Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2447/05.7TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL FONSECA
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
EXTINÇÃO
Data do Acordão: 03/03/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 1569º Nº2 DO CÓD. CIVIL
Sumário: A desnecessidade como causa de extinção de servidão (art. 1569º, nº2 do Cód. Civil) há-de aferir-se por padrões objectivos e por referência ao prédio dominante, implicando uma correcta (e casuística) concatenação entre o interesse do prédio dominante e do prédio serviente. Assim, concluir-se-á pela extinção da servidão por desnecessidade sempre que puder razoavelmente concluir-se que a mesma deixou de trazer qualquer mais valia significativa ao prédio dominante ou até que se tornou inútil, hipótese em que o legislador considerou deixar de se justificar o sacrifício imposto ao prédio serviente.
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

1. RELATÓRIO

A... e marido B... , intentaram a presente acção, com forma de processo ordinário,  contra C... e mulher D... , pedindo a condenação dos réus a proceder à demolição dos degraus em cimento que construíram no leito de servidão, no espaço que medeia entre a sua casa e a rua pública, deixando livre esse espaço para o trânsito de e para prédio dos Autores, fixando-se o prazo de vinte dias para procederem a tais obras, bem como a absterem-se de, por qualquer forma, impedir o trânsito dos autores.

Para fundamentar a sua pretensão invocam, em síntese, que:

Os autores intentaram esta acção com processo ordinário alegando que, por sentença transitada em julgado, proferida no processo n.º 571/02 do 1º Juízo Cível de Y..., os réus foram condenados a reconhecer que o seu prédio urbano composto de casa de habitação de andar e lojas, sita em Z.., freguesia de X..., concelho de Y..., a confrontar do norte com a via pública, nascente com AC, sul com a via pública e do poente com CM, inscrito na matriz urbana sob o artigo 1170º, está onerado com uma servidão de passagem, de pé e carro, a favor do prédio dos autores, composto de barracões e logradouro, sito no mesmo lugar, a qual é consubstanciada no tracto de terreno situado a nascente deste prédio que é batido, coberto em parte com cimento e com a largura de 1,40 metros;

No leito da servidão, na parte que ocupa o seu prédio, os réus procederam à construção de degraus em cimento no espaço que medeia entre a sua casa e a rua pública que impedem a circulação de carro, o que viola o direito de passagem dos autores reconhecido na sentença, razão pela qual notificaram os réus para que procedessem à demolição dos degraus por forma a repor o leito da servidão, acrescentando que os réus não o fizeram, forçando os autores a lançar mão desta acção, e que as obras em causa não demandam mais de vinte dias para a sua execução.

Os réus contestaram aceitando os factos alegados e sustentando que os degraus foram construídos na convicção de que os autores não tinham por ali qualquer servidão pelo que propuseram contra estes a acção, referida na petição, que veio a improceder.

Em reconvenção pedem a que se declare extinta a servidão de pé e carro existente no seu prédio a favor do prédio dos Autores, por desnecessária.

 Para fundamentar esse pedido alegam que o prédio dos autores confina a poente com o caminho público, por onde tem a sua entrada principal, assim como confina também a norte com o caminho público, para o qual também tem acesso, não tendo qualquer necessidade de onerar o prédio dos réus com aquela servidão, a qual lhes causa bastantes prejuízos já que o seu prédio fica devassado, acrescentando que os autores não precisam de fazer quaisquer obras com a cessação da servidão para terem acesso da via pública para o seu prédio, sendo mais cómodo o acesso ao prédio dos autores através das entradas que este tem abertas para as vias públicas do que através da servidão existente no seu prédio.

Na réplica os autores impugnaram os factos alegados no que respeita à matéria de reconvenção.

Foi elaborado o despacho saneador, tendo sido seleccionada a matéria de facto assente e a que constitui a base instrutória, sem reclamações.

Na sequência do falecimento do autor marido foram julgadas habilitadas como sucessores deste a sua viúva, ora autora e as suas filhas E... e F... para com elas prosseguir a presente acção.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento e respondeu-se aos quesitos, sem reclamações.

