Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
380/09.2TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
REPARAÇÃO DE VEÍCULO
VALOR
SUBSTITUIÇÃO
Data do Acordão: 12/14/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.342, 483, 566 CC
Sumário: I - O lesado tem direito à reparação do veículo (restauração natural) excepto quando esta é excessivamente onerosa (não bastando para concluir pela excessividade o facto de se te tratar de um valor muito superior ao valor de substituição ou ao valor de mercado no caso de falta de prova do valor de substituição).

II – Não tendo o direito à reparação, o direito à indemnização por equivalente não é o direito de ser pago do valor da compra de um novo veículo não usado, nem o de ser pago apenas pelo valor de mercado do veículo antes do acidente.

III – É antes o direito de ser pago pelo valor que terá de pagar para comprar “um veículo da mesma marca, tipo, idade e estado de conservação do veículo sinistrado”, valor de substituição que é normalmente superior ao daquele valor de mercado.

IV - Mas para se valer deste valor superior o lesado tem de alegar e provar os factos respectivos.

Decisão Texto Integral:               Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra os juízes abaixo assinados:

              C (…), Lda, e L (…) propuseram a presente acção ordinária contra a Companhia de Seguros (…) SA, pedindo que esta seja condenada a:
         a) custear a reparação do veículo da autora ou em alternativa a proceder ao pagamento de 24.500€ pela reposição do veículo no estado tal como se encontrava à data do acidente, acrescido de juros desde a data do acidente,
         ou, em alternativa b) a pagar-lhe os 21.786,70€ por esta despendi-dos na aquisição de uma viatura com idênticas características à sinistrada;
         e ainda c) a pagar-lhe os 1.335,90€ que lhe custou o parqueamento na oficina;
         bem como, d), no pagamento ao autor 10.000€ a título de danos morais sofridos por este, com juros de mora.

               Note-se desde já: ao menos formalmente, não há aqui qualquer pedido relativo ao dano da privação do uso. E o valor da acção dado pelos autores é igual ao valor da soma do pedido a), c) e d).

              Alegam, em síntese, que no dia 30/09/2004 no cruzamento dos Carvalhais, existente na EN nº 1, no sentido Cernache => Coimbra, o ligeiro da autora, conduzido pelo autor, que é seu sócio-gerente, embateu num pórtico metálico que havia sido derrubado minutos antes e se encontrava a obstruir a faixa de rodagem, sem qualquer sinalização, fruto do despiste de um pesado segurado na ré, sendo que o autor, também face à ausência de iluminação no local, não teve qualquer possibilidade de evitar tal embate, donde a culpa do acidente ser do condutor do veículo segurado; desse acidente resultaram danos para o ligeiro, cuja reparação orça em 17.000€ + 7.500€, a que acresce o montante de 1.335,90€ respeitante ao seu parqueamento na oficina reparadora; na aquisição de uma viatura nova substitutiva da anterior a autora veio a despender o montante de 21.786,70€; falam ainda do dano da privação do veículo que quantifica em 21.350€ (= 427 x 50€/dia); e dizem que em consequência do acidente, o autor também sofreu graves danos, de que ainda não foram ressarcidos os morais.

              Citada a ré contestou, invocando a prescrição do direito dos autores e impugnando a culpa do acidente, bem como, também por desconheci-mento, os danos e consequentes prejuízos invocados pelos autores, conclu-indo no sentido de que deve a acção ser julgada improcedente  ela absolvida do pedido.

              Replicaram os autores, pugnando no sentido da improcedência da excepção deduzida.

                                                                 *

              Feito o julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente, condenando a ré a pagar à autora 5.200€ [= 4.250€ (= valor de venal do veículo deduzido do valor dos salvados) + 950€ pelo dano da privação do veículo] e a pagar ao autor 7.500€, do demais indo a ré absolvida.

                                                                 *

              Anote-se desde já o seguinte: a autora não formalizou nenhum pedido pelo dano da privação do veículo, mas sentença concedeu uma indemnização pelo mesmo. Não tendo havido recurso quanto a tal, a questão não pode ser discutida. Mas tem o seguinte reflexo: o valor da privação do uso do veículo, como referido acima, era de 21.350€. Se tal “pedido”, metido nos articulados, tem de ser atendido, então o valor respectivo tem de acrescer ao valor dos pedidos formulados pela autora, passando pois o processo a ter o valor de 57.185,90€. E as custas terão que ter em conta este valor.

