Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
583/07.4TATMR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
RECURSO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
PROVA DIRECTA E PROVA INDICIÁRIA PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO REO
Data do Acordão: 01/06/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE TOMAR
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 14º, 152º DO CP; , 32º DA CRP 127º,412º E 428º DO CPP.
Sumário: 1.O recurso sobre a decisão da matéria de facto para o Tribunal da Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada como se o julgamento ali realizado não existisse. É antes, um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros.

2.O preceituado no art.127.º do Código de Processo Penal deve ter-se por cumprido quando a convicção a que o Tribunal chegou se mostra objecto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, e onde não se vislumbre qualquer assomo de arbítrio na apreciação da prova.

3.Não há obstáculo legal à valoração em audiência de julgamento das declarações da assistente e demandante cível e a que, no âmbito da imediação e na oralidade, o Tribunal a quo possa racionalmente fundamentar os factos dados como provados com base nas suas declarações, em especial quando confirmadas por outros elementos probatórios, derivados de provas directas e indirectas, devidamente conjugadas entre si e com as regras da experiência comum.

4.No caso, tendo o Tribunal da Relação ouvido as declarações integrais da assistente I., prestadas oralmente na audiência de julgamento – bem como as do arguido e das restantes testemunhas e não tendo como verificado qualquer elemento objectivo que coloque em causa a credibilidade das declarações da assistente I., relativamente aos factos agora em causa, valorada positivamente pelo Tribunal recorrido no âmbito da imediação e da oralidade , nada obsta a que tais declarações sejam valoradas para dar como provados os factos constantes dos pontos n.ºs 4º a 14º da douta sentença recorrida.

Os actos descritos como praticados pelo arguido causaram à assistente I, de modo repetido, como foi propósito dele, humilhação, lesões físicas e dores, além de perturbação da liberdade pessoal da assistente através de ameaças, e ofensas à sua honra e consideração como pessoa e como cônjuge.

O arguido agiu com dolo directo e intenso, com liberdade na acção, conhecendo e querendo infligir ao seu cônjuge maus tratos físicos e psíquicos , com conhecimento de que a sua conduta era proibida.

Deste modo, o arguido preencheu com a sua conduta todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.152.º, n.ºs 1, al. a), do Código.

Decisão Texto Integral: Relatório

Pelo 3.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Tomar, sob acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, o arguido
M. filho de M. e de G., natural da freguesia …, concelho de … nascido a …de … de 1969, divorciado, …, residente na Rua …. Tomar,
imputando-se-lhe a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1, al. a), 2 e 4, do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei 59/2007 de 4 de Setembro.

A assistente I. deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido M., pedindo que o mesmo seja condenado a pagar-lhe a quantia de € 30.000,00, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal, desde a notificação até efectivo e integral pagamento.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, o Tribunal Singular, por sentença proferida a… de … de 2009, decidiu julgar parcialmente provada a acusação e parcialmente procedente o pedido de indemnização civil e, consequentemente,
- condenar o arguido M.., pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelos art. 153.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal , perpetrado na pessoa de I. na pena de três anos de prisão;
- suspender-lhe a execução da pena de prisão, pelo prazo de três anos, com a condição pagar à Associação Portuguesa de Apoio à Vítima a quantia de 750,00 € no prazo de seis meses; e

- condenar o requerido M. a pagar à requerente I. a quantia de € 10.000,00, acrescida de juros calculados à taxa de 4%, desde 10 de Fevereiro de 2009 até efectivo e integral pagamento.


