Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1249/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDES DA SILVA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
NEXO DE CAUSALIDADE
Data do Acordão: 10/28/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE VISEU - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTº 41º DO DEC. Nº 41.821, DE 11/08/1958
Sumário: I - Face ao estatuído no artº 41º do Dec. nº 41.821, de 11/08/1958 ( Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Cívil ), sempre que haja vigamento a nu ou os elementos de enchimento não tenham adquirido ainda a necessária consistência, é obrigatório o emprego de estrados e de outros meios que evitem a queda de pessoas, materiais e ferramentas.
II – Quando o acidente tiver sido provocado pela entidade empregadora ou resultar da falta de observância das regras sobre segurança no trabalho, a reparação implicará um agravamento das prestações – artº 18º/1 da NLAT ( Lei nº 100/97 ) .
III – Prefigurada a hipótese de o acidente estar directamente relacionado com a inobservância de regras injuntivas atinentes à segurança no trabalho, não se poderá prescindir de uma imputação culposa ao empregador, pelo que sempre terá de provar-se a violação culposa dessas regras e o nexo de causalidade entre o acidente e a dita violação , segundo a teoria da causalidade adequada, na sua formulação negativa .
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I –

1 – Concluída, sem êxito, a fase conciliatória do processo, veio a A., A..., viúva, com os demais sinais dos Autos, patrocinada por mandatária devidamente constituída, demandar no Tribunal do Trabalho de Viseu, em acção especial emergente de acidente de trabalho, os RR. patronais B... e mulher C..., residentes em São Miguel de Vila Boa, Sátão, e Companhia de Seguros «Axa Portugal», com sede na Rua Gonçalo Cristóvão, Porto, pedindo, a final, a condenação solidária dos primeiros no pagamento de uma pensão anual e vitalícia de montante indicado, despesas de funeral e de transporte e uma indemnização por danos morais e ainda a condenação subsidiária da R. Seguradora em pensão anual e vitalícia e demais importâncias que discrimina.

Alegou para o efeito, em resumo útil, que é mãe do sinistrado de morte D..., solteiro que era e que trabalhava mediante retribuição para os RR. patronais quando, em 20.2.2002, sofreu uma queda de uma abertura existente na laje de um primeiro piso de uma obra onde se estava a proceder à colocação de abobadilhas de tijolo entre as vigas do telhado, sofrendo fracturas múltiplas que lhe provocaram directa e necessariamente a morte.
A A. não exerce qualquer actividade remunerada e não possui bens ou rendimentos que lhe permitam só por si subsistir, recebendo apenas uma pensão de sobrevivência por morte de seu marido, no valor mensal de 113.73 Euros.
Era seu filho que suportava as despesas do seu agregado familiar, contribuindo com regularidade para a alimentação da A., sua mãe, que dessa contribuição necessitava.
OS RR. patronais tinham a sua responsabilidade infortunística transferida para a R. Seguradora, que não aceitou assumi-la por entender que o acidente se ficou a dever ao incumprimento das normas de segurança por banda daqueles, que, por sua vez, defendem que as mesmas foram todas respeitadas.

É convicção da A. que o acidente que vitimou o seu filho se ficou a dever ao facto de as aberturas das vigas não se encontrarem protegidas contra quedas em altura e também ao facto de sobre a obra em construção passarem condutores eléctricos de alta tensão, à altura aproximada de 1,50 metros.
Caberia aos primeiros RR. identificar os riscos, adoptar as medidas de protecção necessárias e cessar a sua actividade em caso de perigo grave e iminente, sendo previsível, para uma pessoa normal, nas circunstâncias em que o A. trabalhava, que um acidente pudesse de facto ocorrer.
A violação das normas de segurança foram a causa necessária e directa do acidente que vitimou mortalmente o filho da A.

Pediu, além do mais, a fixação de uma pensão provisória.

2 – Citados, os RR. contestaram.
Vieram os RR. patronais defender-se, alegando basicamente que a obra ajustada o foi somente pelo R. marido, sendo a R. mulher apenas doméstica.
O sinistrado, que projectava casar-se, pouca ajuda económica prestava à A., a quem apenas pagava algumas despesas que causava com a alimentação, por habitar com ela.
O acidente não se ficou a dever a qualquer incumprimento das normas de segurança.
Quando foi preciso socorrer a vítima retiraram-se do local todas as barreiras, vedações e andaimes que lá existiam para permitir o acesso dos socorros, pelo que os resguardos e protecções existentes no local foram retirados a fim de permitir a entrada da maca, após o acidente.
E de seguida, o R. marido, não se encontrando psicologicamente em condições de continuar o trabalho naquela obra, mandou retirar o restante material que lá havia e deslocou-o para outros trabalhos.
Daí que as condições referidas no Relatório do IDICT, que se deslocou ao local mais de um mês depois do acidente, não correspondam às condições de segurança que efectivamente existiam no dia do acidente.
A direcção da obra cabia ao engenheiro que assinou o respectivo projecto e a fiscalização cabia ao mesmo e ao dono da obra.
Da parte do R. foram observadas todas as normas de segurança atinentes ao caso, cumprindo as praxes da construção em uso e costume na região.
A queda do sinistrado deveu-se a facto fortuito, não se sabendo como explicá-la.
A responsabilidade pelas respectivas consequências terá de ser assumida pela R. Seguradora, para quem a tinha transferido por contrato de seguro válido.