                                                                 *

              A autora recorreu desta sentença, com o fim de que a ré seja condenada a pagar-lhe o valor que a autora pagou na aquisição da viatura, valores pagos na reposição e reparação do sistema de frio [pelos valores em causa a autora está-se a referir ao pedido B da petição inicial], e privação da viatura desde a data do acidente até há conclusão do processo por parte da ré, em Janeiro de 2005, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
         1. Sentenciada a culpa do acidente de viação, que não se põe em causa no presente recurso, o tribunal fixou os danos a pagar à recorrente, sendo desta parte que a mesma recorre, por com os montantes fixados não se conformar:
         2. Em face dos documentos juntos aos autos e que sustentam os factos provados, impunha-se a condenação da ré seguradora noutros montantes que não os sentenciados.
         3. Ao ter dado como provados os factos J), K), P), Q), 7, 8 e 10...
         4. O tribunal a quo fez errada interpretação dos documentos juntos e nessa sequência errada subsunção dos factos ao direito.
         5. Provado de forma inequívoca a culpa exclusiva do condutor do pesado e afirmados na sentença recorrida os pressupostos da obrigação de indemnizar ex vi do art. 483 do CC, do facto ilícito, do nexo de imputação e de causalidade, mal andou o tribunal a quo ao aplicar o quantum da obrigação de indemnizar a cargo da ré seguradora.
         6. A recorrente reclamou o pagamento dos danos patrimoniais decorrentes da danificação do ligeiro, despesas do seu parqueamento e indemnização pela privação de uso.
         7. O ligeiro sofreu danos ao nível da sua parte dianteira, necessitando de reparações ao nível da chapa, mecânica e de pintura e a sua reparação foi orçamentada por estimativa em 16.887,40€ (facto 40).
         8. Porém, o ligeiro da recorrente era uma Ford Transit, com caixa térmica de frio) (facto 10). 
         9. Resulta dos documentos de fls. 22, 23, 26 e 27 dos autos que a recorrente gastou, não na viatura sinistrada mas no equipamento de frio que se encontrava acoplado ao ligeiro, para o acoplar no veículo que adquiriu, o montante de 3.486,70€, e apenas para o repor na viatura que adquiriu.
         10. Pelo que, tal valor deve ser ressarcido pela ré seguradora. Dado que, tal valor nada tem a ver com o valor do ligeiro e sua reparação.
         11. Ao ter dado como igualmente provados os factos 7 e 8;
         12. Ao resultar dos documentos juntos aos autos a fls. 24 e 25 que a recorrente adquiriu viatura similar, de marca ford transit matricula ZB..., pela qual pagou 18.300€, com IVA incluído.
         13. A resposta dada ao quesito 8, deveria ser, conforme resulta dos documentos juntos 18.300€ e não 21.786,70€.
         14. Dado que tal valor, inclui o isolamento e equipamento de frio, conforme consta dos documentos de fls. 22, 23, 26 e 27 dos autos.
         15. Pelo que, tendo resultado para a recorrente um prejuízo, na reposição do equipamento de frio, e estando o mesmo devidamente documentado e especificado, não deve ser tido em conta como sendo o valor do veículo adquirido, que não é.
         16. Em face dos factos K), P) e 10, o tribunal a quo deveria ter condenado a recorrida a pagar à recorrente o valor da privação do veículo desde a data do acidente em 30/09/2004, dado resultar dos autos documento de fls…que a recorrente alugou uma viatura de iguais características da sinistrada para fazer o transporte dos seus produtos de 15/10/2004 até 31/10/2004 e pagou a quantia de 892,50€;
         17. A fls. 20 dos autos consta comunicação da recorrente à seguradora a solicitar decisão do processo, porquanto ainda se encontravam a utilizar transportes alternativos.
         18. Só por comunicação datada de 28/12 e recepcionada pela recorrente em princípios de Janeiro de 2005 a Companhia de Seguros ré concluiu o processo e comunicou à recorrente, que não assumia a responsabilidade pela produção do acidente.
         19. Pelo que, deve a recorrente ser ressarcida da privação da viatura desde a data do acidente até à conclusão do processo pela companhia de seguros.
         20. Apesar da recorrente já ter adquirido naquela data outro veículo o mesmo não estava ao serviço da recorrente, porquanto ainda não tinha acoplado o sistema de frio.
         21. Condição para que pudesse efectuar o transporte dos seus produtos.
         22. Deve pois, a decisão recorrida ser substituída nesta parte por outra que condene a recorrida a compensar a recorrente pela privação do veículo desde o dia 30/09 até o dia da sua ultima comunicação em Janeiro de 2005.
         23. Pois, nunca poderia a recorrida ressarcir a recorrente pela privação só durante 19 dias, dado que, consta dos autos factura de pagamento de aluguer de veículo de 15/10/2004 até 31/10/2004.
