Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1769/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: COELHO DE MATOS
Descritores: TRIBUNAL COMPETENTE
REIVINDICAÇÃO
Data do Acordão: 10/18/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 66.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL; ARTIGO 1311.º, 1 E DO CÓDIGO CIVIL.
Sumário: 1. É a partir da pretensão do autor que se deve procurar o tribunal que a lei tem por adequado a dirimir o litígio;
2. pretendendo o autor reivindicar a entrega de certa quantia em dinheiro, por alegadamente ser seu proprietário, é o tribunal comum o competente em razão da matéria, ainda que o motivo da recusa seja a penhora ordenada em juízo fiscal contra outro executado.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

1. A... demanda, na comarca de Leiria, o banco B..., o Estado Português e a sua ex-mulher C..., para reaver a quantia de 34.915,85 € de que é proprietário, que foi indevidamente depositada numa conta da Aldina no B... e que este se recusa a devolver, alegando ter sido penhorada pela Repartição de Finanças de Santarém, em processo de execução fiscal.
Alega, em síntese, que o dinheiro lhe pertence e aí foi depositado por engano de uma sua funcionária, pelo que não devia ser objecto de penhora, que por isso mesmo é ilegal.
Que tem ao seu dispor a acção de reivindicação e por isso pretende se declare que o dinheiro é seu, a penhora é ilegal e em consequência se ordene a restituição e respectivos juros entretanto vencidos.
No saneador foi decidido que não se trata duma acção de reivindicação, mas sim da apreciação de um acto de natureza fiscal, para que é competente o tribunal da respectiva jurisdição, em consequência do que se julgou incompetente o tribunal comum – 4.º Juízo Cível de Leiria.

2. Inconformado com o assim decidido o autor agravou para esta Relação, concluindo:
1) Pelo douto despacho recorrido decidiu o Mm°. Juiz “quo” julgar o Tribunal Comum materialmente incompetente e absolver o co-réu Estado da instância, atentas as normas conjugadas dos artigos 66°,67°, 101°, 102°, 103° e 105° do CPC, 8°, n° 1, e 62° do Dec. Lei n° 129/84, de 27/4,212°, n° 3, da CRP, e 151°,203°,215°,223° e 237° do CPPT, por considerar, fundamentalmente, que a causa de pedir dos presentes autos “é a penhora do saldo da conta bancária (efectuada numa execução fiscal) e a ilegalidade do despacho que a ordenou”.
2) Perante a causa de pedir explanada na petição inicial, é patente que a presente acção se funda, essencialmente, na propriedade do autor sobre o dinheiro aí referido, que entregou ao co-réu B... (artigos 1° a 16° e 32° a 36°), e no facto de este co-réu não lho restituir (artigos 17° a 20°), só reflexamente se reportando à referida penhora.
3) Ora, como sempre constituiu entendimento pacifico na doutrina e na jurisprudência, “os tribunais judiciais são os competentes para a acção de reivindicação” e “a questão da propriedade dos bens penhorados não pode discutir-se em processo de execução fiscal, mas sim através de acção a deduzir nos tribunais comuns”.
4) Acresce que, “o possuidor-proprietário pode alternativamente usar o meio dos embargos de terceiro ou o da acção de reivindicação”, sendo certo que, como “meio de reagir contra uma penhora ilegal” efectuada numa execução fiscal e não estando regulada na lei processual tributária, a acção de reivindicação é da competência dos Tribunais Comuns, por força do disposto nas normas conjugadas dos artigos 66° do CPC e 18°, n° 1, da LOFIJ.
5) De resto, as normas conjugadas dos artigos 151°, n° 1, e 237°, nos. 1 e 2, do CPPT, aplicadas com a interpretação de que não permitem que a todo o tempo se possa defender a propriedade contra uma penhora ofensiva desse direito efectuada numa execução fiscal, nos mesmos termos em que a lei civil, adjectiva e substantiva, o permitem, enfermam de inconstitucionalidade material, por ofensa ao direito de propriedade e ao acesso ao e direito e tutela jurisdicional efectiva, consagrados, respectivamente, nos artigos 20°, nº 1, e 62°, nº 1, da CRP.
6) Aliás, “os embargos de terceiro não são o meio próprio para se reagir contra a penhora de depósito bancário”, pelo que sempre a competência para a presente acção caberia aos Tribunais Comuns, nos termos dos citados preceitos conjugados dos artigos 66° do CPC e 18°, nº 1, da LOFTJ, sob pena de o ora recorrente não dispor de qualquer meio de reagir contra a penhora ilegal efectuada na execução fiscal.
7) Assim, salvo o respeito, o douto despacho recorrido violou o disposto, nomeadamente, nas normas conjugadas dos artigos 66°, do CPC, 18°, n.º 1, da L.O.F.T.J., 4°, n° 1, al. t), do ETAF, e 1311.º do CC, pelo que deve ser revogado e substituído por outro que julgue competente o Tribunal “a quo” e prossiga a tramitação legal do processo.


