Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | GONÇALVES FERREIRA | ||
Descritores: | MATÉRIA DE FACTO ALTERAÇÃO DIREITO DE PROPRIEDADE NULIDADE DE SENTENÇA | ||
Data do Acordão: | 04/01/2009 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | VAGOS | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ALÍNEA C) DO N.º 1 DO ARTIGO 668.º DO CPC, ARTIGO 712.º, N.º 1, ALÍNEA A), DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E ARTIGO 1311.º DO C. CIVIL | ||
Sumário: | 1) Nas acções tendentes à defesa do direito de propriedade é pressuposto da procedência do pedido a alegação e prova desse direito; 2) A alegação do direito de propriedade exige a indicação do modo de aquisição. 3) Por envolver questão de direito, deve ser considerada não escrita e retirada da decisão de facto a matéria atributiva do direito de propriedade. 4) A contradição entre determinados pontos da decisão de facto acarreta a reapreciação da matéria de facto pela Relação ou a repetição do julgamento, nos termos do artigo 712.º, n.º 4 do CPC, e não a nulidade da sentença. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I. Relatório:
A... , residente na ...., intentou, na qualidade de cabeça de casal da herança indivisa aberta por óbito de B... , acção declarativa de condenação, com forma de processo sumário, contra C... , sociedade por quotas de responsabilidade limitada, com sede no ....., alegando, em resumo, que: A herança que representa é dona de um prédio urbano composto de rés do chão e 1.º andar, sito em ..., que confronta, a sul, com um prédio constituído em regime de propriedade horizontal, que tem a funcionar no rés do chão um café snack-bar, que está a ser explorado pela ré. Sucede que foi colocado um aparelho de exaustão de fumos e gorduras e respectivo tubo vertical na parede norte do edifício onde funciona o estabelecimento, o qual invade em toda a sua dimensão o espaço aéreo do prédio da herança, sem para tanto ter sido obtido o consentimento do legal representante desta. O exaustor provoca barulho e derrama gordura e fumos desagradáveis. Foi colocado, ainda, igualmente contra a vontade da herança, um cano em PVC, na horizontal, sobre o muro do mencionado prédio. Concluiu pelo pedido de condenação da ré na remoção do exaustor, respectivo tubo e cano em PVC. Regularmente citada, a Ré contestou, tanto por excepção, como por impugnação. Excepcionando, afirmou a sua ilegitimidade, bem como a da autora, no seu caso, por não ter sido alegado que instalasse o exaustor e o tubo e, também, porque desacompanhada dos proprietários do imóvel, e, no caso da autora, pela circunstância de os direitos relativos à herança deverem ser exercidos por todos os herdeiros e não só pelo cabeça de casal. Impugnando, alegou que: O edifício onde funciona o falado estabelecimento foi construído em 1975, sendo que, na face externa do muro e parede novos, foi aproveitada a espessura da parede antiga para a implantação de uma chaminé em alvenaria e do tubo de PVC; a chaminé partia da cave do edifício onde está instalado o café e o tubo de PVC foi incorporado na parede velha. Em Novembro de 1994, a Ré procedeu a obras de renovação do sistema de ventilação do seu estabelecimento, tendo destruído a chaminé de alvenaria e colocado, em sua substituição, um aparelho de exaustão de fumos e o tubo de PVC, situando-se este na mesma posição que a antiga chaminé. Tais trabalhos foram efectuados em vida da mãe do ora cabeça de casal, que autorizou a entrada dos trabalhadores e dos técnicos no quintal da sua casa, para procederem à demolição da velha chaminé e à colocação do novo sistema de exaustão e nada opôs à realização dos mencionados trabalhos. O edifício identificado na petição inicial não é atingido por fumos, cheiros ou gorduras. Terminou pela improcedência da acção. Na resposta, o representante da herança, sustentando, embora, poder defender sozinho os direitos desta, requereu a intervenção provocada de D... , E... e marido F... e G... , casado com H... , na qualidade de sucessores da mesma herança. No mais, impugnou os factos alegados na contestação. Admitida a intervenção provocada, conforme requerido, e ordenadas as devidas citações, nenhum dos chamados se apresentou a requerer o que quer que seja. Foi proferido, seguidamente, despacho de pré-saneamento, que, considerando não poder a acção produzir o seu efeito útil normal sem a presença do proprietário do imóvel onde funciona o estabelecimento, convidou a autora a fazê-lo intervir nos autos, convite a que estes deram pronta resposta. Subsequentemente, foi admitida a intervenção principal provocada de I... e mulher, J... , e, ainda, de L... , proprietários do prédio onde se encontra instalado o referido estabelecimento de café e snack-bar, os quais nada requereram ou alegaram. No despacho saneador foram declaradas a validade e a regularidade da lide. A selecção da matéria de facto foi dispensada, por via da sua simplicidade.
