Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3025/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR NÃO ESPECIFICADA
Data do Acordão: 11/22/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE PORTO DE MÓS
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 388.º 1 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1. A probabilidade séria da existência do direito invocado basta-se com um mero juízo de verosimilhança, isto é, com uma prova sumária; outrotanto não acontecendo com a apreciação dos factos integradores do “periculum in mora”, em que se deve usar um critério mais rigoroso, tendo o requerente que provar os danos que visa acautelar, sendo certo que se exige a prova da gravidade e da difícil reparação das consequências danosas da manutenção do “status quo”.
2. Impedindo os requeridos, com a colocação dum cadeado e corrente de ferro num portão, que os requerentes acedam à faixa de terreno utilizada como passagem desde a via pública até ao seu logradouro, fica provada a lesão no direito de servidão dos requerentes, sumariamente demonstrado, podendo ser considerada uma lesão “grave”, uma vez que é todo o direito que fica não exercitável.

3. O critério da “irreparabilidade” deve ser mais restrito do que o utilizado quanto à aferição dos danos de natureza física e moral, uma vez que, em regra, os danos materiais são passíveis de ressarcimento através de um processo de reconstituição natural ou de indemnização substitutiva.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - Relatório

A... e esposa B..., residentes em Juncal - Porto de Mós, e filhas C... e D..., residentes em Leiria, requereram contra E... e esposa F..., residentes em Juncal - Porto de Mós, providência cautelar não especificada, pedindo a condenação dos requeridos a permitir a passagem a pé e de carro dos requerentes pela serventia que identificam na PI, para que possam aceder ao logradouro do seu prédio.

Alegaram, em síntese, que são donos de um prédio, a cujo logradouro se acede por uma faixa de terreno que, desde a via pública, atravessa um prédio dos requeridos; ora, estes – após terem colocado inicialmente um portão com cadeado e corrente, que impede os requerentes de aceder à faixa de terreno e ao seu logradouro, o que originou a acção de que esta providência é incidente – em fins de 2004 ou princípio de 2005 iniciaram obras na faixa de terreno, tapando a sua entrada com umas chapas de ferro, tornando impossível o acesso, quer a pé quer de carro, para o logradouro dos requerentes.

Regularmente citados, os requeridos apresentaram contestação, sustentando, em resumo, que nunca o acesso ao logradouro do prédio dos requerentes se fez pelo seu prédio, acrescentando que colocaram primeiro o portão e agora as chapas de ferro por questões de segurança, uma vez que, encontrando-se a fazer obras no seu prédio, se impõe resguardar os materais, máquinas e ferramentas ali existentes.

Realizada a audiência, o Mm.º Juiz, por considerar que não se encontravam reunidos todos os requisitos – mais exactamente, por considerar que “não se encontra estabelecido qualquer facto donde resulte que, dessa restrição (ao direito de servidão dos requerentes) resulte um risco de serem lesionados, de forma grave e dificilmente reparável, bens jurídicos” – julgou totalmente improcedente a providência.

Inconformados com tal decisão, interpuseram os requerentes recurso de agravo, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que defira totalmente a providência. Terminam a sua alegação com as seguintes conclusões:

1 – Afirma-se na sentença que “se encontra minimamente caracterizada a efectiva realidade serviente, relevando-se para tal que o prédio dos requeridos, independentemente da pouca utilização, esteve sempre sujeito à passagem que os requerentes carecem de efectuar através do mesmo”
2 – Não concordam com o juiz quando este afirma que uma vez que já tinha havido lesão do direito de passagem não haveria fundamento para o procedimento cautelar.
3 – Não é o facto de, no momento em que se requer a providência, já terem ocorrido lesões do direito que, de per si, obsta a que a providencia seja decretada. Ela deve sê-lo desde logo quando as lesões do direito já verificadas constituem, elas próprias, indicio de que se lhe podem seguir futuras lesões do mesmo direito. Num tal caso a ocorrência da lesão dá maior consistência ao receio de verificação das ofensas do direito que se pretendem evitar.
4 – Com a colocação do portão e respectivo cadeado embora pretendessem impedir a passagem dos requeridos, estes em caso de necessidade sempre poderiam cortar a corrente abrindo o respectivo portão de modo a acederem ao seu logradouro, coisa impossível de agora acontecer com a colocação de chapas de ferro.
5 – Estas não podem ser removidas impedindo assim total e completamente qualquer passagem para o logradouro dos requerentes mesmo que tal se mostre absolutamente necessário.
6 – Não podia o Sr. Juiz ignorar que o procedimento cautelar intentado visava evitar uma lesão mais grave do direito de passagem já efectivamente violado, mas não de forma absoluta.
7 – É precisamente pelo facto dos recorridos terem agora colocado umas chapas de ferro que a lesão do direito dos recorrentes se revela de extrema gravidade que reclama a intervenção urgente e cautelar do Tribunal, situação que não se verificava aquando da propositura da acção principal.