Por sua vez a R. Seguradora veio defender-se excepcionando, desde logo, a imputação da responsabilidade ao co-R. patronal por motivo de culpa própria e exclusiva, derivada do incumprimento das regras de higiene e segurança.
O sinistrado, a mando e por ordens do seu empregador, encontrava-se posicionado numa placa ao nível do telhado de uma construção de moradia, inclinada e a cerca de 2,5 metros de altura do piso imediatamente inferior, onde recebia material que lhe era içado por um colega que se situava no piso inferior; no local onde se encontrava, de pé, o sinistrado estava apoiado em duas vigas ali colocadas, pisando com cada um dos seus pés uma dessas vigas paralelas entre si, todas espaçadas e fixadas entre si, de modo que o sinistrado não dispunha de uma superfície corrida e regular que lhe permitisse calcorrear ou movimentar-se livremente;
Não dispunha de qualquer meio de protecção individual ou colectiva para a execução de trabalhos em altura, estando o local desprovido de guarda-corpos, inexistindo tábuas de rojo sobre a superfície onde se deslocava e não tinha cinta de segurança.
Esta falta de meios ou instrumentos de segurança foram causal e exclusivamente determinantes das consequências verificadas.

Requereu-se a citação à acção do indicado responsável adjudicatário José António F. Figueiredo.

Por impugnação, alegou que, face à responsabilidade reparatória do R. patronal, por virtude de culpa própria e exclusiva na produção do sinistro, a sua intervenção apenas poderá ocorrer subsidiariamente, nos termos do n.º2 do art. 37º da Lei n.º 100/97, limitada sempre às prestações legais normais.

3 – Com respostas às contestações, e condensada, instruída e discutida a causa, proferiu-se finalmente sentença a julgar a acção procedente, com condenação dos RR. patronais, José Lopes Correia e mulher, no pagamento dos montantes discriminados no dispositivo, a fls. 323, ficando a R. Seguradora condenada subsidiariamente no pagamento das importâncias também aí especificadas.

