Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1474/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. GARCIA CALEJO
Descritores: SUB-ROGAÇÃO DO FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
Data do Acordão: 05/25/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: NAZARÉ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Legislação Nacional: ART. 21.º N.º 1 DO DEC-LEI 522/85 DE 31/12
Sumário: Sempre que haja lugar a indemnizações decorrentes de lesões materiais provenientes de acidente de viação originados pelos veículos referenciados no art. 21.º n.º 1 do Dec-Lei 522/85 de 31/12, não beneficiando o responsável de seguro válido ou eficaz, é ao Fundo de Garantia Automóvel que compete satisfazer essas indemnizações. Não podendo o proprietário do veículo vir a ser responsabilizado civilmente pelos danos causados (quer a título de responsabilidade civil subjectiva, quer em sede de risco), mas competindo, ao FGA garantir o pagamento da indemnização devida ao terceiro lesado, este fica investido num direito de regresso contra esse proprietário que não cumpriu o dever de efectuar o seguro de responsabilidade civil, nos termos do n.º 3 do art. 25.º do mesmo diploma. A responsabilidade do proprietário deve buscar-se aqui na omissão em efectuar o seguro obrigatório.
Compete ao proprietário do veículo para que este possa circular, efectuar o respectivo seguro automóvel. O mesmo sucederá quando o proprietário não pretender -no momento próximo, circular com o veículo. É que, nos termos do art. 8.º n.º 2 ainda do mesmo diploma "o seguro garante ainda a satisfação das indemnizações devidas pelos autores de furto, roubo, furto de uso de veículo ou de acidente de viação dolosamente provocados ... ", donde resulta que se o seguro houvesse sido efectivamente celebrado, poderia sempre o lesado demandar a Seguradora, mesmo em caso de furto da viatura. Ou seja, o seguro tem um efeito útil independentemente da circulação ou não do veículo.

Acresce que, no caso, O R. não alegou (e provou) que o veículo estava incapacitado de circular pelos seus próprios meios. Evidentemente que ao deixar o automóvel na via pública com as chaves de ignição no respectivo lugar, propiciou ou pelo menos facilitou a circulação efectiva da viatura, donde se conclui que nessa medida também ele contribuiu para essa movimentação. Daí que também por este prisma, deveria ter procedido à realização do seguro obrigatório.

Decisão Texto Integral:






Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

  I- Relatório:

1-1- O Fundo de Garantia Automóvel, com sede na (...) , propõe contra A..., residente (...) e B..., com última residência conhecida no (...) , a presente acção declarativa de condenação com processo sumário, pedindo que os RR. sejam condenados a pagar-lhe as quantias de 4040,26 Euros relativos a indemnizações, 175,08 Euros de despesas efectuadas e as que liquidar em execução de sentença por despesas de gestão, acrescidas de juros de mora até integral pagamento.

Fundamenta este seu pedido, em síntese, em virtude de, o 2° R. ( o R. B... ), conduzindo o veículo JU (...) , de propriedade do 1° R. ( o R. A... ), no dia 4-6-2000, pelas 3,30 horas, na Av. y(...) , na (...) , ter embatido em quatro veículos que se encontravam regularmente estacionados na via, tendo sido o único culpado pela ocorrência. À data o veículo JU não se encontrava coberto pelo seguro obrigatório, razão por que ele, A., teve que indemnizar os proprietários dos quatro veículos danificados, de harmonia com o disposto nos arts. 210 e sego do Dec-Lei 522/85, pelo que tem direito ao reembolso do que pagou. Os RR. apesar de instados para o reembolsar, não o fizeram.

1-2- A R. contestou sustentando, também em síntese, que havia adquirido o veículo JU apenas dois dias antes do sinistro, tendo ficado estacionado no lugar onde lhe foi entregue pelo vendedor. Incautamente, porém, deixou a chave de ignição no veículo, sendo que na noite em causa, o R. B... se apoderou da viatura, sem conhecimento ou autorização dele, acabando por provocar o acidente. Apresentou queixa-crime-contra esse R., tendo dela resultado acusação contra o B... , tendo sido, no processo, declarado contumaz. Não celebrou seguro em relação ao veículo, visto que não era sua intenção, de imediato, utilizá-lo, já que iria, previamente, proceder à sua reparação.

Conclui sustentando que deve ser o 2° R. quem deve proceder ao pagamento das quantias pedidas.

Invoca, para o caso de não se entender conforme conclui, a sua ilegitimidade passiva por estar desacompanhado da sua mulher.