Proferiu-se sentença, que concluiu da seguinte forma:

“Pelo exposto, decide-se:

a) julgar esta acção procedente por provada e, consequentemente, condenar os Réus a proceder à demolição dos degraus em cimento que construíram no leito de servidão, no espaço que medeia entre a sua casa e a rua pública, deixando livre esse espaço para o trânsito de e para prédio dos Autores, fixando-se o prazo de vinte dias para proceder a tais obras, bem como a absterem-se de, por qualquer forma, impedir o trânsito dos Autores;

b) julgar a reconvenção improcedente por não provada e, consequentemente, absolver os Autores do pedido reconvencional.

Custas da acção e da reconvenção a cargo dos Réus”.

Os réus recorreram, formulando as seguintes conclusões:

“1ª- O prédio dos Réus está onerado com uma servidão de passagem de pé e de carro, a favor do prédio dos Autores;

2ª Mas esta servidão para ser utilizada em benefício do prédio dos Autores, tem que primeiro chegar-se à via pública, para se poder entrar nele;    

3ª Assim, está bem demonstrado na matéria de facto dada como provada, que os Autores não têm qualquer interesse, nem qualquer necessidade na servidão que onera o prédio dos Réus;

 4ª- Sendo absolutamente desnecessária, pois o prédio dos Autores, nas suas duas únicas entradas, tem acesso directamente para os caminhos públicos, as quais com ele confina quer para o lado poente, quer para o lado norte;

5ª- Sendo que para entrar no caminho de servidão implantado no terreno dos Réus, têm que primeiro passar pelo caminho público.

6ª.- Nos termos do art. 1569º, nº2 do Código Civil, como a servidão está constituída por usucapião, deverá ser decretada extinta, por desnecessária ao prédio dominante;

7ª.- Não se compreendendo até porque a servidão foi reconhecida a favor dos Autores, onerando o prédio dos Réus, porque a mesma começa no caminho público a poente, atravessando o prédio destes para nascente e só depois de chegar ao caminho público de um lado e do outro é que se tem acesso ao prédio dos Autores”.

Os autores apresentaram contra alegações, alegando, em síntese, que:

“(…) Como resulta da acta de inspecção ao local e fundamentação à resposta à matéria de facto, o prédio dos recorridos está dividido por um muro que forma um socalco.

Para a parte inferior dispõe de uma entrada directamente aberta sobre caminho público e

Para a parte superior dispõe d eoutra entrada par aa qual, só é possível aceder de carro calcando o prédio dos recorridos.

Era o respeito por esse acesso – que em parte do seu trajecto ocupa o prédio dos RR, numa servidão já reconhecida em processo anterior e que foi obstruído – que estava em causa nos autos.(…)

O que se diz na 2ª 3ª 4º (maxime onde se escreve tem acesso directamente) 5ª e 7ª conclusões é matéria que não foi alegada nem ficou provada”.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

 

II. FUNDAMENTOS DE FACTO

A 1ª instância deu por provada a seguinte factualidade, aditando esta Relação a respectiva proveniência:

1) Por sentença proferida na Acção Sumária n.º 571/02 do 1º Juízo Cível deste Tribunal foram os Réus condenados a reconhecer que o seu prédio urbano composto de casa de habitação de andar e lojas, sita em Z.., freguesia de X..., concelho e comarca de Y..., a confrontar do norte com a via pública, nascente com AC, sul com a via pública e do poente com CM, inscrito na matriz urbana sob o art. 1170º, está onerado com uma servidão de passagem, de pé e carro, a favor do prédio dos Autores, composto de barracões e logradouro, sito no mesmo lugar (alínea A) dos factos assentes).

2) Tal servidão é consubstanciada no tracto de terreno situado a nascente deste prédio que é batido, coberto em parte com cimento e com a largura de 1,40 metros (alínea B) dos factos assentes).

3) No leito da servidão, na parte em que ocupa o seu prédio, os Réus procederam à construção de degraus em cimento (alínea C) dos factos assentes).