4 – Os RR. patronais, inconformados, vieram interpor recurso, oportunamente admitido como apelação, cuja motivação fecharam com a formulação deste quadro conclusivo:
. – A fls. 49 do processo encontra-se a ‘Análise 1256 – concentração de álcool etílico em sangue – 0, 48g/l’ efectuada no cadáver do trabalhador sinistrado;
. – O trabalhador sinistrado não se encontrava, pelas 15:00 horas, em condições, em virtude do álcool que apresentava, para executar as tarefas que a Entidade Patronal lhe havia destinado para cumprir naquele dia, posto que e como é do conhecimento geral o álcool provoca excessiva temeridade e autoconfiança e faz assumir em consequência comportamentos de risco;
. – Todos os trabalhadores que se encontravam na obra no momento do acidente foram ouvidos como testemunhas indicadas quer pelo A. quer pelos RR. e, em audiência de julgamento, afirmaram de forma inequívoca que a Entidade Patronal lhes assegurava meios de protecção, segurança e saúde no trabalho: ’tínhamos tudo’.
Nomeadamente existiam cintos de segurança, capacetes, luvas e estrados (andaimes, resguardos ou rebojo de corpos) em quantidade suficiente para a protecção efectiva e cabal de todos quantos lá trabalhavam;
. – Os trabalhadores, conforme referiram em Tribunal, só por ‘descuido’ deles mesmos e contra as ordens expressas da Entidade Patronal, não utilizavam os meios de protecção que esta lhes entregava e tinham ao seu dispor;
. – A Entidade Patronal não se encontrava no local da obra no momento do acidente e os trabalhadores possuíam em tal local meios de protecção para usarem no decurso dos trabalhos que lhes haviam indicado para realizarem;
. – Jamais se pode exigir a uma Entidade Patronal que nem está na obra mas ali tem, prontos para serem usados, meios de protecção adequados aos trabalhos em curso, que permaneça na obra com o único e exclusivo fim de obrigar os trabalhadores a usar tais equipamentos;
. veja-se o depoimento de Manuel Martins, que à data trabalhava na obra onde ocorreu o acidente. Testemunhou da seguinte forma:
‘R: o patrão destinou o trabalho logo de manhã.
Ele (o patrão)dizia para termos cuidado e fazermos tudo em segurança.
Pergunta: ‘Dizia para usar cintos?’.
R.: ‘Dizia’.
R: ‘Às vezes um gajo também se descuidava’.
R: ‘Ainda me mandou algumas vezes para casa (por não usar cinto de segurança)’.
‘Ainda me mandou uma vez para casa: eu não trazia botas biqueiras de aço nem capacete’
...
P: Havia lá outros resguardos para pôr por baixo dele, se ele os quisesse colocar’?
R: ‘Havia sim senhora’.
Cassete II B
Dos Autos, sob fls. 34, existe um relatório elaborado pelos inspectores do IDICT, de conhecimento oficioso, que refere:
‘A Entidade Patronal apenas tem ao seu serviço um trabalhador;
A Entidade Patronal/empresa é José Lopes Correia;
Este, José Lopes Correia, encontra-se colectado em nome individual;
Correspondendo-lhe o n.º fiscal 117916854 e é a 1ª vez que a Entidade Patronal sofre um acidente de trabalho’;
. – os documentos do IDICT não referenciam a R. mulher como Entidade Patronal. Com base em que fundamentos foi a mesma notificada para estar presente na Tentativa de Conciliação?;
. – O Mmº Juiz veio a proferir na sentença recorrida como segue: ‘Na tentativa de conciliação (fls. 83) José Lopes Correis e mulher Maria da Conceição F. Correia aceitaram que o acidente ‘ocorreu quando o sinistrado desempenhava as suas funções numa obra ajustada pelos declarantes’;
. - ora, sendo certo que o art. 131º, n.º1,c), do C.P.T. fixa que se têm como assentes os factos sobre os quais se tenha acordado, a verdade é que para se haverem como acordados os factos atrás referidos era necessário que alguém tivesse perguntado ou de algum modo tivesse obtido a concordância expressa da R. mulher para o que se escreveu a fls. 83, o que não aconteceu, pois que ninguém lhe perguntou coisa nenhuma;
. – aliás, se tal entendimento não tivesse ganho de causa, ter-se-ia de concluir que nos Tribunais não se visaria aplicar a Justiça, mas antes aproveitar-se dos incautos que, de forma mais simples, séria e inocente seriam trucidados, ‘sem apelo nem agravo’, o que jamais se poderá aceitar!!!;
. – foi alegado e dado como provado que a R. mulher jamais foi Entidade Patronal e que o Mmº Juiz também considerou, dando, em consequência, como provado o 1º quesito. Mas, afinal, veio a concluir-se que a R. mulher era também Entidade Patronal do sinistrado!!!;
. – os documentos elaborados pelo IDICT foram-no através do testemunho indirecto e com um lapso de tempo tal que, só por si, logo quando da tentativa de conciliação deveriam ter sido afastados e não ter permitido que, com base nos mesmos a R. seguradora se tivesse eximido à efectivação imediata da responsabilidade, que, pela existência de seguro de trabalho válido, referente ao trabalhador sinistrado, havia operado a transferência de tal responsabilidade da Entidade Patronal para a R. seguradora;
. – É o que desde logo decorre por analogia do seguro automóvel obrigatório, que garante, em tempo útil, o pagamento de todas as indemnizações devidas, assistindo contudo o direito de regresso sobre eventuais responsáveis pelo acidente. Este seria o único procedimento adequado ao caso e permitido por aplicação dos princípios ínsitos no C.P.C. atinentes ao caso, 'ex vi' do art. 1º/2;
. – acresce também que o Mmº Juiz deveria ter-se pronunciado não só sobre todos os factos trazidos à colação por estarem documentados nos Autos e serem de conhecimento oficioso, como também sobre todos aqueles que surgiram no decurso da produção de prova e que assumem relevância para a boa decisão da causa, por imperativo dos princípios do dispositivo e da aquisição processual – art. 72º/1 do C.P.T. – o que efectivamente não aconteceu;
. – ao não se pronunciar sobre questões que deveria ter apreciado, violou o Mmº normas basilares – art. 668º/, de), do C.P.C., o que implica a nulidade da sentença;
. – por outro lado, ao tomar conhecimento do pedido de indemnização do direito à vida e de danos morais que tinham sido suscitados no Auto de Não Conciliação, tendo-se como assente matéria dada como acordada no mesmo, haverá então ‘conhecimento de questões de que não poderia tomar conhecimento’ e daí resultará também nulidade da sentença;
. – os fundamentos materiais da sentença estão em contradição com os fundamentos formais;
. - pois, os fundamentos resultantes da matéria quesitada e dada como provada encontram-se em oposição com a decisão, desde logo quanto a saber quem é a Entidade Patronal;
. – deve fazer-se a reapreciação da prova gravada porquanto resulta dos depoimentos dos trabalhadores que no momento do acidente existiam cintos, capacetes, luvas e resguardos de corpos no local da obra e que a Entidade Patronal ‘mandava ter cuidado e que usassem as protecções’ – cassete II B – o que não foi levado em consideração pelo Mmº Juiz 'a quo';
. – também não foi valorado a nosso ver o testemunho prestado pelo Sr. Inspector do IDICT , que referiu só ter ido ao local do acidente mais de um mês após o mesmo ter ocorrido e não ter visto lá qualquer trabalho posto que a obra estava abandonada e ainda:
R: ’poderia ter sido dos fios eléctricos’;
R: ‘a morte poderia ter resultado de um problema com os fios eléctricos’;
. – ora, tal afirmação não foi objecto de qualquer base instrutória!...
. – o trabalhador que se encontrava junto do sinistrado referiu que este para executar o trabalho que fazia não tinha qualquer necessidade de ter feito o percurso que decidiu fazer, podendo ter ‘ido à volta da placa em vez de ter subido ao cume do telhado’;
. – não se pode imputar a culpa do acidente à Entidade Patronal que cumpriu com o que lhe era exigido e não violou qualquer norma de segurança;
. - nada se provou que faça recair a culpa do acidente ocorrido sobre a Entidade Patronal;
.Contradição de julgados, pois a sentença recorrida contém, a nosso ver, ao aceitar que a A. venha deduzir pedido de indemnização por danos morais e pelo direito à vida, só em fase posterior à tentativa de conciliação, entendimento contrário ao recolhido no Ac. do TRC de 6.3.2003, rec. n.º 3682/2002, in www.trc.pt/trc 09156, html, que fixa:
Se durante a fase conciliatória a questão do direito do sinistrado a indemnização por danos morais não foi equacionada, nem se hipotizou, nem discutiu que o acidente tivesse ocorrido por culpa da Entidade Patronal, não pode agora o recorrente pretextar a causa de pedir e formular, com base nela, o pedido de condenação da co-R. patronal numa quantia a título de danos morais’;
. – não colhe dizer-se que nos Autos em apreço tenha sido sequer hipotizada que a causa do acidente decorresse de qualquer actuação ou omissão que responsabilizasse a Entidade Patronal;
. – a aceitar-se a sentença recorrida nos termos exactos nela referidos, haverá contradição de julgados, o que não pode aceitar-se;
. – Foram violadas as seguintes normas: arts. 264º, 515º, 3º-A e 668º do C.P.C.; 13º/1 da C.R.P.; 72º/1 do C.P.T. ;
. – nulidade da sentença por violação dos princípios do dispositivo, da aquisição processual, da igualdade de tratamento perante a lei e preterição de formalidades essenciais;
.Reapreciação da prova:
Não valoração de factos trazidos à colação, pelas testemunhas ouvidas em audiência de Julgamento que conduziriam a resultado diverso do plasmado na sentença final, nomeadamente quanto à responsabilidade atribuída à Entidade Patronal e consequentes valores indemnizatórios fixados;
. – contradição de julgados, como acima se disse.
Deve ser revogada a sentença.

