Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1088/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. COELHO DE MATOS
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CULPA PRESUMIDA
Data do Acordão: 06/15/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Legislação Nacional: ARTIGO 503.º, N.º 3 E 350.º, N.º 1 E 2 DO CÓDIGO CIVIL
Sumário:

1. O artigo 503.º do Código Civil estabelece uma presunção de culpa do condutor do veículo por conta de outrem, aplicável nas relações entre ele, como lesante, e o titular ou titulares do direito à indemnização
2. Se a lei presume a culpa do condutor por conta de outrem é a ele que compete elidir tal presunção; quem beneficia da presunção escusa de provar o facto que a ela conduz (cfr. artigo 350.º, 1 e 2 do Código Civil).
3. Por conseguinte, tendo o acidente sido provocado pelo rebentamento de um pneu do veículo conduzido em tais circunstâncias, era o condutor que tinha de alegar e provar que não teve culpa. Não era o lesado que tinha de alegar e provar que o pneu rebentou porque estava danificado, era velho, estava gasto ou tinha defeitos. Era o condutor que devia alegar e provar que o pneu era novo, não tinha defeitos, estava em bom estado e que tinha tomado todos esses cuidados.
4. É irrelevante o facto de o lesado ter alegado e não provado que o pneu rebentou porque estava danificado, era velho, estava gasto, tinha defeitos e que o condutor não tinha tomado todos cuidados.
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

1. BB, com sede na CC, em Valadares, Vila Nova de Gaia, demandou, na comarca de Pombal, o DD, também designado por EE, com sede em Lisboa, para que seja condenado a pagar-lhe a quantia de 728.378$00 e respectivos juros, para a ressarcir dos correspondentes danos sofridos em consequência de acidente de viação provocado por um veículo pesado de matrícula Espanhola.
Alega, em síntese, a autora que o seu veículo ligeiro de passageiros de matrícula GT circulava pela auto estrada A1 à retaguarda do veículo pesado de matrícula espanhola constituído por tractor PO-7753 e semi-reboque de matrícula UM-04059-R, pertencente a "FF", conduzido por GG, por conta e no interesse da "FF", quando rebentou um pneu deste pesado e os destroços provocaram danos no montante peticionado.

2. O réu contestou, por impugnação e também por excepção de ilegitimidade da autora, alegadamente por esta não ser a proprietária do veículo GT. Houve resposta e no saneador foi julgada improcedente a excepção. No prosseguimento da causa veio a ter lugar a audiência de julgamento, posto o que foi proferida sentença que de novo julgou a autora parte ilegítima por preterição de litisconsórcio necessário activo, absolvendo o réu da instância.
A autora não se conforma e apela do assim decidido, concluindo:
1) A recorrente não conseguiu demonstrar que o pneu rebentado do veículo causador do sinistro se encontrava em mau estado, nem que, quer a proprietário do veículo, quer o respectivo condutor se abstiveram de verificar esse mau estado.
2) Também a recorrida, por seu turno, não demonstrou - aliás, nem alegou- que esse pneu estava em bom estado, que a proprietária do veículo tinha cumprido as suas obrigações de zelo e diligência e que, assim, a viatura podia circular sem perigo.
3) Apenas se sabe que o pneu rebentou e nada mais.
4) Portanto, no que respeita ao circunstancialismo do acidente e à culpa na sua produção, estamos perante um claro "non liquet".
5) Ora, o veículo pesado de matrícula espanhola era conduzido por conta, no interesse e sob a direcção efectiva da proprietária, existindo, pois, entre esta última e o condutor, uma relação de comitente - comissário.
6) De onde resulta que, sobre o condutor do dito veículo, como comissário, recaia uma presunção de culpa, nos termos do disposto no art. 503.º, n° 3 do Código Civil, presunção esta que não foi ilidida.