Inconformado com a douta sentença dela interpôs recurso o arguido M. concluindo a sua motivação do modo seguinte:
A.-O presente recurso visa impugnar a sentença em recurso;
- Em termos de matéria de facto, porquanto...
• Há insuficiência para a decisão da matéria de facto,
• Há um erro notório na apreciação da prova, sendo certo que
• A prova produzida em audiência impunha decisão diversa;
- Em termos de matéria de Direito porquanto, necessariamente,
B.- O Tribunal “a quo” decidiu mal ao considerar provado que:
- Desde data não determinada mas já depois do nascimento do segundo filho, no interior da residência de ambos, o arguido e a assistente envolviam-se em discussões relacionadas com a gestão da economia doméstica, situação que se intensificou a partir do ano de 2005,
- Na sequência das discussões, o arguido agredia fisicamente a assistente, desferindo-lhe murros nos membros superiores e pontapés nos membros inferiores,
- Causando-lhe, desse modo, directa e necessariamente, ferimentos e lesões que careciam de tratamento médico,
- A assistente nunca se deslocou a qualquer unidade de saúde, nem pediu auxilio a terceiros, por recear a reacção do arguido, caso o fizesse, e por pretender proteger os seus filhos menores,
- Por esse motivo, era frequente a assistente apresentar-se no local de trabalho com hematomas nos membros,
- Também nessas alturas, o arguido ameaçava a assistente, dizendo sempre em tom intimidatorio que um dia iria matá-la,
- Fazia-o sempre em tom altivo e sério, fazendo crer à assistente que estava firmemente decidido a concretizar tais ameaças;
- Em tais ocasiões, a assistente sentia medo e receava pela sua integridade física e pela sua vida,
- Ainda na sequência das discussões, o arguido dirigiu-se à assistente chamando-a puta, cabra, vaca e coirâo,
- E acusava a assistente de manter relacionamentos com outros homens, dizendo-lhe que a mesma tinha amantes,
- A maior parte dessas discussões acima referidas ocorriam na presença dos filhos do casal,
- Na passagem do ano de 2004/2005 a assistente convidou os respectivos pais e irmãos para celebrarem a chegada do Ano Novo em sua casa,
- No dia 1 de Janeiro de 2005, sensivelmente antes da hora de almoço, o arguido iniciou uma discussão com a assistente, após o que saiu de casa,
- Por ser dia festivo e a família estar a preparar-se para almoçar, a assistente decidiu seguir o arguido, por forma a convencê-lo a regressar a casa para almoçarem,
- Foi então que, próximo da Fábrica … em … área desta comarca, o arguido desferiu uma bofetada na assistente, atingindo-a na face e diversos pontapés nas pernas,
- Em seguida, empurrou-a por diversas vezes, o que provocou a queda da mesma no chão,
- Em consequência directa e necessária de tal comportamento do arguido, a assistente sofreu equimoses e hematomas na face,
- Por tal motivo decidiu não regressar de imediato a casa, por sentir vergonha dos seus familiares e não pretender que os mesmos vissem tais lesões e, assim, soubessem que era vitima de maus tratos por parte do seu marido,
- Por esse motivo, a assistente só regressou a casa pelas 17 horas daquele dia 1 de Janeiro de 2005, e já depois dos respectivos familiares a terem procurado,
- Quando regressou a casa, a assistente apresentava hematomas nos membros superiores e inferiores e na face, estava descalça e com a blusa rasgada,
- Os familiares da assistente convenceram-na a ir morar com os seus pais, ao que a mesma acedeu,
- A assistente permaneceu em casa dos seus pais até ao dia 4 de Janeiro de 2007, data em que regressou a casa, depois de o arguido lhe ter dito que iria mudar de comportamento e por pensar nos seus dois filhos menores,
- Decorridos cerca de um mês, o arguido começou a agredir a assistente, a injuriá-la e a ameaçá-la de que a matava,
- Tais discussões assumiram maior intensidade a partir do Verão de 2007;
- Designadamente, dois fins de semana do Verão de 2007, depois de a assistente visitar os seus pais, ao regressar a casa, acompanhada dos dois filhos menores, encontrava a porta de entrada trancada, dado que o arguido fechava a porta, deixando a chave na fechadura, a fim de os impedir de entrar em casa,
- Nessas ocasiões e dirigindo-se quer à assistente, quer aos seus filhos, o arguido dizia que se não se pusessem na rua, ele trataria disso um dia e queimaria a casa onde o agregado familiar residia,
- Nessas duas ocasiões, a assistente e os filhos passaram a noite no interior do respectivo veículo automóvel, dado que o arguido não lhes abriu a porta, onde permaneceram até ao dia seguinte, esperando que o arguido saísse de casa, para poderem entrar em casa.
- No dia 13 de Agosto de 2007, no interior da respectiva residência, o arguido desferiu varias bofetadas na face da assistente, agarrou-a pelos braços e empurrou-a,
- Noutra ocasião, ocorrida em Agosto de 2007, o arguido, servindo-se de um chinelo, desferiu com o mesmo diversas pancadas nos braços e costas da assistente.
- Em consequência do comportamento do arguido, a assistente sofreu hematomas nos braços, os quais lhe causaram dores,
- A assistente não se deslocou a qualquer unidade de saúde, a fim de receber assistência médica, por recear a reacção do arguido,
- Na primeira quinzena do mês de Setembro de 2007, diariamente, o arguido iniciou discussões com a assistente, dizendo-lhe que se a mesma "não se pusesse na rua, a matava a ela e mais dois ou três",
- Fê-lo, mais uma vez, de forma exaltada, em tom sério e intimidatório,
- Por esse motivo, por sentir medo do arguido, no dia 20 de Setembro de 2007, a assistente foi residir com os respectivos progenitores, acompanhada dos seus dois filhos, onde permanece até hoje,
- No dia 26 de Setembro de 2007, pelas 11 horas, em Tomar, o arguido dirigiu-se à assistente e disse-lhe, em tom exaltado, "eu sou maluco, tu não brinques comigo, que já sabes o que é que acontece",
- Em seguida, … em Tomar, disse-lhe, mais uma vez, que a matava,
- No dia 30 de Setembro de 2007, durante a tarde, o arguido dirigiu-se à residencial "x", onde a assistente trabalha, e, ao não encontrar esta, disse, de forma exaltada e agressiva, perante as colegas da assistente que ali se encontravam, que os bens eram todos dele, que não respondia por ele, que a assistente não quisesse estragar a sua vida, nem a dele,
- No dia 10 de Outubro de 2007, cerca das 8 h, quando a assistente se dirigia para o seu local de trabalho, acompanhada do seu filho M…, foi abordada pelo arguido,
- O qual a agarrou nos braços, abanou-a e disse "tu não brinques comigo, que já sabes do que é que eu sou capaz de fazer",
- Só com a intervenção de transeuntes, que foram em auxilio da assistente, o arguido a largou,
- Agindo de forma descrita, o arguido causou sempre humilhação na assistente, para além das dores e lesões decorrentes das agressões descritas.
- Ao proferir as expressões referidas, fazia-o com foros de seriedade, levando a assistente a recear pela vida e sua integridade física, perturbando-a na liberdade pessoal, o que fez com que a assistente vivesse diariamente com medo das atitudes do arguido,
- Com tais comportamentos, o arguido agiu com a intenção de assustar e causar receio e intranquilidade à assistente, ciente de que as expressões que proferiu eram adequadas a fazê-la recear pela concretização dos males anunciados, o que quis, tendo a assistente acreditado que o arguido podia concretizar o que tinha afirmado nas referidas frases.
- Ao atingir a assistente no corpo, conforme descrito, o arguido sabia que molestava fisicamente a ofendida e lhe causava, como causou, ferimentos e padecimento o que quis,
- Das agressões resultaram, em todas as ocasiões, ferimentos, dores e padecimento para a ofendida, a qual as curava por si própria, sem recurso a estabelecimento hospitalar,
- Mais sabia o arguido que as expressões mencionadas que utilizou para se dirigir e referir à assistente, eram adequadas e susceptíveis de atingir e ofender como ofenderam a honra e a consideração que lhe são devidas e todavia quis agir de forma descrita.
- Ao praticar os factos descritos, o arguido agiu sempre com a intenção de maltratar física e psicologicamente a assistente, tendo-a insultado ameaçado e intimidado para melhor assegurar o êxito das suas intenções atingindo-a na sua integridade física, na sua honra e dignidade o que conseguiu,
- O arguido contava, para a consumação da violência descrita, com a sua superior força física, a resignação e o medo da ofendida, servindo-se da intimidade da vida familiar para praticar tais factos de forma repetida, apesar de saber que não podia tratar a assistente da forma descrita,
- Agiu em todos os momentos com vontade livre e consciente, bem sabendo que os seus comportamentos eram e são proibidos e punidos por lei penal.
C.- E o tribunal " a quo" decidiu mal ao assim considerar provado, porquanto apreciou erradamente as provas, que impunham decisão diversa;
D.- O Tribunal "a quo" para considerar provada a matéria supra referenciada considerou e baseou-se nos depoimentos
-da assistente,
-da filha C.
-da testemunha JL,
-da testemunha Maria
-da testemunha C.Z
-da testemunha MI.
E.- Ora, do depoimento destas testemunhas não se retira de modo algum, a factualidade que se considera provada. Senão vejamos...
Quanto aos factos descritos nos n.ºs 4º a 14º da douta sentença
F.- O depoimento da assistente e da filha C. não são suficiente para se considerar provada tal material factual uma vez que:
- a assistente é parte cível interessada na condenação do arguido e as suas declarações são parciais;
- a filha C. está de relações cortadas com o pai e também ela tinha uma acção contra o mesmo.
G.- As demais testemunhas não assistiram a qualquer facto, nem revelaram um conhecimento certo e seguro acerca da prática dos mesmos.
H.- Na verdade a testemunha O. afirmou, claramente, que durante os anos nunca se apercebeu ou desconfiou da existência de maus tratos, descrevendo a C. como uma criança com crescimento normal;
A testemunha JL também afirmou que nunca desconfiou da existência de maus tratos físicos.
A testemunha C nunca presenciou qualquer zanga, sendo certo que não tem qualquer certeza, em termos temporais, de quando, alegadamente, começou a existir os maus tratos.
A testemunha I, só na data do divórcio teve conhecimento da existência da maus tratos.
Quanto aos factos descritos nos n.ºs 15º a 24º da douta sentença
I- Também quanto a estes factos não foi produzida prova testemunhal que permite concluir pela prática dos mesmos. Na verdade ...
J.- Nenhuma das testemunhas presenciou o que quer que fosse, assistindo, tão somente, à chegada da assistente a casa.
K.- Inclusivamente a testemunha O admitiu e considerou que as lesões apresentadas pela assistente eram compatíveis com uma queda,
Quanto aos factos descritos nos n.ºs 26 a 36 da douta sentença
L.- Não foi feita prova acerca da sua ocorrência, nem da data da sua alegada ocorrência.
M.- A testemunha C inclusivamente, não afirma ter visto o arguido agredir a assistente com um chinelo.
Quanto aos factos descritos nos n.ºs 38º e 39º da douta sentença
N.- Para lá de não haver prova da prática dos mesmos, a douta sentença encerra em si uma contradição, qual seja ...
O.- Os factos alegadamente ocorridos na Ponte Velha ocorreram após uma ida do ex-casal ao gabinete de uma Sra. Solicitadora. Ora, o douto Tribunal "a quo" considerou provados a ocorrência de tais factos na Ponte Velha e considerou não provados os factos alegadamente ocorridos no gabinete da Sra. Solicitadora. Pois bem ...
P.- As provas produzidas acerca das duas situações foram idênticas. Senão vejamos ...
- a assistente descreveu ambas as situações;
- a testemunha CZ prestou um depoimento indirecto acerca de ambas as situações.
Q.- Portanto, ou o douto Tribunal valorava a prova e considerava ambas as situações provadas ou não valorava e considerava ambas as situações não provadas.
Quanto aos factos descritos nos n.ºs 41º a 43º da douta sentença
R.- Não foi produzida qualquer prova testemunhal acerca dos mesmos, sendo certo que só assistente relata;
S.- Ora, a assistente não refere qualquer data concreta, pelo que, para lá de os factos não se poderem considerar praticados, jamais pode ser fixada a data de 10 de Outubro.
Quanto às testemunhas de defesa
T.- As testemunhas de defesa prestaram um depoimento sério e verdadeiro, relatando a vivência que conheciam do ex-casal, sendo certo que todas elas afirmaram que assistente e arguido pareciam ter um relacionamento normal e que nunca viram aquela com qualquer marca,
U.- Devendo o Douto Tribunal ter valorado o seu depoimento.
V.- Houve, assim, um erro notório na apreciação da prova, que impunha uma decisão diversa, sendo certo que há contradição na forma como, com o mesmo tipo de prova, se consideram certos factos provados e outros não provados.
W.- Ademais, não deixa de ser estranho, contra o senso comum e contra o padrão do homem médio que a assistente nunca tenha entrado no Hospital a fim de ser tratada, que nunca ninguém próximo e de família a tenha visto marcada, que tenha tolerado mais de 15 anos uma vida, nos termos que constam da acusação pública, sem que tenha tentado divorciar-se ou, pelo menos, ter mostrado vontade de o fazer.
X.- Ainda que não se considerasse a prova nos termos em que alegámos, isto é, ainda que não se considere que a prova produzida impunha decisão diversa, não podemos deixar de considerar que a mesma cria fortes e insolúveis dúvidas, pelo que deveria o Tribunal “a quo” ter-se socorrido do princípio do “in dubio pro reo”;
Z.- Ora, do anteriormente alegado resulta que, jamais, o arguido poderia ter sido condenado pela prática do crime de violência doméstica p.p. pelo artigo 152.º n.ºs 1 e 2 do C.Penal;
AA.- A ratio deste artigo inclui, além dos maus tratos físicos, os maus tratos psíquicos, que de forma reiterada provocam humilhações ou molestações à eventual ofendida, sendo certo que os actos praticados pelo agente, que afectam o seu cônjuge, deverão revestir a gravidade suficiente para se considerar que põe em causa a dignidade deste último;
BB.- Portanto, só se o comportamento por parte de um dos cônjuges se tornar repetido e assumir um cariz patológico, ferindo de forma intencional e voluntária a digni­dade pessoal do outro cônjuge, é que se poderá integrar o ilícito "sub judice";
CC- O legislador não teve a intenção, nem tem legitimidade, para se intrometer no relacionamento do casal e para pôr cobro às discussões que ocorreram entre eles, sendo certo que, como diz o adágio popular:
“Entre marido e mulher não metas a colher”;
DD.- Ora, é do senso comum que existem discussões entre os membros do casal que podem ser esporádicas, o que permite obter uma reconciliação posterior, ou podem ser mais frequentes e violentas e que, nesse caso, poderão levar à ruptura do casal,
EE.- No decorrer das discussões podem ser proferidas expressões ofensivas, menos correctas e humilhantes para o outro membro do casal, sendo certo que a atitude do membro do casal que profere as expressões, pese embora não seja correcta, justifica-se pelo estado emocional em que se encontra, pela grande proximidade e intimidade e pela relação afectiva entre os dois membros do casal;
FF.- Portanto, na situação "sub judice" não resulta dos autos e da prova feita que a actuação do arguido tenha sido de tal forma violenta que possa integrar o crime de maus tratos,
GG.- Do mesmo modo não resultou provado que o seu comportamento tenha posto em causa a dignidade da sua mulher, tanto que não impediram a assistente de continuar a viver com ele, durante mais de 15 anos,
HH.- E muito menos resultou provado que ao dirigir-lhe qualquer palavra menos agradável sabia que a sujeitava a uma humilhação e vergonha atentatórias da sua dignidade pessoal, enquanto ser humano e enquanto sua mulher;
II.- Deste modo, não se encontra preenchido o tipo subjectivo quanto ao crime de maus tratos, impondo-se a sua absolvição;
JJ.- Mesmo configurando a possibilidade de o arguido ter agredido a assistente na passagem de Ano de 2004, 2005, também neste caso se impõe a absolvição do arguido.
É que...
KK.- Neste caso estaríamos perante a eventual prática de um crime de ofensas corporais simples.
LL.- Como é consabido, estes crimes têm uma relação de especialidade com o crime de maus tratos, uma vez que se se verificar a prática de um acto isolado, com falta de reiteração estamos perante aqueles crimes;
MM.- Ora, ambos os crimes dependem de queixa, que se extingue no prazo de 6 meses;
NN.- Não foi, nunca, apresentada qualquer queixa quanto a estes actos, ao longo de anos de alegados maus tratos, portanto, não pode o Tribunal pronunciar-se sobre aquelas situações específica e isoladamente;
OO.- Ainda que se considerasse que o arguido tinha praticado os actos que lhe são assacados na passagem de ano de 2004, 2005, situação que se coloca por cautela de patrocínio - mesmo assim, tais actos teriam de ser havidos como isolados, e quando muito, levariam à condenação do arguido na prática dos crimes de ofensas corporais e injúrias, mas nunca na condenação do crime de violência doméstica.
PP.- De todo o modo, como já alegámos, mesmo nesta situação, por falta de prova ou pelo recurso ao principio do “in dubio pro reo” o arguido teria de ser absolvido;
QQ.- Porque assim é jamais o arguido podia ser condenado no pagamento de qualquer indemnização à assistente,
RR.- Uma vez que, como referimos no texto, e nos dispensamos de repetir, não estão reunidos os requisitos da responsabilidade por facto ilícito,
SS.- Sem presenciar sempre se dirá que o valor em que o arguido foi condenado é elevado se atentarmos ao uso dos Tribunais.
Quanto à legislação aplicável e à aplicação da lei no tempo
TT.- Não pode ser aplicada à situação "sub judice", a lei 59/2007, de 4 de Setembro, uma vez que ...
UU- O único facto alegadamente praticado após 15/9/2007 (data em que entrou em vigor aquele diploma) é o que consta dos n.ºs 41 a 43 da douta sentença;
W. -Ora, tais factos e, especialmente, a data de 10 de Outubro não se provaram,
XX.- Pelo quem não havendo prova dessa data e socorrendo-nos do principio "in dúbio pró reo" tem de se considerar obrigatoriamente como não provada,
YY.- O que significa que todos os factos, alegadamente, foram praticados antes da entrada em vigor da lei 59/2007, sendo certo que a legislação anterior não previa o agravamento do n.º 2 do actual artigo 152.º.
ZZ.- Por último, deveria, o douto Tribunal ter aplicado ao arguido a lei mais favorável, nos termos do disposto no artigo 2.º n.º 4 do C. Penal;
AAA.- É esse o ensinamento do Professor Taipa de Carvalho, bem como do Prof. Cavaleiro de Ferreira que, para lá de partilharem esse entendimento, vão mais longe ...
BBB.- Na verdade os ilustres mestres partilham a opinião de que para aplicar as consequências punitivas de lei nova mais grave, é preciso que a totalidade dos actos que constituem o seu pressuposto se realize na vigência da nova lei. CCC.- Portanto a douta sentença em apreço violou o disposto nos artigos 152.º n.ºs 1 e 2 do C.Penal, 115.ºn.º l, 368.º do C.P.Penal e artigo 32.º da C.R.P..
Nos termos expostos e nos mais de Direito aplicáveis deve:
A.-A douta sentença ser revogada, e
B.-O arguido ser absolvido;
C.- Ou, caso assim não se entenda, a douta sentença ser alterada, pelos motivos invocados no texto.
D.- Com todas as consequências legais.


O Ministério Público na Comarca de Tomar respondeu ao recurso interposto pelo arguido pugnando pela total improcedência do recurso.