5 – Respondeu a A. concluindo a final pela improcedência do recurso, com manutenção da decisão recorrida.

Recebido o recurso e colhidos os vistos legais devidos, com o Exm.º Proc.-Geral Adjunto a emitir proficiente parecer em que conclui também no sentido da improvimento da apelação, vamos decidir.

II –
Exposto esquematicamente o desenvolvimento da lide, lembremos ora, como é mister, a factualidade que vem seleccionada.

1 – OS FACTOS
(…)

2 – O DIREITO
Tendo presente que o objecto da impugnação se nos apresenta delimitado pelo teor das respectivas conclusões – arts. 684º/3 e 690º/1 do C.P.C. – e que não deve confundir-se ‘questões’ com os argumentos invocados na defesa da respectiva bondade, avancemos para o tratamento e solução dos problemas que nos vêm postos.

2.1 –
(Antes de prosseguir, deixa-se parenteticamente a nota de que as nulidades da sentença que foram sendo referidas ao longo das alegações, não tendo sido identificadas e arguidas, expressa e separadamente, no requerimento de interposição do recurso, não serão consideradas, como é entendimento jurisprudencial uniforme – art. 77º/1 do C.P.T. ).

Comecemos pela pretendida reapreciação da prova gravada.
Para que se possa fazer uso, válida e eficazmente, desta facilidade, consentida ora pela lei adjectiva, impõe-se observar naturalmente a correspondente disciplina processual.
Manda o art. 690º-A/1 do C.P.C. que, quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, se especifique obrigatoriamente, sob pena de rejeição, quais os concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados e quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Neste caso, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente indicar, sob pena de rejeição do recurso, os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do art. 522º-C, n.º2.

Para além do juízo que se faça sobre a cabal observância desta disciplina, no caso, importa ter presente que a simples circunstância de se impugnar a decisão não significará naturalmente que se venha a alterar a matéria de facto em conformidade com a perspectiva do impetrante.
Como se sabe, a referida admissibilidade da gravação da prova produzida em audiência veio alargar o âmbito de intervenção censória da Relação, até então confinada às estritas limitações constantes do art. 712º do C.P.C.
Todavia, como já tantas vezes se disse e é entendimento consensual, a utilização da gravação dos depoimentos constitui um simples meio posto à disposição das partes para obter a reapreciação da prova, um remédio para pontuais e graves erros de julgamento.
Não implicando logicamente um novo julgamento, (com a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência), só em situações excepcionais valerá tal expediente, (visando apenas a detecção e correcção de concretos, evidentes, grosseiros e seguramente excepcionais erros de julgamento), já que a regra basilar continua incólume: o Tribunal aprecia livremente as provas, decidindo o Juiz segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto – princípio da liberdade de julgamento, consagrado no art. 655º do C.P.C. – onde sobrelevam operações de natureza intuitiva, racional e psicologicamente inefáveis, decorrentes da imediação e da oralidade.

No caso concreto os Apelantes pretendiam afinal o quê?
- Ver consagrada basicamente, como matéria de facto provada, a alegação de que, com base nas afirmações das testemunhas Manuel Martins, António Gomes e Francisco, a co-R. mulher, Maria da Conceição, nunca foi às obras e que o sinistrado não trabalhava por conta e sob a autoridade e direcção desta; que no dia do acidente o R. José Lopes Correia só havia estado na obra pela manhã, destinando o trabalho; que existiam meios de protecção para montar debaixo dos trabalhadores que andavam na placa do tecto, para evitar quedas em altura; que o sinistrado tinha meios de protecção ao seu alcance, que não usava, apesar de ser instado para o fazer pela Entidade Patronal...e que o sinistrado apresentava, aquando da queda, uma taxa de álcool etílico de 0.48 g/l... ... ...

Vista a solução e fundamentação da decisão de facto posta em crise – confrontada com audição dos excertos da prova gravada e cotejada com a demais – não poderá acolher-se a pretensão dos Recorrentes, (além de que os factos questionados se apresentam, pelo que nos parece, de relativo e duvidoso alcance prático para a solução da questão crucial do caso...), que mais não almejavam do que uma resposta coincidente com a sua leitura e interpretação de factos constitutivos da sua tese, apoiando-se para o efeito em excertos respigados de depoimentos avulsos, que, no confronto com a restante prova adrede produzida, não são susceptíveis de impor-se como prova prevalecente/irrefutável, só por si e independentemente do conjunto de factores subjectivos que interagem na formação da convicção do Julgador, e que escapam, pela própria natureza das coisas, ao registo áudio que suporta os depoimentos parcelares, ouvidos e analisados.
É que, se alguns indícios se poderiam colher no sentido pretendido, não pode ignorar-se o teor integral dos depoimentos das identificadas testemunhas (que não declararam apenas e só o que foi invocado...e o que declararam é feito com sucessivas hesitações, aporias, hiatos, dúvidas e até contradições...), bem como o dos restantes depoimentos, globalmente considerados, maxime o de Manuel Rodrigues Martins, que se referiu à existência de um ‘estrado’, no piso do 1º andar, a cerca de um metro/metro e meio, mas que na perpendicular do local onde o sinistrado trabalhava não havia ‘estrado’, com outros esclarecimentos a propósito...
E, com é sabido – e as partes não podem ignorar... – a lei contém um critério para os casos em que, persistindo a dúvida sobre a realidade de um facto, e/ou sobre a repartição do ónus da respectiva prova, a mesma se resolve contra a parte a quem o facto aproveita (art. 516º do C.P.C.).