Os agravados não ofereceram contra-alegação e a Mm.º Juiz a quo, em sede de sustentação, manteve a sua decisão, cumprindo, agora, apreciar e decidir.

II – Fundamentação de facto
São os seguintes os factos apurados, com relevo para a apreciação do recurso:
A) Na Conservatória do Registo Predial de Porto de Mós encontra-se descrito sob o n.º 01718 da freguesia do Juncal o seguinte prédio:
- urbano, sito no Largo da Praça, composto de casa de rés-do-chão para comércio com a área de 110 m2 e logradouro com a área de 330 m2, a confrontar do Norte com Manuel Castro Leitão, do Sul com Largo da Praça, do Nascente com Francisco António Ferreira e do Poente com João Machado, inscrito na matriz sob o art. 2.671;
B) Nessa Conservatória do Registo Predial encontra-se registada a aquisição do prédio referido em A) a favor de A..., casado sob o regime de comunhão geral com B...;

C) Por escritura outorgada em 28/05/2003, no Cartório Notarial de Porto de Mós, A... e B... declararam doar, com reserva de usufruto, o prédio identificado em A) a C... e D..., suas filhas, as quais declararam aceitar tais doações;
D) O logradouro do prédio identificado em A) não tem acesso directo com a via pública;
E) O acesso a pé e de carro para esse logradouro era feito, por vezes, através de uma faixa de terreno utilizada, sem oposição, como passagem que, desde a via pública, atravessa o pátio do seguinte prédio:
- urbano sito na Rua de São Miguel, n.º 3 e n.º 5, na freguesia do Juncal, composto de casa de habitação de rés-do-chão e 1.º andar e pátio, descrito na CRP de Porto de Mós na ficha 3602 e inscrito na matriz predial respectiva sob o art. 45;
F) Nessa CRP encontra-se registada, desde 10/04/2003, a aquisição do prédio id. em E) a favor de E... e F...;
G) Aquisição que foi formalizada por escritura pública de compra e venda, outorgada no Cartório Notarial de Porto de Mós em 03/06/2003;
H) A faixa de terreno utilizada como passagem, referida em E), tinha o piso em terra batida e tinha o seu início junto à via pública (Rua de São Miguel) num portão de ferro;
I) Há mais de 30 anos que a faixa de terreno referida em E) se encontra apta a ser utilizada como passagem, a partir do portão situado junto à Rua de São Miguel, sempre assim havendo sido respeitada e reconhecida pelos antepossuidores do prédio id. em E) e pelo público em geral;
J) Os requeridos, depois de adquirirem o prédio id. em E), colocaram um cadeado e uma corrente de ferro no portão, que mantém o mesmo fechado, o que impede que, através do mesmo, os requerentes acedam à faixa de terreno referida em E) e, por aí, ao logradouro do prédio identificado em A);
L) Os requeridos, em finais de Dezembro de 2004 e início de 2005, iniciaram obras no pátio do prédio id. em E) dos factos provados, tendo retirado o portão situado junto à Rua de São Miguel e tapado a entrada com chapas de ferro;
M) O logradouro do prédio dos requerentes não é agricultado ou utilizado há mais de 20 anos;
N) Os requeridos retiraram o portão situado junto à Rua de São Miguel e alargaram a parede em que o mesmo se encontrava no âmbito das obras que se encontram a fazer no seu prédio, tendo a entrada sido fechada por questões de segurança da obra e para evitar perigo para as pessoas, bem como para resguardo dos materiais de construção e das máquinas e ferramentas aí existentes;
O) Existe um portão na vedação a poente do prédio dos requeridos, confinante com o prédio dos requerentes, com uma abertura de 1,95 metros.
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III – Fundamentação de Direito
A apreciação e decisão do presente recurso, delimitado pelas conclusões da alegação do agravante (art. 684º, n.º 3 e 690º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil), passa pela análise dos requisitos da providência cautelar em causa, maxime, pela questão de saber se ficou provado o requisito do “periculum in mora”:
O decretamento duma providência cautelar não especificada está – cfr. art. 381.º, n.º 1, do CPC – dependente da conjugação, entre outros, dos seguintes 2 requisitos:
-- Da probabilidade séria da existência do direito invocado;
-- Do fundado receio de que outrem, antes da acção ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito;
“Probabilidade séria da existência do direito invocado” que se basta com um mero juízo de verosimilhança, isto é, com uma prova sumária; outrotanto não acontecendo com a apreciação dos factos integradores do “periculum in mora”, em que se deve usar um critério mais rigoroso.