A) Da herança aberta por óbito de B... faz parte o seguinte bem imóvel: Prédio urbano composto de casa de rés do chão e primeiro andar, sito em ..., limite da freguesia e concelho de ..., a confrontar do norte com ...., do sul com I...e outros do nascente com estrada nacional e do poente com ... e estrada, não descrito na Conservatória do registo Predial de ...e inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo n.º 888.
a) A modificação da matéria de facto
A decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação, para além do mais, se constarem do processo todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690.º-A, a decisão com base neles proferida (artigo 712.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, na redacção anterior à introduzida pelo Decreto-lei n.º 303/07, de 24 de Agosto, diploma de que serão os restantes preceitos a citar sem indicação de origem). Nos termos do referido artigo 690.º-A, a impugnação da matéria de facto obriga a que o recorrente especifique os concretos pontos que considera incorrectamente julgados e os meios probatórios que imponham decisão diversa da recorrida, que, no caso de terem sido gravados, implicam a indicação dos depoimentos, por referência ao assinalado na acta. Segundo a recorrida, a impugnação da matéria de facto deveria ser rejeitada, por falta de cumprimento dos ditames das alíneas a) e b) do artigo 690.º-A, pois que o recorrente não indicou os pontos de facto que considerava incorrectamente julgados e os meios probatórios em que fundava a sua posição, antes se espraiou em divagações de que retirou conclusões não consentidas pelos factos alegados. Será assim? É verdade que uma menos boa sistematização da exposição, ou, quiçá, alguma dificuldade de expressão, tornam as alegações de recurso pouco claras. Crê-se, ainda assim, que terão sido cumpridos os requisitos mínimos no que tange à observação do ónus de alegação neste capítulo. O que está em causa é alegada violação pela ré do direito de propriedade da autora sobre um prédio urbano, devido a duas circunstâncias diferentes: 1) colocação de um tubo de PVC sobre um muro integrado naquele prédio; 2) instalação na parede norte de um prédio confinante com o da autora de um aparelho de exaustão de fumos e gorduras, constituído por uma chaminé e respectivo cano, que, pelas respectivas dimensões, invade o espaço aéreo deste (note-se que a recorrente deixou cair nas alegações de recurso a lesão derivada da emissão de barulhos, fumos e gorduras). Para o que ora interessa, o tribunal deu por provado a propriedade da herança aberta por óbito de B... sobre o identificado prédio e a colocação de um tubo em PVC sobre um muro do mesmo, mas por não provado que o exaustor invadisse e ocupasse o espaço aéreo definido pelas suas paredes exteriores. A argumentação da apelante, se bem se percebe o seu raciocínio, é a de que o muro onde se acha colocado o tubo de PVC está encostado à parede norte do prédio que tem instalado o aparelho de exaustão; ora, não havendo qualquer intervalo entre o muro, que é seu, como se considerou provado, e a parede onde está instalado o exaustor, cuja chaminé tem 25 centímetros de espessura, forçoso é que este dispositivo invada o espaço aéreo do muro; de qualquer modo, a prova pericial produzida é clara, no sentido de que o exaustor e seu tubo ocupam o espaço aéreo do muro, e as testemunhas M... e N... asseveraram que o muro era propriedade da autora. Ao fim e ao cabo, o que ela considera incorrectamente julgado é o artigo 9.º da petição inicial (“o exaustor invade em toda a sua dimensão o espaço aéreo definido pelas paredes exteriores do prédio da herança”), que foi dado por não provado, e que a prova do contrário resultaria da perícia efectuada – mormente da resposta ao quesito 7.º e da fotografia junta pelo perito sob o n.º 5 – e dos depoimentos das referidas testemunhas (que teriam conhecimento dos factos, a primeira por ter explorado o café onde foi instalado o exaustor e a segunda por ter procedido às obras de instalação), na parte em que declararam que o falado muro pertencia ao prédio dito da herança. Neste enquadramento, é de considerar que se acham especificados, tanto os pontos de facto incorrectamente julgados, como os meios de prova que impunham decisão diversa, e, consequentemente, observadas as disposições do n.º 1 do artigo 690.º-A.