Por tudo isso, o Mmº Juiz considerou como demonstrada a factualidade relevante que elencou, com a indicação da respectiva fundamentação, valorando os elementos de prova que, em sua prudente convicção, foram para si determinantes.
Tal operação cognoscitiva/intelectual, porque encontra perfeito respaldo na prova produzida e não padece de qualquer (aparente) vício lógico-formal, não é sindicável.

Como lapidarmente se escreveu no Acórdão tirado no Rec. 446/02, de 5.6.2002, da Secção Criminal desta Relação, ‘....Os julgadores do Tribunal de recurso, a quem está vedada a oralidade e a imediação, perante duas ou mais versões dos factos, só podem afastar-se do juízo feito pelo julgador 'a quo' naquilo que não tiver origem nestes princípios (oralidade e imediação), ou seja, naqueles casos em que a formulação da convicção não se tiver operado em consonância com as regras da lógica e da experiência comum’...

Pelo exposto, é nosso entendimento que não se verificam as circunstâncias legalmente previstas tendentes à visada alteração da decisão da matéria de facto.

2.2 –
Pretendendo tirar partido do resultado do exame de alcoolémia, cujo valor apontou para uma concentração de álcool etílico no sangue do sinistrado de 0,48 g/l, os recorrentes fizeram apelo a uma pretensa violação, por parte do Tribunal, de princípios básicos do processo civil, o que constituiria nulidade da sentença.

Não obstante o que já acima se deixou consignado sobre a oportunidade de arguição das nulidades da sentença e consequências da sua dedução ‘ex tempore’, sempre se adianta que, salvo o devido respeito, é falha de toda a consistência a pretensão dos RR. de questionar agora, (ao que parece...) a pretensa a descaracterização do acidente.
Por um lado, não foi oportunamente deduzida/excepcionada tal defesa); por isso, não tendo sido tratada tal problemática na decisão aprecianda, a sua equação sempre constituiria, neste passo, uma questão nova, de que não poderia conhecer-se ‘hic et nunc’.
Além disso, a consideração de tal questão sempre estaria votada ao insucesso, além do mais porque sem qualquer suporte fáctico donde pudesse extrair-se uma qualquer relação de causa-efeito.
A referência a tal circunstância é, assim, de todo inócua no contexto dos Autos.

2.3 –
Face ao alinhamento do acervo conclusivo, (e pese embora não se nos afigurar aí claramente delineada...), vejamos a questão crucial da impugnação: a da existência ou não de culpa da Entidade Patronal, por inobservância das regras de segurança nos trabalhos de construção civil.

Na decisão sob censura concluiu-se que a Entidade Patronal não cumpriu as regras de segurança devidas no caso, resultando disso o acidente.

Quando o acidente tiver sido provocado pela entidade empregadora (ou seu representante) ou resultar de falta de observação das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, as prestações, no caso de morte, serão iguais à retribuição – assim se proclama no art. 18º da NLAT, a Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro.
Vindo, a final, a subsumir o caso decidendo à normatividade deste preceito, a sentença em crise assentou, em síntese, na seguinte argumentação jurídica:
A prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde tem dignidade constitucional (art. 59º/1, c), da C.R.P.), estando o empregador obrigado a - 1) assegurar aos trabalhadores tais condições, em todos os aspectos relacionados com o trabalho (art. 8º/1 do DL. n.º 441/91, de 14/11), com obrigação de fornecimento de equipamento de protecção individual, com garantia do seu bom funcionamento; - 2) proceder, na concepção das instalações, dos locais e processos de trabalho, à identificação dos riscos previsíveis, combatendo-os na origem, anulando ou limitando os seus efeitos por forma a garantir um nível eficaz de protecção.
Além disso, foi desrespeitado o Regulamento de Segurança no trabalho de Construção Civil, aprovado pelo Decreto n.º 41820, de 11.8.1958, concretamente a previsão constante dos seus artigos 41º e 44º.
Com efeito, aí se prescreve que ‘Sempre que haja vigamento a nu ou os elementos de enchimento não tenham adquirido ainda a necessária consistência, é obrigatório o emprego de estrados e outros meios que evitem a queda de pessoas, materiais e ferramentas’ – art. 41ºrespeitando a norma seguinte a obras em telhados: ‘No trabalho em cima de telhados que ofereçam perigo pela inclinação, natureza ou estado da sua superfície, ou por efeito de condições atmosféricas, tomar-se-ão medidas especiais de segurança, tais como a utilização de guarda-corpos, plataformas de trabalho, escadas de telhador e tábuas de rojo’.