Por outras palavras, em relação aos factos integradores do “periculum in mora”, o requerente tem que provar – não bastando um mero juízo de verosimilhança – os danos que visa acautelar, sendo certo, importa não esquecer, que se exige a prova da gravidade e da difícil reparação das consequências danosas da manutenção do “status quo”
O que significa que apenas merecem a tutela provisória consentida pelo procedimento cautelar comum as lesões graves e de difícil reparação, ficando arredadas do círculo de interesses acautelados pelo procedimento cautelar comum, ainda que se mostrem de difícil reparação, as lesões sem gravidade ou de gravidade reduzida, do mesmo modo que são afastadas as lesões que, apesar de serem graves, sejam facilmente reparáveis.
Ora, foi justamente por considerar que não se haviam provado, na sua totalidade, os factos integrantes do “periculum in mora” que a providência foi julgada improcedente.
Começou-se por considerar, na decisão sob recurso, “que se encontra minimamente caracterizada – em face dos factos dados como provados – a efectiva realidade serviente, relevando-se para tal que o prédio dos requeridos, independentemente da pouca utilização, esteve sempre sujeito à passagem que os requerentes carecem de efectuar através do mesmo”
Deu-se pois como assente – com o que se concorda e não faz parte do objecto do presente recurso – o requisito da “probabilidade séria da existência do direito invocado”.
O motivo da improcedência baseou-se, repete-se, em não haver ficado provado o requisito do “periculum in mora”.
Todavia – ao contrário do que é referido nas alegações e conclusões do recurso – a não prova de tal requisito não resulta de se haver considerado que uma vez que já antes tinha havido lesão do direito de passagem não haveria fundamento para o procedimento cautelar.
A questão é outra.
Os agravantes têm razão, em tese, quando afirmam que “não é o facto de, no momento em que se requer a providência, já terem ocorrido lesões do direito que, de per si, obsta a que a providencia seja decretada”
Sucede, porém, que, no caso, a questão não é esta.
O ponto não está no “fundado receio”, não está na prova da verificação ou repetição da lesão do direito de servidão dos requerentes.
Efectivamente, impedindo os requeridos – quer com a colocação do cadeado e corrente de ferro no portão quer, agora, com a colocação de chapas de ferro – que os “requerentes acedam à faixa de terreno utilizada como passagem desde a via pública até ao seu logradouro”, ficou provada a lesão no direito de servidão dos requerentes, sumariamente demonstrado.
O ponto está em que, como se referiu, não é qualquer lesão que, no procedimento cautelar comum, justifica a intromissão na esfera jurídica dos requeridos.
Tem que ser uma lesão grave e de difícil reparação.
Foi nesta prova – que é cumulativa, salienta-se – que os requerentes claudicaram.
Ficou escrito na decisão recorrida que “não se encontra estabelecido qualquer facto donde resulte que, dessa restrição (ao direito de servidão dos requerentes) resulte um risco de serem lesionados, de forma grave e dificilmente reparável, bens jurídicos”.
Concorda-se, no essencial, com tal asserção.
Quanto à “gravidade”, ainda se pode argumentar que o provado comportamento dos requeridos, na medida em que obsta a que os requerentes acedam à faixa de terreno, utilizada como passagem, e ao seu logradouro, impede de todo – e não apenas cerceia ou limita – o exercício do seu direito de servidão, o que, no confronto com o conteúdo e extensão do direito violado, pode ser considerado uma lesão “grave”, uma vez que é todo o direito que fica não exercitável.
Todavia, quanto à prova do dano causado ser “dificilmente reparável”, é que não há argumentação que sane a falta de prova.
É que, no caso, estamos certamente tão só perante danos materiais, para os quais o critério da “irreparabilidade” deve ser bem mais restrito (do que o utilizado quanto à aferição dos danos de natureza física e moral), uma vez que, em regra, os danos materiais são passíveis de ressarcimento através de um processo de reconstituição natural ou de indemnização substitutiva.
Acresce, o que não é despiciendo, no sentido de estarmos perante um dano facilmente reparável, que ficou provado que “o logradouro do prédio dos requerentes não é agricultado ou utilizado há mais de 20 anos”.
Enfim, tudo visto e ponderado, não ficou provada uma lesão “dificilmente reparável” que justifique e careça da tutela provisória conferida pela providência cautelar comum.
Improcedem pois as conclusões dos agravantes.

IV - Decisão

Nos termos expostos, decide-se julgar improcedente o agravo e consequentemente confirmar a decisão recorrida.
Custas pelos agravantes.