Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
110/17.5GASAT.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CRIME PERPETRADO PELO PAI NA PESSOA DO SEU FILHO
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
IUS CORRIGENDI
Data do Acordão: 11/10/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE SATÃO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTS. 143.º E 152.º DO CP
Sumário: I – Decorrendo da matéria de facto provada que:
- No Verão de 2017, no período de férias escolares do filho, à data com 14 anos de idade, o arguido forçou-o a ir trabalhar consigo, diariamente, durante cerca de três meses, na realização de serviços inseridos no ramo elétrico, saindo, para o efeito, de casa, pelas 07h00, onde regressavam às 20h00;

- No decurso do referido período, o arguido obrigou o filho a trabalhar com electricidade, não obstante saber que se tratava de tarefa que requeria experiência e era perigosa para a saúde física do menor, sem experiência nesse tipo de actividade;

- O filho chegou a recusar ir trabalhar com o pai, acabando, contudo, por aceder, com receio de que este lhe batesse,

tais factos, consubstanciando um tratamento desumano, cruel, comprometedor do desenvolvimento físico e psíquico do menor, preenchem o tipo de crime de violência doméstica.

II – Só o castigo corporal desproporcionado, imoderado, aquele que ultrapassa o ius corrigendi socialmente aceite, assume relevância criminal.

Decisão Texto Integral:






Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. Na sequência do acórdão de 27.05.2020 proferido por este tribunal, mediante recurso interposto pela assistente/demandante C., por si e em representação dos seus filhos menores JRS1 e JRS2, bem como pelo Ministério Público, no âmbito do qual foi, além do mais, declarado o vício da alínea c), do n.º 2, do artigo 410.º do CPP, acabaram os autos por ser remetidos à primeira instância para novo julgamento a incidir sobre a totalidade do seu objeto, exceção feita aos factos que conduziram à absolvição dos arguidos CT, H e M.

2. Realizado novo julgamento, por sentença de 24.02.2021 o tribunal decidiu [transcrição parcial do dispositivo]:

1. Condenar o arguido P pela prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º n.º 1 alínea a) e n.º 2 alínea a) do Código Penal, praticado na pessoa da ofendida C. na pena de 2 (dois) anos de prisão;

2. Condenar o arguido P pela prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º nº 1 alínea d) e n.º 2 alínea a) do Código Penal, praticado na pessoa da ofendida JRS2 na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão;

3. Condenar o arguido P pela prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º n.º 1 alínea d) e n.º 2 alínea a) do Código Penal, praticado na pessoa do ofendido JRS1 na pena de 3 (três) anos de prisão;

4. Em cúmulo jurídico, condenar o arguido P na pena única de 4 (quatro) anos de prisão;

5. Substituir a pena única de 4 (quatro) anos de prisão aplicada pela pena de suspensão da execução da pena de prisão, pelo mesmo período de tempo, com regime de prova, assente em plano de reinserção social a elaborar pela DGRSP, o qual deverá contemplar:

- a frequência de programa específico para agressores de violência doméstica;

- a educação do arguido para o estabelecimento de relações conjugais saudáveis e de controlo de impulsos agressivos;

6. Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante civil, e em consequência condenar o demandado civil a pagar à ofendida C. o montante de € 1.000,00 (mil euros), à ofendida JRS2 o montante de € 1.250,00 (mil duzentos e cinquenta euros), e ao ofendido JRS1 o montante de € 2.000,00 (dois mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescido de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde o trânsito em julgado da presente decisão até efetivo e integral pagamento;

[…].

3. Inconformado com a decisão recorreu o arguido, formulando as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto da decisão que condenou o recorrente pela prática, em autoria material, na forma consumada de três crimes de violência doméstica, previstos e punidos pelo artigo 152.º n.º 1 al. a) e n.ºs 2, 3, 4, 5 e 6 do Código Penal, nas penas de:

- 2 (dois) anos de prisão, pelo crime de violência doméstica praticado na pessoa da ofendida C;

- 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão, crime de violência doméstica praticado na pessoa da ofendida JRS2;

- 3 (três) anos de prisão, pelo crime de violência doméstica praticado na pessoa do ofendido JRS1.

Sendo o ora Recorrente, em cúmulo jurídico, condenado na pena única de 4 (quatro) anos de prisão.

2. O Tribunal a quo decidiu ainda substituir a pena única de 4 (quatro) anos de prisão aplicada pela pena de suspensão da execução da pena de prisão, pelo mesmo período de tempo, com regime de prova, assente em plano de reinserção social a elaborar pela DGRSP, o qual deverá contemplar:

- a frequência de programa específico para agressores de violência doméstica;

- educação do arguido para o estabelecimento de relações conjugais saudáveis e de controlo de impulsos agressivos.

3. Por fim, o Tribunal a quo decidiu julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante civil, e em consequência condenar o demandado civil a pagar à ofendida C o montante de € 1.000,00 (mil euros), à ofendida JRS2 o montante de € 1.250,00 (mil duzentos e cinquenta euros), e ao ofendido JRS1 o montante de € 2.000,00 (dois mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescido de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde o trânsito em julgado da presente decisão até efetivo e integral pagamento.

4. O Tribunal a quo fez uma incorreta apreciação e valoração da prova produzida em sede de audiência e, em consequência, uma incorreta apreciação e valoração dos factos e subsequente subsunção, interpretação e aplicação dos normativos legais aplicáveis, estando, por isso a douta Sentença inquinada do vício de ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA, relativamente aos factos dados como provados, nomeadamente nos pontos n.º 4 e 5), 14), 15), 16), 18), 21) e, consequentemente, os pontos n.º 22) a 27), bem como os pontos n.º 31) a 39) da matéria de facto dada como provada, factualidade esta fulcral para a condenação do recorrente.

5. É que, não obstante tudo o vertido na douta sentença recorrida pelo Tribunal a quo, no que à fundamentação da sua convicção sob tais pontos se refere, a verdade é que a assunção dos mesmos como provados teve por base, não uma qualquer prova concreta, credível e isenta, mas sim, única e exclusivamente, verdadeiras deduções e juízos de valor que, entende o recorrente, não deveriam e não poderiam ter tido lugar por violarem os princípios constitucionais da presunção de inocência e do in dubio pro reo – art. 32.º, n.º 2 da Const. da Rep. Portuguesa.

6. É, assim, necessário um reexame da matéria de facto dada como provada, nos termos dos artigos 412.º, nº 3 e 431.º, alínea b), ambos do Código de Processo Penal.

7. Por outro lado, sem prescindir, em matéria de Direito deverá apurar-se se:

- Existe erro de julgamento;

- Existe incorreta ponderação do Princípio in dubio pro reo;

- Verificam, quanto ao arguido, os elementos do tipo objetivo e subjetivo dos crimes de violência doméstica pelos quais foi condenado;

- Houve um correto enquadramento jurídico dos factos: crime de violência doméstica ou exercício legítimo do poder/dever de correção dos pais.

8. Desta reavaliação deverá, no entender do Recorrente, resultar a sua absolvição, na medida em que faltam, nos presentes autos, elementos probatórios essenciais, fiáveis, isentos e credíveis que permitam ao Tribunal, sem qualquer margem de dúvida, considerar ter o ora Recorrente praticado os crimes em que foi condenado e nos termos em que o foi.

9. Sem prescindir, caso assim não se entenda, o que por mera hipótese académica se admite, entende o Recorrente que o Tribunal a quo não fez uma correta aplicação do Direito aos factos, nomeadamente quanto à determinação da medida da pena de prisão aplicada e quanto aos montantes indemnizatórios fixados em favor dos ofendidos.

10. Este recurso é, assim, interposto na convicção de que, salvo o devido respeito por douta opinião contrária, não foram devidamente ponderados todos os elementos relevantes aquando da escolha da medida concreta da pena e dos montantes de indemnização fixados, resultando numa desproporcionalidade da pena aplicada relativamente aos factos cometidos e dos referidos montantes em relação à situação económica do arguido/recorrente.

11. O presente recurso irá, assim, versar sobre matéria de direito, bem como, sobre a própria matéria de facto e na prova carreada para o processo, conjugada com a prova produzida em Audiência de Discussão e Julgamento.

12. O Tribunal a quo violou o disposto nos arts. 31.º, 152.º, n.º 1 e 2 do Cód. Penal, os arts. 127.º e 410, nº 2, al. c) do Cód. Proc. Penal, os arts. 494.º e 496.º, n.º 4 e 1878.º do Cód. Civil, os princípios constitucionais do in dubio pro reo e da presunção de inocência, previstos no art. 32.º, n.º 2 da Const. da Rep. Portuguesa, a regra base Penal da determinação da medida da pena, prevista no art.º 71.º do Código Penal, bem como os arts. 40.º, n.º 2, 50.º, n.º 2 e 77.º, n.ºs 1 e 2 do mesmo diploma legal e os arts. 18.º e 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.

13. Quanto à impugnação da matéria de facto, entende o recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro no julgamento, ao abrigo do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, peticionando assim uma reapreciação dos meios de prova que impõem decisão diversa da proferida, relativamente à factualidade dada como provada, quer quanto à matéria criminal, quer quanto a relativa ao pedido de indemnização cível, para o que indicou especificadamente nas motivações as provas que relativamente aos factos impugnados impõe decisão diversa.

14. Na fundamentação da sentença, para além da enumeração dos factos provados e não provados, deve constar uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal (art.374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal).

15. Salvo devido respeito por opinião contrária, na sentença ora em crise o tribunal a quo não indicou as provas que serviram para formar a sua convicção quantos aos factos dados como provados nos pontos 4 e 5, 21, 31 a 39.

16. Entende o recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro notório na apreciação da prova ao dar como Provados os pontos nº 4 a 5, uma vez que a sentença ora em crise é omissa quanto à identificação dos concretos meios de prova que permitiram ao Tribunal a quo julgar e formar a sua convicção quanto aos mesmos.

17. Com efeito, na motivação da matéria de facto, o Tribunal recorrido apenas identifica os meios de prova em que se fundou para dar como provados os factos 1) e 2), mas é completamente omissa nessa indicação quanto aos factos nº 4) a 22), desconhecendo-se, por isso, em que meios de prova o Tribunal a quo se baseou para dar como provados os factos aí descritos.

18. Tanto assim é que, quanto aos factos nº 4) e 5), nem da leitura da referida motivação da matéria de facto, nem da descrição dos depoimentos dos ofendidos e das testemunhas ouvidas em sede de audiência, e nas quais o Tribunal a quo diz ter fundado a sua convicção, se vislumbra qual delas terá dito aquilo que o Tribunal a quo acabou por dar como provados nos referidos factos.

19.verifica-se, deste modo, uma ausência clara de concretos meios de prova que permitissem ao tribunal a quo dar como provados os factos nº 4) e 5), pelo que, por manifesta falta de meios de prova, devia o tribunal a quo ter proferido decisão que julgasse como não provado que:

“4) O arguido, pelo menos por uma vez, não lhe permitiu que esta o acompanhasse na deslocação ao supermercado, deixando de adquirir produtos que esta especificamente lhe solicitara como forma de a castigar e diminuir na sua liberdade e autonomia”.

5) No mesmo período o arguido, pelo menos uma vez, o arguido dirigiu-se à ofendida apelidando-a de ladra, cabra e puta, o que fez na presença da sua filha JRS2, assim a diminuindo, humilhando e atentando contra a sua dignidade não só de mulher mas também de mãe.”

20. Da mesma forma, entende o Recorrente não ter sido produzido qualquer concreto meio de prova que permitisse ao tribunal a quo dar como provada a matéria de facto que consta do ponto nº 21 dos factos dados como provados, nomeadamente quando se diz que “[…] bem como retirou a chave do veículo automóvel à assistente […]”, pelo que se impõe uma decisão diversa da proferia pelo Tribunal a quo.

21. Com efeito, da descrição dos depoimentos constantes da fundamentação da matéria de facto não vê o Recorrente em que testemunho, seja dos ofendidos/assistentes, seja das testemunhas arroladas, o Tribunal a quo retirou a conclusão de que efetivamente o arguido/recorrente retirou as chaves do veículo automóvel à assistente.

22. E a verdade é que ninguém ao longo da audiência de julgamento se referiu a tal facto, nem o mesmo foi questionado pelos mandatários, pela Mma. Juiz a quo ou pela Digna Magistrada do Ministério Público, não tendo, assim, sido produzida qualquer prova que permitisse ao Tribunal a quo dar como provado que o arguido “retirou a chave do veículo automóvel à assistente”.

23. Assim, por manifesta falta de meios de prova, devia o Tribunal a quo ter proferido decisão que julgasse como não provado que o arguido “retirou a chave do veículo automóvel à assistente”.

24. Entende também o Recorrente não ter sido produzido qualquer concreto meio de prova que permitisse ao Tribunal a quo dar como provada a matéria de facto do Pedido de Indemnização Civil contra si deduzido e que consta dos pontos nº 31 a 39 dos factos dados como Provados.

25. A fundamentação da matéria de facto constante da sentença ora em crise é omissa quanto aos meios de prova que permitiram dar os mesmos como provados, tanto mais que, nenhuma das testemunhas arroladas e ouvidas em sede de audiência de julgamento abordou tais factos.

26. Ao longo do julgamento foram abordados e relatados factos que ocorreram entre o Verão de 2017 e Janeiro de 2018, sendo que os factos aqui em discussão, constantes do pedido de indemnização civil, se referem ao período em que o Recorrente e a sua ex-mulher ainda viviam na Alemanha, o que sucedeu apenas até ao ano de 2010.

27. Assim, por manifesta falta de meios de prova, devia o Tribunal a quo ter proferido decisão que julgasse como não provado que:

31) Desde que o demandado e a demandante foram viver para a Alemanha, sempre aquele, por dominar melhor a língua, por ser quem garantia a subsistência da família (embora a demandante também trabalhasse com o demandado) sempre tratou a demandante como se sua submissa fosse, acolhendo a todas as ordens, sob pena de se gerarem discussões que esta receava em virtude de ali perto não ter nenhum familiar que a acudisse e os filhos terem tenra idade.