         24. E está dado como provado que a recorrente teve de se socorrer de transportes alternativos até ter a viatura que adquiriu equipada para transporte dos seus produtos de pastelaria, padaria.
         25. Não aceita a recorrente o valor fixado pelo tribunal a quo, pagamento do valor venal, reduzido do valor do salvado isto é o valor de 5.500€ - 1.250€.
         26. A recorrente deve ser indemnizada mediante a reconstituição natural, assim não sendo, designadamente, quando esta se mostrar excessivamente onerosa para o devedor, caso em que a indemnização se fará mediante o pagamento de uma quantia em dinheiro, calculada segundo a teoria da diferença.
         27. Estando a seguradora obrigada a indemnizar o lesado, por via dos danos sofridos em veículo deste, em acidente de viação por que foi responsabilizado o seu segurado, deve alegar e provar os factos que demonstrem a excessiva onerosidade para afastar a obrigação de reparar ou substituir o veículo, para o que não é suficiente provar que o veículo tinha, à data do sinistro, valor comercial inferior ao custo de reparação.
         28. Não abusa do direito quem se limita a exercê-lo para o fim para que a Ordem Jurídica o atribui ao seu titular.
         29. Com relevo para esta questão, resultou provado que, à data do acidente, o ligeiro tinha um valor comercial que não excedia 5.500€, que o valor dos salvados era de 1.250,00€ e que a reparação foi orçada em 17.000€ [facto M)].
         30. Não existe a excessiva onerosidade invocada pela ré. Como é sabido, a reconstituição natural excessivamente onerosa não se afere apenas pela diferença entre o valor do veículo, à data do acidente, e o valor superior do custo da sua reparação.
         31. A medida da onerosidade tem dois pólos: o da restauração natural, por um lado, e o da indemnização por equivalente, por outro, e esta diferença deve corresponder ao valor que o veículo representa no património do lesado e não ao valor que este obteria se o vendesse, no estado em que se encontrava antes do sinistro (cfr. ac. RC de 10/12/98, in CJ, 98, 5, pag. 40).
         32. Há que ter em conta que este valor comercial é relativamente baixo e que o valor da reparação não é muito elevado, em termos absolutos.
         33. E o valor de aquisição do veículo equivalente, de 15.000€, a que acresce o Iva, não é excessivo.
         34. O certo é que a recorrente possuía um veículo, que servia as suas necessidades, e teve de despender 15.000€, sem IVA, dado que este sempre o deduz na sua actividade. Ou seja, teve de suportar um valor de quase 10.000€, sem que para tanto tivesse contribuído.
         35. A violação ilícita de um direito de outrem importa, para o lesante, o dever de indemnizar o titular do direito por todos os danos causados com o facto ilícito (arts. 483º/1, 562º e 563º do CC), devendo reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
         36. No caso, foi violado o direito (patrimonial) da autora, que viu o seu ligeiro danificado por acto negligente do condutor do pesado para o que nada contribuiu aquela.
         37. Daí que, deve a ré reparar o dano como se ele não existisse.
         38. Como decorre do artigo 564º/1 do CC, o dever de indemnizar abrange, além de outros, os prejuízos patrimoniais sofridos, que correspondem a decréscimos no património do lesado ou aqueles que se traduzem numa desvalorização do património (porque diminuem o activo ou aumentam o passivo).
         39. O lesante deve colocar o lesado na situação patrimonial em que se encontraria não fora o acontecimento produtor do dano.
         40. O tribunal a quo ao condenar a recorrida apenas no pagamento do valor venal violou o artigo 566º/1 do CC.
         41. Como escreve o Prof. Antunes Varela "o fim precípuo da lei nesta matéria... é o de prover à directa remoção do dano real à custa do responsável, visto ser esse o meio mais eficaz de garantir o interesse capital da integridade das pessoas, dos bens ou dos direitos sobre estes".
         42. "Em matéria de obrigação de indemnização há uma clara opção da lei civil pela reconstituição in natura face à indemnização pecuniária: a obrigação de indemnização cumpre-se, fundamentalmente, através da reparação do objecto danificado ou da entrega de outro idêntico". "Em matéria da obrigação de indemnização por danos "a regra é a restauração natural; a excepção é a indemnização por equivalente".
         43. Como princípio regra, quando se trata de indemnizar o dano causado, deve optar-se pela reconstituição natural, v.g., reparando o veículo danificado ou entregando ao lesado outro idêntico, com características iguais ou semelhantes ao danificado.