O Ex.mo Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação
A matéria apurada e respectiva convicção constante da sentença recorrida é a seguinte:
Factos provados
1) O arguido e a assistente I. casaram um com o outro no dia …de… de 1990;
2) Do casamento entre o arguido e a assistente nasceram dois filhos, C. nascida a .. de.. de 1990, e M nascido a… de … de 1996;
3) O arguido, a assistente e os respectivos filhos residiram até 20 de Setembro de 2007 na localidade de …. área desta comarca;
4) Desde data não determinada mas já depois do nascimento do segundo filho, no interior da residência de ambos, o arguido e a assistente envolviam-se em discussões relacionadas com a gestão da economia doméstica, situação que se intensificou a partir do ano de 2005;
5) Na sequência das discussões, o arguido agredia fisicamente a assistente, desferindo-lhe murros nos membros superiores e pontapés nos membros inferiores;
6) Causando-lhe, desse modo, directa e necessariamente, ferimentos e lesões que careciam de tratamento médico;
7) A assistente nunca se deslocou a qualquer unidade de saúde, nem pediu auxílio a terceiros, por recear a reacção do arguido, caso o fizesse, e por pretender proteger os seus filhos menores;
8) Por esse motivo, era frequente a assistente apresentar-se no local de trabalho com hematomas nos membros;
9) Também nessas alturas, o arguido ameaçava a assistente, dizendo sempre em tom intimidatório que um dia iria matá-la;
10) Fazia-o sempre em tom altivo e sério, fazendo crer à assistente que estava firmemente decidido a concretizar tais ameaças;
11) Em tais ocasiões, a assistente sentia medo e receava pela sua integridade física e pela sua vida;
12) Ainda na sequência das discussões, o arguido dirigiu-se à assistente chamando-a puta, cabra, vaca e coirão;
13) E acusava a assistente de manter relacionamentos com outros homens, dizendo-lhe que a mesma tinha amantes;
14) A maior parte dessas discussões acima referidas ocorriam na presença dos filhos do casal;
15) Na passagem do ano de 2004/2005, a assistente convidou os respectivos pais e irmãos para celebrarem a chegada do Ano Novo em sua casa;
16) No dia 1 de Janeiro de 2005, sensivelmente antes da hora de almoço, o arguido iniciou uma discussão com a assistente, após o que saiu de casa;
17) Por ser dia festivo e a família estar a preparar-se para almoçar, a assistente decidiu seguir o arguido, por forma a convencê-lo a regressar a casa para almoçarem;
18) Foi então que, próximo da Fábrica …, em …., área desta comarca, o arguido desferiu uma bofetada na assistente, atingindo-a na face e diversos pontapés nas pernas;
19) Em seguida, empurrou-a por diversas vezes, o que provocou a queda da mesma no chão;
20) Em consequência directa e necessária de tal comportamento do arguido, a assistente sofreu equimoses e hematomas na face;
21) Por tal motivo decidiu não regressar de imediato a casa, por sentir vergonha dos seus familiares e não pretender que os mesmos vissem tais lesões e, assim, soubessem que era vítima de mais tratos por parte do seu marido;
22) Por esse motivo, a assistente só regressou a casa pelas 17h daquele dia 1 de Janeiro de 2005, e já depois dos respectivos familiares a terem procurado;
23) Quando regressou a casa, a assistente apresentava hematomas nos membros superiores e inferiores e na face, estava descalça e com a blusa rasgada;
24) Os familiares da assistente convenceram-na a ir morar com os seus pais, ao que a mesma acedeu;
25) A assistente permaneceu em casa dos seus pais até ao dia 4 de Janeiro de 2007, data em que regressou a casa, depois de o arguido lhe ter dito que iria mudar de comportamento e por pensar nos seus dois filhos menores;
26) Decorridos cerca de um mês, o arguido começou a agredir a assistente, a injuriá-la e a ameaça-la que a matava;
27) Tais discussões assumiram maior intensidade a partir do Verão de 2007;
28) Designadamente, dois fins-de-semana do Verão de 2007, depois de a assistente visitar os seus pais, ao regressar a casa, acompanhada dos dois filhos menores, encontrava a porta de entrada trancada, dado que o arguido fechava a porta, deixando a chave na fechadura, a fim de os impedir de entrar em casa;
29) Nessas ocasiões e dirigindo-se quer à assistente, quer aos seus filhos, o arguido dizia que se não se pusessem na rua, ele trataria disso um dia e queimaria a casa onde o agregado familiar residia;
30) Nessas duas ocasiões, a assistente e os filhos passaram a noite no interior do respectivo veículo automóvel, dado que o arguido não lhes abriu a porta, onde permaneceram até ao dia seguinte, esperando que o arguido saísse de casa, para poderem entrar em casa;
31) No dia 13 de Agosto de 2007, no interior da respectiva residência, o arguido desferiu várias bofetadas na face da assistente, agarrou-a pelos braços e empurrou-a;
32) Noutra ocasião, ocorrida em Agosto de 2007, o arguido, servindo-se de um chinelo, desferiu com o mesmo diversas pancadas nos braços e costas da assistente;
33) Em consequência do comportamento do arguido, a assistente sofreu hematomas nos braços, os quais lhe causaram dores;
34) A assistente não se deslocou a qualquer unidade de saúde, a fim de receber assistência médica, por recear a reacção do arguido;
35) Na primeira quinzena do mês de Setembro de 2007, diariamente, o arguido iniciou discussões com a assistente, dizendo-lhe que se a mesma “não se pusesse na rua, a matava a ela e mais dois ou três”;
36) Fê-lo, mais uma vez, de forma exaltada, em tom sério e intimidatório;
37) Por esse motivo, por sentir medo do arguido, no dia 20 de Setembro de 2007, a assistente foi residir com os respectivos progenitores, acompanhada dos seus dois filhos, onde permanece até hoje;
38) No dia 26 de Setembro de 2007, pelas 11h, em Tomar, o arguido dirigiu-se à assistente e disse-lhe, em tom exaltado, “eu sou maluco, tu não brinques comigo, que já sabes o que é que acontece”;
39) Em seguida, …., em Tomar, disse-lhe, mais uma vez, que a matava;
40) No dia 30 de Setembro de 2007, durante a tarde, o arguido dirigiu-se à residencial X, onde a assistente trabalha, e, ao não encontrar esta, disse, de forma exaltada e agressiva, perante as colegas da assistente que ali se encontravam, que os bens eram todos dele, que não respondia por ele, que a assistente não quisesse estragar a sua vida, nem a dele;
41) No dia 10 de Outubro de 2007, cerca das 8h, quando a assistente se dirigia para o seu local de trabalho, acompanhada do seu filho M., foi abordada pelo arguido;
42) O qual a agarrou nos braços, abanou-a e disse “tu não brinques comigo, que já sabes do que é que eu sou capaz de fazer”;
43) Só com a intervenção de transeuntes, que foram em auxílio da assistente, o arguido a largou;
44) Agindo da forma descrita, o arguido causou sempre humilhação na assistente, para além das dores e lesões decorrentes das agressões descritas;
45) Ao proferir as expressões referidas, fazia-o com foros de seriedade, levando a assistente a recear pela vida e sua integridade física, perturbando-a na liberdade pessoal, o que fez com que a assistente vivesse diariamente com medo das atitudes do arguido;
46) Com tais comportamentos, o arguido agiu com a intenção de assustar e causar receio e intranquilidade à assistente, ciente de que as expressões que proferiu eram adequadas a fazê-la recear pela concretização dos males anunciados, o que quis, tendo a assistente acreditado que o arguido podia concretizar o que tinha afirmado nas referidas frases;
47) Ao atingir a assistente no corpo, conforme descrito, o arguido sabia que molestava fisicamente a ofendida e lhe causava, como causou, ferimentos e padecimento, o que quis;
48) Das agressões resultaram, em todas as ocasiões, ferimentos, dores e padecimento para a ofendida, a qual as curava por si própria, sem recurso a estabelecimento hospitalar;
49) Mais sabia o arguido que as expressões mencionadas que utilizou para se dirigir e referir à assistente, eram adequadas e susceptíveis de atingir e ofender, como ofenderam, a honra e a consideração que lhe são devidas e, todavia, quis agir de forma descrita;
50) Ao praticar os factos descritos, o arguido agiu sempre com a intenção de maltratar física e psicologicamente a assistente, tendo-a insultado, ameaçado e intimidado para melhor assegurar o êxito das suas intenções, atingindo-a na sua integridade física, na sua honra e dignidade, o que conseguiu;
51) O arguido contava, para a consumação da violência descrita, com a sua superior força física, a resignação e o medo da ofendida, servindo-se da intimidade da vida familiar para praticar tais factos de forma repetida, apesar de saber que não podia tratar a assistente da forma descrita;
52) Agiu em todos os momentos com vontade livre e consciente, sem sabendo que os seus comportamentos eram e são proibidos e punidos por lei penal.
53) O arguido não tem antecedentes criminais;
54) O arguido trabalhou na área da construção civil, primeiro por conta de outrem e depois por conta própria;
55) Actualmente não exerce qualquer actividade colectada;
56) Dedica-se a trabalhos esporádicos na construção civil e a trabalhos agrícolas em terrenos próprios;
57) Vive em casa própria, tipo moradia;
58) Tem um veículo automóvel, encontrando-se a pagar ainda prestações relativas à sua aquisição;
59) Paga de prestação alimentícia ao filho menor a quantia de 50,00€/mês;
60) Tem o 6º ano;
61) A assistente é empregada de limpeza numa unidade hoteleira.
Factos não provados
Resultaram não provados todos os demais factos e circunstâncias constantes da acusação e pedido de indemnização civil e não resultaram provados da discussão em julgamento quaisquer outros factos relevantes para a apreciação da causa.
Convicção do Tribunal
Na formação da convicção foram tidas em conta as declarações da assistente que prestou um relato que se afigurou genuíno, sincero, credível e coerente. No seu discurso não se denotou qualquer pretensão vingativa ou de retaliação em relação ao arguido, pelo contrário, a sua postura em julgamento foi de evidente naturalidade e humildade, procurando tão-só esclarecer o tribunal quanto aos aspectos mencionados na acusação, explicando ainda em juízo as circunstâncias da actuação do arguido, os motivos dos desentendimentos entre o casal e a razão pela qual suportou os maus tratos sofridos durante um lapso de tempo tão longo.
Nesta medida, deram-se como provados todos os factos constantes da acusação e relatados pela própria, mesmo aqueles que, por não terem sido presenciados por quaisquer outras testemunhas, apenas se pôde alicerçar a convicção com base nas suas declarações.
Pese embora o arguido ter negado todos os factos que lhe são imputados, descrevendo antes um quadro de verdadeira harmonia familiar, pautada por desentendimentos esporádicos, não se revelou o mesmo minimamente credível: de facto, culpou a assistente da situação de estar a responder em tribunal, invocando que esta estaria a actuar por vingança mas sem não lograsse explicar que comportamento ou acto do arguido é que a assistente pretenderia desta forma vingar.
Antes pelo contrário, da atitude e postura do arguido em julgamento, não se pôde senão concluir por uma vivência conflituosa entre o casal, pela primordial importância que o arguido confere aos seus bens e rendimentos e que seriam, como resultou provado, o motivo de todos os desentendimentos. Os documentos apresentados nos autos no decurso da audiência, concretamente a fls. 332 a 343, pese embora não assumam qualquer relevância directa para prova dos factos imputados ao arguido, tanto mais que desacompanhados de qualquer explicação quanto à escolha destes concretos trabalhos e de qualquer outro meio de prova, não deixam de retratar o desfasamento do arguido em relação à educação dos filhos. Também não se pode pretender concluir de três cópias e alguns exercícios de matemática do filho e de quatro trabalhos de desenho da filha que existia um bom ambiente conjugal.
As declarações da assistente foram corroboradas pelos depoimentos das testemunhas de acusação, muito em especial por C. filha comum do casal, que sem esconder o sentimento de mágoa, não se anteviu no seu depoimento o propósito de denegrir a imagem do pai, mas tão-só o propósito de fazer justiça à mãe.
Apesar da comoção natural na descrição de episódios da sua vivência, mais ou menos circunstanciados porque, como a mesma fez notar, eram frequentes os conflitos e assistiu aos mesmos desde muito nova, conseguiu fazer um relato coerente e consistente, muito em especial quanto aos factos ocorridos na passagem de ano de 2005, sobretudo do estado em que a mãe chegou a casa, dos dois fins-de-semana do Verão de 2007, em que se viram obrigados a dormir no carro e ainda de Agosto de 2007, quando o arguido atingiu a assistente com um chinelo.
A versão dos factos da assistente foi ainda confirmada pelas testemunhas de acusação J L e MO , irmão e cunhada da assistente, que relataram também de forma coerente o episódio do dia 1 de Janeiro de 2005, por terem estado presentes e percepcionado o estado em que a assistente chegou a casa. Da mesma forma, foi tomado em consideração o depoimento de S, irmão da assistente, que para além dos factos ocorridos neste dia, de que teve conhecimento porque chamado pelos irmãos a Tomar quando a assistente desapareceu, também descreveu o estado da irmã, quando apareceu num baptizado em Agosto de 2007, após o episódio relatado pela própria em 32) e 33).
Quanto aos depoimentos de CZ e de MI. , colega e patroa da assistente, respectivamente, cumpre salientar que depuseram de forma credível e isenta. Revelaram-se importantes para confirmar a reiteração do comportamento do arguido, dando como provado o facto indiciário referido em 8). Quanto à primeira, foi ainda decisivo o seu depoimento para dar como provado o facto descrito em 40), já que foi a esta colega que o arguido se dirigiu quando procurou a assistente no local de trabalho.
O depoimento da testemunha A. foi absolutamente vago e inconclusivo, razão pela qual não foi tomado em consideração.
Relativamente aos depoimentos das testemunhas da defesa, concretamente de MW LR, MB, SA , MN , D e AF, foram as mesmas desvalorizadas porquanto revelaram não ter uma relação de intimidade com o casal mas apenas os conhecerem enquanto colegas de trabalho do arguido e vizinhos, pelo que a percepção da dinâmica do casal que relataram em juízo de modo algum se afigurou bastante para debilitar os demais depoimentos, designadamente as declarações da assistente.
Relativamente às testemunhas P. , irmão do arguido e padrinho da filha C, e AJ , cunhado do arguido, verificou-se que, para além da parcialidade que ambos revelaram nos seus depoimentos, resultou dos seus depoimentos que nunca existiu uma relação estreita os vários núcleos familiares ao ponto de estes serem visitas frequentes em casa do arguido e da assistente, de terem noção das suas condições de vida, necessidades, aspirações enquanto casal.
Mais foi tido em consideração o assento de casamento de fls. 32 e os assentos de nascimento de fls. 33 e 34 e o CRC do arguido junto aos autos.
Relativamente às condições pessoais, familiares e socio-económicas do arguido, foi tomado em consideração do relatório social de fls. 358 a 361 dos autos.

