de saúde se agravou, tendo sofrido internamento hospitalar entre 13 e 14.6, ficando os filhos sem apoio;
Ø Em virtude da fragilidade do estado de saúde do marido da extraditanda, os menores então com 2 anos de idade, com o consentimento do pai, foram acolhidos em CAT a 16.6, saindo a 17.6, após a libertação da mãe;
Ø É a extraditanda quem cuida quer dos filhos, quer do marido.

Estes factos, em particular os que resultam do teor dos relatórios sociais elaborados no âmbito do acompanhamento aos filhos menores da extraditanda, cujo teor consta dos factos provados, correspondem à normalidade da vida de uma qualquer família ocidental. Na verdade, e contrariamente ao alegado, o marido da extraditanda logrou cuidar sozinho, de forma adequada, dos 3 filhos do casal, com maior qualidade após a intervenção dos serviços sociais que colocou em creche os filhos mais novos.

Quanto ao estado de saúde do marido da extraditanda, na ausência de outra informação clínica não é de considerar, por si, incapacitante: os problemas de saúde de que é portador são infelizmente comuns, podendo sofrer de agravamento pontual, como sucedeu, mas consabidamente permitem uma vida de qualidade desde que se adotem hábitos de vida adequados e se mantenha a vigilância médica.

Aliás, consta do relatório social que aquele que será o único apoio do casal em Portugal, um casal residente em ..., diligenciou pela contratação de uma empregada doméstica, forma adequada de obtenção do apoio necessário ao bem-estar dos filhos do casal.

Ou seja, não se consegue extrair dos factos provados que o marido da extraditanda não consiga cuidar dos filhos (sendo certo que uma situação de doença aguda ou qualquer outra causa de incapacidade temporária poderá sempre ocorrer em qualquer agregado familiar, com as dificuldades inerentes), ou que os menores venham a ser institucionalizados em CAT no caso de procedência da requerida extradição.

Pelo contrário, o circunstancialismo descrito nos factos provados durante a detenção da extraditanda corresponde aos naturais incómodos e perturbação dos hábitos de vida que uma extradição sempre ocasiona ao extraditando e família, mostrando-se insuficiente para legitimar a conclusão de que o deferimento do pedido seria susceptível de implicar as “consequências graves” que a lei exige para que se aceite como ajustada a decisão de negar a cooperação.

Caso pretenda continuar a residir em Portugal, naturalmente que o agregado familiar da extraditanda, nomeadamente o seu marido, terá de efetuar um esforço sério de inclusão, sendo a sua inserção social e eventualmente laboral suficiente para garantir um crescimento harmonioso e adequado às crianças.

A propósito, o nosso Supremo Tribunal de Justiça tem-se pronunciado no sentido de se não enquadrar nos fundamentos de recusa de extradição, nos termos do art. 18º, n.º 2, da LCJ, “circunstâncias graves para a pessoa visada em razão de outros motivos de caráter pessoal”, o facto do extraditando ter família (filhos) a residir no nosso País. Tem-se decidido no sentido que o afastamento da família é uma consequência “inevitável” da extradição (e, consequentemente, da suspeita da prática de um crime) e que não se sobrepõe ao superior interesse da cooperação internacional no prosseguimento da boa administração da justiça” ([4]).

Na verdade, a prática de crimes e o cumprimento de pena de prisão, seja em que país for, é suscetível de provocar uma quebra de laços afetivos da pessoa com a sua família. É o que ocorre normalmente com qualquer pessoa que seja suspeita da prática de um crime, e que fique detida por essa razão. A ponderação a efetuar será entre a gravidade dos factos indiciados à extraditanda, e a gravidade das consequências da extradição. Desde logo, impõe-se considerar que no que toca aos factos indiciados, constantes do pedido de extradição (e cuja punibilidade, quer na República Popular da China quer em Portugal, a extraditanda não coloca em causa), ainda não ocorreu condenação, ignorando-se se a extraditanda, no final do processo que corre termos na China, será condenada, e se o será em pena de prisão efetiva.

Ora, a decisão de o agregado familiar da extraditanda ficar em Portugal ou regressar ao País de origem será do casal. O certo é que os deveres a que o Estado Português se encontra constitucionalmente adstrito, de proteção da família, da infância e da juventude (arts. 67º, 69º e 70º da Constituição da República Portuguesa, invocados pela extraditanda), não podem ceder perante o direito à administração da justiça. Para garantir os direitos inerentes à família e ao são crescimento das crianças e jovens, Portugal dispõe de estruturas e serviços públicos adequados, como bem foi demonstrado durante a detenção da extraditanda.

Em suma, a instabilidade ou rutura familiar provocada pela extradição para a República Popular da China não constitui motivo bastante para recusa de extradição nos termos do artigo 4.º, al. b), do Tratado sobre Extradição celebrado entre os dois Países, sendo certo que a circunstância que motiva a rotura familiar foi criada pela própria Extraditanda (suspeita da prática de crimes na China, de onde é nacional) e apenas a ela é imputável (ter abandonado o País onde cometeu os alegados crimes).

A entendermos que a constituição e/ou aumento da família em Portugal, é motivo de recusa de Extradição, ficariam criadas condições para a impunibilidade de quem conscientemente praticava crimes (v.g. no País de onde é nacional) e se quisesse furtar à ação da justiça.

O que é de todo inadmissível.

Pelas razões expostas, improcede totalmente a oposição deduzida pela extraditanda.


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III.

Dispositivo:


Atento o exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra em:

- Autorizar a extradição de HZ para a República Popular da China para efeitos de procedimento penal pelo crime de “obtenção de fundos por meios fraudulentos”, previsto e punível pelo artigo 192º da Lei Criminal da República Popular da China.

Sem custas (art. 73.º, n.º 1, da Lei 144/99, de 31 de agosto).

Após trânsito, passe e remeta mandados para detenção da extraditanda, a fim de garantir a sua entrega ao Estado requerente.


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(Processado e integralmente revisto pela relatora, a primeira signatária)
Coimbra, 19 de janeiro de 2022

 Ana Carolina Cardoso (relatora)

 Elisa Sales (adjunta)

João Novais (adjunto)



[1] - Cf., a título exemplificativo, Ac. do TRL de 28.11.2019, proc. 499/18.9YRLSB-9, em www.dgsi.pt.
[2] - V. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 22.4.2020, proc. 499/18.9YRLSB.S1, em www.dgsi.pt.
[3] - Níveis anómalos de lípidos no sangue, considerado fator de risco para o desenvolvimento de doenças cardiovasculares.
[4] - Cf. o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 23.4.2020, proc. 498/18.0YRLSB.S1, disponível em www.direitoemdia.pt, que incide sobre situação semelhante à dos presentes autos; este aresto cita, nos mesmo sentido, os seguintes acórdãos do mesmo Tribunal: de 11.1.2018, proc. 1331/17.6YRLSB.S1, de 7.1.2016, proc. 3/15.0YRLSB.S1, de 8.8.2014, proc. 364/14.9URLSB.S1, de 3.5.2012, proc. 205/11.9YRCBR.S2, e de 16.11.2017, proc. 1321/17.9YRLSB.S2.