         44. A obrigação de indemnizar visa colocar o lesado na situação que se aproxime o mais possível daquela que provavelmente seria a existente, de acordo com a sucessão normal dos factos, se não tivesse tido lugar o facto que lhe deu causa. E esta diferença entre a situação existente e a que existiria, se não ocorresse a lesão, deve corresponder ao valor que o veículo (o que está em causa) representa no património do lesado e não ao valor que este obteria se o vendesse, no estado em que se encontrava antes do sinistro. Até porque nada se indicia, no processo, no sentido da apelada pretender alienar o veículo, sintoma de que lhe satisfazia as suas necessidades de deslocação.
         45. Esse valor de uso e da sua permanente disponibilidade, que permite deslocação fácil e rápida, em qualquer momento, é um bem que não pode deixar de reflectir-se no valor do veículo no património do possuidor. De contrário, sendo-lhe indiferente o veículo ou o valor venal, não iria a autora despender quantia superior a esse valor venal para o reparar, o que, desde logo, demonstra a possibilidade técnica da reconstituição natural e a relevância que, para a apelada, tinha a necessidade do veículo para trabalhar.
         46. Não sendo o veículo reparável, ou se assim o entendia, do ponto de vista económico, a apelante, deveria entregar à lesada outro veículo, apto a satisfazer as suas necessidades na medida em que as satisfazia o sinistrado, nomeadamente um veículo da mesma marca e modelo, se possível, com igual uso e em igual estado de conservação, isto é, que representasse no património da lesada o mesmo valor que, para ela, tinha o veículo danificado, assim se reconstituindo a situação anterior à lesão. O que a apelante nem sequer alegou ter proposto à apelada.
         47. Para se afirmar a excessiva onerosidade não basta demonstrar que o valor da reparação é superior ao valor venal do veículo, pois que se "um dos pólos da determinação da excessiva onerosidade é o preço da reparação, o outro não é o valor venal do veículo mas o seu valor patrimonial, o valor que o veículo representa dentro do património do lesado". Daí que se a "seguradora quer beneficiar da excepção não lhe basta «encostar-se» ao valor venal; antes precisa de alegar e provar que o autor podia adquirir no mercado, e por que preço, um outro veículo que igualmente lhe satisfizesse as suas necessidades «danificadas».
         48. Ao contrário do que consta da sentença recorrida, não está demonstrado (e cabia à ré fazê-lo) que se verifica, in casu, "uma manifesta desproporção entre o interesse do lesado a satisfazer e o custo que a reparação natural importaria para a recorrida. Para tanto deveria demonstrar que com a quantia que se dispôs a pagar poderia a recorrente satisfazer as mesmas necessidades que satisfazia com o veículo acidentado, nomeadamente que poderia adquirir um outro veículo, com as mesmas características e qualidades, apto a satisfazer essas necessidades, de igual modo, em termos de comodidade e segurança. Nada disto a seguradora demonstrou.
         49. O veículo, pela sua antiguidade pode ter um valor comercial reduzido ou diminuto, mas mesma assim ser apto a satisfazer as necessi-dades do seu proprietário que, de forma nenhuma poderá satisfazer com uma quantia correspondente a esse valor comercial, o que significa que, sem ele, poderá ver-se privado das comodidades que um veículo, ainda que "velho", proporcionava. Esse valor, que integra o património do lesado, não pode ser desprezado no momento em que se pondere pela (in)adequação da reconstituição natural como forma de reparação do lesado.
         50. A exigência da recorrente, do valor que despendeu na compra de veículo de idênticas características, não é abusiva, pois que se limita a exercer o direito com o fim para que a ordem jurídica lho atribui, não exorbitando da finalidade económica e social que explica e justifica essa atribuição. Nem basta, para se entender determinada conduta de um sujeito de direito como abusiva, que terceiro incorra numa situação desvantajosa com o exercício do direito pelo seu titular, pois que a atribuição de direitos pela ordem jurídica traduz deliberadamente a supremacia de certos interesses (no caso, o do lesado) sobre outros interesses com eles conflituantes.
         51. Com a reprovação do abuso do direito (artigo 334º do CC) visa-se obviar ao exercício anormal de um direito próprio, sancionando os excessos, em termos reprováveis, do seu exercício, só formalmente adequado ao direito objectivo.
         52. Não é o que sucede na concreta situação, em que, sem excesso, a apelada se limita a exercer um direito atribuído pela lei, na medida e porque a apelante não lhe deu a satisfação a que, por lei (arts. 562º, 564º/1 e 566º/1 do CC), estava obrigada.
         53. Ao não ter decido de forma diferente o tribunal a quo violou a lei, concretamente, (arts. 562º, 564º/1 e 566º/1 do CC).