4) Os degraus foram construídos no espaço que medeia entre a casa dos Réus e a rua pública e impedem a circulação de carro (alínea D) dos factos assentes).

5) Os Autores notificaram os Réus para que procedessem à demolição dos degraus por forma a repor o leito da servidão (alínea E) dos factos assentes).

6) O que, até hoje os Réus não fizeram (alínea F) dos factos assentes).

7) As obras em causa não demandam mais de vinte dias para a sua execução (alínea G) dos factos assentes).

8) O prédio dos Autores confina a poente com o caminho público por onde tem uma entrada com a largura de 4 metros (resposta ao quesito 1º).

9) O prédio dos Autores confina também a norte com o caminho público para o qual tem acesso, tendo esta entrada a largura de 2,98 metros (resposta ao quesito 2º).

10) A referida servidão causa prejuízo aos Réus apenas na parte em que o seu leito ocupa o prédio dos Réus (resposta ao quesito 3º).

11) Os Réus são legítimos detentores do prédio identificado em 1) (alínea H) dos factos assentes).

12) Os Autores são donos e legítimos proprietários do prédio sito em Z..., freguesia de X..., concelho de Y..., composto de barracão e logradouro, que confronta do poente com o caminho público, norte com o caminho, sul com DASN e nascente com herdeiros de AC (alínea I) dos factos assentes).

III. FUNDAMENTOS DE DIREITO

1. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do C.P.C. – salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito –  art.º 664 do mesmo diploma.

Considerando a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelos recorrentes, impõe-se apreciar:

- da ampliação da factualidade assente;

- dos pressupostos legais da extinção da servidão, por desnecessidade.

2. Antes de mais, cumpre fazer uma breve referência à dinâmica das relações entre as partes, com o consequentemente enquadramento desta acção, instaurada em 1 de Junho de 2005.

Como resulta da factualidade assente, por sentença proferida na Acção Sumária n.º 571/02 do 1º Juízo Cível do Tribunal da Comarca de Y..., julgando-se procedente a reconvenção formulada pelos aí réus (ora autores), condenou-se o C... e esposa (ora réus) a reconhecer que o seu prédio urbano composto de casa de habitação de andar e lojas, sita em Z.., freguesia de X..., concelho e comarca de Y..., está onerado com uma servidão de passagem, de pé e carro, a favor do prédio dos autores, salientando-se que a sentença proferida pela 1ª instância data de 10 de Fevereiro de 2004, conforme resulta do documento junto a fls. 4 a 32 dos autos.

Nos presentes autos, os autores invocam que no leito dessa servidão os réus procederam à construção de degraus em cimento, assim impedindo a circulação de carro, factos que os réus confessam.

Ora, não estamos perante construção que tenha sido feita pelos réus depois do terminus do processo aludido, como numa primeira análise se podia pensar.

Efectivamente, analisando a sentença proferida no processo 571/01, lê-se na respectiva factualidade que se deu por assente que “há 5 ou 6 anos, os autores colocaram cimento no mencionado tracto de terreno e uns degraus em cimento na frente para a rua pública”, ou seja, exactamente a mesma construção que os autores agora pretendem ver demolida.

Os próprios réus referem, na contestação, que construíram esses degraus exactamente porque tinham a convicção de que os autores “não tinham ali qualquer servidão”, e “daí o terem proposto” a acção supra referida.

Causa, portanto, alguma perplexidade que ainda assim o litígio entre as partes não esteja resolvido e que a questão que agora se coloca não tivesse já sido suscitada no aludido processo, pelos réus (aí autores) ainda que, porventura, a título subsidiário.

Não sendo esse o caso e considerando que, como se referiu na decisão recorrida, tal sentença ganhou força e autoridade do caso julgado material, com força obrigatória dentro do processo e fora dele, impedindo que o mesmo ou outro tribunal, ou qualquer outra autoridade, possa definir em termos diferentes o direito concreto aplicável à relação material litigada, nos seus precisos termos, não se questiona a existência dessa servidão de passagem, tendo apenas que apreciar-se aqui da invocada extinção.