7) A existência de culpa presumida por parte do mencionado condutor, equivalendo, como é sabido e pacífico, em termos civis, à culpa efectiva, afasta a aplicabilidade das regras da responsabilidade objectiva.
8) De resto, tem sido entendimento corrente que, perante terceiros, o comissário nunca responde pelo "risco".
9) Nesta conformidade, perante a culpa (presumida) do condutor do veículo seguro, não haverá lugar à limitação legal da responsabilidade constante do art. 508° do Código Civil, respondendo a recorrida pela totalidade das indemnizações a que haja lugar .
10) E, assim, não haverá que proceder a rateio entre outros (eventuais) lesados, nem haverá lugar a litisconsórcio necessário activo entre eles e a recorrente.
11) Das peças processuais relevantes dos autos (petição inicial, contestação, resposta à contestação, e principalmente da matéria assente e respostas aos quesitos) nada há que permita concluir que existem outros lesados que pudessem coligar-se com a recorrente
12) A mera expressão constante da alínea A) da matéria assente "além do mais", não permite concluir, ao invés do que entendeu o julgador, que existam outros intervenientes no acidente e muito menos que esses outros (eventuais) intervenientes tivessem sofrido danos indemnizáveis e que, assim, tivessem a qualidade de lesados.
13) Portanto e em qualquer caso, não há preterição de litisconsórcio necessário activo, nem se verifica a ilegitimidade da recorrente.
14) Com respeito a outros (eventuais) lesados, tendo em conta a data do sinistro, já há muito prescreveram os seus eventuais direitos, razão pela qual também não haveria lugar a qualquer rateio.
15) A douta sentença recorrida violou, pois, além do mais, por errada interpretação e aplicação, o disposto nos arts. 483°, n° 1, 503°, n.ºs 1 e 3, 505°, 508°, n° 1, e 563°,
16) Pelo que deve ser revogada e substituindo-se por outra que, declarando a legitimidade activa da recorrente, condene a recorrida no pedido.


3. O réu contra-alegou no sentido da confirmação do julgado. Estão colhidos os vistos legais. Cumpre conhecer e decidir. Os factos provados são os seguintes:
1) No dia 7 de Novembro de 1997, cerca da 1 hora, ocorreu um acidente de viação ao Km 140,200, na AE 1, no sentido sul - norte, no qual intervieram, além do mais, o veiculo ligeiro de passageiros de matrícula GT, cuja propriedade se achava inscrita a favor da "HH", conduzido por II e o veículo pesado de mercadorias de matrícula espanhola, constituído pelo tractor PO-7753.AV e semi- reboque de matrícula UM.04059.R, pertencente a FF, conduzido por GG, ao serviço daquela sociedade, no exercício de funções de que aquela o incumbira (cfr. A. dos factos assentes);
2) O condutor do GT conduzia o veiculo a uma velocidade inferior a 100 Km/h e foi- se aproximando do veiculo PO que seguia à sua frente, preparando-se para o ultrapassar (cfr. B. dos factos assentes);
3) Quando o GT se encontrava a cerca de 40/50 metros do PO rebentou o pneu da frente, do lado direito, do semi- reboque referido em 1), o qual se fragmentou em pedaços que se espalharam pela via e atingiram o veiculo GT (cfr. C. dos factos assentes);
4) Em consequência do acidente referido em 1), e em virtude do referido em 3) o veiculo GT sofreu danos no pára-choques da frente, jante da frente direita, tampão da roda, rolamento, manga de eixo, braço da suspensão direita, amortecedor da frente direito, radiador a água e ar condicionado, guarda lamas da frente direito, farol dianteiro direito, faróis suplementares implantados no pára-choques e pneu da frente lado direito, cuja reparação importou a quantia de Esc. 640 628$00 (cfr. D dos factos assentes);
5) Em virtude dos danos sofridos, o veículo GT ficou impossibilitado de se deslocar, tendo sido rebocado desde o local do acidente até à oficina reparadora, o que importou a quantia de Esc. 87 750$00 (cfr . E. dos factos assentes);