Não existia qualquer estrado, (sendo o seu emprego possível).
O local estava desprovido de tábuas de rojo.
O acidente consistiu numa queda para o piso inferior, situado a 2,5 metros de altura do local onde o sinistrado se encontrava.
A existência de estrado ou da plataforma evitaria a queda para o piso inferior. Ainda que caísse, o estrado ou as tábuas de rojo, se existentes, evitariam a queda de 2,5 metros de altura, podendo assim concluir-se – como se concluiu – que a gravidade das lesões foi causada pela inexistência dos mecanismos de segurança.

Ter-se-á ajuizado com acerto?
Serão as razões do inconformismo da apelante, adrede invocadas, susceptíveis de abalar ou contrariar o sentido da decisão?
Vamos ver.

Importa ter presente, antes de mais, a factualidade apurada.
No dia 20 de Fevereiro de 2002, o sinistrado Vítor Correia, trabalhava por conta e sob as ordens, direcção e fiscalização do 1º R. patronal, José L. Correia, na construção de uma habitação unifamiliar, em S. Miguel de Vila Boa, Sátão, procedendo, por volta das 15:00 horas, à colocação de abobadilhas de tijolo entre as vigas da laje do telhado, as quais lhe chegavam, por entre uma das aberturas das vigas, através de um outro trabalhador que se encontrava no interior da obra ao nível do 1º piso, que utilizava para o efeito uma vara em forma de cruz...
...Foi quando caiu (o sinistrado) por uma dessas aberturas para a laje do 1º piso, depois de ter segurado uma abobadilha que lhe tinha sido entregue pelo outro trabalhador...
...E caiu por uma das aberturas entre vigas, uma vez que estas não se encontravam protegidas contra quedas em altura – alíneas D) a G) e L) da Matéria de Facto assente.
A abertura pela qual o Vítor caiu tinha cerca de 40 centímetros de largura.
Imediatamente antes da queda, o sinistrado encontrava-se posicionado ao nível das vigas destinadas ao suporte do telhado da moradia/construção, estando essas vigas inclinadas e a cerca de 2,5 metros de altura do piso imediatamente inferior.
No local onde se encontrava, de pé, o sinistrado estava apoiado em duas vigas ali já colocadas, pisando com cada um dos pés uma dessas vigas, paralelas entre si, sendo que todas as vigas se encontravam fixadas e espaçadas entre si, de molde que o malogrado Vítor não dispunha de uma superfície corrida e regular que lhe permitisse calcorrear ou movimentar-se livremente.

O Vítor não dispunha de qualquer meio de protecção individual ou colectiva para a execução de trabalhos em altura, estando o local desprovido de guarda-corpos e não existiam tábuas de rojo sobre a superfície onde se movimentava, não tendo cinto de segurança.

O sinistrado e os demais trabalhadores continuavam, na tarde desse dia, os trabalhos anteriormente iniciados, executando assim um serviço expressamente ordenado pela entidade empregadora.
O 1º R. marido – que no período da tarde do dia do acidente não se encontrava na obra – sempre recomendava que todos os trabalhadores ‘fizessem cuidado’ e usassem os meios de protecção que existiam na obra, ao seu dispor.

Em consequência dessa queda, e como causa directa e necessária do acidente, o sinistrado sofre fracturas múltiplas, descritas no relatório da autópsia, que lhe provocaram a morte, tendo já chegado cadáver ao Centro de Saúde de Sátão, para onde foi transportado pelos Bombeiros Voluntários da localidade.


Isto posto e considerando:
O quadro normativo de subsunção é o identificado e acima transcrito já.
A exacta previsão consta do art. 41º do Decreto n.º 41.821, de 11 de Agosto de 1958, o Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil, publicado em cumprimento do disposto no DL. 41820, da mesma data:
‘Sempre que haja vigamento a nu ou os elementos de enchimento não tenham adquirido ainda a necessária consistência, é obrigatório o emprego de estrados e outros meios que evitem a queda de pessoas, materiais e ferramentas’.
Esse ónus impende sobre o empregador.
O empregador não satisfaz a referida injunção pela simples disponibilização dos meios.
O art. 8º do DL. 441/91, de 14 de Novembro, é peremptório:
‘O empregador é obrigado a assegurar aos trabalhadores condições de segurança...em todos os aspectos relacionados com o trabalho’.
Na implementação dessas condições, como a seguir se prescreve na mesma norma, deve o empregador aplicar as medidas necessárias, tendo em conta os enumerados princípios de prevenção, nomeadamente procedendo à identificação dos riscos previsíveis, combatendo-os na origem, anulando-os ou limitando os seus efeitos, por forma a garantir um nível eficaz de protecção.

(No caso, o risco da actividade em execução era óbvio e a medida de prevenção não tinha sequer que ser inventada, pois era bastante a prevista no falado art. 41º do Regulamento de Segurança na Construção Civil).

Esta obrigação não foi, pois, satisfeita pelo empregador.

Quando o acidente tiver sido provocado pela entidade empregadora...ou resultar da falta de observância das regras sobre segurança no trabalho, a reparação implicará um agravamento das prestações, como preceitua ora o art. 18º/1 da NLAT, a Lei n.º 100/97, já acima citada.
Esta previsão consubstancia um regime não coincidente com o que constava da Lei n.º 2127, onde a sua Base XVII era complementada com o art. 54º do respectivo Regulamento, o Dec. n.º 360/71, que estabelecia uma presunção de culpa contra a Entidade Patronal nos casos em que o acidente fosse devido à inobservância das regras de segurança.