No plano da substância é que as coisas se apresentam de modo diferente; a questão não se resolve na mera apreciação da prova – no sentido de saber se o julgamento de facto foi acertado, ou não –, antes, entronca na estrutura factual da acção, ou seja, na existência de matéria capaz de suportar a pretensão deduzida pelo autor. A pretensão deduzida é a de condenação da ré a remover determinados dispositivos que instalou num prédio da herança aberta por óbito de B.... A acção em presença é, por conseguinte, uma acção de condenação, com vista à defesa do direito de propriedade, alegadamente violado pela ré. Como se sabe, a acção típica de defesa do direito de propriedade é a acção de reivindicação, prevista no artigo 1311.º do C. Civil, aplicável às hipóteses de detenção da coisa sem título legítimo para tanto. Neste tipo de acções, cabe ao autor alegar e provar que é proprietário da coisa e que o réu a detém; ao réu incumbirá, por seu lado, fazer a prova de justo título para a detenção. Mas a violação do direito de propriedade não passa, apenas, pela detenção; haverá violação sempre que se ponha em crise o direito de propriedade naquilo que ele tem de essencial, isto é, quando, por qualquer razão, se limite o gozo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição, conferidos pelo artigo 1305.º do CC. A passagem não autorizada, a efectivação de obras, de má fé, em terreno alheio, a invasão do espaço aéreo, a emissão de fumos, ruídos e factos semelhantes, ou a abertura de janelas e dispositivos idênticos em desrespeito pelo intervalo legalmente estabelecido são alguns dos muitos exemplos de violação do direito de propriedade. Condição primária para que uma acção de defesa da propriedade proceda é a alegação e prova da propriedade; como escreve o Prof. Anselmo de Castro a propósito das acções de condenação, o tribunal não pode condenar o eventual infractor sem que antes se certifique da existência e violação do direito do demandante (Direito Processual Civil Declaratório, volume I, página 102). Claro que a prova da propriedade cabe ao autor, como elemento integrante, que é, do direito invocado (artigo 342.º, n.º 1, do CC). Mas não basta dizer, simplesmente, que se é proprietário; é preciso alegar o modo de aquisição da propriedade. O artigo 1316.º do CC contempla diversos modos de aquisição, enquadrando-se uns na chamada aquisição originária (usucapião, ocupação e acessão) e outros na aquisição derivada (contrato e sucessão por morte); e as circunstâncias são diferentes, consoante se alegue uma ou outra das formas. Invocando-se a primeira, nenhuma questão especial se suscita, desde que alegados os correspondentes factos, uma vez que o direito, exactamente por ser originário, não depende de direito anterior; mas, se se invocar a segunda, não chega trazer à liça o negócio de aquisição, porque ele não é constitutivo do direito de propriedade, mas, tão-somente, translativo. E sendo certo, como é, que ninguém pode transferir mais direitos do que aqueles que tem (“nemo plus juris ad alium transferre potest, quam ipse habet”, diz o brocardo latino), há que alegar e provar, então, que o direito já existia no transmitente (dominium auctoris). Devido às dificuldades da prova (“probatio diabolica”, como costuma ser designada)[1], desempenham papel fundamental, neste conspecto, as presunções, nomeadamente, as resultantes do registo e da posse. Retornando à situação concreta dos autos, não há possibilidades de a acção proceder sem a alegação e prova de que o muro já identificado é propriedade da autora; é sobre ele que está instalado o tubo de PVC e é o espaço aéreo acima dele que é invadido, segundo aquela, pelo sistema de exaustão de fumos do café explorado pela ré. A propriedade é, pois, elemento estruturante do direito invocado. E é aqui que reside o busílis da questão, porque a autora não alegou a aquisição (originária ou derivada) do muro nem, mesmo, valha a verdade, do prédio urbano de que o mesmo, na sua versão, faria parte; disse que era dona e por aí se quedou. A deficiência até poderia ter sido reparada se o tribunal, lançando mão, como devia, do disposto no artigo 508.º, n.º 1, alínea b), e n.