6) A proprietária do veículo GT, mencionada em 1), na sequência de um acidente em que este se viu envolvido, acordou com a sua seguradora que a extensão dos danos sofridos não justificava a sua reparação (cfr. resposta ao quesito 1.º da base instrutória);
7) Pelo que a seguradora pagou à HH o valor correspondente ao valor venal do veiculo e fez seus os respectivos salvados (cfr. resposta ao quesito 2.º da base instrutória);
8) A HH emitiu e entregou à seguradora o veiculo GT e uma declaração de venda não preenchida no respeitante à identificação do adquirente (cfr. resposta ao quesito 3.º da base instrutória);
9) A A. adquiriu à seguradora mencionada em 1) o veiculo GT na qualidade de salvados, tendo pago o respectivo preço (cfr. resposta ao quesito 4.º da base instrutória);
10) A A. destinava o veiculo em causa a revenda, pelo que não foi preenchida a declaração de venda referida em 8) na parte respeitante ao adquirente (cfr. resposta ao quesito 5.º da base instrutória);
11) Após a sua aquisição, a A. mandou proceder à reparação do veiculo, tendo este passado a circular , ao serviço da A., que tratava da sua manutenção, pagava as suas revisões e reparações, bem como o combustível que consumia, à data do acidente (cfr. respostas aos quesitos 6.º a 8.º da base instrutória);
12) A A. procedeu ao pagamento dos montantes mencionados em 4) e 5) (cfr. resposta ao quesito 9.º da base instrutória);
13) Após a reparação dita em 4) a A. vendeu o veiculo em causa (cfr. resposta ao quesito 1.º da base instrutória);
14) A proprietária do veículo espanhol havia transferido a sua responsabilidade civil decorrente da respectiva circulação para uma seguradora espanhola (cfr. facto aditado ao abrigo do disposto no artigo 659.º, n.º 3, do C.P.C. porque admitido por acordo);


4. Com estes factos o sr. juiz entendeu que do acidente resultaram danos em várias viaturas e que não ficou provada a culpa do condutor do semi-reboque Espanhol, pelo que foi de parecer que deveriam estar todos os interessados na acção para garantir a legitimidade activa, já que, sendo a indemnização limitada em função da alçada da Relação, nos termos do artigo 508.º do Código Civil, haveria que ratear por todos o montante disponível. A consequência foi a declaração da ilegitimidade da autora e a absolvição do réu da instância.
Tal entendimento, então, só se justifica por partir do pressuposto de que só existe responsabilidade pelo risco, não havendo culpa do condutor do camião espanhol.
A apelante põe em crise o assim decidido, por duas razões: i) porque entende haver culpa presumida desse condutor; ii) porque, ainda que só respondesse pelo risco, não consta dos factos provados que existem vários lesados e, mesmo que houvessem, o direito à indemnização estaria prescrito.
E parece que tem razão.
Na verdade, vem provado que o veículo pesado de mercadorias de matrícula espanhola, constituído pelo tractor PO-7753.AV e semi-reboque de matrícula UM.04059.R, pertencente a “FF”., era conduzido por GG, ao serviço daquela sociedade, no exercício de funções de que aquela o incumbira. Ou seja, o dito GG conduzia por conta de outrem e por isso responde pelos danos que causou, salvo se tiver provado que não houve culpa da sua parte, como diz o n.º 3 do artigo 503.º do Código Civil.
Justa ou não é a solução que se extrai da lei. Este normativo estabelece uma presunção de culpa do condutor do veículo por conta de outrem, aplicável nas relações entre ele, como lesante, e o titular ou titulares do direito à indemnização, como foi já decidido em assento do STJ, de 14/04/1983; BMJ,326.º, 302 E D.R. I série de 28-06-1983, cuja doutrina se mantém, como tem sido por todos observado.
