Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4036/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: MONTEIRO CASIMIRO
Descritores: INVENTÁRIO
REMOÇÃO DO CABEÇA DE CASAL- REQUISITOS
CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE VEÍCULO AUTOMÓVEL
REGISTO FORMALISMO
Data do Acordão: 12/21/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2º JUÍZO CÍVEL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 205º, Nº 2,875º E 219º DO C.CIVIL.E ARTºS 25º, Nº 1 E 30º, Nº 1, DO DEC.-LEI Nº 55/75, DE 12 DE FEVEREIRO
Sumário: I – Não há ocultação de um bem (veículo automóvel pertencente ao inventariado) se esse bem foi vendido ainda em vida do inventariado, não tendo, por isso, que ser incluído na relação de bens.
II – Não pode concluir-se que o cabeça-de-casal tenha administrado mal a herança se, tendo tido intervenção na emissão de uma primeira declaração de venda de um veículo automóvel, interveio, posteriormente na emissão de uma segunda declaração de venda do aludido veículo, se o fez a título pessoal e não na qualidade de cabeça-de-casal.
III – O contrato de compra e venda de um veículo automóvel não está sujeito a qualquer formalismo especial, face ao disposto nos artºs 205º, nº 2,875º e 219º do C.Civil.
IV – A lei exige a forma escrita, com reconhecimento das assinaturas dos outorgantes, para o registo de propriedade de veículo automóvel adquirida por contrato verbal de compra e venda (cfr. artºs 25º, nº 1 e 30º, nº 1, do Dec.-Lei nº 55/75, de 12 de Fevereiro).
Decisão Texto Integral: 1
No inventário para partilha da herança aberta por óbito de A..., a correr termos pelo 2º Juízo Cível de Coimbra, vieram os interessados B... e C... e mulher, D..., deduzir incidente de remoção de cabeça de casal contra E..., nos termos dos artºs 1339º do CPC e 2086º, nº 1, als. a) e b) do C´.Civil, com os seguintes fundamentos, em síntese:
- A relação de bens apresentada pela cabeça de casal foi objecto de reclamação por parte dos ora requerentes, na qual acusaram a falta de diversos bens, entre eles o veículo automóvel de marca Opel, modelo Astra, matrícula 59-64-ML, com o registo de propriedade nº 639, de 21/06/1999.
- Em resposta a cabeça de casal veio alegar que o veículo havia sido vendido em princípios de Julho de 2000, ainda em vida do inventariado, conforme instruções deste, como se vê da declaração de venda.
- Mais tarde veio a cabeça de casal juntar fotocópia certificada da procuração com base na qual teria vendido o veículo em questão, tendo os requerentes arguido a sua falsidade e a força probatória, questão que foi remetida para os meios comuns.
- No requerimento de fls. 343, a ré confirma que o veículo foi vendido, em 26.7.2000, a F....
-Os autores juntaram aos autos informações da Conservatória do Registo Automóvel, reportadas a 15/05/2001 e 20/11/2001, das quais consta que a propriedade de tal veículo ainda se encontrava registada a favor do inventariado.
- No entanto, a ser verdadeira essa venda, é de considerar que a cabeça de casal não procedeu ao reconhecimento da sua assinatura, e não a contendo, aquele nunca se tornou proprietário do automóvel, tanto que nunca procedeu ao respectivo registo de propriedade.


- Depois dessa suposta venda do veículo a ré procedeu ao pagamento do prémio anual do seguro automóvel correspondente à apólice nº 404128, existente em nome do inventariado na companhia de seguros AXA, e que tinha início em 28/07/2000 e termo em 27/07/2001, só no ano seguinte, em 29/06/2001, solicitando o seu cancelamento.
- Até 23/07/2002 o dito automóvel esteve registado em nome do inventariado, a quem sempre pertenceu, ficando a partir daí registado a favor de Francisco José Leitão Vieira.
- Este registo foi efectuado com base numa declaração de venda datada de 02/07/2002, onde consta como vendedor o inventariado, falecido em 17/10/2000.
- A cabeça de casal vendeu o referido automóvel, não em 26/07/200, mas em 02/07/2002, e a pessoa diversa do comprador que consta na 1ª declaração.
Terminam, pedindo a remoção da cabeça de casal Regina Oliveira, nomeando-se para cabeça de casal o filho mais velho do inventariado.
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O pedido foi julgado improcedente, por se considerar não se encontrar demonstrada a omissão da existência do referido automóvel, ou, no incidente de prestação de contas, o valor resultante da sua venda.
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Para assim decidir, baseou-se o Sr. Juiz no seguinte:
1º - O inventariado faleceu a 17/10/2002, no estado de casado com E..., ora cabeça de casal, em 2ªs núpcias do inventariado, no regime de separação absoluta de bens.
2º - A propriedade do veículo de matrícula 59-64-ML manteve-se registada na Conservatória de Registo Automóvel a favor do inventariado, A..., desde 21/06/1999 até 23/07/2002, data a partir da qual ficou registada a favor de Francisco José Leitão Vieira.
3º - Por contrato verbal de princípios de Julho de 2000, a cabeça de casal, munida da procuração junta a fls. 353/354, procedeu à venda do referido veículo a F..., tendo, na sequência de tal venda, sido emitida a declaração de venda cuja cópia se encontra junta a fls 149 e 50.