              Questões que importa decidir: se há factos a serem alterados; se a autora deve ser indemnização do valor que pagou pela aquisição de um novo veículo não usado; bem como dos valores pagos na reposição e reparação do sistema de frio e pela privação da viatura deste a data do acidente até há conclusão do processo por parte da ré, em Janeiro de 2005.

                                                                 *

              Na sentença recorrida deram-se como provados os seguintes factos (com interesse para a decisão; daí que não se transcrevam os factos relativos aos danos alegados pelo autor, nem os relativos à culpa do acidente e às circunstâncias do mesmo):
         A). A autora é uma sociedade comercial que tem por objecto social, a confecção e venda de confeitaria e pastelaria.
         B). No dia 30/09/2004, pelas 4h30, no local, cruzamento dos Carvalhais, ocorreu um acidente de viação, em que foram intervenientes: o pesado com a matrícula JJ...; e o ligeiro de mercadorias com a matrícula IN....
         C). O pesado era à data propriedade de A..., Lda, e era conduzido por (…).
         D). O ligeiro era à data propriedade da autora e era conduzido pelo autor, sócio gerente da autora.
         […]
         I) À data do acidente, a responsabilidade civil emergente da circulação do pesado encontrava-se transferida por contrato (Apólice nº 5010/481663) para a ré.
         J) Como causa directa e necessária do acidente, o ligeiro sofreu danos ao nível da sua parte dianteira, necessitando de reparações ao nível da chapa, mecânica e de pintura.
         K) Face à extensão dos danos, o ligeiro ficou impossibilitado de circular.
         L). Tendo sido rebocado para a oficina da B... , Lda, sita na J....
         M) O custo da respectiva reparação foi estimado, a 21/12/2004, em 17.000€, ao qual acrescia o valor do IVA.
         N) Na sequência, a ré comunicou à autora que não assumia a reparação do ligeiro, pois, estimando o custo da reparação em 16.887,40€, o valor venal do veículo era só de 5.500€ e o valor do salvado de 1.250€, nos precisos termos do doc. 4 da p.i., cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
         O) A autora não aceitou tal, pois o ligeiro tinha sido adquirido por 18.000€, acrescido de 7.500€ da aplicação do grupo de frio, pelo que, a autora comunicou à ré que não prescindia da reparação do ligeiro.
         P) A autora por carta datada de 26/11/2004,  enviada à ré, advertiu--a que a privação do ligeiro lhe estava a causar prejuízos, por tal veículo estar afecto à sua actividade, tendo a necessidade de recorrer a transportes alternativos, para o transporte das suas mercadorias, mais a advertindo que o seu veículo se encontrava na oficina, pelo que a respectiva imobilização e eventuais recolhas, eram da responsabilidade da ré, como tudo melhor resulta do doc. 6 da p.i., cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
         Q). Por carta datada, de 28/12/2004, a ré em resposta à autora, comunicou que o pesado segurado, não tinha qualquer responsabilidade no acidente, pelo que não assumiu qualquer responsabilidade no mesmo (doc. 7 da p.i, cujo teor se dá aqui como reproduzido para todos os efeitos legais).
         […]
         6. Privada do ligeiro, a autora recorreu a transportes alternativos, para o transporte das suas mercadorias.
         7. Tendo tido necessidade de em 19/10/2004, proceder a aquisição de outro veículo (matrícula ZB...), com características similares ao ligeiro.
         8. Pela qual pagou 21.786,70€.
         10. A quantia de 50€/dia equivale ao custo de aluguer diário de uma viatura similar ao ligeiro (uma Ford Transit, com caixa térmica de frio).
         […]
         37. O ligeiro tinha cerca de 10 anos de uso e mais de 180.000 km percorridos.
         38. O seu valor, à data do acidente, era de 5.500€
         39. Os salvados valem 1.250€.
         40. A reparação foi orçamentada, por estimativa, em 16.887,40€.