º 3, do CPC, tivesse convidado a autora a alegar matéria de facto que consubstanciasse a aquisição. Só que não o fez; e não tendo sido alegada a propriedade do muro (rectius, a sua aquisição), não pode ser dado por provado que o exaustor invade o espaço aéreo definido pelas paredes exteriores do prédio, porque isso envolveria a apreciação de questão de direito. As respostas do tribunal sobre questões de direito têm-se por não escritas, di-lo o artigo 646.º, n.º 4; responder ao ponto 9 da petição inicial está, portanto, completamente fora de causa, o que torna inútil a apreciação dos meios de prova indicados pela apelante. A argumentação de que a propriedade do muro lhe foi reconhecida na sentença não tem as consequências que a apelante lhe atribui. O que se deu por provado na sentença é que “foi colocado um tubo em PVC, de cor preta, na horizontal e sobre o muro do prédio identificado em 1” (alínea H da matéria de facto assente). Não se diz de que muro se trata, nem, fundamentalmente, que o mesmo estabeleça a linha divisória entre o prédio da apelante e o prédio onde funciona o estabelecimento de café explorado pela recorrida, não obstante tal ter sido alegado; a expressão “que limita o prédio pelo lado sul”, constante do artigo 15.º da petição inicial, de onde foi retirada a falada alínea H), não passou para os factos provados, pelo que não é legítimo concluir, como pretende a recorrente, que o exaustor, porque acoplado a uma parede confinante com o muro, tem de ocupar, necessariamente, o espaço aéreo por cima deste. A falta de prova da confinância directa (contra a qual, aliás, a apelante não reagiu em sede de impugnação da matéria de facto) arrasa, por completo, a lógica da sua explanação. Tanto lhe vale dizer, como não, que o relatório pericial e os depoimentos prestados dão nota bastante de não existir qualquer espaço entre os referidos muro e parede, porque a decisão de facto, no segmento em que considerou não provado que o muro limitasse o prédio pelo lado sul, não foi alvo de recurso. Em resumo, não tem viabilidade a alteração da matéria de facto nos termos pretendidos pela apelante.
Resta saber se há fundamento para a alterar a alínea H) dos factos assentes (“foi colocado um tubo em PVC, de cor preta, na horizontal e sobre o muro do prédio identificado em 1”), como requereu, a título subsidiário, a apelada. A norma do artigo 864.º-A do CPC tem em vista prevenir a hipótese de procedência de questões suscitadas pelo recorrente. Ora, a verdade é que, a manter-se inalterado o teor da referida alínea, a ré não poderá deixar de ser condenada a retirar o tubo do muro, uma vez que foi considerado provado que o muro pertencia ao prédio da herança. Antes de prosseguir, convirá abrir um parêntesis para esclarecer que o despacho sobre a matéria de facto deixa algo a desejar; não se compreende, na verdade, como foi possível dar por provado que da herança aberta por óbito de B... fazia parte o prédio urbano identificado nos autos e que o tubo em PVC foi colocado sobre o muro desse prédio, quando não foi alegada a aquisição de um e de outro e a ré teve o cuidado de impugnar a propriedade (no caso do prédio, por desconhecimento, e no do muro onde se localiza o tubo, por afirmação da sua própria relação de domínio). Ao erro de omissão do pré-saneamento, a que acima se fez referência, seguiu-se outro não menos grave, qual seja o de tomada de posição em sede de decisão de facto de matéria que teria o seu lugar certo na interpretação e aplicação do direito; é nas considerações jurídicas que a propriedade se afirma, em função, obviamente, dos factos alegados e dos preceitos legais que disciplinam a sua aquisição, e não no âmbito do julgamento de facto (a menos que a propriedade tenha sido aceite pela parte contrária, caso em que pode ser encarada como conceito de facto).[2] Assiste, por isso, inteira razão à recorrida quando diz que deveria ser considerada não escrita a alínea H) dos factos provados, na parte em que dela emerge a propriedade da autora sobre o muro, por conter uma conclusão de direito. Os argumentos expendidos acima para concluir pela improcedência do recurso da apelante têm, neste particular, pleno cabimento; sem a alegação de factos respeitantes à aquisição, não há como dar por assente a propriedade daquela sobre o muro. Assim, e ao abrigo do preceituado no n.º 4 do artigo 646.º do CPC, terá de se considerar não escrita a alínea H), na parte em que considera que o muro onde está colocado o tubo em PVC é propriedade da apelante.