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O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. (Cfr. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96 Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98. e de 24-3-1999 Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247. e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6.ª edição, 2007, pág. 103).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350. , sem prejuízo das de conhecimento oficioso .
No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recorrente M. as questões a decidir são as seguintes:
- se a sentença recorrida padece de insuficiência para a decisão da matéria de facto e erro notório na apreciação da prova, e a prova produzida em audiência impunha decisão diversa quanto aos factos que constam dos pontos n.ºs 4 a 43.º da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, os quais deviam ter sido dados como não provados;
- se a decisão recorrida violou o princípio in dubio pro reo;
- se da prova feita resulta que os factos dados como provados não integram a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.152.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, pelo que se impunha a absolvição do arguido;
- se a Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, não devia ter sido aplicada na sentença recorrida uma vez que os únicos factos alegadamente praticados após 15-09-2007, constantes dos pontos n.ºs 41 a 43 da sentença, não resultaram provados;
- se, a considerar-se provado que o arguido agrediu a assistente na passagem de ano de 2004/2005, estaríamos perante a eventual prática de um crime de ofensas corporais simples, cujo direito de queixa por ter não sido exercido no prazo de 6 meses, se extinguiu;
- se o arguido não devia ter sido condenado no pagamento de uma indemnização à assistente , por não estarem reunidos os pressupostos da responsabilidade por facto ilícito, e se o valor fixado é elevado.