                                                                  I

               Quanto aos factos:

               (…)

               Em suma: nada há a alterar quanto aos factos provados.

                                                                 II

               Do valor venal do ligeiro ou do valor da reparação

               A autora quer, neste recurso, o resultado final de ser paga, em dinheiro, pelo valor da aquisição da nova viatura que, dizia na petição inicial (e ficou provado…), ser de 21.786,70€ e que agora diz ser de 18.300€…

               Por outro lado, fala insistentemente do seu direito à reconstituição natural. Ora, a indemnização em dinheiro, leva à indemnização por equivalente. A reconstituição natural teria a ver com a reparação do ligeiro.

               Por isso, a alternativa que a posição da autora, neste recurso, coloca é, de imediato, apenas entre o valor de mercado do ligeiro ou o valor de uma coisa nova.

               A situação é pois esta:

               Antes do acidente a autora tinha um ligeiro que valia então 5.500€ (valor venal ou de mercado).

               Depois do acidente o ligeiro passou a valer apenas 1.250€ (que é o valor dos salvados) e não pode circular.

               A autora comprou, 19 dias depois, um veículo, de características similares ao ligeiro, que custou 21.786,70€.

               A questão é então: a autora tem direito só aos 4.250€ que lhe deu a sentença, valor que é igual à diferença do valor daquilo que ela tinha relativamente ao valor da coisa que passou a ter? Ou a autora tem direito, ao valor pelo qual adquiriu o veículo novo/não usado (21.786,70€)?

               Falar-se em reconstituição natural implicaria que as alternativas afinal fossem quatro, ou seja, mais estas duas: ou a autora tem direito à reparação do veículo (que não faria muito sentido, pois que já adquiriu um outro para substituir o antigo) ou ao valor da sua substituição (que é de 16.887,40€) - mas agora já não estaria em causa, em sentido próprio, a reconstituição natural…

               Seja como for…

               A sentença optou pela 1ª solução, invocando jurisprudência que acolheu tal solução, que diz ser a mais actual, embora reconheça que existe jurisprudência contrária (a que invoca são os acórdãos do TRE de 08/07/1986, na CJ.86.IV,.66 [este nega que seja excessiva a desproporção de um pouco mais de 3 vezes entre o valor da reparação e o valor venal do veículo], e o ac. do TRL de 04/06/1998, CJ.1998.III, 123 [este nega a excessividade num caso em que a desproporção é de 1 para 10; mas note-se que se admite a possível relevância do facto – se tivesse ficado provado – que com o montante do valor de mercado do veículo, o autor poderia adquirir no mercado um veículo em tudo idêntico ao sinistrado]. A autora, por sua vez, cita os acs. do TRP de 16/06/1994 sumariado no BMJ 438/556 [no qual existem referências àquilo que se poderia dizer o valor de substituição], e do TRC 10/02/1998, CJ.1998,V.40 [mas aqui a diferença pouco ultrapassava a metade do valor venal do veículo e o ac. também admite o relevo que poderia ter a alegação da possibilidade de, com o valor venal se adquirir um veículo semelhante]). Defende que é mais correcta aquela, por força do princípio da proibição do enriquecimento sem causa.

               É que, se a autora recebesse o valor do novo veículo, tinha passado a ter no seu património um bem que valia 21.786,70€ em vez dos 5.500€ que valia antes.

               Mas a solução contrária também não se pode dizer, sem mais, justa, pois que não é garantido que com o valor que a autora receberá, mesmo que consiga vender os salvados pelo valor por que eles foram avaliados e o adicione àquele, conseguisse adquirir um ligeiro no mesmo estado.