1-3- O processo seguiu os seus regulares termos posteriores, tendo-se proferido despacho saneador, onde se considerou improcedente a excepção da ilegitimidade invocada pelo R. A... , após o que se fixaram os factos assentes e a base instrutória, se realizou a audiência de discussão e julgamento, se respondeu a esta base e se proferiu a sentença.

1-4- Nesta considerou-se a acção procedente por provada, condenando-se os RR. a pagar ao A. as quantias de 4.040,26 Euros relativos a indemnizações e de 175,08 Euros de despesas efectuadas, acrescidas de juros de mora, à taxa legal desde a citação e até integral pagamento.

1-6, Não se conformando com esta sentença, dela veio recorrer o R. A... , recurso que foi admitido como apelação e com efeito suspensivo.

1-7 - O R. alegou, tendo dessas alegações retirado as seguintes conclusões úteis:

1 ª_ O n° 1 do art° 1º do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro impõe que, quem puder vir a ser civilmente responsável por danos causados por veículo terrestre a motor, deve, para que esse veículo possa circular, encontrar-se coberto por um seguro que transfira para uma seguradora legalmente autorizada essa mesma responsabilidade.

2ª _ O preceito em análise parece realçar o aspecto dinâmico dos veículos e não o seu correspondente estático.

3ª _ Somente os veículos que estejam a ser objecto de utilização efectiva devem, para poderem circular, estar cobertos pelo seguro automóvel obrigatório, o que, claramente, não era o caso do veículo dos autos.

4ª_ Esta conclusão é suportada, quer pelo elemento puramente literal do preceito, quer pelo elemento sistemático que se extrai de uma análise dos conceitos que presidem ao sub-sistema de normas que nos ocupa.

5ª_ O significado normativo do verbo "circular" terá de encontrar respaldo na linguagem corrente, que, em conformidade com o Dicionário da Língua Portuguesa , 8ª edição revista e actualizada, Porto Editora, pág. 363, o define como "girar; andar; transitar; passar de mão em mão".

6ª_ Fica, assim, bem patente o sentido dinâmico de que se reveste o verbo "circular", consignado no n° 1 do artigo l° do DL n° 522/85, de 31 de Dezembro, não sendo admissível o seu entendimento como referência a uma realidade estática.

7ª_ O Tribunal" a quo" interpretou de forma inadequada o preceito ínsito no art° 1°, nº 1, do Decreto -Lei n" 522/85, de 31 de Dezembro, ao concluir que não é indispensável a circulação efectiva de um veículo para que se constitua, na esfera jurídica do titular de um direito sobre o mesmo, uma obrigação de realização de um seguro automóvel de responsabilidade civil.

8ª_ No caso dos autos, o recorrente optou por não conferir ao veículo qualquer utilização efectiva.

9ª - Pelo que importa concluir pela inexistência de qualquer título de responsabilidade por parte do Recorrente, bem como pela inexigibilidade, no momento da ocorrência dos factos que constituíram o objecto do litígio, de existência de seguro automóvel, porquanto ao veículo não estava a ser conferida uma utilização efectiva.

Termos em que se requer a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por uma outra que absolva o agora recorrente do pedido formulado pelo autor, nesta sede recorrido, com o que se fará a necessária Justiça.

1-8- A parte contrária contra-alegou, sustentando o não provimento do recurso.

Corridos os vistos. legais há que apreciar e decidir:

II- Fundamentação:

2-1- Uma vez que o âmbito objectivos dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos apenas as questões que ali foram enunciadas ( arts. 690° nº1 e 684º nº 3 do C.P.Civil).

2-2- Uma vez que a matéria de facto dada como assente na 1ª instância não foi objecto de impugnação, sendo também certo que não existe motivo para qualquer alteração, nos termos do art. 713° nº 6 do C.P.Civil, remete-se para o termos dessa decisão.

2-3- Na douta sentença recorrida e para o que interessa para o presente recurso, considerou-se, em resumo, que se tinha de considerar excluída a responsabilidade do R. A... quer em sede de responsabilidade subjectiva quer no âmbito de responsabilidade pelo risco. Considerou-se porém responsável esse R. em termos de direito de regresso do A., Fundo de Garantia Automóvel, de harmonia com o disposto nos arts. 21°,25° nºs 1 e 3 do Dec-Lei 529/85 de 31/12, sendo certo que a esse R., como proprietário do veículo, lhe cabia proceder à feitura atempada do seguro automóvel em relação à viatura em causa, nos termos dos arts. 1º e 2° do mesmo diploma.