Passemos ao conhecimento da primeira questão.
A impugnação da matéria de facto pode realizar-se através de dois meios: ou através do disposto nas várias alíneas do art.431.º do mesmo Código ou por invocação dos vícios a que alude o art.410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sendo que neste último caso o Tribunal da Relação pode admitir a renovação da prova para suprir os vícios.
O art.431.º do C.P.P. estatui que a modificação da decisão da 1ª instância em matéria de facto só pode ter lugar, sem prejuízo do disposto no art.410.º, do C.P.P., se se verificarem as seguintes condições:
« a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base;
b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do art.412.º; ou
c) Se tiver havido renovação de prova .”.
A situação prevista na alínea a), do art.431.º, do C.P.P. está excluída quando a decisão recorrida se fundamenta, não só em prova documental, pericial ou outra que consta do processo, mas ainda em prova produzida oralmente em audiência de julgamento.
Também a possibilidade de modificação da decisão da 1.ª instância ao abrigo da al.c) do art.431.º, do C.P.P., está afastada quando não se realizou audiência para renovação da prova neste Tribunal da Relação, tendo em vista o suprimento dos vícios do art.410.º, n.º 2 do C.P.P..
A situação mais comum de impugnação da matéria de facto é a que respeita à alínea b) do art.431.º do C.P.P..
Esta alínea b) do art.431.º do C.P.P., conjugada com o art. 412.º, n.º3 do mesmo Código, impõe ao recorrente, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o dever de especificar:
« a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados ;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida ;
c) As provas que devam ser renovadas.»
E acrescenta o n.º 4 deste preceito legal :
« Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art.364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação.»
O tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa. ( n.º 6 do art.412.º do C.P.P.).
Sobre o dever das menções dos n.ºs 3 e 4 do art.412.º do C.P.P. constarem das conclusões da motivação, o STJ já se pronunciou no sentido de que a redacção do n.º 3 do art.412.º do C.P.P., por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem de dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que “ versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda (…) ”, já o n.º 3 se limita a prescrever que “ quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (…)”, sem impor que tal aconteça nas conclusões. Perante esta margem de indefinição legal, quando o recorrente tenha procedido à mencionada especificação no texto da motivação e não nas respectivas conclusões, ou o Tribunal da Relação conhece da impugnação da matéria de facto ou, previamente, convida o recorrente a corrigir aquelas conclusões. – cfr. acórdão do STJ, de 5 de Julho de 2007, proc. n.º 07P1766, www.dgsi.pt/jstj.
O art.417.º, n.º 3 do C.P.P., na actual redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, permite o convite ao recorrente para completar ou esclarecer as conclusões formuladas.
O outro meio de impugnação da matéria de facto permitido é através do disposto no art.410.º n.º 2 do Código de Processo Penal , que estatui que mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter por fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida , por si só ou conjugada com as regras da experiência comum :
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ; ou
c) O erro notório na apreciação da prova.
Os vícios do art.410.º, n.º 2 do C.P.P. têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem que seja possível a consulta de outros elementos constantes do processo.
No presente caso, o arguido M. indica nas conclusões da motivação os concretos factos que foram dados como provados na sentença recorrida e que considera incorrectamente julgados e as provas concretas que impõem decisão diversa da recorrida.
Embora nas conclusões da motivação, quanto à prova produzida oralmente na audiência, não faça o arguido menção aos respectivos suportes técnicos, por referência ao consignado na acta e as concretas passagens em que se fundamenta a impugnação, essa menção é feita na motivação do recurso.
Deste modo, o Tribunal da Relação considera-se apto a modificar a matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo ao abrigo do disposto nos artigos 412.º, n.ºs 3 e 4 e 431.º, al. b), do C.P.P..
O arguido M., sem nunca fazer referência ao art.410.º, n.º 2 do C.P.P., invoca a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e o erro notório na apreciação da prova, que são vícios previstos neste preceito e que têm de resultar apenas do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Tendo em conta esta ambiguidade na impugnação da matéria de facto, o Tribunal da Relação não deixará de apreciar, na parte final da decisão desta questão, a existência desses vícios enunciados no art.410.º, n.º 2 do C.P.P..
No âmbito de abordagem da modificação da matéria de facto ao abrigo do disposto nos artigos 412.º, n.ºs 3 e 4 e 431.º, al. b), do C.P.P., importa realçar que a documentação da prova em 1ª instância tem por fim primeiro garantir o duplo grau de jurisdição da matéria de facto, mas o recurso de facto para o Tribunal da Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada como se o julgamento ali realizado não existisse. É antes, um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto exige uma articulação entre o Tribunal de 1ª Instância e o Tribunal de recurso relativamente ao principio da livre apreciação da prova , previsto no art. 127.º do Código de Processo Penal , que estabelece que “Salvo quando a lei dispuser de modo diferente , a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”.
As normas da experiência são «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico , independentes do caso concreto “sub judice” , assentes na experiência comum , e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam , mas para além dos quais têm validade.» - Cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira , in “Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág.300.
Sobre a livre convicção do juiz diz o Prof. Figueiredo Dias que esta é “... uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais - , mas em todo o caso , também ela uma convicção objectivável e motivável , portanto capaz de impor-se aos outros .”- Cfr., in “Direito Processual Penal”, 1º Vol. , Coimbra Ed. , 1974, páginas 203 a 205.
O principio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento , encontrando afloramento , nomeadamente , no art. 355.º do Código de Processo Penal . È ai que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova , na recepção directa de prova.
O principio da imediação diz-nos que deve existir uma relação de contacto directo , pessoal , entre o julgador e as pessoas cujas declarações irá valorar , e com as coisas e documentos que servirão para fundamentar a decisão da matéria de facto.
Citando ainda o Prof. Figueiredo Dias , ao referir-se aos princípios da oralidade e imediação diz o mesmo: « Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efectivos e estáveis na história do direito processual penal . Já de há muito, na realidade , que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao principio da escrita , desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha , e que derivava sobretudo de com ele se tornar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (...) .Só estes princípios , com efeito , permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido , a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem , por outro lado , avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais “. - In “Direito Processual Penal”, 1º Vol. , Coimbra Ed. , 1974, páginas 233 a 234 .
Na verdade, a convicção do Tribunal “a quo” é formada da conjugação dialéctica de dados objectivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.
Do exposto resulta que, para respeitarmos os princípios oralidade e imediação na produção de prova, se a decisão do julgador estiver fundamentada na sua livre convicção baseada na credibilidade de determinadas declarações e depoimentos e for uma das possíveis soluções segundo as regras da experiência comum , ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso.
Como se diz no acórdão da Relação de Coimbra , de 6 de Março de 2002 ( C.J. , ano XXVII , 2º , página 44 ) , “ quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”.
Em suma, o preceituado no art.127.º do Código de Processo Penal deve ter-se por cumprido quando a convicção a que o Tribunal chegou se mostra objecto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, e onde não se vislumbre qualquer assumo de arbítrio na apreciação da pro
Nesta parte importa realçar que o objecto da prova pode incidir sobre os factos probandos ( prova directa ), como pode incidir sobre factos diversos do tema da prova, mas que permitem , com o auxílio das regras da experiência, uma ilação quanto a este ( prova indirecta ou indiciária).
A prova indirecta “ … reside fundamentalmente na inferência do facto conhecido – indício ou facto indiciante – para o facto desconhecido a provar, ou tema último da prova” – cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira, “ Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág. 289.
Como salienta o acórdão do STJ de 29 de Fevereiro de 1996, “ a inferência na decisão não é mais do que ilação, conclusão ou dedução, assimilando-se todo o raciocínio que subjaz à prova indirecta e que não pode ser interdito à inteligência do juiz.” – cfr. Revista Portuguesa de Ciência Criminal , ano 6.º , tomo 4.º, pág. 555. No mesmo sentido, o acórdão da Relação de Coimbra, de 9 de Fevereiro de 2000, ano XXV, 1.º, pág. 51.
O recorrente M. a quo errou no julgamento da matéria que consta dos pontos n.ºs 4 a 43 dos factos dados como provados na sentença recorrida, ao basear-se nos depoimentos da assistente, da filha C., da testemunha J L, da testemunha MO, da testemunha Cust, e da testemunha MI.
Para este efeito, o arguido M. alega que, relativamente aos factos descritos nos pontos n.ºs 4º a 14º da douta sentença, os depoimentos da assistente e da filha C não são suficientes para se considerar provada tal material factual, uma vez que a assistente é parte cível interessada na condenação do arguido e as suas declarações são parciais e a filha C. está de relações cortadas com o pai e também ela tinha uma acção contra o mesmo; as demais testemunhas não assistiram a qualquer facto, nem revelaram um conhecimento certo e seguro acerca da prática dos mesmos, sendo que a testemunha MO afirmou que durante anos nunca se apercebeu ou desconfiou da existência de maus tratos, descrevendo a C. como uma criança com crescimento normal; a testemunha JL também afirmou que nunca desconfiou da existência de maus tratos físicos; a testemunha CZ nunca presenciou qualquer zanga e não tem qualquer certeza, em termos temporais, de quando, alegadamente, começaram a existir os maus tratos; e, a testemunha I., só na data do divórcio teve conhecimento da existência de maus tratos à assistente.
Vejamos.
O Código de Processo Penal estabelece, como regra, que “ são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei” ( art.125.º).
O art.145.º do Código de Processo Penal consagra, expressamente, entre os meios de prova, as “ Declarações do assistente e das partes civis” , estabelecendo no seu n.º 1 que « Ao assistente e às partes civis podem ser tomadas declarações a requerimento seu ou do arguido ou sempre que a autoridade judiciária o entender conveniente.». E, acrescenta no seu n.º 2, que « O assistente e as partes civis ficam sujeitos ao dever de verdade e a responsabilidade penal pela sua violação.».
Pese embora não prestem juramento aquando das suas declarações ( art.145.º, n.º 4 do C.P.P.), quer o assistente, quer as partes civis, estão sujeitos ao dever de verdade e de responsabilidade penal pela sua violação,.
O valor probatório das declarações do assistente e das partes civis é livremente apreciado pelo juiz , nos termos do já citado art.127.º do Código de Processo Penal.
Deste modo, não há obstáculo legal à valoração em audiência de julgamento das declarações da assistente e demandante cível e a que, no âmbito da imediação e na oralidade, o Tribunal a quo possa racionalmente fundamentar os factos dados como provados com base nas suas declarações, em especial quando confirmadas por outros elementos probatórios, derivados de provas directas e indirectas, devidamente conjugadas entre si e com as regras da experiência comum.
O arguido M., ao defender que o depoimento da assistente I. é parcial e que ela tem interesse na decisão porque é parte civil, não coloca em causa que esta declarou que o arguido praticou os factos que o Tribunal a quo deu como provados nos pontos n.ºs 4º a 14º da douta sentença.
O que o recorrente faz é impugnar a credibilidade das declarações da assistente, contrapondo a sua convicção à do julgador. Tal atitude é clara na motivação do recurso, onde menciona que resulta da experiência do homem médio que a serem verdade os factos relatados pela assistente , a mesma não poderia descrevê-los de forma calma , despida de vingança e ausente de mágoa e que o depoimento da assistente é demasiado calmo, despido de emoção e de mágoa para poder corresponder, pelo menos grande parte, à verdade.
Salvo o devido respeito, não existe qualquer regra da experiência comum no sentido de que as mulheres que durante anos foram humilhadas através de maus tratos físicos e psíquicos e de coacção sobre a sua liberdade pessoal, quando depõem em Tribunal na qualidade de ofendidas em crimes de maus tratos ou de violência doméstica, são pessoas sem calma , “vestidas” de vingança e plenas de emoção.
Cada pessoa tem a sua própria personalidade e reage emocionalmente, perante o fim das circunstâncias da humilhação, de maneira própria. Ainda assim, a experiência dos Tribunais diz-nos que, no geral, as mulheres vítimas de maus tratos , de violência doméstica, se apresentam nas audiências de julgamento fragilizadas e sem vontade de vingança, mas sim de narrarem objectivamente os factos que as afectaram e ultrapassarem esse mau período das suas vidas.
Sobre a credibilidade das declarações da assistente I., o Tribunal a quo consignou na fundamentação da matéria de facto que a assistente “...prestou um relato que se afigurou genuíno, sincero, credível e coerente. No seu discurso não se denotou qualquer pretensão vingativa ou de retaliação em relação ao arguido, pelo contrário, a sua postura em julgamento foi de evidente naturalidade e humildade, procurando tão-só esclarecer o tribunal quanto aos aspectos mencionados na acusação, explicando ainda em juízo as circunstâncias da actuação do arguido, os motivos dos desentendimentos entre o casal e a razão pela qual suportou os maus tratos sofridos durante um lapso de tempo tão longo.”.
O Tribunal da Relação ouviu as declarações integrais da assistente I., prestadas oralmente na audiência de julgamento – como do arguido e das restantes testemunhas.
Nas declarações da assistente I. não vislumbrámos sinal de vingança ou de querer enfatizar defeitos do arguido, mas sim a pretensão de narração objectiva dos factos, onde percebemos muita mágoa e sofrimento por um casamento que, segundo as suas próprias palavras, “ foi desde o início de atribulação”.
O Tribunal da Relação não tem assim como verificado qualquer elemento objectivo que coloque em causa a credibilidade das declarações da assistente I., relativamente aos factos agora em causa, valorada positivamente pelo Tribunal recorrido no âmbito da imediação e da oralidade.
Deste modo, nada obsta a que tais declarações sejam valoradas para dar como provados os factos constantes dos pontos n.ºs 4º a 14º da douta sentença recorrida.
Quanto ao depoimento da testemunha C. filha do arguido, consta da fundamentação da matéria de facto provada que, sem esconder o sentimento de mágoa , não se anteviu nele o propósito de denegrir a imagem do pai, mas tão só o propósito de fazer justiça à mãe.
Ouvido o depoimento da testemunha C. de 18 anos de idade, o Tribunal subscreve esta fundamentação da matéria de facto, começando por mencionar que não vislumbramos que a testemunha tenha dito que está de relações cortadas com o pai.