3. Antes, porém, impõe-se a ampliação da factualidade que se deu por assente.

Efectivamente, fazendo o confronto entre os factos alegados pelas partes, a factualidade assente e os elementos de prova constantes do processo, tem de concluir-se que há factos relevantes que resultam dos autos e não foram incluídos no circunstancialismo fáctico supra descrito. Aliás, é exactamente por isso que, numa análise superficial, as alegações de recurso dos apelantes parecem razoáveis: afinal, dir-se-á, que sentido tem manter uma servidão quando, supostamente, o prédio dos autores tem dois acessos com a via pública, um a poente e outro a norte, com entradas, respectivamente, com 4 metros e 2,98 metros de largura (cfr. as respostas aos quesitos 1º e 2º)?

Vejamos.

A decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação nos casos especificados no art. 712º, a saber:

a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artº 690º-A, a decisão com base neles proferida;

b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;

c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.

No caso, os factos levados à base instrutória consubstanciam exclusivamente matéria invocada pelos réus para fundamentar a reconvenção, tendo-se omitido, por completo, a versão dos autores, nomeadamente a factualidade que estes alegaram em resposta à reconvenção, maxime os factos invocados nos arts. 8º a 15º desse articulado – fls. 75 a 75 do processo.

O certo é que o tribunal recorrido efectuou uma inspecção judicial e, no âmbito dessa diligência probatória, recolheram-se elementos que assumem notória relevância para a decisão do litígio – aliás, no despacho de fundamentação da resposta aos quesitos pode ler-se que essa resposta se fundou também “na percepção directa dos factos resultante da inspecção judicial ao local da questão”.

Em cumprimento do disposto no art. 615º do C.P.C. e na presença dos mandatários das partes, que “expuseram os seus pontos de vista”, o Sr. Juiz fez, depois, consignar em auto um conjunto de factos, nos seguintes termos:

“1- O prédio dos autores confina a poente com o caminho público, conforme resulta já da alínea I) da matéria de facto assente, por onde tem uma entrada com a largura de quatro metros;

2- O prédio dos autores confina também a Norte com o caminho público para o qual tem acesso, tendo esta abertura a largura de dois metros e vinte e oito centímetros;

3- Os degraus a que se alude nas alíneas C), D) e E) encontram-se implantados em frente a esta abertura;

4- No prédio dos autores encontra-se implantado um muro que o divide em duas partes, formando-se um socalco;

5- O referido muro tem na sua parte mais baixa, situada a sul, a altura de oitenta centímetros, sendo trinta centímetros em pedra e cinquenta centímetros em blocos de cimento;

6- Na parte mais alta, situada a Norte, tem a altura de um metro e sessenta e um centímetros, sendo setenta centímetros de pedra e noventa e um centímetros em bloco de cimento;

7- A entrada referida no ponto um dá acesso à parte inferior do prédio dos autores;

8- A entrada referida no ponto dois dá acesso à parte superior do prédio dos autores” – anote-se que os mandatários das partes não fizeram qualquer reclamação à descrição enunciada.

O circunstancialismo assim referido corresponde, em parte, à alegação dos autores vertida no articulado de resposta à contestação e é relevante para a decisão, desde logo porque permite enquadrar a factualidade enunciada sob as alíneas B), C), D) e reposta aos quesitos 1º e 2º , constituindo, ainda, uma melhor caracterização do prédio identificado na alínea I).

Aliás, quanto à resposta ao quesito 2º, impunha-se uma explicitação sobre as condições ou termos em que se faz o acesso, sob pena de não se perceber sequer que a servidão de passagem se relaciona exactamente com essa entrada e que ela é a única possível para a parte superior do prédio dos autores.   