               Por isso, a solução que é mais correcta, não é ter em conta o valor venal (= de mercado) do veículo sinistrado, nem o valor de um veículo novo/não usado, mas sim o valor de substituição do antigo veículo, ou seja, o valor necessário à compra de um veículo da mesma marca, tipo, idade e estado de conservação idêntico ao do sinistrado, que normalmente será superior ao valor de mercado do veículo sinistrado (tudo isto tem em conta os ensinamentos que se tiram da anotação do Prof. Júlio Manuel Vieira Gomes, com ampla fundamentação, na sua anotação ao ac. do STJ de 27/02/2003, Rev. 4016/02, publicada sob o título custo das reparações, valor venal ou valor de substituição? nos Cadernos de Direito Privado, nº. 3 Julho / Setembro 2003, e do próprio acórdão, embora com as devidas ressalvas, já que no caso do acórdão do STJ o que se estava a discutir era apenas a alternativa entre  valor venal e o valor de substituição, e no caso dos autos o que se está a discutir, agora, no recurso, é a alternativa entre o valor venal e o valor de um novo veículo/não usado.

               (No mesmo sentido, de valor de substituição, vejam-se os acórdãos do STJ de 16/11/2000, CJ.STJ.2000, III, págs. 124/125, 07/07/1999, CJ.STJ.99, III, págs. 16/19, e de 21/02/2006, CJ.STJ.2006, págs. 83/85, e do TRL de 09/02/2006, CJ.2006.I, págs. 98/101 – todos citados pelo Prof. Paulo Mota Pinto, no seu Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, Coimbra Editora, Dez2008, nota 1641, pág. 570, que ainda cita no mesmo sentido uma anotação de Vaz Serra, a um ac. do STJ, publicada na RLJ).

               Ou seja, se o veículo, com 10 anos, valia à data do acidente 5.500€ e os salvados têm o valor de 1.250€, o valor a indemnizar não será necessariamente o de 4.250€, nem o de 21.786,70€ de um veículo novo, nem o valor da reparação do anterior (16.887,40€), se esta for excessivamente onerosa (art. 566/1, parte final, do CC - como o é quando for superior a mais de 3 vezes o valor do antigo veículo, sem que existam quaisquer outros factos que possam ser tomados em consideração – neste sentido, a sentença recorrida cita o acórdão de 21/04/2010 do STJ, 17/07.4TBCBR.C1.S1, num caso em que não se considerou a onerosidade excessiva: o valor da reparação era de mais cerca de 58,33% do valor do veículo; no caso dos autos o valor é superior a 300%), mas o valor de, por exemplo, 7, 8 ou 10.000€ necessários para, agora, neste momento e nestas circunstâncias concretas, comprar um veículo com 10 anos, da mesma marca e tipo e no mesmo estado conservação que o sinistrado.

               Note-se aliás que no art. 41/2 do Dec. Lei 291/2007, de 21/08, fala-se agora em valor de substituição e já não se utiliza a expressão valor de venda no mercado que se utilizava no art. 20-J/2 do Dec. Lei 522/85, de 31/12, na redacção do Dec. Lei 83/2006, de 03/05, uma das expressões que levava a que Paulo Mota Pinto, na obra citada, notas 1639 a 1641, págs. 568/571 falasse de “medidas de claro favorecimento das seguradoras em prejuízo dos segurados” que podem levar a uma situação que pode ser considerada de “escandalosa injustiça material” (de verdadeira expropriação forçada por utilidade particular (no caso, das seguradoras – utilizando as palavras de Menezes Leitão, em obra que cita) e por isso inconstitucionais.

                                                                 *

               Diz a autora (por exemplo, conclusões 27, 30 e 31) que, para se chegar à conclusão da excessiva onerosidade (art. 566/1 parte final), a comparação não é entre o valor venal e o valor da reparação, mas sim entre esta e o valor de substituição. E assim é, como se viu. Só que o valor de substituição é um valor a que se tinha que se chegar com base em dados de facto que tinham que ser alegados e provados pela autora, no caso de esta entender que era superior ao valor de mercado. Pois que, se não, tendo ficado provado um valor de mercado do veículo  e não havendo quaisquer outros dados em contrário, é este o valor de substituição do mesmo.

               Ou seja, como se trata de um valor que depende de uma série de factos que têm a ver a esfera patrimonial da autora, é a ela que os caberia alegar (arts. 342/1 e 483/1 do CC). Só ela é que pode saber, e por isso alegar, factos que, provados, permitam a conclusão de que apesar de o valor de mercado do veículo ser um, dadas as circunstâncias particulares só seria possível adquirir um outro por um valor superior. Não faz sentido pensar que seria a seguradora que teria que alegar estes factos… de que não poderia ter conhecimento.