Num testemunho emocionado, interrompido por vezes pelo sofrimento que lhe causa a recordação da vida passada na casa de seus pais, disse que não está de relações cortadas com o pai, mas apenas que, um dia, após a separação do casal , foi cumprimentá-lo na rua e ele não lhe falou. Este comportamento do arguido, que a deixou destroçada, surge depois da testemunha narrar, nomeadamente, como se lembra, desde os seus cerca de 4 anos de idade até à separação do casal, do pai a bater e a chamar nomes injuriosos à assistente , das ameaças e medo que impunha na casa, da falta de afectividade dele, da obrigação de ela própria trabalhar na construção civil desde os 6/7 anos ao lado do pai na construção civil, de ele não contribuir para as despesas da casa e para a sua educação, de cobrar à assistente os alimentos produzidos em prédios que ele utiliza , depositando o arguido o dinheiro numa conta bancária em nome dele e da mãe dele, de não lhe dar dinheiro ou presentes e da oposição a que a assistente comprasse roupa para ela e para os filhos, e querer controlar as horas de chegada a casa da assistente.
Quanto à existência de uma acção de alimentos, a testemunha C. declarou que é a mãe que lhe suporta o pagamento dos estudos e que corre uma acção de alimentos intentada por si contra o pai, desconhecendo a quantia pedida, e que tal acontece por este não contribuir para as despesas com os seus estudos, pois, nem quando vivia com o arguido podia contar com ele , o qual nunca quis saber da testemunha.
Uma vez que o Tribunal da Relação não vislumbra qualquer elemento objectivo que coloque em causa a credibilidade do depoimento da testemunha C. relativamente aos factos agora em causa, valorada positivamente pelo Tribunal recorrido no âmbito da imediação e da oralidade, deve este depoimento valorar-se e tomar-se em consideração no julgamento da matéria de facto.
Quanto ao depoimento da testemunha M O sobre os factos anteriores a 1 de Janeiro de 2005, em causa nos pontos n.ºs 4 a 14 dos factos dados como provados na sentença, importa começar por dizer que aqueles factos não estão fundamentados, na decisão recorrida, naquele depoimento.
Ainda assim, não deixamos de mencionar que a testemunha MO, cujo marido é irmão da assistente, declarou, designadamente, que não tinha quase relacionamento com o arguido e que visitavam a casa do arguido e assistente umas 2 vezes por ano. Até ao dia 1 de Janeiro de 2005 parecia que o casamento corria bem. Nunca se tinha apercebido da existência de agressões físicas.
Mas não deixou de acrescentar que por vezes lhe via nódoas negras , embora quando lhas via a assistente dizia que se magoava no trabalho, que batia nalgum sítio. Por outro lado, havia sempre “picardias” no casal, isto é, a assistente I tinha sempre que fazer o que ele queria, sendo a reacção dele quer para a assistente , quer para os filhos, muito brusca.
Relativamente ao comportamento da C. a testemunha MO disse, efectivamente, que se comportava como uma criança normal.
Mas não deixou de mencionar que a assistente lhe contava que a filha acompanhava o pai para a obra, para lhe dar serventia, e que viu que o arguido ao pé da família não dava nada aos filhos, designadamente prendas.
O depoimento desta testemunha não pode, manifestamente, levar à conclusão que dele se impunha que o Tribunal recorrido desse como não provados os factos em causa.
O depoimento da testemunha JL marido da MO e irmão da assistente, não consta também da fundamentação da matéria de facto da sentença como base para dar como provados os factos imputados ao arguido anteriores a 1 de Janeiro de 2005.
Ainda assim diremos aqui que esta testemunha - que como as anteriores teve um depoimento muito seguro -, não se limitou a declarar que antes de 1 de Janeiro de 2005 não desconfiou que havia maus tratos físicos do arguido à assistente.
Declarou, ainda, designadamente, que antes do dia 1 de Janeiro de 2005, já se apercebera que o arguido, por palavras, estava sempre “a pô-la abaixo”, de mau humor e que nas discussões sobre a vida deles, rebaixava-a ao compará-la com a mãe dela. A assistente parecia uma pessoa bem disposta, mas após 1 de Janeiro de 2005 viu que era uma “capa dela”. Nesse dia o arguido e a assistente desapareceram de casa e quando a ela perto da noite chegou a casa, se apresentou com marcas de agressão e em pânico, decidiram levá-la para casa dos pais dela. O arguido, que “não deu a cara nessa noite”, foi depois a casa dos pais dela para a convencer a regressar à casa do casal. Nessa altura o arguido chorou, dizendo que ia mudar tudo o que tinha feito, que não lhe ia bater mais e lhe ia dar dinheiro. Quanto à C declarou que é uma criança muito fechada, que era obrigada a trabalhar com o pai desde os cerca de 6 anos. O arguido exigia dinheiro dos produtos que produzia na actividade agrícola, que deduzia do vencimento da assistente.
O depoimento da testemunha JL corrobora, pois, as declarações da assistente e da filha C no sentido de falta respeito e de cooperação do arguido para com a assistente, desde data anterior a 1 e Janeiro de 2005 , bem como de inexistência de comunhão patrimonial imposta pelo arguido, causa esta apontada pela assistente e filha como uma das razões das discussões que cominavam em agressões e ameaças à assistente.
Do depoimento da testemunha JL não se impõe, assim, uma decisão diversa daquela que o Tribunal a quo tomou quanto aos factos em causa.
O recorrente M defende que a testemunha CZ nunca presenciou qualquer zanga e não tem qualquer certeza, em termos temporais, de quando, alegadamente, começaram a existir os maus tratos e, a testemunha I, só na data do divórcio teve conhecimento da existência da maus tratos, pelo que com base nestes depoimentos não se poderia dar como provados os pontos n.º 4 a 14 da sentença.
Importa aqui recordar que da fundamentação da sentença recorrida resulta que o depoimento das testemunhas CZ e MI tiveram particular relevância para dar como provados os factos que constam do ponto n.º 8 da sentença, isto é, que era frequente a assistente apresentar-se no local de trabalho com hematomas nos membros.
Ouvido o depoimento da testemunha CZ prestado em audiência dele resulta que, colega de trabalho da assistente, na residencial X, há volta de 20 anos, nunca presenciou uma discussão entre o casal. No entanto, declarou , designadamente, que em data que não consegue precisar, após o casamento, “no princípio”, quando via nódoas no corpo à assistente ela dizia-lhe que era porque caia aqui ou ali. Mas ela não caía no trabalho. Talvez de há uns 10 anos para cá, de vez em quando a assistente aparecia no trabalho um bocado enervada, a chorar, e acabou por dizer que o arguido a tinha batido. Ela dizia-lhe que por vezes ela ia ajudar o arguido nas obras e desentendiam-se. Várias vezes viu a assistente marcada nas pernas e nos braços, geralmente, e na barriga, porque ela lhe mostrava. Ela sempre tentou esconder as coisas. Usava roupas compridas e não queria que contasse o que se passava. A assistente tinha vergonha e contava-lhe que o arguido a ameaçava, que a cortava às postas, que a matava. Chegou uma altura a partir das 6 horas das tardes em que a assistente andava em stress, pelo que poderia acontecer em casa.
Por sua vez, a testemunha I, dona da residencial … onde a assistente trabalha, desde solteira, declarou que embora nunca tenha assistido a agressões do arguido à assistente viu que esta, quando ainda o casal vivia junto, chegava às vezes ao trabalho com nódoas negras nos braços, o que via mais no verão, por trazer manga curta. Quando perguntava o que se passava ela respondia que tinha batido aqui e ali, mas andava muito triste, o que lhe parecia serem desculpas. Isto já acontecia há muitos anos; há menos de 18 anos, mas “nos últimos tempos”, as nódoas negras, foi pior. Quando se separaram é que a assistente contou os maus tratos e sofrimentos que tinha passado, sendo que ultimamente não trás nódoas negras e tem andado com outra auto-estima.
Do exposto resulta que o Tribunal da Relação não vê qualquer razão para modificar a matéria de facto dada como provada pelo Tribunal a quo nos pontos n.ºs 4 a 14.
O recorrente M. impugna os factos descritos nos pontos n.ºs 15º a 24º da douta sentença, alegando que nenhuma das testemunhas presenciou o que quer que fosse, assistindo tão somente à chegada da assistente a casa, e que a testemunha O até admitiu e considerou que as lesões apresentadas pela assistente eram compatíveis com uma queda.
Antes do mais importa acentuar que o recorrente não impugna as declarações da assistente quanto aos factos ali dados como provados, sendo que ela narrou em audiência, como o arguido, em 1 de Janeiro de 2005, antes de almoço provocou uma discussão com ela e saiu de casa, a mesma pretendeu que regressasse para almoçarem com os familiares que tinha convidado e como junto à … o arguido lhe bateu , acabando por regressar a casa apenas ao fim do dia perante a vergonha de se apresentar cheia de hematomas e como, com o apoio dos irmãos, saiu de casa do casal pela 1.ª vez.
Se é certo que ninguém presenciou as agressões do arguido à assistente, existe prova indirecta que aponta nesse sentido, corroborando as afirmações da assistente.
Assim, a testemunha C. declarou, designadamente, que 1 de Janeiro de 2005 , antes do almoço, o carro do arguido estava trancado por um carro de um familiar e que querendo arranjar discussão, chateou-se e saiu, pelo que a mãe também saiu e ninguém almoçou. Ao fim do dia a sua mãe vinha com a cara negra e suja, arranhada e nas pernas e nos braços e descalça. Nesse dia a testemunha disse aos tios que não era a primeira vez que a mãe era agredida e eles deram-lhes apoio.
A testemunha MO narrou como no dia 1 de Janeiro de 2005, perante o não aparecimento da mãe, a sua sobrinha C, que estava no quarto a chorar, lhe contou que o pai batia na mãe e como viu mais chegar a assistente com a blusa rasgada, com nódoas negras, a chorar e com arranhões na cara e nos braços. Da maneira como ela vinha dava ver para ver que tinha sido agredida.
Tendo sido perguntado à testemunha, perto do fim do seu depoimento , se a assistente poderia ter caído, respondeu que sim , acrescentando, porém , que depois do que a sobrinha lhe tinha contado, de a assistente haver dito que o arguido lhe bateu e que este, ao chegar casa , se fechou no quarto, considera que a assistente foi agredida.
Também a testemunha JL contou em audiência, designadamente, que no dia 1 de Janeiro de 2005, viu que o arguido e a assistente desapareceram de casa e como presenciou, por volta da noite, a chegada a casa da assistente , em pânico, com nódoas negras e uma mancha vermelha na cara, não querendo contar o que se passara, só chorando e como após “puxarem” por ela” contou como fora agredida pelo arguido, o qual “não deu a cara”, nessa noite.
Por fim, a testemunha SM irmão da assistente, que reside em …. contou como na passagem de ano de 2004/2005, o irmão JL lhe ligou a dizer que ninguém sabia da assistente e como já na casa desta a viu chegar com várias marcas no corpo, uma marca no rosto, descalça e bastante despenteada e como perante a declaração de que o arguido a agredia foi decidido que a assistente não ficaria naquela casa e foi levada para casa dos pais dela, onde ficou alguns dias e até o arguido lá se deslocar e a convencer a regressar.
Deste modo, o Tribunal da Relação entende que o Tribunal recorrido não merece qualquer censura por haver dado como provados os factos que constam dos pontos agora em impugnação.
O recorrente impugna os factos dados como provados nos pontos n.ºs 26 a 36 da douta sentença alegando que não foi feita prova acerca da sua ocorrência, nem da data da sua alegada ocorrência, sendo que a testemunha C., não afirma ter visto o arguido agredir a assistente com um chinelo.
Vejamos.
Nos pontos n.ºs 26 a 36 dos factos dados como provados na douta sentença , encontram-se variados factos e períodos de ocorrência, pelo que não basta dizer genericamente que não foi feita prova da sua ocorrência, sem mais. Em concreto e para sustentar esta conclusão, limitou-se o arguido M a alegar que a testemunha C., inclusivamente, não afirma ter visto o arguido a agredir a assistente com um chinelo.
Quanto ao depoimento da testemunha C. diremos que a mesma declarou que dias ou um mês antes de saírem de casa, no verão de 2007, as coisas com o arguido pioraram, agravaram-se, com mais agressões e que se lembra de nessas alturas o arguido bater à assistente, de a agarrar e de lhe bater com chinelos.
A testemunha SM declarou também que viu várias marcas no corpo da sua irmã I., em duas ocasiões. Numa dela, num verão, antes de ela sair de vez de casa, a assistente apareceu num baptizado bastante abatida e vestida. Depois do almoço a assistente, a muito custo, mostrou uma marca, na zona do abdómen, “de sola”, “se era de chinelo ou sapato não sei” e nódoa num dos braços. O assistente disse que tinha sido o arguido.
Relativamente aos episódios que se sucedem após Fevereiro de 2005, em especial os relativos ao verão de 2007, que são os indicados mais em concreto na matéria agora em causa, a assistente narrou os mesmos com suficiente minúcia, mesmo a nível de datas, que coincidem com as mencionadas na queixa crime por ela apresentada ao Ministério Público no dia 23 de Outubro de 2007.
Assim, esclareceu , designadamente, que cerca de um mês, após início de Janeiro de 2005, de depois de o arguido a ter ido buscar a casa dos pais dele dizendo-lhe que estava arrependido, que ia mudar e que voltasse, “voltou tudo ao normal”, narrando como voltou a ser agredida no corpo, ameaçada pelo arguido de que a matava, que ia ter com os amantes e que era vaca, cabra , puta , entre outros nomes injuriosos. Com respeito ao verão de 2007, narrou os factos que foram dado como provados, designadamente como em duas ou três ocasiões teve de dormir no interior do carro com o filhos por o arguido lhe trancar a porta da casa, como este ameaçava que queimava a casa, como lhe batia no mês de Agosto e como em princípios de Setembro de 2007, as discussões eram constantes e o arguido lhe batia nessas ocasiões, quase diariamente, com as mãos e a deitava ao chão ao mesmo tempo que lhe dizia para desaparecer e que a matava, o que a levou a sair de casa no dia 20 desse mês.
Esta matéria foi corroborada no essencial pela testemunha C., esclarecendo ambas como por vergonha e medo da reacção do arguido, a assistente não se deslocou nessas alturas a receber assistência médica das lesões resultantes das agressões corporais.
Deste modo, o Tribunal da Relação não vê razões para modificar esta matéria de facto impugnada pelo recorrente com os fundamentos por ele alegados.
O arguido impugna a matéria de facto dada como provada nos pontos n.ºs 38º e 39º da douta sentença, alegando que, para lá de não haver prova da prática dos mesmos, a douta sentença encerra em si uma contradição, pois os factos alegadamente ocorridos … ocorreram após uma ida do ex-casal ao gabinete de uma Sra. Solicitadora, e o Tribunal "a quo" considerou provados a ocorrência de tais factos na Ponte Velha e considerou não provados os factos alegadamente ocorridos no gabinete da Sra. Solicitadora. As provas produzidas acerca das duas situações foram idênticas, pois a assistente descreveu ambas as situações e a testemunha Custódia prestou um depoimento indirecto acerca de ambas as situações, pelo que ou o douto Tribunal valorava a prova e considerava ambas as situações provadas ou não valorava e considerava ambas as situações não provadas.
Vejamos.
Os factos dados como provados nos pontos n.ºs 38 e 39 encontram sustentação nas declarações da assistente, tidas pelo Tribunal a quo, no âmbito da imediação e oralidade como isentas e credíveis, sendo que o Tribunal da Relação não tem elementos objectivos para concluir de modo diverso. A testemunha CZ declarou que não presenciou os factos ocorridos no caminho na … , mas ouviu da assistente contar-lhe que ele a ameaçou ou que a matava e que acreditou no que a assistente lhe contou , porque a conhece.
Quanto ao mais , é evidente que não existe qualquer contradição na sentença.
O Tribunal "a quo" ao considerar provados os factos que ocorreram …, deu como provada parte da acusação do Ministério Público.
Não se vislumbra na acusação do Ministério Público, nem no pedido de indemnização cível, quaisquer factos ilícitos praticados pelo arguido no gabinete da Sra. Solicitadora.
O próprio arguido não especifica, em concreto, quais os factos praticados pelo arguido no gabinete da Sra. Solicitadora, que deveriam ter sido tomados em consideração na sentença. Será que pretendia que ficasse a constar que no dia em foi ao gabinete da solicitadora AT para tratar do divórcio, esta solicitadora teve que gritar com o arguido, que dizia que era tudo dele? Se era, diremos que o facto era irrelevante para o crime imputado ao mesmo, pelo que, não havendo ainda sido descrito na acusação, no pedido de indemnização ou na contestação, não tinha o Tribunal a quo que tomar posição sobre ele, em termos de o dar como provado ou não provado.
O Tribunal da Relação entende, deste modo, que a sentença recorrida não padece de contradição, nem o Tribunal recorrido merece qualquer censura por haver dado como provados os factos que constam dos pontos agora em impugnação.