No recurso o apelante insurge-se, essencialmente, contra o facto de se ter considerado que o veículo em causa, não circulando efectivamente na via pública, se pudesse encontrar abrangido pela disposição do art. l° do Dec-Lei 522/89 de 31/12 e, como tal, fosse obrigação do proprietário efectuar o correspondente seguro automóvel.

É que, no entender do apelante, a disposição (art. 1° do Dec-Lei 522/89) parece realçar o aspecto dinâmico dos veículos e não o seu correspondente estático. Isto é, somente os veículos que estejam a ser objecto de utilização efectiva, compreendendo-se neste conceito os períodos mais ou menos latos de estacionamento, devem, para poderem circular, estar cobertos pelo seguro automóvel obrigatório, o que não sucedia no caso dos autos.

Vejamos:

Para a decisão, haverá a salientar que se provou que, do veículo JU (...) , era proprietário do R. apelante. Mais se provou, que este R. o havia adquirido dias antes do evento, que o vendedor o tinha entregue em sua casa onde ficou estacionado, tendo o R. deixado, na ignição, a chave do veículo. O R. B... apropriou-se da viatura, sem conhecimento do R. proprietário e sem a sua autorização. O R. A... pretendia proceder à reparação do veículo, após o que o pretendia pôr a circular na via pública.

Provou-se ainda, que à data da ocorrência, o JU não se encontrava coberto por seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, que em consequência do relatado acidente resultaram danos nos veículos referenciados e que os proprietários desses veículos reclamaram junto do A. o ressarcimento dos danos que sofreram, prejuízos que o Fundo de Garantia Automóvel satisfez.

Estabelece o art. 21° n° 1 do Dec - Lei 522/85 de 31/12 (na redacção introduzida pelos Dec-Lei 122 A/86 de 30/5 e 301/2001 de 23/11):

"Compete ao Fundo de Garantia Automóvel satisfazer, nos termos do presente "capítulo, as indemnizações decorrentes de acidentes originados por veículos sujeitos matriculados em Portugal ou em países terceiros em relação à Comunidade Económica Europeia que não tenham gabinete nacional de seguros, ou cujo gabinete não tenha aderido à Convenção Complementar entre Gabinetes Nacionais"

Acrescenta o n° 2 da disposição que "o Fundo de Garantia Automóvel garante, por acidente originado pelos veículos referidos no número anterior, a satisfação das indemnizações por:

a) Morte ou lesões corporais, quando o responsável seja desconhecido ou não beneficie de seguro válido ou eficaz ou-for declarada a falência da seguradora;

b) Lesões materiais, quando o responsável, sendo conhecido, não beneficie de seguro válido ou eficaz".

Quer isto dizer e para o que aqui importa que sempre que haja lugar a indemnizações decorrentes de lesões materiais provenientes de acidente de viação originados pelos veículos referenciados na disposição, não beneficiando o responsável de seguro válido ou eficaz, é ao Fundo de Garantia Automóvel que compete satisfazer essas indemnizações.

A disposição refere-se aqui expressamente ao «responsável" pelo acidente, isto e,- àquele que lhe deu origem ou que contribuiu para a sua produção.

Somos em crer, dever excluir do conceito de «responsável", o R. ora apelante, já que, como se provou, ele em nada contribuiu para o evento. Recorde-se, o veiculo, de que era proprietário, foi-lhe subtraído abusivamente pelo outro R., sendo certo que foi este que teve com a viatura o acidente a que se reportam os autos e que originou os danos que o Fundo A. teve de ressarcir. Foi pois este R. o «responsável" pela ocorrência.

Mas não foi aqui que a douta sentença recorrida baseou a responsabilidade do R A... , como iremos ver.

Estabelece o art. 25º do mesmo diploma sob a epígrafe "Sub-rogação do Fundo" que:

1 - Satisfeita a indemnização, o Fundo de Garantia Automóvel fica sub-rogado nos direitos do lesado, tendo ainda direito ao juro de mora legal e ao reembolso das despesas que houver feito com a liquidação e cobrança

2-  …

3- As pessoas que, estando sujeitas à obrigação de segurar, não tenham efectuado seguro poderão ser demandadas pelo Fundo de Garantia Automóvel, nos termos do n° 1, beneficiando do direito de regresso contra outros responsáveis pelo acidente, se os houver, relativamente ás quantias que tiveram pago".

Foi precisamente neste n° 3 que, no aresto recorrido, se retirou a obrigação de indemnizar do R. A... , como proprietário do veículo. Como expressamente se referiu aí, face a esta disposição "o FGA poderá reembolsar-se não apenas à custa ou dos lesantes, mas também dos próprios sujeitos que omitiram o dever de segurar, mesmo que não lhes possa ser assacada responsabilidade civil pelas consequências danosas do acidente".