                                                                 *

               Por fim, o juiz não pode atribuir o valor de substituição, se só tem a alternativa do valor venal do veículo ou do valor, 3 ou 4 vezes superior, da reparação necessária do veículo sinistrado ou de um veículo novo, que o juiz sabe que vai dar origem a um enriquecimento sem causa.

               Nem mesmo tem a alternativa de condenar no que se liquidar (art. 566/3 do CC) como valor de substituição (como se fez no caso acima referido do ac. do STJ de 27/02/003, confirmando a posição do TRP), se nem sequer se fala neste e se não há elementos para supor que, no caso, esse valor fosse, em concreto superior ao valor de mercado atribuído.

                                                                 III

               Valores pagos na reposição e reparação do sistema de frio

               Apesar de não se terem alterado os factos devido às razões supra referidas, na parte I, veja-se agora a questão de outra perspectiva.

               Tendo em conta o agora – neste recurso - alegado pela autora conclui-se que ela sugere, neste recurso, que o valor dos 5.500€ seria só o valor de mercado do ligeiro antigo, sem o sistema de frio. Ora, diz a autora a reposição do sistema de frio no novo veículo, teria custado o valor de 3.486.70€. Valor de que a autora também deveria ser ressarcida.

               Mas a autora nunca referiu estes factos nem esta questão foi levantada na 1ª instância, sendo que os recursos não se destinam a discutir questões novas, mas sim a ver se uma dada decisão de uma questão posta na 1ª instância está ou não errada.

                                                                 III

               Quanto ao dano da privação do veículo:

               Fala a autora da privação da viatura deste a data do acidente até à conclusão do processo por parte da ré, em Janeiro de 2005. O acidente ocorreu no dia 30/09/2004. Até Janeiro de 2005, vão, no máximo, 92 dias, incluindo feriados e fins-de-semana.

               À razão de 50€/diários invocados pela autora, isto daria, quando muito 4600€.

               A autora fala de 21.350€….

              Seja como for…

               Os factos com relevo são os sob A), B), J), K), 7 e 10 dos quais apenas resulta que a autora esteve, no máximo, privada de um veículo seu que fizesse o mesmo serviço que o veículo sinistrado, de 30/09/2004 a 19/10/2004, não se sabe se inclusive, e que o custo diário de aluguer de um veículo similar é de 50€ diários.

               Note-se que se trata de factos a provar pela autora (art. 342/1 do CC). Se a autora diz, sem mais, que comprou um veículo substituto em 19/10/2004, tem que se partir do princípio que a partir desse dia, já não lhe fazia falta o aluguer de um outro.

               A sentença recorrida atribui uma indemnização de 19 dias x 50€.

               Dir-se-ia pois que, a haver erro na indemnização pela privação, seria por excesso, já que se está a abranger dias não úteis…

               No entanto, a autora insiste no pedido de indemnização de, já se viu, 21.350€, o que corresponde a 427 dias (x 50€/dia).

               Parte pois do princípio que esteve impossibilitada de utilizar veículo próprio desde 30/09/2004 até depois de 01/12/2005.

               Não há prova nenhuma disto.

                                                                 *

               Improcedem, pois, todas as conclusões do recurso.

                                                                 *

               Sumário:

               I - O lesado tem direito à reparação do veículo (restauração natural) excepto quando esta é excessivamente onerosa (não bastando para concluir pela excessividade o facto de se te tratar de um valor muito superior ao valor de substituição ou ao valor de mercado no caso de falta de prova do valor de substituição).

               II – Não tendo o direito à reparação, o direito à indemnização por equivalente não é o direito de ser pago do valor da compra de um novo veículo não usado, nem o de ser pago apenas pelo valor de mercado do veículo antes do acidente. 

               III – É antes o direito de ser pago pelo valor que terá de pagar para comprar “um veículo da mesma marca, tipo, idade e estado de conservação do veículo sinistrado”, valor de substituição que é normalmente superior ao daquele valor de mercado.

               IV - Mas para se valer deste valor superior o lesado tem de alegar e provar os factos respectivos.

                                                                 *

               Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, mantendo-se a sentença recorrida.

               Valor da acção para efeitos de custas: 57.185,90€.

               Custas do recurso pela autora.

           


 Pedro Martins ( Relator )
Emídio Costa
Gonçalves Ferreira