Finalmente, quanto aos factos descritos nos pontos n.ºs 41º a 43º da douta sentença, o arguido defende que não foi produzida qualquer prova testemunhal acerca dos mesmos, sendo certo que só a assistente os relata , sem qualquer data concreta, pelo que, para lá de os factos não se poderem considerar praticados, jamais pode ser fixada a data de 10 de Outubro.
Vejamos.
Os factos dados como provados nos n.ºs 41º a 43º da douta sentença, relativos a uma ocorrência no dia 10 de Outubro de 2007, resultam das declarações da assistente.
Uma vez , porém, que as declarações da assistente, globalmente, foram consideradas credíveis, não viola as regras da experiência comum e a livre convicção do Tribunal considerar os factos por ela narrados como verificadas, nos termos em que ela os relatou e foram dados como provados. Quanto ao dia em que , no dizer da assistente, se dirigia para a residencial Luanda, levando consigo o filho M e o arguido a abordou num estacionamento e a agarrou, só a largando quando uma senhora disse que se não a deixava chamava a polícia, a mesma não soube já precisar o dia em que ocorreu, após a sua saída definitiva da casa de morada de família, em 20 de Setembro de 2007. Constando, porém, do documento, que constitui a queixa apresentada pela assistente, em 23 de Outubro de 2007, que os factos ora referidos foram praticados dias antes, concretizando o dia 10 de Outubro, é razoável concluir-se que eles tiveram lugar nessa data.
Relativamente aos depoimentos das testemunhas de defesa, no sentido de que não se aperceberam de má vivência do casal, estando assim em oposição aos factos relatados pela assistente e pelas testemunhas Ca, JL, MO, CZ, MI e S, basta aqui recordar as declarações da assistente no sentido de que até quando pôde foi sempre escondendo os maus tratos de que era vítima e que a C. disse : “o meu pai à frente de todos era um santo, toda a gente o adorava; ninguém sabia nada disto”.
Os crimes de maus tratos e de violência doméstica são crimes cometidos, em regra, na intimidade da família, encobertos pela vergonha da vítima em expor em público um casamento falhado e disfarçados pelo agressor, que frequentemente ameaça quem os sofre de graves represálias se os divulgar e de manipular os sentimentos dos agredidos. Fora de casa apresentam-se assim como o casal perfeito.
As razões apontadas na fundamentação da sentença recorrida para optar pela versão dos factos apresentada pela assistente I..., sustentada nos depoimentos das testemunhas C, J L, MO, CZ MI e S, em detrimento da versão apresentada pelo arguido - para o qual sempre houve bom relacionamento com a assistente , não sabendo explicar a razão das imputações desta, e que “só pode ser para o deixar na miséria” - mostra-se objecto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, onde não se vislumbra qualquer assumo de arbítrio na apreciação da prova.
A versão dos factos dada como provada na decisão recorrida é admissível face às regras da experiência comum e livre convicção, pelo que o Tribunal da Relação não vê razões para concluir que o Tribunal a quo devia ter decidido de modo diverso.
Quanto aos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e o erro notório na apreciação da prova, que são vícios previstos no art.410.º, n.º 2 do C.P.P., é manifesto que eles não se verificam.
O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada verifica-se quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos que , podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação ( e da medida desta) ou de absolvição. - Cfr. entre outros , os Acórdãos do STJ de 6-4-2000 (BMJ n.º 496 , pág. 169) e de 13-1-1999 (BMJ n.º 483 , pág. 49). Admite-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal “a quo” através dos meios de prova disponíveis, poderiam ser dados como provados, determinando uma alteração da qualificação jurídica da matéria de facto, ou da medida da pena ou de ambas – Cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques , in “Código de Processo Penal anotado”, 2ª ed., pág. 737 a 739.
o erro notório na apreciação da prova a que alude o art.410.º, n.º 2 do C.P.P. , tem lugar “... quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável , quando se dá como provado algo que notoriamente está errado , que não podia ter acontecido , ou quando , usando um processo racional e lógico , se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica , arbitrária e contraditória , ou notoriamente violadora das regras da experiência comum , ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto ( positivo ou negativo ) contido no texto da decisão recorrida”. - Cfr. Cons. Simas Santos e Leal-Henriques , in “Código de Processo Penal anotado”, Rei dos Livros , 2ª ed. ,Vol. II , pág. 740. No mesmo sentido decidiram , entre outros , o acórdão do STJ de 4-10-2001 (CJ, ASTJ, ano IX, 3º , pág.182 ). O erro notório na apreciação da prova, nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida e aquela que o recorrente entende ser a correcta face à prova produzida em audiência de julgamento.
No presente caso, a sentença recorrida apreciou os factos constantes da acusação do Ministério Público, bem como os do pedido civil, enumerando os factos provados e não provados. Na contestação o arguido limitou-se a oferecer o merecimento dos autos e tudo o mais que a seu favor resultasse da discussão da causa.
Do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, não se colhe que ficaram factos por apurar na audiência de julgamento e que ainda pudessem ser realizados com interesse para a causa, sendo que os factos dados como provados pelo Tribunal recorrido permitem decidir sobre o preenchimento dos elementos constitutivos do crime imputado ao arguido.
Por outro lado, da fundamentação da matéria de facto, não vemos que o Tribunal recorrido, ao dar como provada a matéria de facto que o recorrente impugna, tenha seguido um raciocínio ilógico, arbitrário ou contraditório, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, de onde se possa concluir pela existência de um erro notório na apreciação da prova.
Improcede assim integralmente esta questão.
Passemos ao conhecimento da segunda questão, relativa à violação do princípio “in dubio pro reo”.
O princípio “in dubio pro reo” , decorre do principio da presunção da inocência , consagrado no art.32.º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa, que estatui , designadamente , que “ todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.
O princípio “in dubio pro reo” estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido. Ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet.
O Tribunal de recurso apenas pode censurar o uso feito desse principio se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, escolheu a tese desfavorável ao arguido - cfr. entre outros , o acórdão do S.T.J. de 2 e Maio de 1996 ( C.J. , ASTJ , ano IV , 1º, pág. 177 ) .
A convicção do Tribunal recorrido expressa na sentença, adquirida na base da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, no sentido de que o arguido praticou os factos dados não é irracional, nem viola as regras da experiência comum, como atrás se deixou já consignado.
Lendo a fundamentação sobre a matéria de facto da sentença recorrida não se vislumbra nela que o Tribunal recorrido tenha chegado a qualquer estado de dúvida sobre a prática pelo arguido M dos factos que deu como provados.
Está deste modo afastada quer a existencia de erro de julgamento da matéria de facto, quer a violação pelo Tribunal recorrido do princípio “in dubio pro reo”, pelo que se considera definitivamente fixada a matéria de facto nos termos que constam da sentença recorrida.
Importa decidir, em seguida, se os factos provados integram ou não a prática, pelo arguido, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1, al. a), 2 e 4, do Código Penal.
O crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1, al. a), 2 e 4, do Código Penal, pelo qual o arguido foi acusado e condenado em 1.ª instância, foi introduzido no Código Penal pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro.
Este tipo penal estatui, designadamente, o seguinte:
« 1 – Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
(...)
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se perna mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal
2 – No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
(...)
4 – Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica. ».
Na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 98/X, que originou a Revisão do Código Penal introduzida pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro, menciona-se que entre as principais orientações destacam-se « o reforço da tutela de pessoas particularmente indefesas, como as crianças, os menores e as vítimas de violência doméstica, maus tratos ou discriminação », salientando-se o seguinte:
« Ainda em sede de crimes contra a integridade física, os maus tratos, a violência doméstica e a infracção de regras de segurança passam a ser tipificados em preceitos distintos, em homenagem às variações de bem jurídico protegido. Na descrição típica da violência doméstica e dos maus tratos, recorre-se, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, para esclarecer que não é imprescindível uma continuação criminosa. No crime de violência doméstica, é ampliado o âmbito subjectivo do crime passando a incluir as situações de violência doméstica que envolvam ex-cônjuges e pessoas de outro ou do mesmo sexo que mantenham ou tenham mantido uma relação análoga à dos cônjuges. Introduz-se uma agravação do limite mínimo da pena, no caso de o facto ser praticado na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima, ainda que comum ao agente. À proibição de contacto com a vítima, cujos limites são agravados e pode incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho com fiscalização por meios de controlo à distância, acrescentam-se as penas acessórias de proibição de uso e porte de armas, obrigação de frequência de programas contra a violência doméstica e inibição do exercício paternal, da tutela ou da curatela.».
O bem jurídico protegido no crime de violência doméstica – como no crime de maus tratos, do art.152.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, que na versão de 1995, punia com pena de prisão de 1 a 5 anos, « quem infligir ao cônjuge, ou a quem com ele conviver em condições análogas às dos cônjuges, maus tratos físicos ou psíquicos.» - é complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física e psíquica e dignidade da pessoa humana, em contexto de coabitação conjugal ou análoga e, actualmente, mesmo após cessar essa coabitação.
Enquanto nos maus tratos físicos se incluem os castigos corporais e as ofensas corporais simples, nos maus tratos psíquicos compreendem-se, designadamente, humilhações, provocações, ameaças e curtas privações de liberdade de movimentos.
Não são porém, todas as ofensas entre cônjuges que cabem na previsão legal, “ ..mas aquelas que se revistam de uma certa gravidade ou, dito de outra maneira, que fundamentalmente traduzam crueldade, ou ininsensibilidade, ou, até, vingança desnecessária por parte do agente”. – cfr. acórdão do STJ, de 14-11-1997, CJ, ASTJ, ano V, 3.º, pág. 235.
No debate sobre a necessidade de exigência ou não da reiteração como elemento integrador do crime de maus tratos, p. e p. pelo art.152.º, n.º 2 do Código Penal revisto em 1995 defendíamos não ser de exigir necessariamente a reiteração na conduta criminosa, mas para que uma só conduta fosse suficiente para o preenchimento do tipo esta tinha de se mostrar especialmente grave - cfr. neste sentido também, entre outros, o citado acórdão do STJ, de 14-11-1997 e o acórdão do STJ de 2 de Julho de 2008 , proc. n.º 07P3861, in www.dgsi.pt.
Do texto do art.152.º, n.º1 do Código Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, resulta que o crime de violência doméstica pode ser praticado “ …de modo reiterado ou não…”.
O crime em causa exige o dolo, isto é, o conhecimento e vontade de realização da conduta antijurídica, com consciência da ilicitude.
No caso em apreciação, está dado como provado que o arguido M.e a assistente I. eram casados um com o outro à data dos factos.
Resultou ainda provado, designadamente, que o arguido, desde data não determinada mas já depois do nascimento do segundo filho, M, nascido a … de … de 1996, no interior da residência de ambos, envolvia-se com a assistente em discussões relacionadas com a gestão da economia doméstica, situação que se intensificou a partir do ano de 2005.
Na sequência das discussões, o arguido agredia fisicamente a assistente, desferindo-lhe murros nos membros superiores e pontapés nos membros inferiores, causando-lhe, desse modo, directa e necessariamente, ferimentos e lesões que careciam de tratamento médico.
A assistente nunca se deslocou a qualquer unidade de saúde, nem pediu auxílio a terceiros, por recear a reacção do arguido, caso o fizesse, e por pretender proteger os seus filhos menores e, por esse motivo, era frequente a assistente apresentar-se no local de trabalho com hematomas nos membros.
Também nessas alturas, o arguido ameaçava a assistente, dizendo sempre em tom intimidatório que um dia iria matá-la, o que fazia sempre em tom altivo e sério, fazendo crer à assistente que estava firmemente decidido a concretizar tais ameaças, levando a assistente a sentir medo e receio pela sua integridade física e pela sua vida;
Ainda na sequência das discussões, o arguido dirigiu-se à assistente chamando-a puta, cabra, vaca e coirão e acusava a assistente de manter relacionamentos com outros homens, dizendo-lhe que a mesma tinha amantes.
Dentro deste comportamento , no dia 1 de Janeiro de 2005, sensivelmente antes da hora de almoço, o arguido iniciou uma discussão com a assistente, após o que saiu de casa. Por ser dia festivo e a família estar a preparar-se para almoçar, a assistente decidiu seguir o arguido, por forma a convencê-lo a regressar a casa para almoçarem. Então , próximo da Fábrica …, em Valbom, área desta comarca, o arguido desferiu uma bofetada na assistente, atingindo-a na face e diversos pontapés nas pernas, e empurrou-a por diversas vezes, o que provocou a queda da mesma no chão e, como consequência directa e necessária de tal comportamento do arguido, a assistente sofreu equimoses e hematomas na face. Por tal motivo decidiu não regressar de imediato a casa, por sentir vergonha dos seus familiares e não pretender que os mesmos vissem tais lesões e, assim, soubessem que era vítima de mais tratos por parte do seu marido, o que a levou a só regressar a casa pelas 17h daquele dia 1 de Janeiro de 2005, e já depois dos respectivos familiares a terem procurado. Quando regressou a casa, a assistente apresentava hematomas nos membros superiores e inferiores e na face, estava descalça e com a blusa rasgada;
Os familiares da assistente convenceram-na a ir morar com os seus pais, ao que a mesma acedeu, e onde permaneceu até ao dia 4 de Janeiro de 2007, data em que regressou a casa, depois de o arguido lhe ter dito que iria mudar de comportamento e por pensar nos seus dois filhos menores.
Decorridos cerca de um mês, o arguido começou a agredir a assistente, a injuriá-la e a ameaça-la que a matava, assumindo as discussões com a assistente maior intensidade a partir do Verão de 2007.
Em dois fins-de-semana do Verão de 2007, depois de a assistente visitar os seus pais, ao regressar a casa, acompanhada dos dois filhos menores, encontrava a porta de entrada trancada, dado que o arguido fechava a porta, deixando a chave na fechadura, a fim de os impedir de entrar em casa. Nessas ocasiões e dirigindo-se quer à assistente, quer aos seus filhos, o arguido dizia que se não se pusessem na rua, ele trataria disso um dia e queimaria a casa onde o agregado familiar residia. A assistente e os filhos passaram a noite no interior do respectivo veículo automóvel, dado que o arguido não lhes abriu a porta, onde permaneceram até ao dia seguinte, esperando que o arguido saísse de casa, para poderem entrar em casa.
No dia 13 de Agosto de 2007, no interior da respectiva residência, o arguido desferiu várias bofetadas na face da assistente, agarrou-a pelos braços e empurrou-a;
Noutra ocasião, ocorrida em Agosto de 2007, o arguido, servindo-se de um chinelo, desferiu com o mesmo diversas pancadas nos braços e costas da assistente e, em consequência, a assistente sofreu hematomas nos braços, os quais lhe causaram dores.
A assistente não se deslocou a qualquer unidade de saúde, a fim de receber assistência médica, por recear a reacção do arguido.
Na primeira quinzena do mês de Setembro de 2007, diariamente, o arguido iniciou discussões com a assistente, dizendo-lhe que se a mesma “não se pusesse na rua, a matava a ela e mais dois ou três”, o que fez de forma exaltada, em tom sério e intimidatório.