32) Assim a demandante foi acatando, durante anos, as ordens do arguido, nem sequer as contrariando e quando discutiam tentava não responder com medo da reação que pudesse provocar naquele.

33) O demandado ia, a cada dia de passava, incutindo à demandante, sentimentos de incapacidade, submissão, medo, inquietude e mormente que se tratava de coisa sua.

34) Sentimentos vividos durante anos, em silêncio.

35) O demandante ao atuar da forma descrita pretendeu e logrou infligir à demandante maus tratos físicos e psicológicos.

36) Com os atos praticados pelo demandado a demandante sentiu-se humilhada, diminuída e envergonhada, sobretudo quando o demandado se dirigia a si com palavras ofensivas da sua honra e consideração e imputava-lhe factos e comportamentos também ofensivos da sua honra e consideração, injúrias proferidas à frente dos seus próprios filhos, o que a fez sentir-se ainda mais humilhada e diminuída, o que se refletiu e reflete-se nas suas relações pessoais.

37) O facto de ter sido insultada e tratada da forma como o foi, pelas agressões das quais foi vítima, e que lhe trouxeram diversas lesões no seu corpo consequência do comportamento agressivo do Arguido, o que a fez sentir vulnerável e com medo, temendo inclusive pela sua própria integridade física e dos seus filhos.

38) Para além das dores físicas e mazelas psicológicas da Demandante, os maus tratos que o Demandado infligia aos filhos, provocavam-lhe uma dor de alma sem par, uma humilhação profunda, um desgosto incomensurável.

39) A Demandante sempre, e durante todos estes anos, se sentiu impotente, por si e pelos seus filhos, face ao comportamento do Arguido, que aliado ao medo, à dependência económica (e que durante muitos anos sempre assistiram ao comportamento do pai), determinaram que aturasse todo esse rol.”

28) Merecem, ainda, o epíteto de factos incorretamente julgados os consignados nos pontos nº 14), 15), 16), 18 e, consequentemente, nos pontos nº 22 a 27 dos factos provados da matéria criminal e, consequentemente, todos os dados como provados respeitantes ao pedido de indemnização cível.

29) Andou mal o Tribunal a quo ao dar como provados os factos constantes dos pontos nº 14 a 15 da matéria de facto dada como provada, pois que, da prova produzida em sede de audiência de julgamento, entende o recorrente que apenas se pode dar como assente ter havido uma discussão entre o mesmo e a ex-mulher por causa do filho JRS2, não tendo, contudo, sido produzida prova clara, cabal e segura quanto à forma e à intenção do alegado empurrão.

30) De facto, do depoimento da ofendida JRS2 apenas se consegue concluir que o recorrente terá empurrado a mãe, não tendo, contudo, a mesma concretizado de forma clara como tal terá ocorrido, dizendo, numa versão, que o recorrente puxou a mãe ao mesmo tempo que a empurrou e, numa outra, que a mãe, antes de o pai a empurrar, escorregou - Vide declarações da Ofendida JRS2, gravadas através do sistema integrado de gravação digital, com início pelas 14h38 e término pelas 16h07 – cfr. ata da sessão de audiência de discussão e julgamento de 11-11-2020 – e transcritas nas motivações.

31) Já o ofendido JRS1 refere que acha que o pai empurrou a mãe pelos ombros quando o mesmo o tentava agarrar e que só a mãe é que caiu ao chão - Vide declarações do ofendido JRS1, gravadas através do sistema integrado de gravação digital, com início pelas 16h08 e término pelas 16h48, cfr. ata da sessão de audiência de discussão e julgamento de 11-11-2020; e com início pelas 09h47 e término pelas 10h28, cfr. ata da sessão de audiência de discussão e julgamento de 12-11-2020; e ainda com início pelas 11h44 e término pelas 11h47, cfr. ata da sessão de audiência de discussão e julgamento de 12-11-2020 - e transcritas nas motivações.

32) Por sua vez, a assistente C, afirmou que o arguido/recorrente a agarrou pelo braço (nunca falando nos ombros) e a empurrou, admitindo tê-lo também agarrado e feito desequilibrar, caindo em cima dela.

33) Acrescentando, ainda, que a filha JRS1 não estava presente neste episódio, não tendo visto o que se passou, só aparecendo posteriormente - Vide declarações da assistente C gravadas através do sistema integrado de gravação digital, com início pelas 10h53 e término pelas 12h06 – cfr. ata da sessão de audiência de discussão e julgamento de 03-12-2020 – e transcritas nas motivações.

34) Da análise destes depoimentos ressaltam contradições e muitas imprecisões que não permitiam ao Tribunal recorrido reconstituir o que verdadeiramente se terá passado neste episódio, permanecendo muitas dúvidas por esclarecer quanto ao que realmente se terá passado e quanto à intenção do arguido:

- O arguido agarrou a assistente C pelo braço ou empurrou-a?

- Se a empurrou foi pelos ombros ou por outro sítio?

- Só caiu a assistente ou esta agarrou o arguido e ambos caíram?

- A ofendida JRS1 estava ou não presente, tendo visto o que e passou?

- O arguido empurrou deliberadamente a assistente C ou apenas queria desviá-la para chegar ao seu filho JRS1?

35) Perante tantas dúvidas e incertezas o Tribunal recorrido devia salvo melhor opinião, ter dado como não provados os factos constantes dos pontos nº 14 e 15 dos factos provados.

36) Por sua vez, entende o recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro notório na apreciação da prova ao dar como Provado, da forma como o fez, o ponto nº 16) dos factos provados.

37) Com efeito, resultou dos depoimentos do arguido e da ofendida JRS2 que tal episódio efetivamente ocorreu, contudo, resultou igualmente de tais depoimentos que o arguido só desferiu uma estalada na face da sua filha JRS2 depois de esta o ter insultado e faltado ao respeito, chamando-o de “mentiroso do caralho”, conforme resulta das declarações do arguido, gravadas através do sistema integrado de gravação digital, com início pelas 10h09 e término pelas 10h46 – cfr. aca da sessão de audiência de discussão e julgamento de 11-11-2020 - e transcritas nas motivações.

38) Sendo que, das declarações da Ofendida JRS2, gravadas através do sistema integrado de gravação digital, com início pelas 14h38 e término pelas 16h07 – cfr. ata da sessão de audiência de discussão e julgamento de 11-11-2020, e transcritas nas motivações - resulta que esta admitiu em sede de julgamento ter chamado o pai de “mentiroso”, omitindo convenientemente “do caralho”, e que só depois de ter proferido tal expressão é que o pai lhe desferiu a chapada.

39) Assim, face à prova produzida o Tribunal recorrido devia ter completado o facto sob análise acrescentado que o arguido desferiu uma estalada na face da sua filha após esta o ter chamado de “mentiroso do caralho.”

40) Com efeito, só assim a verdade dos factos se pode considerar respeitada e só assim o Tribunal recorrido estaria em condições de, devidamente, valorar o ato praticado pelo arguido, que se viu obrigado a reagir de forma mais veemente perante o insulto de que foi alvo por parte da sua filha.

41) Assim, quanto ao presente facto, devia o Tribunal a quo ter completado o facto nº 16) e proferido decisão que julgasse como provado que:

16) No dia 15 de Outubro de 2017, ao final da tarde, no interior da residência do casal, na sequência de uma discussão ocorrida entre o arguido e a assistente C, o mesmo abeirou-se da sua filha JTS2 e após esta o ter chamado de “mentiroso do caralho”, desferiu-lhe uma estalada na face e na zona da orelha.

42) Entende também o recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro notório na apreciação da prova ao dar como Provado, da forma como o fez, o ponto nº 18), pois que se é verdade que tal episódio efetivamente ocorreu, contudo, resultou dos depoimentos do arguido e do ofendido JRS1 que o primeiro só desferiu uma chapada na face do seu filho JRS1 depois de este o ter insultado, chamando-o de “rabo”, e de o ameaçar dizendo que “lhe rebentava a cara toda” - Vide declarações do arguido, gravadas através do sistema integrado de gravação digital, com início pelas 10h09 e término pelas 10h46 – cfr. ata da sessão de audiência de discussão e julgamento de 1111-2020 - e declarações do ofendido JRS1 gravadas através do sistema integrado de gravação digital, com início pelas 16h08 e término pelas 16h48 – cfr. ata da sessão de audiência de discussão e julgamento de 11-11-2020 - e transcritas nas motivações.

43) De tais declarações resulta que o filho do recorrente admitiu em sede de julgamento ter chamado o pai de “rabo”, acrescentado que era costume chamar o pai de nomes.

44) Deste modo, face à prova produzida, o Tribunal recorrido devia ter completado o facto sob análise acrescentado que o arguido desferiu uma estalada na face do seu filho após este o ter chamado de “rabo.”

45) Só assim a verdade dos factos se pode considerar respeitada e só assim o Tribunal estaria em condições de, devidamente, valorar o ato praticado pelo arguido, que se viu obrigado a reagir de forma mais veemente perante o insulto de que foi alvo por parte do seu filho.

46) Assim, quanto ao presente facto, devia o tribunal a quo ter completado o facto nº 18) e proferido decisão que julgasse como provado que:

18)No dia 12 de Dezembro de 2017, a hora não concretamente apurada, o arguido, na sequência de uma discussão com o seu filho JRS1, desferiu-lhe uma chapada na cara, após este o ter chamado de “rabo”, deixando-o a sangrar pelo nariz.

47) Da sentença recorrida resulta que o Tribunal a quo, após sopesar toda a prova produzida, concluiu estarem verificados todos os requisitos e elementos do tipo de ilícito dos crimes de violência doméstica, pelos quais o arguido se encontrava acusado, não podendo, por isso, deixar de o condenar.

48) Salvo o devido respeito por opinião contrária, não pode o Recorrente concordar com tal entendimento.

49) O bem jurídico protegido pela incriminação do crime de violência doméstica reside na dignidade da pessoa humana, incluindo-se todos os comportamentos que lesam essa dignidade.

50) O tipo de crime violência doméstica tem como elementos constitutivos do respetivo tipo:

- A inflição de maus tratos físicos ou psíquicos ao cônjuge ou ao ex-cônjuge -Tipo objetivo;

- O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade - Tipo subjetivo.

51) Ora, quanto aos factos constantes da acusação que respeitam aos filhos do arguido, ora Recorrente, entendemos que o tribunal a quo errou ao julgar que os mesmos preenchem os tipos objectivo e subjectivo do crime de violência doméstica. Senão vejamos,

52) Desde logo, quanto ao facto do recorrente ter levado consigo o seu filho JRS1 para trabalhar, o Tribunal a quo deu como não provados os seguintes factos:

a) De imediato, o arguido aproximou-se do menor e disse-lhe que se não fosse consigo trabalhar lhe batia.

b) Nesse mesmo dia, a hora não concretamente apurada, durante o período de trabalho, o arguido, na sequência de um desentendimento, desferiu uma chapada na face do seu filho menor.

c) No dia 10 de Dezembro de 2017, pelas 17h00m, o arguido, na sequência de um desentendimento com a assistente disse-lhe “vai para o caralho”, “vai-te foder”.

d) De imediato, o arguido aproximou-se do menor e disse-lhe que se não fosse consigo trabalhar lhe batia.

e) Nesse mesmo dia, a hora não concretamente apurada, durante o período de trabalho, o arguido, na sequência de um desentendimento, desferiu uma chapada na face do seu filho menor.”

53) Ou seja, embora o arguido/recorrente tenha levado o seu filho JRS! para o trabalho, o que, de acordo com o ponto nº 6) dos factos dados como provados, apenas aconteceu no Verão de 2017, a verdade é que não se provou que aí o arguido tenha agredido, maltratado ou ofendido o seu filho, contrariamente ao que inicialmente constava da acusação.

54) Assim, não se verifica, quanto a tal facto, o preenchimento do tipo objetivo do crime de violência doméstica.

55) De referir ainda que, a decisão do arguido levar consigo o seu filho JRS1 para o trabalho foi uma decisão com a qual a mãe, C, também concordou, como aliás a mesma admitiu em julgamento, dizendo que achava “que é uma coisa útil para os garotos”vide declarações da Assistente C, gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, com início pelas 10h53 e termo pelas 12h06 - cfr. ata da sessão de audiência de discussão e julgamento de 03-12-2020 - e transcritas nas motivações.

56) Deste modo, se o recorrente levava o filho para o trabalho não era com intenção de o castigar, de o molestar física ou psicologicamente ou para o expor aos riscos dos trabalhos elétricos, mas sim como uma forma de aprendizagem, para passar o tempo, para o manter ocupado e distraído tendo em conta os comportamentos que tinha em casa com os irmãos e que o JRS1 também reconheceu ter, admitindo que “chateava muito as minhas irmãs” e que gosta “de lhes chatear a cabeça” - Vide declarações do ofendido JRS1, gravadas através do sistema integrado de gravação digital, com início pelas 16h08 e término pelas 1648 – cfr. ata da sessão de audiência de discussão e julgamento de 11-11-2020, - e ainda, as declarações gravadas através do sistema integrado de gravação digital, com início pelas 9h47 e término pelas 10h28 – cfr. ata da sessão de audiência de discussão e julgamento de 12-11-2020 - e transcritas nas motivações.

57) Nunca houve, nem se provou ter havido, por parte do recorrente qualquer intenção de humilhar, maltratar, castigar ou colocar em perigo o seu filho, contrariamente ao entendimento sufragado pelo Tribunal a quo.

58) Como foi dito pela mãe e irmã do arguido, o mesmo teve de começar a trabalhar e tomar conta das suas irmãs com cerca de onze anos, nomeadamente após a morte prematura do seu pai - Vide declarações da Testemunha (…) gravadas através do sistema integrado de gravação digital, com início pelas 15h03 e término pelas 15h14 – cfr. ata da sessão de audiência de discussão e julgamento de 05-01-2021; e declarações da Testemunha (…) gravadas através do sistema integrado de gravação digital, com início pelas 10h24 e término pelas 10h39 – cfr. ata da sessão de audiência de discussão e julgamento de 1502-2021 - transcritas nas motivações.