O entendimento jurisprudencial da problemática relativa à culpa do empregador e ao nexo causal entre a sua conduta e o evento, em decisões já produzidas sobre a nova previsão, não tem sido uniforme.
Ante a eliminação daquela presunção legal, cremos ora que, prefigurada a hipótese de o acidente estar directamente relacionado com a inobservância de regras injuntivas atinentes à segurança no trabalho – não sendo caso de responsabilidade objectiva – não se poderá prescindir de uma imputação culposa ao empregador, pelo que, invocado como fundamento do pedido o quadro normativo constante da 2ª parte do n.º1 do art. 18º da NLAT, sempre terá de provar-se a violação culposa dessas identificadas regras e o nexo de causalidade entre o acidente e a dita violação.

E, quanto à culpa – enquanto considerada como uma omissão censurável de um dever de diligência, exigível a qualquer cidadão ou entidade de mediana prudência – não oferecerá dúvida que nela se constituiu a conduta omissiva do empregador: o sinistrado executava, em continuação, uma actividade expressamente determinada pelo R. patronal, que só da parte da tarde desse dia não tinha estado ainda na obra (sendo logicamente suposto que o estivera antes, ao menos da parte da manhã, ou, no mínimo, aquando da determinação e início desse serviço) e que, quanto à obrigação de providenciar pela aplicação das necessárias medidas de segurança (face ao risco do serviço sobre vigamentos a nu, que não podia ignorar, enquanto industrial da construção civil), se tenha limitado (...) a recomendar a todos os seus trabalhadores que ‘fizessem cuidado’ e usassem os meios de protecção que existiam ao seu dispor na obra’...
...Sendo certo e sabido que o sinistrado não dispunha, como já se referiu, de qualquer meio de protecção individual ou colectiva, nem de uma qualquer superfície corrida e regular que lhe permitisse movimentar-se livremente sobre as vigas, fixadas e espaçadas entre si, estando o local desprovido de tábuas de rojo, guarda-corpos ou outros dispositivos afins.

Cremos ser meridianamente claro e, por isso, facilmente compreensível e aceitável, que o R. patronal, ante as descritas circunstâncias, agiu com manifesta negligência.

À mesma conclusão afirmativa chegamos no que tange ao falado nexo de causalidade.
Como é sustentado pacificamente em tantos Arestos desta Secção – entendimento cuja fundamentação reiteramos, seguindo de perto a linha expositiva constante, entre outros, dos Acórdãos tirados nos recursos n.ºs 184/04 e 1940/04, das Sessões de 17/6 e de 30/9, do ano em curso, respectivamente), a lei consagra, (art. 563º do Cód. Civil), no que tange à obrigação de indemnização, a teoria da causalidade adequada, na sua formulação negativa.
Nos seus termos – e servindo-nos das palavras de A. Varela, in ‘Das Obrigações em Geral’, 1970, pg. 659 – apenas não existirá causalidade adequada se o facto, de todo em todo, nada tiver a ver com o dano, dentro de juízos de previsibilidade e segundo os critérios da experiência comum.
Deste enunciado se retira, como sua consequência lógica, que não basta que, no caso concreto, o facto tenha sido condição do dano: é necessário que, em geral, em abstracto, seja uma causa adequada do dano.
Como contributo para uma melhor compreensão dos contornos do princípio, nesta perspectiva, relembra-se a reflexão do Cons. Oliveira Matos (‘Código da Estrada’, 3ª Edição, pg. 431 e demais autores aí citados): ...’o dano não pode ser considerado em sentido jurídico como consequência do facto em questão quando este, dada a sua natureza geral, fosse totalmente indiferente para o nascimento de tal dano e só se tenha tornado condição dele em virtude de outras circunstâncias extraordinárias, ou seja, quando era inadequado para produzir o dano’...devendo apelar-se ao senso prático, às realidades do quotidiano, a juízos de probabilidade, para se concluir pela dita indiferença ou não para a produção do evento.
À luz deste enquadramento, e ponderada a factualidade adrede assente, que se aviva – concretamente que o sinistrado caiu por uma das aberturas entre vigas, uma vez (porque) estas não se encontravam protegidas contra quedas em altura; que no local onde este se encontrava, de pé, ao nível das vigas destinadas ao suporte do telhado da construção, inexistia qualquer, estrado, plataforma ou superfície corrida e regular que pudesse calcorrear ou por onde pudesse circular em segurança, ou outro qualquer dispositivo de protecção, tendo a vítima caído por entre o espaço livre criado pelo intervalo das duas vigas que pisava – é absolutamente lícito concluir, dentro de juízos de previsibilidade e recorrendo aos critérios da experiência comum, que, se existisse sobre as vigas onde a vítima trabalhava um estrado ou uma qualquer outra plataforma ou protecção sobre a qual executasse o seu serviço e que o detivesse em caso de desequilíbrio ou queda, o dano fatal não teria ocorrido.
Em suma:
A falta dos dispositivos de segurança que o empregador estava obrigado a empregar, foi, no caso, a causa adequada do sinistro e, consequentemente, dos danos dele emergentes.

Concluímos, pois, que acertadamente se ajuizou ao decidir no sentido alcançado.