Assim, determina-se que se adite à factualidade assente a seguinte matéria:

13. Os degraus construídos pelos réus encontram-se implantados em frente à entrada referida na resposta ao quesito 2º;

14. No prédio referido na alínea I) encontra-se implantado um muro que o divide em duas partes, formando-se um socalco;

15- A entrada referida na resposta ao quesito 1º dá acesso à parte inferior do prédio dos autores;

16- A entrada referida na resposta ao quesito 2º dá acesso à parte superior do prédio dos autores.

Refira-se que, em rigor, o tribunal recorrido até atendeu à factualidade em causa, podendo ler-se na sentença, em sede de fundamentação jurídica da decisão, o seguinte:

 “Aqui chegados dir-se-á que os Réus não lograram demonstrar, como lhes competia, a alegada desnecessidade da servidão, isto é, que os Autores dispõem de acessibilidade em termos de comodidade e regularidade ao prédio dominante, sem necessidade de onerar o prédio dos Réus, tanto mais que no prédio dos Autores encontra-se implantado um muro que o divide em duas partes, formando um socalco, sendo que a entrada referida no ponto 8) da matéria de facto dá acesso à parte inferior do prédio dos Autores enquanto a entrada referida no ponto 9) dá acesso à parte superior do mesmo prédio”.

4. Como se referiu na sentença proferida no processo 571/02, estamos perante uma “servidão de passagem, constituída por usucapião, de pé e de carro, pelo leito do caminho cuja natureza vimos discutindo, situado a nascente do prédio dos autores”.

Cumpre aqui apreciar da sua extinção por desnecessidade, tendo em conta o disposto no art. 1569º, nº2 do Cód. Civl – diploma a que aludiremos quando não se fizer menção de origem –, que preceitua que “as servidões constituídas por usucapião serão judicialmente declaradas extintas, a requerimento do proprietário do prédio serviente, desde que se mostrem desnecessárias ao prédio dominante”.

O ponto é, precisamente, saber o que deve entender-se por desnecessidade e em que medida a mesma deve ser aferida – é pacífico que a extinção não opera automaticamente, tornando-se necessária uma decisão judicial e que só pode ser requerida pelo proprietário serviente. [ [i] ]

Parece-nos sedimentada na doutrina e jurisprudência a noção de que a desnecessidade há-de aferir-se por padrões objectivos [ [ii] ] e por referência ao prédio dominante, implicando uma correcta (e casuística) concatenação entre o interesse do prédio dominante e do prédio serviente. Assim, concluir-se-á pela extinção da servidão por desnecessidade sempre que puder razoavelmente concluir-se que a mesma deixou de trazer qualquer mais valia significativa ao prédio dominante ou até que se tornou inútil, hipótese em que o legislador considerou deixar de se justificar o sacrifício imposto ao prédio serviente. [ [iii] ]

Quando isso acontece, deixa de ter fundamento a limitação ao direito de propriedade, que é inerente à constituição da servidão – porquanto o proprietário do prédio serviente está impedido de praticar actos que possam obstar ou tolher o exercício da servidão –, aceitando-se, então, que este proprietário retome os seus poderes, sem restrições.    

A grande divergência entre os autores está em que, para alguns, a desnecessidade tem de ser superveniente, isto é, pressupõe a ocorrência de um facto novo, cuja verificação é posterior à constituição da servidão.[ [iv] ]

Para outros, a desnecessidade pode verificar-se ainda que não ocorra qualquer alteração de circunstâncias relativamente ao prédio dominante. [ [v] ]

No caso dos autos, surge com alguma evidência a falta de fundamentação da invocada desnecessidade, sendo por isso irrelevante tomar partido por uma das posições apontadas.

Analisando a factualidade assente não se encontra qualquer facto do qual possa extrair-se que a servidão perdeu utilidade para o prédio dos autores, ou sequer que tem escassa utilidade para esse prédio. Ao invés, apurou-se que o único acesso para a parte superior desse prédio – recorde-se que no prédio dominante se encontra implantado um muro que o divide em duas partes, formando um socalco –, se faz, exactamente, através do leito de servidão, no local onde os réus construíram os degraus, em cimento, impedindo a circulação de carro.