59) Este passado pejado de dificuldades, em que o recorrente se viu confrontado, ainda adolescente, com as responsabilidades de um adulto, pode, ainda que inconscientemente, ter contribuído para que o mesmo quisesse levar o seu filho consigo para o trabalho e a ser um pouco mais exigente para com o mesmo, no sentido de o preparar para a vida e para as dificuldades e exigências da mesma, situação pela qual o próprio teve de passar ainda muito jovem, mas nunca, contudo, com o intuito de o castigar ou maltratar de forma gratuita e só porque sim.

60) Assim, também não se verifica,     quanto a tal facto, o preenchimento do tipo subjectivo do crime de violência doméstica.

61) Por sua vez, o ora Recorrente reconheceu em sede de audiência de julgamento ter tido uma postura mais dura para com o seu filho JRS! e a sua filha JRS2 nos quatro episódios referenciados nos pontos nº 10) a 12) e 16) a 20) da matéria de facto dada como provada.

62) Contudo, no seu depoimento o Recorrente explicou de forma simples, coerente, sincera e verossímil que se teve tal postura foi porque, nas referidas ocasiões, os seus filhos tiveram um comportamento incorrecto, repreensível e desrespeitoso para com o mesmo.

63) Com efeito, os atos praticados pelo Recorrente, apenas representaram uma resposta ao mau comportamento e às faltas de obediência e de respeito demonstrados pelos seus filhos e visaram pôr termo e repreender os mesmos, integrando, por isso, o direito e o poder/dever de educação e correção dos pais.

64) Sendo que, o arguido/recorrente deixou bem claro ao longo do seu depoimento que nunca foi sua intenção maltratar gratuitamente os seus filhos ou deixar-lhes marcas físicas ou psicológicas para o resto das suas vidas, mas apenas e só pôr termo aos seus maus comportamentos, faltas de obediência e de respeito, como, entendemos nós, sucederia com qualquer pai nas mesmas circunstâncias.

65) De facto, relativamente ao episódio ocorrido no dia 6 de Agosto de 2017 (pontos nº 10 a 12 dos factos provados), o Recorrente explicou que só tentou tirar o telemóvel à filha JRS2 porque esta, após várias interpelações e como a mesma reconheceu, se recusou a obedecer e a entregá-lo, numa altura em que iam para a missa.

66) Por sua vez, se no dia 15 de outubro de 2017 (pontos nº 16 e 17 dos factos provados) o Recorrente desferiu uma estalada na face da filha JRS2, foi em resposta à falta de respeito demonstrado pela mesma, ao apelidá-lo, entre outros, de “mentiroso do caralho”, tendo a filha JRS2 admitido ter chamado “mentiroso”, omitindo convenientemente “do caralho” – vide declarações transcritas nas motivações.

67) Pelo que, o Recorrente, perante tais palavras ofensivas, usou do seu poder/dever de correcção para que a sua filha cessasse e corrigisse o seu comportamento ofensivo e desrespeitoso.

68) O mesmo tendo sucedido no dia 12 de Dezembro de 2017 (ponto nº 18 dos factos provados) com o filho JRS1, pois que, nessa ocasião, também este chamou o pai de nomes, nomeadamente de “rabo”, como o mesmo reconheceu em sede de julgamento, e ameaçou que lhe “arrebentava a cara toda”, faltando, assim, ao respeito que devia ao pai e ameaçando o mesmo – vide declarações transcritas nas motivações.

69) Por sua vez, no dia 23 de janeiro de 2018 (pontos nº 19 e 20 dos factos provados), mais uma vez o recorrente viu-se obrigado a usar do seu poder/dever de correção para pôr termo ao comportamento desviante do seu filho JRS1, que recusou obedecer-lhe.

70) Da mesma forma, se o Recorrente retirou o computador, telemóveis, cortou o acesso à internet de casa aos seus filhos (ponto nº 21 dos factos provados), fê-lo não para controlar, dominar ou fazer prevalecer as suas vontades e desejos, como contrariamente o Tribunal a quo deu como provado, mas sim em ocasiões em que os seus filhos se recusavam a ir para a cama, tinham comportamentos menos corretos ou passavam demasiado tempo nos telemóveis, como aliás foi reconhecido pelo filho JRS1 aquando do seu depoimento - Vide declarações do ofendido JRS1, gravadas através do sistema integrado de gravação digital, com início pelas 16h08 e término pelas 16h48 – cfr. ata da sessão de audiência de discussão e julgamento de 11-11-2020 - e transcritas nas motivações.

71) Deste modo, estamos em crer que, em cada um destes episódios, a atuação do arguido/recorrente cabe no exercício do seu papel de pai e de educador, não os extravasando e não podendo, por isso, integrar o conceito e tipologia do crime de violência doméstica.

72) De facto, em cada um dos episódios supra elencados relativos aos seus filhos, o arguido/recorrente agiu com o mero intuito de repreender, admoestar e de contribuir para que os seus filhos corrigissem comportamentos e respeitassem o seu pai.

73) Sendo certo que o filho JRS1 disse aqui que o pai/recorrente avisava e pedia sempre primeiro para que parassem os seus comportamentos e só quando tal não sucedia é que o mesmo castigava - Vide declarações do ofendido JRS1 gravadas através do sistema integrado de gravação digital, com início pelas 9h47 e término pelas 10h28 – cfr. ata da sessão de audiência de discussão e julgamento de 12-11-2020 - e transcritas nas motivações.

74) Estamos, assim, perante quatro atos pontuais do arguido, que ocorreram como reações a impropérios e comportamentos censuráveis dos seus filhos, sendo insuficientes para configurarem uma atuação reiterada e, por isso, típica do crime de violência doméstica.

75) De acordo com o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no âmbito do Processo nº 156/13.2GCVFR.P1, datado de 18-02-2015, “a adoção por parte do educador ou progenitor de processos de ofensa física, psíquica ou de castigo corporal, poderão ou não ser integrados num contexto educacional ajustado e, a dúvida sobre a sua licitude ou ilicitude, dependerá numa análise global, de todo o comportamento do cuidador perante essa criança e das necessidades educativas dessa criança.

Uma bofetada ou puxão de orelhas, ocasional e motivado por grave comportamento da criança não pode ser associada a uma conduta de cariz criminal.

No crime de violência doméstica, a conduta apta a lesar o bem jurídico, há-de ultrapassar o razoável, exigindo-se que revele um tratamento degradante ou humilhante, colocando em causa a própria dignidade da pessoa humana., como seja a redução da pessoa a uma coisa sem vontade própria e sem o reconhecimento da sua personalidade.”

76) Ora, no presente caso, em momento algum a conduta do recorrente ultrapassou o razoável e muito menos revelou um tratamento degradante ou humilhante para com os seus filhos.

77) No Acórdão supra citado pode ainda ler-se que: “Só quem não teve filhos ou nunca cuidou de crianças e lhes deu carinho e amor é que pode associar uma bofetada ou um puxão de orelhas, ocasional e motivado por grave comportamento das mesmas, a uma conduta de cariz criminal, ultrapassando os limites do poder-dever educacional do adulto responsável.” - negrito e sublinhado nosso.

78) Ora, os factos assentes nos autos, e enumerados nos pontos 10) a 12) e 16) a 20) da factualidade assente, traduzem-se num ambiente educativo, levado a cabo pelo recorrente, que não se afasta do seu poder-dever educacional, tendo ocorrido de forma ocasional, pontual, circunstancial e tendo sido motivados por graves comportamentos dos filhos do recorrente.

79) Estamos perante ofensas fundamentadas numa finalidade meramente educativa, motivada por um sentimento de impotência face aos comportamentos e faltas de respeito dos seus filhos que afrontaram o pai reiteradamente, nomeadamente por tomarem o partido da mãe na sequência das discussões que entretanto surgiram no seio do casal.

80) Pelo que, com a sua conduta o arguido/recorrente não pretendeu atingir a saúde e bem-estar dos seus filhos, e, consequentemente, não violou o princípio da dignidade da pessoa humana, tendo apenas e tão só a intenção de educar os seus filhos que, esgotada a vertente do diálogo, persistiam em desrespeitar o seu pai.

81) In casu, estamos perante quatro actos isolados, perpetrados num contexto de discussão e em que os filhos adoptaram uma postura desafiadora e desrespeitosa perante o seu pai.

82) De referir também, que os factos constantes da acusação coincidiram com o período em que a relação entre o Recorrente e a sua ex-mulher se começou a desmoronar, pois que, antes disso, foi dito pela assistente C, que o arguido “levava-os ao médico, ele levava-os à creche, ele dava-lhes de comer e dava-lhes banho” - Vide declarações da Assistente C, gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, com início pelas 10h53 e termo pelas 12h06 - cfr. ata da sessão de audiência de discussão e julgamento de 03-12-2020 – e transcritas nas motivações supra.

83) Tudo mudou quando o relacionamento entre o casal ruiu, deixando o ambiente em casa de ser o melhor e passando a existir discussões constantes, acabando os filhos mais velhos por ser apanhados no meio do clima que foi gerado, o que contribuiu para que o comportamento dos mesmos se alterasse e se virassem contra o pai.

84) Vendo-se o recorrente obrigado a agir de uma maneira que nunca antes havia utilizado para os repreender, pois que também nunca antes os mesmos tinham tido atitudes e comportamentos tão gravosos para com o mesmo.

85) Sendo que, como aliás decorre do relatório médico junto pela assistente C, tanto o pai como a mãe têm responsabilidades pelo facto de não terem impedido que os seus filhos assistissem às discussões, assim acabando por os envolver nas mesmas e obrigando-os a tomar partido por um dos progenitores.

86) Após a separação do casal e ao longo dos quase quatro anos que já passaram sobre os factos, as coisas voltaram a acalmar e, atualmente, o relacionamento do recorrente com os seus filhos é mais pacífico, o que demonstra que foi aquele e contexto familiar que despoletou toda a factualidade constante da acusação.

87) Resulta do princípio in dubio pro reo que quando o Tribunal fica na dúvida quanto à ocorrência de determinado facto, deve daí retirar a consequência jurídica que mais beneficie o arguido.

88) No presente caso, devemos ainda acrescentar em abono do Recorrente, que não é evidente que o mesmo tivesse que saber que a sua conduta era proibida por lei.

89) Isto porque os métodos educativos com recurso à punição física são ainda muito aceites na comunidade, mais ainda nas camadas de menor nível socioeconómico, e porque, como foi dito pela mãe e irmã do recorrente em sede de julgamento, ele próprio foi objeto desses métodos educativos, sendo que as pessoas têm tendência a reproduzir os métodos educativos que lhes foram aplicados. - Vide declarações da Testemunha (…) gravadas através do sistema integrado de gravação digital, com início pelas 15h03 e término pelas 15h14 – cfr. ata da sessão de audiência de discussão e julgamento de 05-01-2021; e declarações da Testemunha (…) gravadas através do sistema integrado de gravação digital, com início pelas 10h24 e término pelas 10h39 – cfr. ata da sessão de audiência de discussão e julgamento de 15-02-2021 – e transcritas nas motivações.

90) Como também não é evidente/seguro que a intenção de molestar fisicamente os filhos foi a única causa provável para a sua ação, sendo, no presente caso, admissível e até mesmo certo, que o recorrente agiu com a intenção de corrigir as atitudes reprováveis destes, convencido que essa acção era legítima.

91) Não pode, pois, dizer-se que o cidadão médio tem a consciência de que é sempre ilícito o uso de punição física como método educativo, pois que, de acordo com a teoria da adequação social as ações que se constituíram historicamente na ordem ético-social da vida em comunidade, e portanto socialmente adequadas, nunca se poderão subsumir no tipo legal de crime.

92) Nas palavras de MARIA FARIA - A Adequação Social da Conduta no Direito Penal (ou a Relevância do Simbolismo Social do Crime)”, in Homenagem ao Professor PETER HUNERFELD, Coimbra, Coimbra Editora, 2013 - “se uma conduta é socialmente adequada nunca se chegará a perguntar da consciência do ilícito por parte do seu autor, uma vez que o próprio preenchimento do tipo legal de crime não subsiste perante uma ausência completa e generalizada de consciência social do crime”.

93) MARIA FARIA define a adequação social como o ato de “proceder a uma valoração global da conduta, capaz de permitir afirmar que o sentido social que lhe preside e que a informa não coincide com o sentido social que conduziu o legislador à incriminação de determinada forma de comportamento”, afastando assim a responsabilidade penal dos pais.

94) Na opinião da mesma “a lesão da integridade física do menor que ocorre no regular cumprimento da tarefa educativa não constitui uma conduta penalmente relevante”, pelo que, estando reunidos determinados pressupostos objetivos e subjetivos e fazendo uma valoração global da conduta do educador, “poder-se-á ter o castigo aplicado ao menor como jurídico-penalmente irrelevante” e portanto, ter-se a conduta do titular do poder paternal como “socialmente adequada e atípica, quer para o direito penal, quer para o direito civil”.

95) O art. 1878º, nº 2, do Cód. Civil refere que os filhos devem obediência aos pais, deixando em aberto a forma como este direito-dever de educação deve ser exercido.

96) Ora, a maioria da doutrina e jurisprudência, com a qual nos identificamos, continua a considerar o exercício do direito de correção como um comportamento lícito, “porque autorizado pela lei civil”.

97) Efetivamente, o próprio FIGUEIREDO DIAS, in Direito Penal Parte Geral, Tomo I, 2ª Ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2007, admite “um direito de correção como justificação do facto” que apenas pode ser exercido pelos pais e tutores.

98) TAIPA DE CARVALHO, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2º Ed., Coimbra Editora, 2012, considera que a “eventual justificação” abrange não só os castigos corporais como também “outros eventuais castigos, nomeadamente as privações da liberdade”.

99) Para PINTO DE ALBUQUERQUE, in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª Ed. Atualizada, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2010, “os pais e tutores têm excecionalmente um direito de correção dos educandos, ao abrigo dos seus deveres gerais de educação e cuidado”.