2.4 –
Resta-nos abordar e solucionar a questão relativa à condenação da co-R. mulher.
Alegou-se para o efeito que a R. mulher, Maria da Conceição Ferreira Lopes, não era entidade patronal do sinistrado, tendo-se provado sê-lo apenas e só o R. José Lopes Correia.
A recorrente tem razão.
(Embora, anote-se – face ao teor da correspondente alegação, donde não nos pareceu que se tivessem retirado as devidas ilações e pretendidas consequências, como se presume... – o facto de não ser tida como entidade patronal não signifique necessariamente que não pudesse ser co-responsabilizada pela reparação consequente ao sinistro).
A apelante interveio nos Autos, na fase conciliatória/tentativa de conciliação, por expressa determinação do Ministério Público – fls. 73 e 81-83.
Consignou-se aí, realmente, que o sinistrado trabalhava por conta e sob a autoridade de José Lopes Correia e mulher, Maria da Conceição Ferreira Correia.
Alegou-se isso mesmo, na P.I., apenas e sem mais, (seguramente na senda da menção constante do Auto de não conciliação).
Na contestação, impugnou-se desde logo tal asserção, contrapondo que a R. mulher é doméstica e nunca desenvolveu quaisquer trabalhos na construção civil e precisando que a obra em causa foi ajustada somente pelo R. marido.
Contemplada a controvérsia na Base Instrutória, perguntava-se, no item 1º, se à data do acidente o sinistrado trabalhava sob as ordens, direcção e fiscalização da 1ª R., Maria da Conceição F. Correia, tendo sido negativa a respectiva resposta – cfr. fls. 289 e 306.
Na decisão em crise considerou-se, não obstante, que deveria prevalecer o consignado no Auto de tentativa de conciliação, onde se disse que ambos os RR. (marido e mulher) aceitaram que o acidente ocorreu quando o sinistrado desempenhava as suas funções numa obra ajustada pelos declarantes.
Isto porque devem ter-se por assentes os factos em que tenha havido acordo na tentativa de conciliação, de acordo com o disposto no art. 131º/1, c), do C.P.T.
Além disso – rematou-se em conclusão – a dívida emerge de acto praticado no exercício de actividade industrial do primeiro R., pelo que responsabiliza ambos os cônjuges, conforme previsto no art. 1691º/1, d), do Cód. Civil.

Ora, salvo o devido respeito, não nos parece que assim deva ser.
Por um lado, sendo certo que, na elaboração do despacho saneador, se devem considerar assentes os factos sobre que tenha havido acordo na tentativa de conciliação e nos articulados, – como decorre daquela citada norma – não é menos certo que os factos relevantes serão apenas os que contendam com as questões sobre que expressamente de tenha alcançado acordo, a consignar no Auto nos termos do art. 112º/1 do C.P.T., concretamente as relativas à existência e caracterização do acidente, ao nexo causal entre a lesão e o acidente, à retribuição do sinistrado, natureza e grau da incapacidade atribuída e à entidade responsável, esta última entendida por contraposição entre entidades patronais autónomas (que não marido/mulher) ou entre empregador e entidade seguradora.

Por outro lado – e ante a resposta negativa ao item 1º, como se disse – apenas poderia vir a responsabilizar-se a co-R. mulher no âmbito da comunicabilidade da dívida...sendo da responsabilidade de ambos os cônjuges apenas as dívidas contraídas por qualquer um deles no exercício do comércio (que não é a actividade do R. marido, industrial da construção civil...) – previsão da alínea d) do invocado art. 1691º/1 do Cód. Civil.
Ora, não se podendo concluir que a dívida tenha sido contraída por ambos os cônjuges, nem que o haja sido em proveito comum do casal ou para ocorrer aos encargos normais da vida familiar ( situações previstas nas alíneas a) a c) da mesma norma) – nestas hipóteses porque não foi invocado no petitório tal destino nem sequer alegado qualquer facto em tal sentido – não é lícito, por essa via, determinar-se a condenação da R. mulher.

2.5 –
Por fim uma breve referência à invocada ‘contradição de julgados’.
Como é evidente – ressalvado o respeito devido – o conteúdo da epígrafe não corresponde à figura jurídica em causa.
Há contradição de julgados quando, com bem diz a A./recorrida na sua contra-alegação, se confrontam duas decisões contraditórias, transitadas, que tenham sido proferidas contra o mesmo sujeito processual, sobre a mesma pretensão e com base nos mesmos factos.
A recorrente pretende significar que a decisão sob censura perfilhou entendimento contrário ao colhido num Aresto desta Relação (que identifica).
Apenas isso, com se percebe.
Sempre se dirá, não obstante, que o contexto dos Autos é bem diverso do considerado no Acórdão referido.
Com efeito, no caso então versado, apenas houvera discrepância (e por isso a única razão por que as partes se não conciliaram) quanto à retribuição e ao grau (que não a natureza) da incapacidade atribuída, tendo aí o A. repudiado somente o grau de desvalorização.
Veio o mesmo, depois, na P.I. pretextar, num cenário diverso do reflectido no Auto de tentativa de conciliação, uma questão que não fora equacionada, de todo nova, usando como causa de pedir uma actuação culposa da Entidade Patronal na eclosão do acidente, quando antes aceitara a factualidade conducente à conclusão da existência e caracterização do acidente nos moldes pacificamente extractados.
No contexto dos presentes Autos, como é óbvio, as coisas são radicalmente diferentes: a A. peticionou, desde logo, directamente dos RR., uma pensão agravada, no pressuposto da actuação culposa destes, por falta de observância das regras de segurança na execução da obra onde a vítima se sinistrara.
A P.I. limita-se a desenvolver o pedido, a coberto da latitude consentida pelo art. 18º da NLAT, sabido que a reparação se estende aos reclamados danos morais, em tais situações.

É tempo de terminar.

___

III - DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos, delibera-se:
1- Conceder parcial provimento ao recurso, revogando a sentença apenas na parte em que condenou a co-R. mulher, Maria da Conceição Ferreira Correia, que se absolve do pedido;
2- Confirmar, no mais, o julgado.
Custas pelo R.
***
COIMBRA,