b) A violação do direito de propriedade
O fim visado pela apelante é o de conseguir a remoção de um exaustor de fumos e de um tubo em PVC, cuja colocação, dentro de um seu prédio urbano, lesaria o direito de propriedade que lhe assiste. Como antes se explicitou, a violação do direito de propriedade pressupõe, em primeira linha, a existência desse direito. Só que a recorrente não o provou, como lhe competia; não se demonstrou que o muro onde se encontra instalado o tubo em PVC lhe pertencesse, nem que o dispositivo de exaustão de fumos invadisse o espaço aéreo do seu prédio, pelo que se não pode dizer que tenha sido violado qualquer direito legalmente tutelado. Culpa sua, diga-se, em abono da verdade, porque descurou a alegação do elemento primário do direito invocado: a aquisição da propriedade. Talvez, por isso, venha, em desespero de causa, invocar a presunção decorrente do disposto no n.º 5 do artigo 1371.º do CC. Mas sem um átomo, que seja, de razão. A aludida presunção funciona unicamente em relação a muros de divisão e, dentro destes, apenas aos que sustentem construção em toda a sua largura de um só dos lados. Ora nem o muro em causa é divisório (pelo menos, a alegação nesse sentido não foi atendida na sentença), nem ele sustenta qualquer construção que tenha sido alegada. A recorrente atém-se, neste aspecto, ao teor do relatório pericial, que fala, efectivamente, na existência de degraus assentes no muro (cfr. a resposta ao quesito 14), mas é manifesto que não interpretou correctamente a situação; é que, para além de não resultar da perícia que os degraus estejam a toda a largura do muro (o que logo arredaria a presunção de propriedade), o facto, porque essencial à procedência dos pedidos, só poderia ser aproveitado se tivesse sido utilizado, atempadamente, o mecanismo do n.º 3 do artigo 264.º do CPC, o que, patentemente, se não verificou. Não provada a propriedade, não podem proceder os pedidos que têm como causa a sua violação, o que acarreta, inevitavelmente, o naufrágio do recurso.
c) A nulidade da sentença
Nos termos em que a recorrente coloca a questão, é evidente que labora em profundo equívoco. A nulidade estribada na alínea c) do n.º 1 do artigo 668.º do CPC pressupõe, como lembram os nossos processualistas, um vício lógico de raciocínio; os fundamentos invocados pelo julgador apontam para determinada conclusão, mas a decisão sai em sentido oposto ou, pelo menos, em direcção diferente (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, volume V, página 141; Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, página 690; Lebre de Freitas, código de Processo Civil Anotado, volume II, página 670). Ora, o que a apelante alega não é um vício da sentença, mas uma contradição na decisão de facto, cujas consequências são diferentes das da nulidade da sentença; a contradição entre a matéria de facto conduz à sua reapreciação pela Relação, se houver elementos para tanto, ou, não os havendo, à repetição do julgamento, nos termos explicados no n.º 4 do artigo 712.º do CPC. Diga-se, de qualquer modo, que não existe contradição alguma na matéria de facto, como, de resto, já resulta do tratamento da primeira questão do recurso. A prova de que o tubo em PVC se acha colocado no muro da autora não significa que o aparelho de exaustão ocupe o espaço aéreo do mesmo muro, pelo simples motivo, já aduzido, de não ter ficado provado que o muro confinasse directamente com o prédio onde se encontra instalado o exaustor. Como quer que seja, a decidida alteração da alínea H) dos factos assentes, no sentido de dela ser retirada a parte em que se considera ser o muro propriedade da autora, acaba definitivamente com a questão. Ou seja, também aqui o recurso improcede.
IV. Síntese final:
1) Nas acções tendentes à defesa do direito de propriedade é pressuposto da procedência do pedido a alegação e prova desse direito; 2) A alegação do direito de propriedade exige a indicação do modo de aquisição. 3) Por envolver questão de direito, deve ser considerada não escrita e retirada da decisão de facto a matéria atributiva do direito de propriedade. 4) A contradição entre determinados pontos da decisão de facto acarreta a reapreciação da matéria de facto pela Relação ou a repetição do julgamento, nos termos do artigo 712.º, n.º 4 do CPC, e não a nulidade da sentença.
V. Decisão:
Em face do exposto, decide-se, embora com fundamentação não inteiramente coincidente, julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida. Custas pela apelante.
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