100) Este autor enumera pressupostos para que se possa considerar que a atuação do educador está a coberto de uma causa de justificação, entre os quais: que o exercício do direito de correção, por parte dos pais, seja motivado por “ação voluntária muito grave do educando”, sendo que esta “mede-se por ela ser dirigida contra bens jurídicos protegidos pelo próprio direito penal ou seja, considera que só haverá justificação da conduta do educador quando esta vise dar resposta a um ato que implicaria a responsabilidade criminal do menor se este fosse imputável pois, é para o autor “dever do educador cuidar por que o castigo transmita a censura ético-social associada ao comportamento do educando, de modo a que ele não o repita no futuro”; em segundo lugar, PINTO DE ALBUQUERQUE exige que a ação levada a cabo pelo menor seja voluntária, “não sendo admissível o castigo de menores de tão tenra idade ou com debilidade mental que não percebam o sentido do ato que praticaram”; em terceiro lugar, o castigo só deve ser aplicado depois de prévia advertência do educando”.

101) No caso sub iudice, os atos praticados pelos filhos do recorrente, já em idade adolescente e portanto cientes dos seus atos, contra este e que o levaram a recorrer ao castigo físico representaram uma acção voluntária muito grave dos educandos e violaram bens jurídicos protegidos pelo direito penal, na medida em que injuriaram e ameaçaram o próprio pai.

102) Deste modo, de acordo com a teoria da adequação social e da doutrina acaba de citar, mostra-se justificado o dever de correção exercido pelo recorrente, devendo por isso, considerar-se excluída a ilicitude da conduta do recorrente para com os seus filhos.

103) da mesma forma, atendendo à teoria da adequação social, entendemos que, no presente caso, se pode legitimamente colocar a dúvida quanto à verificação do dolo do arguido/recorrente e aplicando o princípio in dubio pro reo, o que se pode concluir com suficiente segurança, por presunção judicial, é que o mesmo agiu com intenção de corrigir a atitude reprovável dos filhos.

104) Assim, salvo melhor entendimento, os factos imputados ao arguido e relativos aos seus filhos, não integram o tipo do crime de violência doméstica, devendo, por isso, o mesmo ser absolvido dos crimes de violência doméstica que lhe são imputados e, consequentemente, devem os respectivos pedidos de indemnização cível contra si deduzidos ser julgado improcedentes, por não provados.

105) Sem prescindir, dir-se-á ainda que, a entender-se que a conduta do arguido preenche os elementos do tipo da ofensa à integridade física, a ilicitude dessa conduta está excluída, nos termos do art. 31º, nº 1 e nº 2, alínea b), do Código Penal, na medida em que representa o exercício de um direito por parte do arguido, agindo com a intenção de corrigir atitudes desrespeitosas dos filhos, porque não só não obedeciam às suas ordens, como se lhe dirigiam em atitudes verbal e fisicamente agressivas.

106) Quanto aos factos constantes dos pontos nº 4 a 5, 14, 15 e 31 a 39 da matéria de facto provada, que dizem respeito à ex-mulher do recorrente, entendemos, nos termos atrás expostos, que os mesmos não podem ser dados como provados, pelo que, a ser assim, não praticou o recorrente qualquer crime de violência doméstica na pessoa da sua ex-mulher.

107) Pelo que, deve também, quanto a tais factos, ser o recorrente absolvido do crime que lhe é imputado e, consequentemente, ser julgado improcedente, por não provado, o pedido de indemnização cível deduzido contra o mesmo.

108) Sem prescindir e por mera cautela de patrocínio, sempre se dirá que o Tribunal recorrido não sopesou, devidamente, todas as circunstâncias a ponderar na determinação da medida concreta da pena aplicada ao recorrente.

109) De facto, no caso sub iudice e conforme consta da sentença recorrido, o Tribunal a quo entendeu que as exigências de prevenção especial do arguido eram medianas.

110) Contudo, entende o recorrente que o Tribunal recorrido não valorou devidamente as exigências de prevenção especial, levando-o a aplicar penas desadequadas e desajustadas face ao espírito sancionatório das penas e das finalidades de prevenção geral e especial.

111) Face ao que supra se deixou dito, se o recorrente praticou os atos que lhe são imputados, nomeadamente em relação aos seus filhos, foi porque os mesmos o desrespeitaram, ofenderam, insultaram e desafiaram a sua autoridade, vendo-se obrigado a recorrer ao seu poder corretivo para repor a ordem.

112) O recorrente não pretende com isso, contrariamente ao entendimento do Tribunal recorrido, desculpabilizar os seus atos, mas sim explicar o contexto de discussões frequentes entre o casal em que os mesmos ocorreram.

113) A verdade é que, após a separação do casal e nos quase quatro anos que entretanto já passaram sobre os factos, as coisas voltaram a acalmar e, atualmente, o relacionamento do recorrente com os seus filhos é mais pacífico, havendo um esforço da parte do mesmo para tentar remendar o passado, o que demonstra que foi aquele e contexto familiar que despoletou toda a factualidade pela qual o recorrente foi condenado.

114) Assim, a culpa do arguido/recorrente deve, no nosso entender, ser considera reduzida, tendo em conta o contexto familiar em que os atos foram praticados.

115) O crime de violência doméstica é, nos termos previstos no art. 152º, nº 1 do Código Penal, punido com pena de prisão de um a cinco anos e, nos casos previstos no nº 2, com pena de prisão de dois a cinco anos.

116) Ora, tendo por base tais molduras e tendo em conta que, face ao que se deixou dito, a culpa do arguido deve ser considerada reduzida, devia o Tribunal a quo ter considerado, na sua fundamentação, que o grau de ilicitude e as exigências de prevenção especial eram, igualmente, reduzidas, atendendo até ao período de tempo decorrido depois dos factos sem que haja notícia de que o mesmo tenha voltado a praticar factos similares,

117) Assim, entendemos que a pena devia, também, ter sido fixada em termos reduzidos, perto dos seus limites mínimos, tendo-se o Tribunal recorrido excedido ao fixar em 2 anos, 2 anos e 4 meses e 3 anos, respetivamente, as medidas das penas, sendo, no nosso entender, mais adequado e justo fixar:

- pela prática do crime de violência doméstica praticado na pessoa da ofendida C a pena de 1 (um) ano de prisão.

- pela prática do crime de violência doméstica praticado na pessoa da ofendida JRS2 a pena de 2 (dois) anos de prisão.

- pela prática do crime de violência doméstica praticado na pessoa do ofendido JRS1 a pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão.

118) Em consequência, considera o arguido, ora recorrente, que foi, igualmente, alvo de uma excessiva condenação ao ser-lhe aplicada, em cúmulo jurídico, uma pena de 4 anos de prisão suspensa por igual período.

119) Assim sendo, e tendo em conta as penas atrás referidas consideradas mais justas pelo recorrente, entendemos ser suficiente a aplicação ao mesmo, em cúmulo jurídico, de uma pena de 2 anos e quatro meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, tal como decidido pelo tribunal recorrido face à ausência de antecedentes criminais registados e ao facto de se encontrar plenamente inserido profissional e socialmente.

120) A decisão recorrida, por aplicação do atual regime constante dos art. 53º, nº 1 do Cód. Penal, sujeitou ainda o arguido a regime de prova, contudo, o regime de prova não dever ser considerado um mal acrescido e só deve ser decretado se e na medida em que tiver por objetivo alcançar a ressocialização.

121) Ora, in casu, entendemos que tal não se verifica, pois que o arguido/recorrente tem 45 anos de idade e não tem quaisquer antecedentes criminais, relacionados ou não com atos violentos contra pessoas, estando já divorciado, cessou a coabitação com a ex-mulher há cerca de 3 anos, apenas tendo os seus filhos aos fins-de-semana, não havendo, por isso, especiais razões para vigiar a sua readaptação social (art. 53º, n.º 2 do Cód. Penal), pelo que a aplicação de tal regime poderá ter efeitos contrários aos pretendidos, ao prevenir causas que já não se justificam, razão pela qual deverá ser revogado o regime de prova.

122) Devendo, por conseguinte, e sem conceder em nenhum aspeto, a medida concreta da pena ser reduzida, para um montante mais consentâneo com a conduta e com as efetivas necessidades de ressocialização do Recorrente.

123) Em matéria de indemnização civil entendeu o Tribunal recorrido fixar “uma indemnização por danos não patrimoniais quanto à ofendida C no montante de € 1.000,00 (mil euros), quanto à ofendida JRS2 no montante de € 1.250,00 (mil duzentos e cinquenta euros), e quanto ao ofendido JRS1 no montante de € 2.000,00 (dois mil euros).”

124) Ora, entende o recorrente que o Tribunal recorrido não valorou devidamente as suas condições pessoais económicas ao fixar tais montantes indemnizatórios, contrariamente ao estipulado no artigo 496º, nº 4 do Código Civil.

125) No caso sub iudice, relativamente às condições económicas do arguido o Tribunal recorrido deu como PROVADO que o arguido “trabalha como eletricista auferindo uma média de € 800,00 mensais, vive em casa arrendada pela qual paga a quantia de € 180,00 euros mensais, tem como despesas a pensão de alimentos aos seus quatro filhos no valor de € 425,00 mensais e o pagamento de um empréstimo no valor mensal de cerca de € 80,00, não tem outras despesas para além das normais.”

126) Decorre do exposto que, feitas as contas, dos cerca de €800,0 mensais que o recorrente aufere, apenas lhe sobra o montante de € 115,00 (800-180-42580=115,00), para se alimentar, vestir e pagar as demais e normais despesas com luz, água e gás.

127) Deste modo, a situação económica do arguido é tudo menos avantajada o que, no nosso entender, não foi devidamente tido em conta pelo Tribunal recorrido, pois que, os montantes indemnizatórios fixados ultrapassam as possibilidades económicas absolutas do arguido, mostrando-se desproporcionais e desajustados, violando a proibição constitucional de proibição do excesso previsto no art. 18º da Constituição da República Portuguesa.

128) Devendo, assim, os mesmos ser revistos e fixados EM €500,00 (quinhentos euros) quanto à ofendida C, € 750,00 (setecentos e cinquenta euros) quanto à ofendida JRS2 e €1.000,00 (mil euros) quanto ao ofendido JRS1, tudo de forma a melhor se ajustar às capacidades económicas do recorrente.

Termos em que,

Nos mais de Direito e pelo que mais doutamente por V/Exas. será suprido,

Deve dar-se provimento ao presente Recurso e, em consequência, ser a Sentença recorrida revogada e substituída por outra que absolva o Recorrente dos crimes pelos quais foi condenado, bem como serem julgados improcedentes os pedidos de indemnização cível deduzidos contra o mesmo.

Sem prescindir,

E caso assim não se entenda,

Deve dar-se provimento ao presente Recurso e, em consequência, ser a Sentença recorrida revogada e substituída por outra que aplique ao arguido pena de prisão substancialmente reduzida e suspensa na sua execução, sem regime de prova, o mesmo sucedendo quanto aos montantes indemnizatórios atribuídos aos ofendidos.

Assim decidindo, farão V/Exas., como é habitual, inteira e sã JUSTIÇA!

4. Foi proferido despacho de admissão do recurso.

5. Em resposta ao recurso, o Ministério Público concluiu:

(….)

Nestes termos, deve negar-se provimento ao recurso e manter-se a douta sentença condenatória proferida nestes autos nos seus precisos termos, fazendo-se, assim, a habitual justiça!

6. Também a assistente/demandante C., por si e em representação dos seus filhos JRS1 e JRS2, reagiu ao recurso, concluindo:

(…)

Termos em que, deve negar-se provimento ao recurso e manter-se a douta sentença condenatória proferida nestes autos nos seus precisos termos, fazendo-se, assim, a habitual justiça!

7. O Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pronunciando-se no sentido de o recurso não merecer provimento.

8. Cumprido o n.º 2, do artigo 417.º do CPP, nenhum dos sujeitos processuais reagiu.

9. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cabendo, pois, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

Tendo presente as conclusões, pelas quais se delimita o objeto do recurso, sem prejuízo do conhecimento de eventuais questões de natureza oficiosa, no caso em apreço cabe apreciar se (i) foi violado o dever de fundamentação; (ii) incorreu o tribunal a quo em “erro de julgamento”; (iii) enferma a sentença de “erro notório na apreciação da prova”; (iv) ocorre violação do princípio da presunção de inocência, na vertente do pro reo; (v) os factos não preenchem, em qualquer dos casos, os elementos típicos do crime de violência doméstica; (vi) não encontram adequação as penas parcelares e única fixadas; (vii) inexiste fundamento para que a suspensão da execução da pena o seja mediante regime de prova; (viii) Os montantes indemnizatórios arbitrados pecam por excesso.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar da sentença [transcrição parcial]

II – DA AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO RESULTARAM OS SEGUINTES FACTOS:

A) Factos provados

Da acusação pública

1) O arguido casou com a assistente C no dia 31/12/1999.

2) Desse casamento nasceram quatro filhos, JRS2 (nascida a 18/12/2001), JRS1 (nascido a 21/09/2003), JRS3 (nascida a 12/04/2006) e JRS4 (nascido a 15/10/2009), passando a residir no Lugar de (…), n.º (…), (…).

3) Desde pelo menos o verão do ano de 2017 o arguido controlou financeiramente a assistente, obrigando-a a apresentar faturas por cada compra que efetuasse, não lhe dando dinheiro para o sustento e material escolar dos seus filhos menores, obrigando-a a recorrer a outros familiares para providenciar ao seu sustento.

4) O arguido, pelo menos por uma vez, não lhe permitiu que esta o acompanhasse na deslocação ao supermercado, deixando de adquirir produtos que esta especificamente lhe solicitara como forma de a castigar e diminuir na sua liberdade e autonomia.

5) No mesmo período o arguido, pelo menos uma vez, o arguido dirigiu-se à ofendida apelidando-a de ladra, cabra e puta, o que fez na presença da sua filha JRS2, assim a diminuindo, humilhando e atentando contra a sua dignidade não só de mulher mas também de mãe.

6) No Verão do ano de 2017, o arguido forçou o seu filho menor JRS1, nascido a 21/09/2003, que se encontrava em período de férias escolares, a ir trabalhar consigo diariamente e durante cerca de três meses, nas obras, em trabalhos de eletricidade.