Por esse motivo, por sentir medo do arguido, no dia 20 de Setembro de 2007, a assistente foi residir com os respectivos progenitores, acompanhada dos seus dois filhos, onde permanece até hoje.
Apesar de naquela data ter saído da casa de morada de família, no dia 26 de Setembro de 2007, pelas 11h, em Tomar, o arguido dirigiu-se à assistente e disse-lhe, em tom exaltado, “eu sou maluco, tu não brinques comigo, que já sabes o que é que acontece” e, em seguida, na …, em Tomar, disse-lhe, mais uma vez, que a matava.
No dia 30 de Setembro de 2007, durante a tarde, o arguido dirigiu-se à residencial X onde a assistente trabalha, e, ao não encontrar esta, disse, de forma exaltada e agressiva, perante as colegas da assistente que ali se encontravam, que os bens eram todos dele, que não respondia por ele, que a assistente não quisesse estragar a sua vida, nem a dele.
No dia 10 de Outubro de 2007, cerca das 8h, quando a assistente se dirigia para o seu local de trabalho, acompanhada do seu filho M, foi abordada pelo arguido, que a agarrou nos braços, abanou-a e lhe disse “tu não brinques comigo, que já sabes do que é que eu sou capaz de fazer”. Só com a intervenção de transeuntes, que foram em auxílio da assistente, o arguido a largou.
Os actos descritos como praticados pelo arguido causaram à assistente I, de modo repetido, como foi propósito dele, humilhação, lesões físicas e dores, além de perturbação da liberdade pessoal da assistente através de ameaças, e ofensas à sua honra e consideração como pessoa e como cônjuge.
O arguido agiu com dolo directo e intenso, com liberdade na acção, conhecendo e querendo infligir ao seu cônjuge maus tratos físicos e psíquicos , com conhecimento de que a sua conduta era proibida.
Deste modo, o arguido preencheu com a sua conduta todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.152.º, n.ºs 1, al. a), do Código Penal.
Uma vez que a maior parte dessas discussões e consequentes ofensas corporais à assistente, à sua honra e consideração e à sua liberdade pessoal, ocorriam na presença dos filhos do casal e no interior da residência do casal, até que a assistente a abandonou, apenas em 20 de Setembro de 2007, o arguido preencheu ainda com a sua conduta a agravante do n.º 2 , do art.152.º, do Código Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro.
A questão a conhecer de seguida é se o Tribunal a quo não devia ter aplicado na sentença recorrida a Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, uma vez que os únicos factos alegadamente praticados após 15-09-2007, constantes dos pontos n.ºs 41 a 43 da sentença, não resultaram provados.
No seu entender deveria ter-se aplicado a legislação do Código Penal anterior à entrada em vigor da Lei n.º n.º 59/2007, que não previa o agravamento do n.º2 do actual art.152.º do Código Penal.
Vejamos.
A decisão recorrida defende que o crime de violência doméstica é um crime permanente.
O crime permanente ou duradouro é aquele em que o facto ilícito se renova continuamente no tempo, e em que a cessação da situação ilícita depende da vontade do agente.
O facto ilícito violador do bem jurídico só estará “acabado” com a cessação dessa situação.
Daí que o art.119.º, n.º 2, al. a), do Código Penal, estabeleça que o prazo de prescrição do procedimento criminal, nos crimes permanentes, só corre desde o dia em que cessar a consumação.
No acórdão deste Tribunal da Relação de 21 de Outubro de 2009 ( proc. n.º 302/06.GAFZZ.C1, in www.dgsi.pt/jtrc) entendeu-se que o crime de maus tratos a cônjuge, p. e p. pelo art.152.º do Código Penal , na versão anterior à Revisão de 2007, é um crime habitual, em que cada uma das condutas isoladamente perde a sua autonomia para efeitos punitivos, razão pela qual o prazo prescricional do procedimento só se inicia desde o dia da prática do último acto ( art.119.º, n.º2, al. b) do Código Penal ).
Cremos que o crime de violência doméstica, quando existe uma reiteração de condutas ilícitas no tempo por parte do agente, violadoras da dignidade da vítima , só deve ter-se como “acabado” quando é praticado por ele o último acto integrante da situação ilícita em que por sua vontade manteve a vítima.
Tal como sucede também nos crimes continuados, em que o prazo de prescrição do procedimento criminal só se inicia desde o dia da prática do último acto ( art.119.º, n.º2, al. b) do Código Penal ).
No entender do Prof. Figueiredo Dias em todos os crimes em que a conduta se prolonga no tempo, de tal modo que uma parte ocorre no domínio da lei antiga e outra parte no da lei nova, de que são exemplo paradigmático os crimes duradouros, também chamados “permanentes”, e também, paralelamente , os crimes continuados , a melhor doutrina é a que qualquer agravação da lei ocorrida antes do término da consumação só pode valer para aqueles elementos típicos do comportamento verificados após o momento da verificação legislativa - cfr. “Direito Penal , Parte Geral”, Tomo I, Coimbra Editora, 2004, pág. 183.
As alterações ao Código Penal que lhe foram introduzidas pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, entraram em vigência no dia 15 de Setembro de 2007 ( art.13.º da Lei n.º 59/2007).
No caso em apreciação resultou provado que desde data indeterminada, mas com intensificação a partir do ano de 2005, o arguido, no interior da casa de morada de família e na presença dos filhos na maior parte das vezes, discutia com a assistente e nessa sequência ameaçava-a e agredia-a física e psicologicamente.
Nenhum limite temporal de cessação desta situação ilícita é colocada nos factos dados como provados até ao dia em que a assistente saiu da casa de morada de família, em 20 de Setembro de 2007.
Resultou mesmo provado que na primeira quinzena de Setembro de 2007, diariamente, o arguido iniciou discussões com a assistente, na casa de morada de família , que culminaram com a saída da assistente de casa no dia 20 de Setembro de 2007, acompanhada dos seus dois filhos.
A renovação continuada da conduta ilícita do arguido de violação da dignidade da assistente , na casa de morada de família e na presença dos filhos , não terminou com a entrada em vigor do Código Penal na Revisão de 2007, no dia 15 de Setembro de 2007, mantendo-se até à saída da arguida , acompanhada com os filhos, no dia 20 de Setembro do mesmo ano.
Mesmo após a saída da assistente da casa de morada de família, o arguido praticou ainda os factos mencionados nos pontos n.ºs 38 a 43 dos factos provados, alguns dos quais perante um filho, integradores de maus tratos psicológicos e de perturbação da liberdade pessoal da assistente .
Assim, quer se considere que o crime de violência doméstica apenas se consumou com o último acto, praticado depois da entrada em vigor do Código Penal de 2007, e que por isso não há que colocar qualquer questão de sucessão de leis penais no tempo, quer se considere que há que tomar em consideração a sucessão de aplicação da lei no tempo quanto aos factos agravantes, o Tribunal da Relação entende que os factos praticados pelo arguido M após 15 de Setembro de 2007, causando “sempre humilhação na assistente ” ( ponto n.º 44 dos factos provados), através de ofensas à dignidade da assistente, só por si, permitem subsumir a conduta do arguido na imputada prática do crime de violência doméstica e respectiva agravação.
Deste modo, consideramos que o Tribunal recorrido não merece censura ao aplicar a lei nova à conduta do arguido.
Passemos agora a decidir se, a considerar-se provado que o arguido M. agrediu a assistente na passagem de ano de 2004/2005, estaríamos perante a eventual prática de um crime de ofensas corporais simples, cujo direito de queixa por ter não sido exercido no prazo de 6 meses, se extinguiu.
Já atrás se deixou consignado que os factos dados como provados integram a prática de um crime de violência doméstica.
Assim , os múltiplos actos que integram aquele crime, que se prolongaram no tempo, como as ofensas à integridade física, as ameaças, e as injúrias, perdem a sua autonomia.
A violência doméstica, como forte impedimento ao bem estar físico, psíquico e social de todos o ser humano e um atentado aos seus direitos à vida, à liberdade, à dignidade humana e à integridade física e emocional, não se compadece com a invocação de costumes e tradições para iludir a obrigação dos Estados de a combater com todos os meios ao seu alcance – cfr. Resolução do Conselho de Ministros n.º 83/2007, que aprovou o “III Plano Nacional contra a violência doméstica ( 2007-2010)”, publicado no DR, 1.ª Série de 22 de Junho de 2007.
Ditados populares, como o invocado pelo arguido M..., de que “ entre o marido e mulher não se mete a colher”, não têm já qualquer apoio a nível legislativo, nem na maioria da sociedade, quando estão em causa comportamentos que ofendem gravemente a dignidade do outro cônjuge, como aqui sucede.
Hoje, o crime de violência doméstica, tem natureza pública, sendo que também o crime de maus tratos a cônjuge, p. e p. pelo art.152.º do Código Penal , na redacção anterior à Revisão de 2007, já tinha natureza pública com as alterações introduzidas no mesmo preceito pela Lei n.º 7/2000, de 27 de Maio.
Improcede, assim, também esta questão.
A última questão a conhecer é se o arguido M. não devia ter sido condenado no pagamento de uma indemnização à assistente, por não estarem reunidos os pressupostos da responsabilidade por facto ilícito, e se o valor fixado é elevado.
Vejamos.
O art.483.º do Código Civil enuncia os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, que obrigam a indemnizar o lesado.
São eles os seguintes: a violação de um direito ou interesse alheio; a ilicitude; o vínculo de imputação do facto ao agente a título de dolo ou mera culpa; o dano; e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Em termos sintéticos, diremos que nos direitos de outrem, cuja violação determina responsabilidade civil, incluem-se, principalmente os direitos absolutos e os chamados direitos de personalidade.
No âmbito dos direitos de personalidade, o art.25.º da Constituição da República Portuguesa estabelece que a integridade moral e física das pessoas é inviolável e que ninguém pode ser submetido, designadamente a tratos cruéis e degradantes ou desumanos. E no art.26.º , a lei fundamental reconhece a todos, designadamente, o direito ao bom nome e reputação.
Também o art.70.º , n.º1 do Código Civil , estatui que a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral, inferindo-se . desta referência genérica à tutela geral da personalidade, designadamente, o direito à vida , à integridade física, à liberdade, à honra , ao bom nome e à saúde.
A ilicitude traduz a reprovação da conduta do agente, como sinónimo de violação de um comando geral.
A ilicitude será afastada quando se verificarem causas de justificação do facto , designadamente, quando este é praticado em legítima defesa, no exercício de um direito ou no cumprimento de um dever imposto pela lei ou por ordem legítima da autoridade.
A responsabilidade por facto ilícito exige um vínculo de imputação do facto ao agente a título de dolo ou mera culpa.
Para a conduta do arguido ser censurável a título de culpa , deve o agente agir com conhecimento e vontade de realização das circunstâncias de facto que integram a violação do direito ou de uma norma tuteladora de interesses alheios e com consciência da ilicitude do facto ( dolo) , ou então, sem representar a possibilidade de realização do facto ou representado o mesmo como possível e sem se conformar com essa realização, proceder sem o cuidado a que segundo as circunstâncias está obrigado e de que é capaz ( negligência ou mera culpa).
Os danos são os prejuízos sofridos pelo lesado.
Estes podem ser de natureza patrimonial, quando atingem em si o património, fazendo-o diminuir ou frustrar o seu acréscimo, ou de natureza não patrimonial, quando atingem bens de carácter imaterial, desprovidos de conteúdo económico, insusceptíveis verdadeiramente de avaliação em dinheiro.
Para os danos não patrimoniais rege o disposto no art.496.º do Código Civil, que no seu n.º 3, 1ª parte , estatui que o montante da indemnização deve ser fixado por critério de equidade, tendo em conta as circunstâncias referidas no art.494.º do mesmo Código, ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso que o justifiquem.
A indemnização dos danos não patrimoniais, prevista no art.496.º do Código Civil, reveste uma natureza acentuadamente mista; por um lado, visa a compensação de algum modo, mais do que indemnizar os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com meios próprios do direito privado , a conduta do agente - cfr. Prof. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 8.ª edição, Almedina , pág. 611 e seguintes e acórdão do STJ, de 26 de Junho de 1991, in BMJ, n.º 408.º, pág. 538.
Na formação do juízo de equidade, devem ter-se em conta também as regras da boa prudência, a justa medida das coisas, a criteriosa ponderação das realidades da vida, como se devem ter em atenção as soluções jurisprudenciais para casos semelhantes – cfr. acórdãos do STJ, de 25 de Junho de 2002 ( C.J., ASTJ, ano X, tomo 2.º, pág. 128) e de 4 de Novembro de 2004 ( C.J., n.º 179, pág. 223).
Por fim, para o preenchimento integral dos requisitos da responsabilidade civil por factos ilícitos, deve estabelecer-se um nexo de causalidade entre o facto e o dano. A obrigação de reparação só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão ( art.563.º do Código Civil ).
No caso em apreciação , resulta dos factos descritos nos pontos n.º s 4 a 43 da matéria de facto dada como assente na sentença , que o arguido M…, violou direitos de personalidade da assistenteI…, ao ofender a integridade física, a honra , o bom nome, a liberdade determinação e a dignidade desta.
O arguido violou normas legais que protegem direitos de personalidade, sem que para o efeito se tenha dado como provada qualquer causa de justificação da ilicitude desta sua conduta.
O vínculo de imputação do facto ao agente, também se verifica no caso em apreciação, e a título de dolo, pois consta dos factos dados como provados ( pontos n.ºs 50 e 52 da matéria de facto dada como assente na sentença) que o arguido M, ao praticar os factos descritos nos pontos n.ºs 4 a 43 da mesma matéria de facto, agiu sempre com vontade livre e consciente , com intenção de maltratar física e psicologicamente a assistente, tendo-a insultado, ameaçado e intimidado, atingindo-a na sua integridade física, na sua honra e dignidade, como queria, bem sabendo que os seus comportamentos eram e são proibidos e punidos por lei penal.
Dos pontos n.ºs 4 a 43 resultam manifestos danos não patrimoniais causados à assistente I pelo arguido M, pois que, como consta dos pontos n.ºs 44 a 44 , este causou-lhe humilhação, dores e lesões físicas que ela curava sem recurso a estabelecimento hospitalar, perturbou a liberdade pessoal da ofendida com ameaças e medo da sua concretização, para além de a ofender na sua honra e consideração que lhe eram devidas como pessoa e como sua mulher, que pelo casamento com ela celebrado tinha o particular dever legal de respeitar.
As lesões físicas, as ofensas à honra e consideração , as dores físicas e morais daí resultantes , a violação da liberdade pessoal e os sofrimentos resultantes da humilhação são o resultado da conduta , repetida ao longo de anos pelo arguido, pelo que , como bem se evidencia dos factos constantes dos pontos n.ºs 44 a 52 da sentença, verifica-se um nexo de causalidade entre os factos imputados ao arguido e os danos apresentados pela assistente.
Deste modo, concluímos que se mostram preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícitos estabelecidos no art.483.º do Código Civil , que determinam a obrigação de indemnizar os danos sofridos pela lesada.
Considerando a longa duração e repetição, das lesões físicas e morais, ameaças e humilhações causadas à assistente/demandante pelo arguido/demandado, sem esquecer a situação económica e social do demandado ( pontos n.ºs 54 a 60 dos factos provados ) e da demandante ( pontos n.ºs 40 e 61 dos factos provados) , afigura-se-nos ser equitativa e justa a indemnização de € 10 000,00, atribuída pelo Tribunal recorrido à demandante I..., em resultado dos danos não patrimoniais.
Assim, é de manter não só a obrigação de indemnização a favor da demandante, como o seu quantitativo fixado pelo Tribunal a quo.


Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido M. e manter o douta sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando em 8 Ucs a taxa de justiça.

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(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.).

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Coimbra,