Aliás, essa situação vem de há muito e já se verificava aquando da prolação de decisão que reconheceu a constituição da servidão por usucapião e condenou os réus nesse reconhecimento. Como se disse, muito sugestivamente, no Ac. STJ de 05/07/2005, “há que respeitar e cumprir a sentença transitada, nada de posterior a destruiu nem lhe retirou a eficácia”.[ [vi]]

Em suma, os réus não lograram provar os factos invocados, extintivos do direito dos autores, como lhes competia, nos termos do art. 342º, nº2, salientando-se ainda a resposta negativa aos quesitos 4º a 7º. [ [vii] ]

Concluindo, improcedem as conclusões de recurso.

                                             *

Conclusão

A desnecessidade como causa de extinção de servidão (art. 1569º, nº2 do Cód. Civil) há-de aferir-se por padrões objectivos e por referência ao prédio dominante, implicando uma correcta (e casuística) concatenação entre o interesse do prédio dominante e do prédio serviente. Assim, concluir-se-á pela extinção da servidão por desnecessidade sempre que puder razoavelmente concluir-se que a mesma deixou de trazer qualquer mais valia significativa ao prédio dominante ou até que se tornou inútil, hipótese em que o legislador considerou deixar de se justificar o sacrifício imposto ao prédio serviente.

                                             *

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a sentença recorrida.

Custas pelos apelantes.

Notifique.


[i] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Coimbra Editora, 2ª edição revista e actualizada, vol.III, p. 677.
[ii] É irrelevante, portanto, a desnecessidade assente em factores de ordem subjectiva, ligados à pessoa do proprietário do prédio dominante.
[iii] Mário Tavarela Lobo, in Mudança e Alteração de Servidão, Coimbra Editora, 1984, p. 154, salienta que o nº2 do art. 1569º suprimiu as diferentes formas por que se pode manifestar a desnecessidade e que constavam do art. 2279º, nº2 do Código de 1867: “ou por terem cessado as correspondentes necessidades deste prédio, ou por ser impossível já satisfazê-las por via daquelas servidões ou porque o proprietário dominante pode fazê-lo por qualquer outro meio igualmente cómodo”.      
[iv] Neste sentido, cfr. os Acs. STJ de 01/03/2007, processo nº 07A091 (Relator: Sebastião Póvoas), registando-se a estreita similitude deste texto e o texto da sentença recorrida, e o Ac. de 27/11/2007, processo 07B1172 (Relator: Gil Roque) acessíveis in www.dgsi.pt. Desta Relação de Coimbra vide os Acs. de 12/06/2007, processo 1059/05.0 (Relator: Coelho de Matos ) e de 25/09/2007, processo 146/06 (Relator: Hélder Roque).
Na doutrina, distinguindo entre a desnecessidade originária e superveniente, considerando que só esta configura causa específica de extinção da servidão, mas só actua nos casos especialmente previstos por lei, Oliveira Ascensão, Direitos Reais, Almedina, 1978, p.468 e Carvalho Fernandes, in Lições de Direitos Reais, Quid Juirs, 3ª edição, 2ª reimpressão, p. 448; ,         
[v] Neste sentido, Ac. STJ de 27/05/99, processo 99B394 (Relator: Ferreira de Almeida) e desta Relação de Coimbra, de 06/12/2005, processo 2564/05 (Relator: João Cura Mariano), este último com exaustiva recolha jurisprudencial quanto a esta questão. 
[vi] Proferido no processo 05A2008 (Relator: Lopes Pinto), acessível in www.dgsi.pt, em que também se discutia a extinção de uma servidão. 
[vii] Os quesitos têm a seguinte redacção:
4ºCom a mesma (servidão) o prédio dos RR fica devassado?
5º: Os AA não precisam de fazer quaisquer obras com a cessação da servidão, para terem acesso da via pública par ao seu prédio?
6º: Os AA raramente passam pela servidão?
7º E muito mais cómodo o acesso ao prédio dos AA através das entradas que o mesmo tem abertas para as vias públicas?