7) Para o efeito, saíam de casa pelas 07h00m e regressavam à mesma pelas 21h00m.

8) Em data não concretamente apurada, mas durante tal período, o ofendido JRS1 recusou-se a ir trabalhar com o arguido nas obras.

9) Acabando este por aceder a acompanhar o pai para o trabalho com receio de que este lhe batesse.

10) No dia 06 de Agosto de 2017, da parte da manhã, o arguido, acompanhado da sua esposa C e pelos quatro filhos do casal, preparavam-se para sair de casa a fim de assistirem à missa do Sr. Da Boa Sorte.

11) Quando já se encontravam no veículo automóvel, o arguido, vendo que a sua filha JRS2 trazia consigo o respetivo tlm, ordenou-lhe que esta lho entregasse.

12) Como a mesma negou entregar-lho, o arguido saiu do interior do veículo, dirigiu-se à porta traseira do passageiro, abriu-a e puxou a menor JRS2, com força, para o exterior do carro.

13) Em data não concretamente apurada, mas durante o mês de Setembro de 2017, da parte da manhã, no interior da residência comum, no quarto, gerou-se uma discussão entre o arguido e a assistente C, pelo facto de este pretender que o filho JRS1 fosse trabalhar consigo, todos os sábados e durante todo o dia.

14) Na sequência da altercação, o arguido agarrou a assistente C pelos ombros e empurrou-a.

15) Fazendo com que a mesma batesse com a cabeça na barra da cama, e caísse ao chão, enquanto o arguido a continuou a agarrar por alguns instantes, de modo a imobilizar.

16) No dia 15 de Outubro de 2017, ao final da tarde, no interior da residência do casal, na sequência de uma discussão ocorrida entre o arguido e a assistente C, o mesmo abeirou-se da sua filha JRS2 e desferiu-lhe uma estalada na face e na zona da orelha.

17) Fazendo com que o brinco que esta tinha na orelha ficasse preso ao pescoço, atenta a força com que aquele praticou tal ato.

18) No dia 12 de Dezembro de 2017, a hora não concretamente apurada, o arguido, na sequência de uma discussão com o seu filho JRS1, desferiu-lhe uma chapada na cara, deixando-o a sangrar pelo nariz.

19) No dia 23 de Janeiro de 2018, a hora não concretamente apurada, mas da parte da manhã, no interior da residência comum, o arguido aproximou-se do seu filho menor JRS1 e agarrou-o pelo pescoço, apertando-o, com força.

20) Ato contínuo, ao mesmo tempo que lhe apertava o pescoço, empurrou-o e pressionou-o contra o chão, por alguns instantes.

21) Em data não concretamente apurada, mas por variadas vezes ao longo dos anos, o arguido retirou o computador, telemóveis, cortou o acesso à internet de casa aos seus filhos e quanto ao computador e internet também à assistente e, bem como retirou a chave do veículo automóvel à assistente, sem motivo válido, de forma a, assim, controlar, dominar e fazer prevalecer todas as suas vontades e desejos sobre estes.

22) Por força da atuação do arguido a sua esposa C, a sua filha JRS2 e o seu filho JRS1 sofreram fortes dores e escoriações, mormente, na face, braços, costas, pescoço, bem como sentiram receio, humilhação e medo constante.

23) O arguido obrigou o menor, seu filho, a trabalhar com eletricidade, bem sabendo que este ofício requer experiência e era perigoso para a saúde física do mesmo, que este não possui qualquer experiência nesse tipo de trabalho, e, bem assim, que não o podia obrigar a trabalhar.

24) O arguido agiu com o propósito de ofender física e psicologicamente a sua esposa e os seus filhos JRS2 e JTS1, com intenção de os fazer temer pela sua saúde física, gerando e exercendo sobre eles pressão psicológica, bem como com a intenção de os humilhar, de lhes causar um permanente sentimento de medo, inquietação, insegurança, ansiedade e os afetar na sua dignidade pessoal, o que logrou conseguir.

25) Tais episódios prejudicaram o ambiente familiar deixando os ofendidos abalados e transtornados psicologicamente.

26) Mais sabia que, ao agir do modo descrito, lesava a integridade física e psicológica dos ofendidos, como pretendeu e conseguiu, bem como que, aquando da concretização dos episódios supra referidos, o fazia no domicílio comum, contra a sua esposa e filhos, e que, nessa medida, estes assistiam aos mesmos.

27) O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e penalmente punidas.

Da contestação

28) O arguido é visto socialmente como pessoa pacífica, trabalhadora, educada, honesta e humilde.

29) O arguido é pessoa respeitadora e respeitada dentro e fora do meio social em que vive.

30) É pessoa de reconhecida integridade e de comportamento irrepreensível

Do pedido de indemnização civil

31) Desde que o demandado e a demandante foram viver para a Alemanha, sempre aquele, por dominar melhor a língua, por ser quem garantia a subsistência da família (embora a demandante também trabalhasse com o demandado) sempre tratou a demandante como se sua submissa fosse, acolhendo a todas as ordens, sob pena de se gerarem discussões que esta receava em virtude de ali perto não ter nenhum familiar que a acudisse e os filhos terem tenra idade.

32) Assim a demandante foi acatando, durante anos, as ordens do arguido, nem sequer as contrariando e quando discutiam tentava não responder com medo da reação que pudesse provocar naquele.

33) O demandado ia, a cada dia de passava, incutindo à demandante, sentimentos de incapacidade, submissão, medo, inquietude e mormente que se tratava de coisa sua.

34) Sentimentos vividos durante anos, em silêncio.

35) O demandante ao atuar da forma descrita pretendeu e logrou infligir à demandante maus tratos físicos e psicológicos.

36) Com os atos praticados pelo demandado a demandante sentiu-se humilhada, diminuída e envergonhada, sobretudo quando o demandado se dirigia a si com palavras ofensivas da sua honra e consideração e imputava-lhe factos e comportamentos também ofensivos da sua honra e consideração, injúrias proferidas à frente dos seus próprios filhos, o que a fez sentir-se ainda mais humilhada e diminuída, o que se refletiu e reflete-se nas suas relações pessoais.

37) O facto de ter sido insultada e tratada da forma como o foi, pelas agressões das quais foi vítima, e que lhe trouxeram diversas lesões no seu corpo consequência do comportamento agressivo do Arguido, o que a fez sentir vulnerável e com medo, temendo inclusive pela sua própria integridade física e dos seus filhos.

38) Para além das dores físicas e mazelas psicológicas da Demandante, os maus tratos que o Demandado infligia aos filhos, provocavam-lhe uma dor de alma sem par, uma humilhação profunda, um desgosto incomensurável.

39) A Demandante sempre, e durante todos estes anos, se sentiu impotente, por si e pelos seus filhos, face ao comportamento do Arguido, que aliado ao medo, à dependência económica (e que durante muitos anos sempre assistiram ao comportamento do pai), determinaram que aturasse todo esse rol.

40) O arguido agiu com o propósito de ofender física e psicologicamente a sua esposa e os seus filhos JRS2 e JRS1, com intenção de os fazer temer pela sua saúde física, gerando e exercendo sobre eles pressão psicológica, bem como, com a intenção de os humilhar, de lhes causar um permanente sentimento de medo, inquietação, insegurança, ansiedade e os afetar na sua dignidade pessoal, o que logrou conseguir.

41) Tais atos provocaram na JRS2, com apenas 16 anos, medo, insegurança, tristeza, angústia, ansiedade, revolta, humilhação, diminuição do rendimento e aproveitamento escolar, noites mal dormidas.

42) Tudo isto e o demais que resulta claro, fez com que a JRS2 precisasse de apoio psicológico, para conseguir lidar, pouco a pouco e um dia de cada vez, com todas as emoções e sequelas deixadas pelo comportamento agressivo/delituoso do seu pai.

43) Para além de que na sequência das agressões físicas a que foi sujeita, teve lesões, sofreu fortes dores, e escoriações.

44) Como resultado direto e necessário da conduta criminosa do pai, o filho sofreu lesões, sentiu fortes dores, não conseguia respirar, ficou com hematomas, equimoses e escoriações.

45) Tais atos provocaram no JRS1 (com apenas 14 anos) medo, insegurança, tristeza, angústia, ansiedade revolta, humilhação, diminuição do rendimento e aproveitamento escolar, insónias, pesadelos.

46) O JRS1, por uma patologia que lhe foi diagnosticada, já antes de tudo isto, não conseguia/sabia lidar com as suas emoções e com todos os atos que o pai praticou contra si, tal situação agudizou-se.

47) Pela patologia que padecia e padece, o JRS1 já se encontrava a receber tratamento psicológico e a mostrar alguns resultados positivos, o que era do conhecimento do arguido/demandado.

48) Sucede que, após os maus tratos físicos e psicológicos que sofreu perpetrados pelo pai, o JRS1 regrediu no tratamento.

49) As agressões físicas, mas, sobretudo, as agressões psicológicas sofridas pelo JRS1 tiveram consequências nefastas ao nível do seu aproveitamento escolar, tendo perdido a vontade que tinha de estudar, brincar, de viver.

50) No seu relacionamento com os colegas, amigos e até familiares, reagindo impulsivamente, em certos casos, com agressividade.

51) O JRS1 sentia e ainda sente medo do seu pai e uma grande revolta e mágoa, tendo com este uma relação de afastamento.

52) Tudo isto fez com que o JRS1 se isolasse.

53) Fez com que o JRS1 pretendesse por termo à vida, como chegou a confidenciar à avó, tal era o seu desespero e sofrimento.

Das condições pessoais

54) O arguido é primário face ao Certificado de Registo Criminal junto aos autos.

55) O arguido tem o 12º ano de escolaridade, trabalha como eletricista auferindo uma média de € 800,00 mensais, vive em casa arrendada pela qual paga a quantia de € 180,00 euros mensais, tem como despesas a pensão de alimentos aos seus quatro filhos no valor de € 425,00 mensais e o pagamento de um empréstimo no valor mensal de cerca de € 80,00, não tem outras despesas para além das normais.


*

B) Factos não provados

(…).


*

Não se elenca como provada ou não provada qualquer outra alegação efetuada quer pelo arguido quer pela demandante civil, por a mesma consubstanciar mera impugnação, explanação de matéria de direito, se referir a conceitos vagos, genéricos e/ou jurídicos e não se debruçar sobre factos essenciais à boa decisão (cfr. artigos 5º, 552º nº 1 alínea d) e 572º alínea c), todos do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi artigo 4º do Código de Processo Penal).

**

III – MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO

(…).

3. Apreciação

§1. Da violação do artigo 374.º, n.º 2 do CPP

Dos pontos 14 a 19 das conclusões retira-se ser entendimento do recorrente não haver o tribunal a quo cumprido em relação aos itens da matéria de facto que identifica o dever de fundamentação (artigo 374.º, n.º 2 do CPP), “falha” que, na sua perspetiva, conduziria ao erro notório na apreciação da prova, vício previsto na alínea c), do n.º 2, do artigo 410.º do CPP.

Respeitando à confeção técnica da decisão, tendo de resultar exclusivamente do respetivo texto, por si ou conjugado com as regras da experiência, a denunciar uma apreciação ilógica, contrárias às regras da experiência comum, de tal maneira ostensiva que não escapa ao homem comum, originando o que vulgarmente se designa por erro grosseiro, é claro que a alegação só se pode compreender à luz de uma errónea configuração técnica do dito vício.

A violação do dever de fundamentação, a verificar-se, é causa, isso sim, de nulidade da sentença – cf. artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP.

O dever de fundamentação das decisões judiciais, maxime da sentença, encontra-se constitucionalmente consagrado no artigo 205.º, do CPP, sendo objeto de concretização no artigo 374.º, n.º 2, do CPP. Exige-se, pois, a exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que sustentam a decisão, bem como o exame crítico das provas que conduziram ao sentido da convicção, assim cumprindo as duas funções há muito assinaladas, uma de índole endoprocessual, impondo ao julgador «a verificação e controle crítico da lógica da decisão, permitir às partes o recurso da decisão com correto conhecimento da situação, e, por fim, permitir que o tribunal de recurso possa exprimir, com segurança, um juízo concordante ou divergente», outra de índole extraprocessual, visando o «controle externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão, garantindo a «transparência» do processo e da decisão, no dizer de M. Tarrufo (…)» - [cf. Vinício Ribeiro, in Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Coimbra Editora, 2.ª Edição, pág. 1059].

Contudo, como escreve Paulo Pinto de Albuquerque – [cf. Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª Edição, Universidade Católica Editora, pág. 968], o dever de fundamentação não exige «a indicação individualizada dos meios de prova relativamente a cada elemento de facto dado como provado», sendo suficiente que na mesma se indiquem os meios de prova que serviram à convicção do julgador de modo a permitir «no contexto ambiental, de espaço e de tempo, compreender os motivos do percurso lógico da decisão segundo as aproximações permitidas razoavelmente pelas regras da experiência comum» [cf. acórdão do STJ de 21.03.2007 (proc. n.º 07P024)].

Transpondo o que se acaba de dizer para a situação em apreço, não é a ausência individualizada, em relação a cada um dos itens, dos meios de prova que o sustentam que acarreta a nulidade da sentença. A motivação conforme as exigências do processo equitativo não obriga a uma resposta minuciosa, satisfazendo-se antes com a descrição dos motivos fundantes da decisão, cuja extensão varia em função das circunstâncias específicas, como a natureza e complexidade do caso.

Ora, uma análise mesmo que perfunctória da motivação da convicção permite facilmente apreender quais as provas que aos olhos do julgador suportaram o sentido da decisão, bem como as razões que levaram à respetiva valoração, reconduzíveis, no essencial, à credibilidade atribuída a determinadas declarações/depoimentos, entre os quais os dos “ofendidos”, aspeto que não surpreende dado o ambiente familiar em que os factos se terão desenvolvido, a proximidade das “vítimas”, e a origem/génese das condutas.