4º - Tal declaração de venda encontra-se datada de 26/07/2000, nela figurando como comprador o referido Licínio e como vendedor o inventariado, encontrando-se assinada pela ora cabeça de casal.
5º - O referido veículo foi posteriormente vendido, em Junho/Julho de 2001, pelo Licínio a Francisco José Leitão Vieira.
6º - A pedido do comprador Francisco, a cabeça de casal emitiu a declaração de venda cuja cópia se encontra junta a fls. 673/674, com base na qual o referido Francisco procedeu ao registo do veículo a seu favor na Conservatória do Registo Automóvel.
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Inconformados com a decisão interpuseram os requerentes recurso de agravo, rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:
1ª- Existe nos autos suficiente prova documental que, devidamente analisada, conduz necessariamente à conclusão de que a cabeça de casal omitiu na relação de bens a existência do veículo automóvel de matrícula 59-64-ML.
2ª- No entanto, sucede que a Mmª Juiz a quo não valorou tal prova documental, nem a interpretou ou analisou devidamente, tendo, pelo contrário valorizado exclusivamente, ou quase exclusivamente, a prova testemunhal.
3ª- Ora, a prova documental – de fls. 669 a 677 e 809 a 818 - é suficiente para concluir que a cabeça de casal procedeu mal no exercício do seu cargo, pelo que deverá ser removida do mesmo.
4ª- A declaração negocial de venda do veículo automóvel tem que ser reduzida a escrito, sob pena de não ser possível efectuar o registo e, consequentemente, transmissão do mesmo. Por conseguinte
5ª- Não era admissível prova testemunhal sobre tal matéria, nos termos do artº 393º, nºs 1 e 2 do CC.
6ª- No processo ordinário nº 44/2002, que correu termos na 2ª secção da Vara Mista de Coimbra, foi proferido acórdão pelo Tribunal da relação de Coimbra que, embora não tenha transitado, fixou definitivamente a matéria de facto, a respeito da procuração, matéria essa que é nula porque “No dia 03.07.00 o Joaquim Correia não dispunha de condições neurológicas que lhe permitissem compreender o significado da procuração aludida em (…)”; e “o falecido Joaquim Correia estava incapaz de emitir e compreender


o alcance da declaração aposta na procuração”.
7ª- Porém, o Tribunal a quo não deu, igualmente, qualquer relevo a tal matéria de facto, e ao invés de ter suspendido o incidente de remoção, nos termos do artº 1335º do CPC, já que
8ª- A questão da procuração era prejudicial, e dela dependia uma decisão mais conscienciosa relativamente ao incidente da remoção.
9ª- Ora, não tendo a cabeça de casal tratado de forma isenta o património do inventariado ainda em vida deste, e já que esse património viria a compor o património hereditário, e
10ª- Ligando apenas e exclusivamente aos seus interesses particulares, terá, inequivocamente, que ser removida desse cargo.
11ª- Salvo melhor opinião, o despacho recorrido violou o disposto nos artºs 393º, nºs 1 e 2, 2086º, nº 1, al. b) do CC e 659º, 663º, 1335º e 1339º do CPC, pelo que deverá ser revogado, com as legais consequências.
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A requerida cabeça-de-casal contra-alegou, defendendo a confirmação da decisão recorrida.
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O Sr. Juiz sustentou, tabularmente, o despacho recorrido.
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Cumpre decidir, ao abrigo do disposto no artº 705º do Código de Processo Civil, atenta a simplicidade da questão apresentada.
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Começam os recorrentes por pôr em causa o despacho recorrido por ter valorado apenas a prova testemunhal, em detrimento da prova documental existente nos autos, uma vez que a declaração negocial de venda do veículo tem que ser reduzida a escrito, sob pena de não ser possível efectuar o registo e, consequentemente, a transmissão do mesmo, pelo que não era admissível prova testemunhal sobre tal matéria, nos termos do artº 393º, nºs 1 e 2, do Código Civil.

No despacho recorrido deram-se como provados, com base nos depoimentos de testemunhas, os pontos atrás referidos sob os nºs 3º, 5º e 6º.