Ora, se a lei presume a culpa do condutor por conta de outrem, é a ele que compete elidir tal presunção; quem beneficia da presunção escusa de provar o facto que a ela conduz (cfr. artigo 350.º, 1 e 2 do Código Civil). Por conseguinte era o condutor do pesado que tinha de alegar e provar que não teve culpa. Não era a autora que tinha de alegar e provar que o pneu rebentou porque estava danificado, era velho, estava gasto, tinha defeitos de fabrico, etc.. Era o condutor que devia alegar e provar que o pneu era novo, não tinha defeitos, estava em bom estado e que tinha tomado todos esses cuidados.
É certo que a autora alegou e não provou que o pneu rebentou porque tinha defeitos, não estava em bom estado e o réu não tinha tomado todos os cuidados para não circular com o pneu nessas condições, mas isso não tem quaisquer consequências, porque não era ela quem tinha de provar isso. Também o condutor podia ter alegado os factos a seu favor e não os provar, mas isso já produzia efeitos. Produzia os mesmos efeitos jurídicos que produz o nada ter alegado a esse propósito. O facto de a autora ter alegado, sem conseguir provar, que o condutor do pesado não tomou as precauções que se lhe impunham para que não circulasse com o pneu em estado crítico, não afasta a obrigação que este tinha de provar que não teve culpa. Por isso é totalmente redundante tudo o quanto vem contra-alegado pelo recorrido sobre esta matéria.
Tendo, então, o condutor do pesado de matricula espanhola agido com culpa (culpa presumida ou culpa efectiva tem os mesmos efeitos), responde pela totalidade dos danos sem os limites referidos no artigo 508.º do Código Civil. Logo, a questão do litisconsórcio activo não se coloca. E provada que está a lesão, o nexo de causalidade e a ilicitude, deve responder por todos os danos que foram provados: 640.628$00 da reparação da viatura, mais 87.750$00 do reboque, o que perfaz o total de 728.378$00 (3.633,13 €, na actual moeda).
Resolvido assim o problema, dispensa-se a abordagem das questões da existência de outros lesados e da prescrição do direito destes.
Como o veículo causador do acidente não está matriculado em Portugal, mas sim num Estado Membro da Comunidade (Espanha) responderá pelos danos o réu DD, também designado por EE.
Na verdade, diz o artigo 2º do Dec. Lei n.º 122-A/86, de 30 de Maio, na redacção anterior ao Dec. Lei n.º 130/94, de 19/05, que "compete ao DD (...) a satisfação, ao abrigo da Convenção Complementar entre Gabinetes Nacionais [hoje Acordo Bilateral de Garantia- redacção do Dec. Lei n.º 130/94], das indemnizações devidas, nos termos legais e regulamentares do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, aos lesados por acidentes causados por veículos matriculados noutros Estados membros da Comunidade Económica Europeia ou em países terceiros cujos gabinetes nacionais de seguros tenham aderido à referida Convenção Complementar, bem como por veículos matriculados noutros países terceiros que sejam portadores de um documento válido justificativo da subscrição num outro Estado membro de um seguro de fronteira".
Logo, o DD, nos termos daquela Convenção, que o Estado Português introduziu na ordem jurídica interna, obriga-se a satisfazer as indemnizações por danos ocorridos em território português por veículos de outros Estados abrangidos pelo seguro obrigatório (cfr. artigos 1º e 4 º , n. º 1, al. a) do Dec. Lei n.º 522/85, de 31/12, na redacção dada pelo Dec. Lei n.º 122-A/86, de 30/05).
Deve, pois, o réu DD, pagar à autora a quantia supra referida de 3.633,13 euros.

5. decisão
Por todo o exposto, acordamos juízes desta relação em julgar procedente a apelação, em consequência do que revogam a sentença recorrida e condenam o réu DD a pagar à autora a quantia de 3.633, 13 euros e juros legais a contar da citação.
Custas a cargo do apelado.
Coimbra, 15 de Junho de 2004