E se constitui uma realidade haver o tribunal a quo motivado de per se determinados itens – modo de fazer, já vimos, não imposto pelo dever de fundamentação -, o certo é que, como o recorrente saberá, o fez em relação a factos documentalmente demonstráveis (cf. os itens 1, 2, 55 dos factos provados), ou a factos de natureza subjetiva, ou, por fim, a factos relativos às condições familiares e socioeconómicas do arguido (aqui realçando a credibilidade que mereceram as respetivas declarações), sobrevivendo todos eles à margem da descrição dos factos objetivos em que se traduziram as condutas, assentes nos mesmos meios de prova, não fazendo, também por isso, sentido a individualização de que fala o recorrente.

 Em suma, não sendo o invocado fundamento suscetível de configurar o vício da alínea c), do n.º 2, do artigo 410.º do CPP, resultando da sentença o cabal cumprimento do dever de fundamentação, improcede, nesta parte, o recurso.

§2. Da impugnação da matéria de facto

Insurge-se o recorrente contra a matéria de facto que vem dada por assente na sentença, concretamente sob os itens 4, 5, 14, 15, 16, 18, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38 e 39 (factos provados), invocando ora “erro notório na apreciação da prova”, ora “erro de julgamento”, realidades que, colocando, embora, em crise a matéria de facto, não se confundem, visando a primeira, com recurso tão só ao texto da decisão, ainda que conjugado com as regras da experiência, evidenciar o erro grosseiro, decorrente de juízos ilógicos, de uma apreciação manifestamente contrária ao comum acontecer, enquanto através da segunda se identificam concretos pontos de facto, contrariados por concretos meios de prova que impõem decisão diversa da adotada.

Neste domínio, resulta clara a confusão – a acrescer àquela outra assinalada supra em §1 - em que milita o recorrente quando, invocando “erro notório na apreciação da prova” (cf. v.g. o ponto 4 das conclusões), em sede de motivação com vista a contrariar os factos descritos nos itens em questão, se socorre dos registos áudio correspondentes a declarações e/ou depoimentos prestados no decurso da audiência de discussão e julgamento, defendendo, com base nestes, a sua alteração. Porém, não estando este tribunal vinculado ao nomen iuris utilizado pelo recorrente, sendo evidente que pretende a sindicância ampla da matéria de facto, não deixaremos, sempre que os termos do recurso o permitam, de conhecê-la.

O procedimento a seguir com vista à sindicância do “erro de julgamento” onera o recorrente com o cumprimento dos ónus previstos nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, os quais não sendo satisfeitos quer em sede de conclusões, quer na correspondente motivação, conduz, nessa parte, à rejeição do recurso.

No presente caso, ainda que nas conclusões não se encontre resposta completa a semelhantes exigências, até onde a motivação torne possível – pela observância dos ditos ónus - enfrentaremos os apontados “erros de julgamento”, apresentando-se, no caso, desnecessário o convite ao aperfeiçoamento, o qual sempre resultaria prejudicado quando o incumprimento das normas de impugnação especificada se apresente transversal a todo o recurso – [cf., entre outros, os acórdãos do STJ de 17.02.2005 (proc. n.º 05P058), 09.03.2006 (proc. n.º 06P461), 28.06.2006 (proc. n.º 06P1940), 04.10.2006 (proc. n.º 812/06 – 3.ª), 04.01.2007 (proc. n.º 4093/06 – 3.ª e de 10.01.2007 (proc. n.º 3518/06. – 3.ª); os acórdãos do TC n.º 259/02 (DR II Série, de 13.12.2002) e n.º 140/04 (DR II Série, de 17.04.2004)].

E porque com a sindicância dos “erros de julgamento” podem resultar sanados – caso se verifiquem - os “erros notórios na apreciação da prova” é pelos primeiros que iniciaremos.

§2.1. Do erro de julgamento

Em causa estão os itens (factos provados) inscritos em:

(i) 4 e 5, porquanto, tanto quanto é possível extrair das conclusões, ainda que conjugadas com a motivação, não teria o tribunal a quo em sede de fundamentação da convicção explicitado em que meios de prova se teria estribado para concluir nesse sentido. Posta a coisa nestes termos, é manifesto não ter o recorrente dado cumprimento aos ónus de impugnação especificada que sobre si impendiam (artigo 412.º, n.º 3 e 4, do CPP), comprometendo, assim, a sindicância ampla (para além dos vícios do n.º 2, do artigo 410.º do CPP) dos itens em referência.

Contudo, sempre se dirá que a alegação a propósito desencadeada, concretamente os motivos que a suportam, encontra resposta na apreciação levada e efeito no §1, ocasião em que se afastou o caráter individualizado (relativamente a cada ponto de facto) do dever de fundamentação, acrescentando-se, agora, não exigir igualmente o mesmo uma espécie de assentada do teor dos depoimentos e declarações.

(ii) 14 e 15, pois não teria “sido produzida prova clara, cabal e segura quanto à forma e à intenção do alegado empurrão”, defendendo, em consequência, que apenas seria possível dar como assente (provado) “ter havido uma discussão entre o mesmo e a ex – mulher por causa do filho JRS1”.

Com vista a sustentar o “erro de julgamento”, indica, com referência aos registos áudio, parte significativa das declarações dos ofendidos JRS2, JRS2 e da assistente C, os quais, no que releva, não contrariam a dinâmica do “evento”, tal como acolhido nos itens em questão, ou seja o “empurrão”, a “queda” e o “embate” com a cabeça na cama, não se identificando imprecisões e/ou contradições relevantes entre as ditas declarações, sendo despiciendo saber se nas circunstâncias o recorrente também caiu; se empurrou a assistente para desviá-la e chegar ao filho; se a empurrou pelos ombros ou por outra parte do corpo.

Em suma, independentemente da prova indicada não impor decisão diversa da recorrida, os aspetos evidenciados pelo recorrente apresentam-se, no contexto, irrelevantes, pois insuscetíveis de influenciar, quer ao nível da culpabilidade, quer da sanção a decisão, sendo, assim, de afastar os “erros de julgamento”.

(iii) 16, defendendo, face à prova produzida, dever do mesmo passar a constar: “No dia 15 de Outubro de 2017, ao final da tarde, no interior da residência do casal, na sequência de uma discussão ocorrida entre o arguido e a assistente C, o mesmo abeirou-se da sua filha JRS2 e após esta o ter chamado “mentiroso do caralho”, desferiu-lhe uma estalada na face e na zona da orelha”.

O segmento que pretende ver acrescentado ao item em questão resultaria das suas declarações e ainda do declarado pela ofendida JRS2, nas passagens que identifica, enquanto se pronunciaram sobre o contexto em que ocorreu a agressão.

Se é um facto ter o ora recorrente declarado em sede de audiência de julgamento haver desferido a “estalada” após a filha (JRS2) lhe ter dirigido a expressão “mentiroso do caralho”, já esta última admitiu ter, nas circunstâncias (antes de lhe ter sido desferido a estalada), apelidado o pai de “mentiroso”, mas não “do caralho”, sendo que quando confrontada, pelo Ilustre mandatário do arguido, com esta última expressão, respondeu: “Eu raramente digo asneiras”; “(…) numa discussão eu não uso palavras feias”.

A prova produzida não impondo a consideração como provado do uso por parte da declarante da expressão “do caralho”, importa a alteração da matéria de facto, passando, em substituição a constar do item 16: “No dia 15 de Outubro de 2017, ao final da tarde, no interior da residência do casal, na sequência de uma discussão ocorrida entre o arguido e a assistente C, o mesmo abeirou-se da sua filha JRS2 e após esta o ter chamado “mentiroso”, desferiu-lhe uma estalada na face e na zona da orelha.” – (cf. artigo 431.º, alínea b), do CPP).

(iv) 18, pugnando, face à prova produzida, que do mesmo passar a constar: “No dia 12 de Dezembro de 2017, a hora não concretamente apurada, o arguido, na sequência de uma discussão com o seu filho JRS1, desferiu-lhe uma chapada na cara, após este o ter chamado de “rabo”, deixando-o a sangrar do nariz”.

O segmento em questão decorreria das suas declarações e ainda do declarado pelo ofendido JRS1, nas passagens que identifica, enquanto se pronunciaram sobre o contexto em que ocorreu a agressão.

Encontrando arrimo nas declarações prestadas em audiência de julgamento pelo arguido, também o declarado pelo JRS1, na medida em que admitiu como “mais provável” que haja, nas circunstâncias, chamado ao pai alguma coisa, admitindo tê-lo apelidado de “rabo” vai ao encontro da pretensão do recorrente, impondo-se, assim, alterar o item em referência, do qual, em substituição, passa a constar: “No dia 12 de Dezembro de 2017, a hora não concretamente apurada, o arguido, na sequência de uma discussão com o seu filho JRS1, desferiu-lhe uma chapada na cara, após este o ter chamado de “rabo”, deixando-o a sangrar do nariz” – (cf. artigo 431.º, alínea b), do CPP).

(v) 21, no segmento “bem como retirou a chave do veículo automóvel à assistente”, sobre o qual “ninguém ao longo da audiência de julgamento”, se teria pronunciado. Assim sustentado não pode este tribunal deixar de sindicar o invocado “erro de julgamento”, pois a alegação de não produção de qualquer meio de prova sobre determinado ponto de facto, a confirmar-se, traduz a forma mais definitiva da sua verificação.

Porém, da audição dos registos áudio relativos à prova produzida em julgamento, decorre ter sido, desde logo, o ora recorrente, quando confrontado com o facto em questão, quem o confirmou. Acresce que também o ofendido JRS1 referiu que o arguido tirou a chave do Volkswagen à assistente “para a mãe não ter acesso ao carro”.

É quanto basta para contrariar o invocado “erro de julgamento”.

(vi) 22, 23, 24, 25, 26 e 27, em consequência de haverem sido incorretamente julgados os factos inscritos sob os itens 14, 15, 16 e 18 (cf. ponto 28 das conclusões).

Posto que não se mostram observados, na dimensão legalmente exigível, os ónus de impugnação especificada, por um lado; não tendo obtido resposta positiva os “erros de julgamento” no que aos factos descritos em 14 e 15 respeita, por outro lado, há que indagar se a alteração levada a efeito nos itens 16 e 18 afeta a matéria factual de que se ocupam os pontos 22 a 27 (inclusive). Se os factos dados como provados em 22, 23 e 25 não resultam abalados/infirmados pelas ditas alterações (itens 16 e 18), tendo presente a relação de pai/filhos que ligava arguido e ofendidos (JRS1 e JRS2), o natural ascendente, enquanto pai, reconhecido ao primeiro na educação dos filhos, à luz das regras da experiência comum, das interações estabelecidas no seio familiar entre progenitores e menores, seus descendentes, seguindo um raciocínio lógico, atento ao normal acontecer (artigo 127.º do CPP), impõe-se, em consequência da redação (alteração) introduzida aos itens 16 e 18, acrescentar aos factos que vem dados como provados: “Não obstante, nas circunstâncias supra descritas em 16) e 18), o arguido agiu, motivado pelas palavras que na respetiva ocasião lhe foram dirigidas pelos seus filhos, JRS2 e JRS1, com o propósito de os castigar”, passando estes a integrar o item 24 – a), interpondo-se entre os itens 24 e 25 (factos provados), mantendo-se inalterados os pontos 24, 26 e 27, cuja abrangência, quer quanto aos sujeitos passivos, quer quanto às concretas ações, se projeta para além dos “episódios” inscritos nos itens 16 e 18.

 (vii) 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38 e 39, na medida em que a fundamentação da convicção teria omitido a prova que os sustentam, ao que acresceria tratarem-se de factos sobre os quais não teria incidido prova, para além de os mesmos se reportarem ao período de tempo em que o recorrente e ex. mulher viveram na Alemanha, o que teria sucedido até 2010.

A indicação em bloco (quer nas conclusões, quer na motivação) de um conjunto alargado de itens, para já não falar da não identificação do (s) segmento (s), em relação a cada um, que encerraria o “concreto ponto” incorretamente julgado (cf. artigo 412.º, n.º 3, alínea a), do CPP), por um lado; a infirmação - desde logo, em face da fundamentação da convicção - de que nenhuma prova sobre os mesmos foi produzida, por outro lado; e, finalmente, a circunstância de nos próprios itens se descreverem factos, os quais, em grande parte, se situam para além do limite temporal assinalado (pelo recorrente), conduzem à rejeição da sindicância do “erro de julgamento”.

§2.2. Do erro notório na apreciação da prova

(…).

§2.3. Da violação do in dubio pro reo

(…).

§3. Da qualificação jurídico-penal

Não se conforma o recorrente com a subsunção dos factos ao crime de violência doméstica, questionando a verificação dos respetivos elementos típicos.

Vejamos.

Em primeira instância foi o mesmo condenado pela prática, em autoria material, de três crimes de violência doméstica, um dos quais, na pessoa da sua ex-mulher, p. e p. pelo artigo 152.º, nº 1, alínea a) e n.º 2, alínea a), do Código Penal, e cada um dos demais na pessoa dos seus filhos JRS2 e JRS1, respetivamente, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2, alínea a), do mesmo diploma.

De acordo com o artigo 152.º (na redação em vigor à data dos factos):

1 – Quem, de modo reiterado ou não infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:

a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;

(…)

d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;

é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2 – No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.

(…).”

Trata-se de crime em relação ao qual a doutrina e a jurisprudência vem maioritariamente identificando o bem jurídico protegido, de forma genérica, como sendo a dignidade da pessoa humana individualmente considerada e, em particular, a saúde física e mental, ou seja um bem jurídico complexo que pode ser afetado por toda uma multiplicidade de comportamentos, configurando, assim, um tipo em que as condutas contra a integridade física, contra a honra e consideração e contra a autodeterminação encontram proteção – [cf. Taipa de Carvalho, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, pág. 329 e sgs.].