Resulta dos mesmos que a cabeça-de-casal, por contrato verbal de princípios de Julho de 2000, procedeu à venda do aludido veículo a Licínio Santos, tendo sido emitida uma declaração de venda, e que o referido veículo foi posteriormente vendido, em Junho/Julho de 2001, pelo Licínio a Francisco Vieira, tendo sido a pedido deste último que a cabeça-de-casal emitiu outra declaração de venda, com base na qual o Francisco procedeu ao registo do veículo a seu favor na Conservatória do Registo Automóvel.
Mas, poderiam esses factos ter sido dados como provados com base na prova testemunhal, ou os mesmos apenas poderiam resultar de prova documental, como pretendem os recorrentes?
Resulta do disposto nos artºs 1º, nº 1, e 5º, nºs 1, al. a), e 2, do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro (que estabelece o regime do Registo da Propriedade Automóvel), que estão sujeitos a registo obrigatório os direitos inerentes aos veículos automóveis, nomeadamente o direito de propriedade.
Estatui o artº 205º, nº 2, do Código Civil (diploma a que pertencerão os restantes normativos citados sem menção de proveniência) que ás coisas móveis sujeitas a registo público é aplicável o regime das coisas móveis em tudo o que não seja especialmente regulado.
Ora, no caso de um contrato de compra e venda de um veículo automóvel, como não lhe é aplicável o disposto no artº 875º (que é apenas aplicável aos bens imóveis), tem de se concluir que não está sujeito a qualquer formalismo especial, por força do disposto no artº 219º.
E, assim, a sua prova pode fazer-se por qualquer meio admitido em direito, e, portanto, também, pela prova testemunhal, sendo-lhe inaplicável o disposto nos nºs 1 e 2 do art. 393º.
Diferente do formalismo - ou da falta dele - exigido para o contrato de compra e venda de um veículo automóvel é o que é exigido para o seu registo.
Com efeito, para o registo de propriedade adquirida por contrato verbal de compra e venda (como é o caso dos autos) exige a lei a forma escrita, com reconhecimento das assinaturas dos outorgantes - requerimento formulado pelo comprador e confirmado pelo vendedor em impresso de modelo próprio (cfr. arts. 25º, nº 1, e 30º, nº 1, do Decreto-Lei nº 55/75, de 12 de Fevereiro, que aprovou o Regulamento do Registo de Automóveis).

Ora, no presente caso a questão prende-se com a venda e não com o registo do veículo.
E como a prova testemunhal é válida, mantém-se a matéria de facto dada como provada na 1ª instância.
Com essa matéria de facto importa ver se o comportamento da cabeça- de-casal é molde a integrar algum dos fundamentos de remoção do cargo previstos nas als. a) e b) do nº 1 do artº 2086º.
Este artigo estatui, na parte que aqui interessa, que o cabeça-de-casal pode ser removido:
a)- Se dolosamente ocultou a existência de bens pertencentes à herança;
b)- Se não administrar o património hereditário com prudência e zelo.
Da análise da matéria de facto atrás reproduzida, verifica-se que o veículo em questão foi vendido ainda em vida do inventariado, pelo que não tinha ele que ser incluído na relação de bens.
Conclui-se, assim, que não houve ocultação desse bem, não se encontrando preenchido o fundamento previsto na al. a) do nº 1 do artº 2086º.
Por outro lado, também não se encontra preenchido o requisito previsto na al. b).
É certo que a ora cabeça-de-casal, ao intervir na emissão da segunda declaração de venda do aludido veículo, teve um comportamento bastante censurável – e até, eventualmente, passível de procedimento criminal -, que, no entanto, não cabe aqui apreciar, por um lado, porque tal intervenção não teve lugar na qualidade de cabeça-de-casal, e, por outro lado, porque não foi prejudicada a administração do património hereditário.
Não se encontrando demonstrado que a cabeça-de-casal, nessa qualidade, tenha administrado mal a herança, inexiste o outro fundamento invocado pelos recorrentes para determinar a remoção.
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Convém referir apenas, mais, que o Tribunal não tinha que dar relevo à matéria de facto fixada no processo ordinário nº 44/2002, a respeito da procuração passada pelo Joaquim Correia a favor da ora cabeça-de-casal, visto que, como os próprios recorrentes alegam, a decisão proferida nesse processo ainda não transitou em julgado, não havendo, assim, violação do disposto no artº 663º do Código de Processo Civil.
Por outro lado, não pode este Tribunal da Relação conhecer da questão agora levantada pelos recorrentes - de saber se o Tribunal de 1ª instância deveria ter suspendido o incidente de remoção, nos termos do artº 1335º do C.P.Civil -, visto tratar-se de uma questão nova que não foi invocada na 1ª instância e, de qualquer modo, não ter aplicação, no presente caso, o disposto naquela norma, visto nele não se suscitarem questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição dos direitos do interessados.
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Pelo exposto, nego provimento ao recurso, mantendo o despacho recorrido e condenando os recorrentes nas custas.