3. O Digno Magistrado do Ministério Público, em representação do Estado, contra-alegou em defesa do julgado, concluindo que está em causa a análise duma relação jurídica de natureza administrativa, em que o Estado se apresenta investido no seu “ius imperium”, pelo que compete aos tribunais administrativos a sua apreciação, face ao disposto nos artigos 66.º do Código de Processo Civil, 212.º da Constituição da República Portuguesa e 51.º, n.º1, h) do Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril.
Foi proferido despacho a manter a decisão impugnada. Estão colhidos os vistos legais. Cumpre conhecer e decidir, tendo em conta que:
­ Dos factos articulados na petição inicial, o Autor refere haver sido casado com a Ré Aldina tendo sido o seu casamento dissolvido por divórcio;
­ Em data anterior ao divórcio acordaram com o B..., SA manter a conta n° 0-0238106.000.001;
­ Uma das funcionárias do autor depositou, por lapso, um cheque no valor de 34.915,85 € na conta bancária supra referida, ao invés de a ter depositado numa outra conta bancária existente no B...,SA, apenas titulada pelo Autor;
­ Quando o Autor pretendeu proceder à transferência desse quantitativo monetário, não o conseguiu, em virtude de o saldo daquela conta bancária estar cancelado e se encontrar penhorado no âmbito de um processo de execução fiscal movido contra a Ré Aldina, que continuava a ser titular da referida conta de depósito;