Como escrevem M. Miguez Garcia e Castela Rio, “Em contraste com outros tipos de ilícito, que para a sua consumação se bastam invariavelmente com uma única ação (…), no crime de “violência doméstica” (art.º 152.º) revela também a reiteração caracterizadora de uma certa habitualidade (…). A reiteração implica tanto a habitualidade como a intensidade, o que significa que a conduta daquele que maltrata deve ser especialmente grave. É umas vezes crime de um único ato (neste caso com exigências aprofundadas no plano da ilicitude); outras vezes, não obstante a pluralidade de ações, estas não conforma vários delitos, mas aglutinam-se num só. Faltando estes aspetos, conformadores de uma maior ilicitude, os respetivos factos serão elementos de ofensa à integridade física simples, ameaça, crime contra a honra, ofensa sexual ou privação da liberdade, constituindo estes mesmos crimes – e não mais do que isso.” – [cf. “Código Penal – Parte Geral e Especial”, 2014, Almedina, págs. 618-619].

Assim, a questão de saber se as condutas violadoras encontram adequação nos diferentes tipos atomísticos exige um juízo sobre a intensidade da violação de todos ou cada um dos bens em causa, quer pela sua reiteração, quer em função da gravidade da ofensa, quer pela conjugação de ambas, de modo a aferir se ocorreu uma violação especial dos direitos a demandar resposta que já não se compadece com a aplicação das normas penais tipificadoras das condutas (de per se), as quais, não fosse a natureza e carga da violação, constituiriam punição adequada.

Revisitemos, pois, os factos.

Iniciando pelas ações que incidiram sobre a “vítima” JRS1, resultou demonstrado que no verão de 2017, no período de férias escolares do filho, o recorrente forçou-o a ir trabalhar, diariamente, consigo, e durante cerca de três meses, nas obras, em trabalhos de eletricidade, saindo, para o efeito, de casa pelas 07H00m, onde regressavam às 21h00m. Mais resultou que no decurso de tal lapso temporal obrigou o filho a trabalhar com eletricidade, não obstante saber que se tratava de tarefa que requeria experiência e era perigosa para a saúde física do menor, sem experiência nesse tipo de atividade. Decorre ainda do acervo factual que o menor chegou a recusar ir trabalhar com o pai nas obras, acabando, contudo, por aceder com receio de que este lhe batesse e, bem assim que, durante o mês de setembro de 2017, o recorrente queria que o filho fosse trabalhar consigo, todos os sábados.

Detendo-nos, por ora, em semelhante factualidade, não temos a mínima hesitação em dizer consubstanciar a mesma um tratamento desumano, cruel, comprometedor, pelos malefícios que a esse nível necessariamente acarretou, do desenvolvimento físico e psíquico do menor, à data com 14 anos de idade, obrigado a trabalhar, diariamente, pelo menos durante três meses (período correspondente às suas férias escolares), privado, assim, de dedicar o seu tempo às atividades adequadas à sua idade, como sejam o estudo, mas também os momentos de lazer, de brincadeira com os seus pares. De facto, ao contrário do que parece ser o entendimento do recorrente, os maus tratos físicos e/ou psíquicos não se limitam às ações de bater, de injuriar, de ameaçar, as quais, com alguma frequência, não provocam danos - desde logo ao nível do desenvolvimento da personalidade - da natureza dos originados por uma conduta que, pela violência que encerra, se repercute na saúde física e psíquica da vitima.

Quando uma criança de 14 anos, diariamente, durante três meses (período de férias escolares), é obrigado a trabalhar, por um número alargado de horas, numa área de atividade intrinsecamente perigosa, fazendo-o contra vontade, mas acabando por “ceder” com receio que o pai lhe bata; quando se assiste à supressão, diária, das horas de descanso que o desenvolvimento da criança reclama, sujeitando-a ao esforço físico que uma atividade como a que foi chamada a desenvolver, durante um horário alargado, requer; quando não se lhe deixa margem para os momentos de lazer inerentes à idade, tão simples como a convivência com os amigos, não há como afastar a verificação de maus tratos físicos e psíquicos.

O percurso de trabalho desde muito jovem e/ou o propósito de preparar o filho para a vida, tal como invocado, são circunstâncias que não podem justificar a sua conduta, sobretudo num tempo – enfatiza-se - em que a consciência social sobre a necessidade de assegurar um normal e saudável desenvolvimento físico e de personalidade das crianças/jovens reclama o rompimento com práticas abusivas de um passado de má memória, aspetos, nos dias que correm, sobejamente tratados e divulgados pelos mais diversos meios e, como tal, acessíveis a qualquer um. Ademais - já em momento anterior o dissemos - o recorrente não é propriamente um iletrado!

Admitindo reclamar a ação descrita sob o item 18 outro desenvolvimento - tema que retomaremos quando nos debruçarmos sobre as condutas que pertinam à “vítima” JRS2 – também os factos provados em 19 e 20 (ocorridos no interior da residência comum), pela agressividade que encerram, revelam uma conduta censurável, a qual, em conjugação com aqueloutra acima analisada, verificados que resultam os respetivos elementos objetivos e subjetivos do tipo, tornam o recorrente incurso na prática, como autor material, do crime de violência doméstica, pelo qual vem condenado.

No que respeita às ações incidentes sobre a “vítima” JRS2, os factos descritos de 10 a 12 não consubstanciam os maus tratos, pressupostos no n.º 1, do artigo 152.º do C. Penal, tão pouco, no contexto, outro tipo de ofensa, designadamente física, relevante. Com efeito, dos mesmos apenas é possível intuir uma reação à recusa da menor em entregar o seu telemóvel, conforme lhe foi solicitado pelo pai numa ocasião em que a família, já no veículo automóvel, se preparava para ir assistir à missa.

Vejamos agora os factos respeitantes ao dia 15 de outubro de 2017.

Decorre do acervo factual que, na sequência de uma discussão entre o recorrente e a sua ex-mulher, aquele, após a JRS” o ter chamado de “mentiroso”, desferiu-lhe uma estalada na face e na zona da orelha, fazendo com que o brinco que a menor tinha na orelha ficasse preso no pescoço, “atenta a força com que … praticou tal ato” – [cf. item 17)].

Estamos perante uma conduta isolada, que nem por si, nem conjugado com as demais [o caráter genérico dos factos descritos sob o item 21, quer quanto ao tempo, quer quanto às concretas circunstâncias em que ocorreram, quer quanto ao número, ainda que aproximado, de vezes em que tal aconteceu, impede a respetiva consideração - cf., v.g., os acórdãos do STJ de 14.09.2006 (proc. n.º 2421/06 – 5.ª), 15.11.2007 (proc. n.º 3236/07 – 5.ª), 02.04.2008 (proc. n.º 4197/07 – 3.ª) -, porquanto colide com o direito do contraditório, enquanto parte integrante do direito de defesa, não sendo, como tal suscetíveis de sustentar uma condenação penal], permite concluir pelo crime de violência doméstica. Na verdade, a conduta não atinge o grau de intensidade pressuposto da ação isolada idónea à configuração do ilícito típico prevenido no artigo 152.º. Afigura-se-nos, pois, que, com a expressão “castigos corporais”, não foi propósito do legislador incluir todo o castigo no conceito de “maus tratos”, de forma a integrar sempre a previsão do crime em questão.

Serão os ditos factos subsumíveis ao crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143.º do Código Penal, ou, como defende o recorrente, estamos perante uma conduta passível de configurar o poder de correção, que se insere no exercício das responsabilidades parentais, cometendo aos pais, no interesse dos filhos, dirigir a sua educação (cf. o artigo 36.º, n.º 5, da CRP; artigo 1878.º do C. Civil)?

Como refere Figueiredo Dias, trata-se de um domínio que suscita “problemas de elevada sensibilidade humana e jurídica” [cf. Direito Penal, Parte Geral, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime, 2.ª edição, Coimbra Editora, pág. 508], pois respeita a direitos e liberdades de pessoas mais frágeis, demandando uma maior proteção.

A questão tem merecido particular atenção após a revogação, com a Reforma de 1977, do artigo 1884.º do C.C., que previa a faculdade dos pais corrigirem moderadamente os filhos nas suas faltas, admitindo o poder de correção dos pais e, como tal, a aplicação de castigos moderados aos filhos.

Presentemente, as posições divergem, havendo quem defenda que a alteração legislativa não consente as medidas de correção, mesmo que levadas a efeito com finalidade educativa [cf. Clara Sottomayor, Existe um Poder de Correção dos Pais?, in Lex Familiae – Revista Portuguesa de Direito da Família, ano 4, n.º 7, (janeiro-junho), Coimbra Editora], mas também quem advogue não haverem os pais perdido a faculdade de correção, usando, para tanto, “castigos proporcionados e moderados” – [vide, neste sentido Guilherme Oliveira, A Criança Maltratada, Temas de Direito da Família, n.º 1, Coimbra Editora, 1991, pág. 191; Armando Leandro, Poder Paternal: natureza, conteúdo, exercício e limitações. Algumas reflexões de prática judiciária, Temas de Direito de Família, Ciclo de conferências no Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados), Almedina, 1986: 126 e 127] -, considerando, assim, que o poder de correção (dos pais) não se mostra proscrito, continuando a persistir, inserido no poder-dever de educação e proteção, condicionado a um exercício não abusivo.

Por nós, perfilhamos o entendimento no sentido de que só o castigo corporal desproporcionado, imoderado, aquele que ultrapassa o ius corrigendi socialmente aceite, assume relevância criminal.

Isto dito, chegou o tempo de indagar se em relação a alguma das ações, descritas nos itens 16 e 17 e 18 - esta última levada a efeito na pessoa do ofendido JRS1 - é, na visão de alguns autores, com apelo à figura da adequação social, de excluir a tipicidade da conduta castigadora, ou, de acordo com o entendimento de outros, com recurso ao poder de correção, enquanto reflexo do direito-dever de educação (artigo 31.º, n.º 2, alínea b) do C. Penal), de excluir a respetiva ilicitude.

Se é certo, num e noutro caso, surgirem as condutas do recorrente no seguimento das palavras, desrespeitosas que lhe foram dirigidas por cada um dos seus filhos, a saber: “mentiroso” (pela filha JRS2); “rabo” (pelo filho JRS1), não menos certo é que a reação “castigadora”, pelo grau de violência revelado, não merece o juízo de moderação, de proporcionalidade capaz de conduzir à afirmação de se estar perante castigos leves. Na verdade, a força imprimida à “estalada” desferida na face e zona da orelha da filha foi de tal ordem que levou a que o seu brinco, usado na orelha, ficasse preso no pescoço; mas também a “chapada” desferida na cara do JRS1, foi de modo a deixá-lo a sangrar pelo nariz, ação, cuja intensidade não deixa de se mostrar em consonância com a natureza dos factos descritos nos itens 19 e 20 do acervo factual apurado. Com efeito, ao contrário do entendimento do recorrente, os comportamentos desrespeitosos, mesmo intoleráveis dos filhos, a exigir a intervenção dos progenitores, no exercício do dever de educar, não consentem um exercício do poder de correção sem limites; idealmente, recomendam uma atuação persuasiva conducente ao reconhecimento da “falta”, não excluindo, embora, em certas circunstâncias de maior tensão, o castigo físico moderado, o que se entende não ter acontecido em qualquer dos casos.

Se os factos respeitantes à vítima JRS1 (item 18) se inserem no apurado quadro da violência doméstica, não ganhando autonomia incriminatória, já a ação praticada contra a ofendida JRS2, não caindo, pelas razões acima avançadas, no ilícito típico prevenido no artigo 152.º, do C. Penal, integra, verificados que resultam os respetivos elementos objetivo e subjetivo, o crime (atomístico), previsto no artigo 143.º do C. Penal.

Sucede, porém, que, revestindo, o mesmo, natureza semi-pública (cf. artigo 143.º, n.º 2 do C. Penal), no presente caso não se verificam as condições objetivas de procedibilidade, concretamente o exercício tempestivo do direito de queixa (cf. artigos 48.º e 49.º do CPP; artigo 115.º, n.º 1, com referência ao n.º 4, do artigo 113.º, ambos do CPP). Com efeito, decorre dos autos que apenas em 04.06.2018 (cf. auto de fls. 163/166) – donde, já após decorridos seis meses sobre a data da prática dos factos ora em apreciação (de 15.10.2017) - a assistente C, na qualidade de legal representante dos filhos, manifestou o desejo de procedimento criminal contra o arguido (recorrente) pelos factos de que foram vítimas os menores, sendo certo que nem sempre a investigação (incorporando diferentes inquéritos) teve como objeto o (s) crime (s) de violência doméstica – (cf. despacho de fls. 167/173).

Exercido, assim, o direito de queixa num momento em que já se mostrava extinto, falece a legitimidade ao Ministério Público para prosseguir na ação penal pelo sobredito crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do C. Penal, em relação aos factos de 15.10.2017, praticados contra JRS2, não podendo o arguido/recorrente ser, pelo mesmo, criminalmente perseguido.

Detenhamo-nos agora nos factos que surgem a suportar a condenação do recorrente pelo crime de violência doméstica na pessoa da assistente, qualificação jurídico-penal contra a qual o recorrente também se insurge, pese embora no pressuposto da alteração do acervo factual na parte correspondente (cf. pontos 106 e 106 das conclusões), que, contudo, não veio a ocorrer.

Resulta dos factos que o recorrente desde o verão do ano de 2017 controlava financeiramente a assistente, obrigando-a a apresentar faturas por cada compra que efetuava, não lhe dando dinheiro para fazer face ao sustento e material escolar dos seus filhos menores, obrigando-a a recorrer a outros familiares para providenciar a tais despesas. Mais decorre que, pelo menos uma vez, na presença da filha JRS2, se lhe dirigiu “apelidando-a de ladra, cabra e puta”, assim a humilhando e atentando contra a sua dignidade de mulher e mãe. E ainda que durante o mês de setembro de 2017, no interior da residência comum, na sequência de uma discussão entre recorrente e assistente, motivada pelo facto de o primeiro pretender que o filho JRS1 fosse trabalhar consigo, aquele agarrou a segunda, empurrando-a, levando a que a mesma caísse ao chão e batesse com a cabeça na barra da cama.