Entendeu-se assim que, não podendo o proprietário do veículo vir a ser responsabilizado civilmente pelos danos causados (quer a título de responsabilidade civil subjectiva, quer em sede de risco), mas competindo, ao FGA garantir o pagamento da indemnização devida ao terceiro lesado, este fica investido, num direito de regresso contra o proprietário que não cumpriu o dever de efectuar o seguro de responsabilidade civil. Isto é, segundo o aresto, a responsabilidade do proprietário deve buscar-se na omissão em efectuar o seguro obrigatório, nos termos do nº 3 do art. 25º referenciado.

Não temos dúvidas que face a esta disposição, as pessoas que devam efectuar o seguro automóvel e que assim não tenham procedido, poderão ser demandadas pelo Fundo de Garantia Automóvel.

A questão coloca-se, no caso vertente, em relação à circunstância de ser ou não obrigação do R. A... , proprietário do veículo, proceder à realização do respectivo seguro automóvel. Na douta sentença recorrida entendeu-se que era obrigação desse R. assim proceder. Na apelação o recorrente entende que não lhe incumbia o dever de efectuar o seguro do veículo, visto que ele, proprietário, optou por  não conferir ao veículo qualquer utilização efectiva.

É esta, no fundo, a razão de discordância do apelante em relação à sentença recorrida.

Estabelece o art. 1° nº 1 do mencionado Dec-Lei 522/85 que "toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de lesões corporais ou materiais causadas a terceiros por um veículo terrestre a motor, seus reboques ou semi-reboques, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se, nos termos do presente diploma, coberta por um seguro que garanta essa mesma responsabilidade", acrescentando o n° 1 do art. 2° que "a obrigação de segurar impende sobre o proprietário do veículo, exceptuando-se os casos de usufruto, venda com reserva de propriedade e regime de locação financeira, em que a referida obrigação recai, respectivamente, sobre o usufrutuário, adquirente ou locatário".

Destas disposições resulta que compete ao proprietário do veículo, para que este possa circular, efectuar o respectivo seguro automóvel. Competindo ao proprietário esta obrigação, não tendo procedido assim, poderá ser demandada pelo Fundo de Garantia Automóvel, nos termos da disposição acima assinalada.

O apelante entende que o veículo não se destinava a circular naquela altura, visto que pretendia proceder à sua prévia reparação. Daí que não tinha obrigação de efectuar o respectivo seguro.

Somos em crer que esta posição, apesar de se entender pertinente, não se pode aceitar.

É que a nosso ver, pese embora o proprietário não pretender, no momento próximo, circular com o veículo, mesmo assim não poderia deixar de efectuar o seguro automóvel.

É que, nos termos do art. 8° n° 2 do mesmo diploma "o seguro garante ainda a satisfação das indemnizações devidas pelos autores de furto, roubo, furto de uso de veículo ou de acidente de viação dolosamente provocados ... ", donde resulta que se o seguro houvesse sido efectivamente celebrado, poderia sempre o lesado demandar a Seguradora, mesmo em caso de furto da viatura. Ou seja, o lesado teria adquirido contra a seguradora, se o seguro houvesse sido efectivamente celebrado, o direito de indemnização. Quer dizer, o seguro tem um efeito útil, independentemente da circulação ou não do veículo. Não tendo sido celebrado esse seguro, compete, como se viu, ao Fundo de Garantia Automóvel garantir o pagamento da indemnização devida ao lesado, pelo que se compreende que fique essa entidade investida num direito de regresso contra o proprietário que não cumpriu tal dever.

Daqui se conclui, a nosso ver, que a lei não condiciona a efectivação do seguro de responsabilidade civil obrigatório, à circulação efectiva do veículo, pelo que à margem de não pretender utilizar logo de imediato o veículo, o proprietário deveria, desde que se tornou dono dele, efectuar o respectivo seguro automóvel.

De resto, o R. A... não alegou (e provou) que o veículo estava incapacitado de circular pelo seus próprios meios. Evidentemente que ao deixar o automóvel na via pública com as chaves de ignição no respectivo lugar, propiciou ou pelo menos facilitou, a circulação efectiva da viatura, donde se conclui que nessa medida também ele contribuiu para essa movimentação. Daí que também por este prisma, deveria ter procedido à realização do seguro obrigatório.

A apelação improcede pois.

III - Decisão:

Por tudo o disposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a douta sentença recorrida.

Custas pelo o apelante.

Coimbra 25-5-04