4. Posto isto, e como se deduz das respectivas conclusões, o autor entende que esta é essencialmente uma acção de reivindicação, porque com ela pretende se declare ser proprietário do dinheiro depositado na conta da ré Aldina e lhe seja restituído, só reflexamente se reportando à referida penhora (sic); enquanto o Ministério Público considera que o autor invoca, na acção, como causa de pedir, relativamente ao Réu Estado Português, a prática por funcionários ao seu serviço, de uma penhora ilegal de um saldo bancário existente na conta n° 0-0238106.000.001, do B.... agência do Mercado Santana, no âmbito de uma execução fiscal em que é executada a terceira Ré Aldina Maria Amado Costa. Torna-se nítido, acrescenta, “que a causa de pedir invocada relativamente ao réu Estado Português é a penhora do saldo da conta bancária e a ilegalidade do despacho que a ordenou”.
Como será, então?
Citando jurisprudência, ambas as partes afirmam que a competência do tribunal em razão da matéria se afere sempre a partir da pretensão ou pedido deduzido pelo autor. É daqui que se parte para responder à questão de saber se a acção deve ser proposta no tribunal comum ou em tribunal especial, na medida em que, por força do disposto no artigo 66.º do Código de Processo Civil, devem ser propostas no tribunal comum todas as causas que não devam ser julgadas em tribunal especial.
É a partir da pretensão do autor que se deve procurar o tribunal que a lei tem por adequado a dirimir o litígio, pondo-se assim “a matéria da causa em correlação com a preparação técnica dos magistrados que a hão-de julgar, de modo a obter-se um julgamento mais perfeito” ( Cfr. Alberto Reis, Comentário, I, 107).Até aqui todos estamos de acordo.
Ora, o que parece claro é que autor vem a juízo dizer que aquele dinheiro é seu; que é ele o titular do direito de propriedade e, em consequência e como flúi do artigo 1311.º, 1 e 2 do Código Civil, pede que lhe seja restituído, condenando-se os réus e designadamente o Banco depositário a restituir-lho. E quando sabe que a recusa provém dum acto que coloca o dinheiro na indisponibilidade a pedido do Estado, dirige também o pedido contra este, para que a condenação possa atingir o efeito útil normal.
No essencial o autor diz que é proprietário do dinheiro e que a recusa da restituição é ilegítima. Trata-se duma acção de reivindicação típica. Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei – diz o n.º 2 do artigo 1311.º do Código Civil. Esta é que é a acção. É este o projecto que o autor entregou no tribunal para ser apreciado.
E sendo assim, parece evidente que a causa de pedir não é a penhora e a legalidade que a envolve; é a propriedade do dinheiro e a recusa do Banco a restitui-lo, alegando a penhora. Não está em causa discutir a relação jurídica subjacente à penhora e a legalidade intrínseca desta. O que o autor diz é que o dinheiro é dele e não da executada e que a ilegalidade da penhora só ocorre por violar o direito de propriedade de quem não é executado; só isso.
O Estado - que é parte na causa – estará ali para uma de duas coisas: i) para obstar que o autor demonstre que é proprietário do dinheiro e por isso, sendo a executada titular da conta, a penhora é legal e justifica a recusa de entrega ao autor; ii) ou que apesar do dinheiro ser propriedade do autor, também pode ser penhorado.
Por banda do autor, na acção assim desenhada, compete-lhe provar a propriedade do dinheiro. Se o não conseguir, ser-lhe-á completamente indiferente a legalidade da penhora. Se o conseguir, então será o Estado a ter de demonstrar que, apesar disso, também responde pela dívida.
Na sua contra-alegação o Estado relega a discussão do litígio para o domínio da gestão pública, onde encontra justificação para a competência do tribunal administrativo, mas o cerne da questão, na perspectiva da acção, é o problema da propriedade do dinheiro e ausência de causa legítima à sua restituição, sendo que a demonstração desta é do ónus do Estado. Trata-se, assim, duma relação jurídica de direito privado, em que o Estado está ao mesmo nível do cidadão.
Seria uma violência gratuita conduzir o autor para um processo a que é de todo alheio e onde porventura já não irá a tempo de se defender. Por outro lado, estando o Estado presente no processo, bem pode aí defender os seus direitos, pugnando pela legalidade da penhora, quer evitando que o autor demonstre a propriedade do dinheiro, quer demonstrando que, apesar de propriedade de terceiro, responde pela dívida.
Acresce que é ao autor que compete escolher a via por onde entende melhor defender os seus direitos. Se o consegue por aí, ou não, só a si diz respeito. Ao tribunal cabe, nesta matéria, o exercício do controle dos pressupostos processuais. Desta feita o autor optou pela acção de reivindicação, propondo-se provar que é proprietário do dinheiro e afirmar que a recusa é um acto ilegítimo. Se vai ou não conseguir reaver o dinheiro sem seguir pela via da ilegalização intrínseca da penhora já é outra questão.
Concluindo: é a partir da pretensão do autor que se deve procurar o tribunal que a lei tem por adequado a dirimir o litígio; pretendendo o autor reivindicar a entrega de certa quantia em dinheiro, por alegadamente ser seu proprietário, é o tribunal comum o competente em razão da matéria, ainda que o motivo da recusa seja a penhora ordenada em juízo fiscal contra outro executado.

5. Decisão
Por todo o exposto, acordam os juízes desta secção em conceder provimento ao agravo e assim julgar competente o juízo cível, em razão da matéria, relativamente ao réu Estado Português.
Sem custas.
Coimbra,