Ora, de uma leitura integrada dos factos, facilmente se apreende uma conduta por parte do recorrente de domínio em relação às questões familiares, de subalternização da assistente, mormente quanto à “educação” dos filhos – com maior nitidez no que respeita ao filho JRS1 -, sendo inequívoca a vontade, sem olhar a meios, de impor as suas “regras”. Só assim se “compreende” o condicionamento financeiro a que sujeitou a mulher, recusando-lhe o dinheiro para aquisição de bens, inclusive de material escolar, destinados ao sustento e formação dos seus filhos, aspetos que inquestionavelmente revelam uma conduta de apoucamento, de vontade de subordinar, de imposição, idóneos a provocar humilhação, impotência, desgaste psicológico e, assim, a atingir a dignidade da assistente, enquanto mãe e mulher, configurando os maus tratos pressupostos no ilícito típico em referência. Em consonância surgem igualmente as ações traduzidas nas palavras ofensivas (ladra, cabra, puta) que dirigiu à mulher na presença da filha JRS2, então com 15 anos de idade, e por isso ainda mais perturbadoras, achincalhantes, causadoras de maior humilhação. A posição de domínio imposta pelo recorrente, como manifestação de poder, secundarizando e mesmo ignorando a qualidade de mãe da assistente, encontra-se igualmente presente no episódio reportado nos itens 13, 14 e 15, no decurso do qual não se eximiu de recorrer à força física contra a mesma para fazer vingar o propósito de obrigar o filho (de ambos!) a ir trabalhar, consigo, aos sábados durante todo o dia.

Considerando o quadro em que se desenvolveram as condutas, temos por certo corresponder a ação do recorrente ao sentido de desvaliosidade que o tipo de crime em questão incorpora. Na verdade, o fundamental da distinção entre a violência doméstica e os ilícitos típicos de crime que especificamente tutelam bens jurídicos, naquele, visados concretiza-se pela apreciação de que a conduta imputada encerra, ou não, um atentado à dignidade pessoal protegida. E, no caso concreto a resposta, perante a especial desconsideração, atitude de desprezo, vontade de humilhar a mãe e mulher, é positiva. Convém ter presente que nos maus tratos psíquicos se incluem as estratégias e condutas de controlo, o abuso verbal e emocional, idóneos a perturbar a sã convivência e as condições para um pleno desenvolvimento da personalidade dos membros da família.

Concluindo, a imagem global dos factos traduz a conduta maltratante de que se ocupa o crime de violência doméstica, não se suscitando também dúvida quanto à verificação, no caso, do respetivo elemento subjetivo.

Em síntese, incorreu o recorrente na prática de dois crimes de violência doméstica, um dos quais p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, alínea a) (vítima a assistente C), outro, p. e p. 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2, alínea a) (vítima JRS1), do Código Penal.

§4. Das penas (parcelares e única)

§4.1. Também as penas aplicadas merecem a reação do recorrente, considerando não se revelarem as mesmas adequadas aos factos, entendendo haverem sido desconsideradas todas as circunstâncias a ponderar na medida da pena, tanto mais que as exigências de prevenção especial foram tidas por medianas, revelando-se o grau de ilicitude, bem como a culpa reduzida, defendendo mostrarem-se antes ajustadas a pena de 1 (um) ano de prisão e 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão, respetivamente pelo crime de que foi vítima a assistente C e o JRS1, devendo, em consequência, ser reduzida a pena única encontrada.

Aos crimes em referência, verificadas que resultaram, em ambos os casos, as circunstâncias agravativas prevenidas no n.º 2, do artigo 152.º, do C. Penal corresponde em abstrato - quer à luz da lei em vigor à data da prática dos factos, quer na atual redação do preceito - a pena de prisão de dois a cinco anos.

O julgador, sopesando as exigências de prevenção, a culpa e as demais circunstâncias enunciadas no n.º 2, do artigo 71.º do C. Penal, fixou a pena em 2 (dois) anos e 3 (três) anos de prisão, respetivamente pelo crime de que foi vítima a assistente C e o ofendido JRS1.

Não sendo caso de atenuação especial da pena, porquanto não transparecem acentuadamente diminuídas nem a ilicitude do facto, nem a culpa do agente, sequer a necessidade da pena (cf. artigo 72.º do C. Penal), resulta infrutífera a pretensão no que concerne à pena parcelar aplicada pelo crime praticado contra a assistente, fixada no mínimo legal. Já assim não é em relação à pena de 3 (três) anos de prisão cominada ao recorrente pelo crime que incidiu sobre o JRS1.

Na apreciação das penas, o ponto de partida e enquadramento geral do percurso a realizar prende-se com o disposto no artigo 40.º do Código Penal, segundo o qual toda a pena tem como finalidade «a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade», não podendo em caso algum ultrapassar a medida da culpa.

Vem a jurisprudência reiteradamente afirmando, seguindo a doutrina de Figueiredo Dias [“Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 2005, pág. 227 e ss], que se as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos, e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade, então, o processo de determinação da pena concreta a aplicar refletirá, de um modo geral, a seguinte lógica: a partir da moldura penal abstrata procurar-se-á encontrar uma submoldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida ótima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar; será dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva que deverão atuar os pontos de vista da reinserção social; quanto à culpa, para além do suporte axiológico-normativo de toda e qualquer repressão penal, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a aplicar - [cf., entre outros, os acórdãos do STJ de 24.04.2008 e de 16.10.2008, ambos sumariados in www.stj.pt.].

Isto dito, centremo-nos no caso concreto.

De acordo com o artigo 71.º, n.º 1 do Código Penal, “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, devendo o tribunal, para o efeito, atender “a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele”, considerando, nomeadamente, as elencadas no n.º 2 do preceito.

Ponderou o julgador (e bem) elevadas as exigências de prevenção geral, como meio de proteção do bem jurídico protegido com a incriminação, bastando para assim concluir encarar a frequência com que se vem sucedendo os delitos desta natureza (não raramente com resultados trágicos), traduzindo um grave desprezo por bens jurídicos fundamentais, reclamando, assim, uma resposta adequada que reafirme a validade das normas jurídicas de modo a que na comunidade em geral não se instale a descrença nas mesmas. Já quanto às necessidades de prevenção especial, ponderando não haverem os factos perdurado por “um lapso de tempo muito extenso”, a ausência de antecedentes criminais, a integração social, a circunstância de se tratar de uma pessoa trabalhadora, socialmente considerada e respeitada, ao que acresceu a circunstância de após a separação do casal não haver noticia “de que tenha voltado a praticar qualquer facto similar aos seus filhos”, situou-as num nível mediano, para isso contribuindo a adoção de uma postura desculpabilizadora, onde pontificou a invocação do “poder corretivo”.

O grau de ilicitude, também se afigurou, em função da natureza das ofensas, das respetivas consequências físicas, mas sobretudo psíquicas, e bem assim da ausência de espírito crítico – surgindo sempre escudado num pretenso “poder corretivo” –, elevado, revelando-se a culpa na modalidade mais intensa do dolo.

Apreciação esta, de que não nos afastamos, pese embora, no contexto julgarmos encontrar maior adequação a pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, por intermédio da qual, cremos, resultam asseguradas as exigências de prevenção - sendo certo que não se identificam no geral – fora do contexto familiar - especiais necessidades de ressocialização, havendo que realçar, após a separação, a adoção de uma conduta normativa -, respeitando-se, simultaneamente, o princípio da culpa – (cf. artigos 40.º e 71.ºddo C. Penal).

§4.2. Assistindo-se a uma situação de concurso efetivo entre os crimes em apreço importa encontrar a pena única a aplicar ao recorrente (cf. artigos 30.º, n.º 1 e 77.º, ambos do C. Penal), relevando, para o efeito, em conjunto os factos e a personalidade do agente.

Situando-se moldura penal abstrata do concurso entre o mínimo e o máximo de 2 anos e 6 meses de prisão (pena parcelar mais elevada) e 4 anos e 6 meses de prisão (correspondente à soma das penas parcelares concretamente aplicadas), respetivamente, ponderando o facto de estarmos perante o mesmo tipo de crime; a circunstância de as ações desvaliosas terem sido praticadas em idêntico contexto, identificando-se mesmo uma certa relação (de causa a efeito) entre as condutas criminosas, tendo presente o que ficou dito a propósito das exigências de prevenção, quer geral, quer especial, não sendo de descurar a conduta normativa entretanto adotada, julga-se adequado e proporcional fixar a pena única em 3 (três) anos de prisão, suspensa na execução, como decidido pelo tribunal a quo, agora pelo período de 3 (três) anos – [cf. artigo 50.º do C. Penal].

§4.3. Não se conforma o recorrente com a determinação do regime de prova, defendendo não ocorrerem especiais razões para vigiar a sua readaptação social.

Com relevância, escreveu-se a este propósito na sentença:

Não obstante, estabelece o art. 34.º - B, n.º 1, da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, que [a] suspensão da execução da pena de prisão por condenado pela prática de crime de violência doméstica previsto no art. 152.º do Código Penal é sempre subordinada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou ao acompanhamento de regime de prova, em qualquer caso se incluindo regras de conduta que protejam a vítima, designadamente, o afastamento do condenado da vítima, da sua residência ou local de trabalho e a proibição de contactos, por qualquer meio”.

Portanto, em face da postura do arguido, de desculpabilização dos factos praticados, o que demonstra não ter ainda consciencializado a gravidade dos mesmos (…), julga-se adequada a aplicação da pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão, pelo período de quatro anos, com sujeição a regime de prova, executado com vigilância, apoio e fiscalização dos serviços de reinserção social, o qual, atendendo à natureza dos factos objeto deste processo, deverá contemplar:

- a frequência, do arguido de programa específico para agressores de violência doméstica e de educação do arguido para o estabelecimento de relações conjugais saudáveis e de controlo de impulsos agressivos (artigo 53.º n.º 1 e 2 do Código Penal).

A solução adotada encontra sustentação no regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas (Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro), concretamente no seu artigo 34.º - B, o qual constituindo o regime regra, só pode ser afastado em face de razões excecionais, devidamente fundamentadas (cf., o acórdão do TRC, de 12.04.2018, disponível em www.dgsi.pt), que no caso não se verificam; pelo contrário, a motivação que perpassa, da leitura articulada dos factos, ter sido a do recorrente, justifica plenamente a sua sujeição a um “plano educacional” com o escopo daquele que foi determinado.

É, pois, de manter a sujeição ao regime de prova, como determinado.

§5. Dos montantes indemnizatórios

Por fim, manifesta-se o recorrente contra o montante indemnizatório fixado aos ofendidos na sequência do pedido de indemnização civil formulado no processo pela assistente, por si e em representação dos menores, seus filhos, no montante global de € 23.000,00 (vinte e três mil euros), vindo condenado no pagamento, a título de danos não patrimoniais, aos ofendidos C e JRS1 [por via do princípio da adesão, não podendo ser o recorrente - em consequência da verificação, aquando do seu exercício, da extinção do direito de queixa - criminalmente perseguido pelos factos concernentes à sua filha JRS2, terá de ser, nesta parte, proferida decisão de absolvição], de €1.000,00 (mil euros) e € 2.000,00 (dois mil euros), respetivamente.

Argumenta o recorrente não haver tido o tribunal a quo na devida conta a sua situação económica, revelando-se, em face da mesma, os montantes fixados desproporcionais e desajustados, violadores da proibição de excesso.

Previamente, e mais uma vez por via do princípio da adesão, importa deixar claro que pedido de indemnização civil deduzido na ação penal terá de ter como causa de pedir os factos imputados ao arguido, integradores do crime que constitui objeto do processo penal, só por estes podendo, aquele, ser indemnizado. Contudo, no caso em apreciação (aspeto abordado pelo recorrente), factos houve, situados num período não compreendido na acusação – os respeitantes à vivência do casal na Alemanha – que indevidamente surgem a suportar o montante indemnizatório pelos danos não patrimoniais sofridos pela ofendida C, circunstância que implica a redução da indemnização, mas não por efeito da condição económica do recorrente, a qual, contrariamente ao que refere, não deixou de ser ponderada, revelando-se equitativo, face aos critérios enunciados nos artigos 496.º e 494.º do C. Civil, fixá-la em € 800,00 (oitocentos euros).

No que respeita ao montante indemnizatório arbitrado pelos danos não patrimoniais sofridos pelo ofendido JRS1, verificados que também se mostram os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito (artigo 483.º do C. Civil), os danos, sobretudo de natureza psicológica, sofridos pelo menor, bem assim as suas consequências, as circunstâncias do caso, salientando-se a evidente desproporção, em termos de ascendente entre o recorrente e o menor, aspeto que acentua a culpa do primeiro, bem como a respetiva situação económica, revela-se equitativa a indemnização, concretamente fixada em € 2.000,00 (dois mil euros), a qual, ao invés do que defende o recorrente de modo algum se apresenta desproporcional.

III. Dispositivo

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal, na parcial procedência do recurso:

a) Em absolver o arguido P da prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2, alínea a), do Código Penal, na pessoa de JRS2, revogando em correspondência a sentença recorrida;

b) Em condenar o arguido P pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2, alínea a), do Código Penal, na pessoa de JRS1, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, revogando em correspondência a sentença recorrida;

c) Em cúmulo jurídico das penas parcelares, de 2 (dois) anos de prisão, cominada na sentença recorrida pelo crime de que foi vítima C e de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, supra cominada em b), condenar o arguido P, na pena única de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo, com regime de prova nos precisos termos determinados na sentença recorrida;

d) Revogar a sentença recorrida na parte em que condenou o demandado P no pagamento a JRS2 da quantia de € 1.250,00 (mil duzentos e cinquenta euros), absolvendo-o, nesta parte, do pedido de indemnização civil.

e) Condenar o demandado P, a título de danos não patrimoniais, a pagar a C, a quantia de € 800,00 (oitocentos euros), acrescida de juros à taxa legal, contados do trânsito em julgado da decisão, até efetivo pagamento, revogando em correspondência a sentença recorrida;

f) Em tudo o mais não prejudicado pelo supra decidido, manter a sentença recorrida.

g) Sem custas na parte criminal (artigo 513.º, n.º 1, do CPP).

h) Custas referentes à parte civil, por demandantes e demandado, na proporção do respetivo decaimento (artigos 523.º do CPC e 527.º do CPC).

Coimbra, 10 de Novembro de 2021

Texto processado e revisto pela relatora.

Maria José Nogueira (relatora)

Frederico Cebola (adjunto)