Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
38/05.1TBPPS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HÉLDER ROQUE
Descritores: ERRO NA DECLARAÇÃO
ERRO SOBRE O OBJECTO DO NEGÓCIO
REDUÇÃO
PREÇO
Data do Acordão: 09/30/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: PAMPILHOSA DA SERRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 252º N.º 2; 888º, Nº 1, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. No erro na declaração, existe uma divergência entre o que a pessoa quer e o que declara, enquanto que, no erro-vício, a pessoa declara o que quer, mas não teria aceite o que, realmente, quis e declarou querer, se não fosse o erro que sofreu.

2. Implicando a redução da área do terreno vendido uma muito considerável diminuição do valor do prédio, desde logo, insusceptível de poder vir a ser utilizado para a finalidade da construção proposta pelos autores, cuja essencialidade para estes os vendedores não podiam, nem deviam ignorar, trata-se de um erro que incidiu sobre o objecto e não sobre os motivos determinantes da vontade, relacionado com a base do negócio, e, muito menos, de um erro sobre a declaração ou erro-obstáculo.

3. Na venda de coisas «ad corpus», se a quantidade efectiva diferir da declarada, em mais de um vigésimo desta, o preço sofrerá redução proporcional.

Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

            A......e esposa, B...., residentes em......., propuseram a presente acção, sob a forma de processo ordinário, contra C.... e esposa, D...., residentes na ....., todos na vila da Pampilhosa da Serra, pedindo que, na sua procedência, os réus sejam condenados a ver reduzido o preço de um negócio que celebraram com os autores, relativamente à compra e venda de um terreno para construção, passando tal preço para €12 071,43, a restituírem aos autores a quantia de €2 928,58, no pagamento das despesas que efectuaram com o levantamento topográfico e com os honorários de advogado, relativos à presente acção, despesas estas não inferiores a €5 000,00, e, por fim, na sua condenação em danos morais, que quantificam em €2500,00, resultantes da defraudação das expectativas dos autores no que respeita à rápida construção de uma moradia, o que lhes causou angústia e irritação, para além de juros de mora, até ao pagamento.

            Alegam, para o efeito, que compraram aos réus um terreno para aí construírem uma moradia, com logradouro, no pressuposto de que esse terreno tinha 420 m2, consoante foi referido pelo réu marido, área esta necessária para a construção da dita casa, que foi garantida pelo réu marido, mas que, afinal, não possuía, pois que a área real era apenas de 338 m2, sendo certo que a redução pedida se baseia no preço de €35,00 euros por m2.

            Na contestação, os réus alegam, por seu turno, na parte que ainda interessa considerar, a caducidade do direito invocado pelos autores, relativamente à redução do preço, porquanto dispunham do prazo de um ano para o seu exercício, o que não aconteceu, sendo certo que tiveram conhecimento da desconformidade entre a área declarada e a real, em data anterior a 10 de Março de 2003, enquanto que a acção apenas foi instaurada, em 10 de Março de 2005.

            Por outro lado, dizem que não houve erro porque autores e réus negociaram aquele concreto terreno, que estava à vista de uns e outros, e que, a haver erro, apenas se trataria de mero erro rectificável, sem outras consequências, mas, a ter existido, seria caso de aplicação do disposto no artigo 888º, do Código Civil, tendo já caducado o direito à diferença do preço.

            Quanto às despesas, alegam que não são devidas, porque não causadas pelo comportamento dos réus, não havendo lugar à indemnização por danos morais.

            Na réplica, os autores reafirmam o alegado na petição inicial, esclarecendo, quanto à caducidade, que só tiveram conhecimento da área real do prédio, em Agosto de 2004, quando souberam o resultado do levantamento topográfico.

            Aproveitaram para proceder à alteração do pedido, alegando que os réus tinham um terreno contíguo aquele que lhes venderam, podendo delimitar o terreno dos autores, por forma a que o mesmo ficasse com 420 m2, mas recusaram-se a fazê-lo, tendo cumprido, defeituosamente, a obrigação, pelo que, mesmo que não se prove o erro-vício em que incorreram e, por via dele, a redução do preço, sempre teriam esse direito, em virtude do cumprimento defeituoso dos réus.

            Na tréplica, os réus afirmam que a situação de facto relatada para sustentar a ampliação do pedido não existiu.

            A sentença julgou improcedente a excepção da caducidade do direito invocada pelos réus, e a acção procedente, decretando a redução do negócio de compra e venda, acima identificado na matéria de facto, ficando o preço desse negócio reduzido a €12071,43 (doze mil e setenta e um euros e quarenta e três cêntimos), condenou os réus a pagarem aos autores a quantia de €2928,57 (dois mil novecentos e vinte e oito euros e cinquenta e sete cêntimos), acrescida de juros de mora, desde a citação até ao pagamento, à taxa acima mencionada, sem prejuízo de outra que venha a ser fixada para os juros legais, condenou os réus a pagarem aos autores a quantia que se liquidar em execução de sentença, até ao montante de €5000,00 (cinco mil euros), relativamente aos factos provados nos quesitos 13, 14, 15 e 16, a que acrescem juros legais, após a liquidação, e condenou os réus a pagarem, a cada um dos autores, a quantia de €1250,00 euros (mil duzentos e cinquenta euros), a título de danos não patrimoniais, a que acrescem juros legais, a partir da sentença.

            Desta sentença, os réus interpuseram recurso de apelação, terminando as alegações, com o pedido da sua revogação e substituição por outra que julgue, completamente, improcedente a pretensão dos autores, por não provada, formulando as seguintes conclusões:

            1ª – O Tribunal a quo deu como provada, julgando incorrectamente, a matéria dos artigos 1°, 2o, 5º e 11o da douta base instrutória, que se dão por reproduzidos, que, mais correctamente, mereciam resposta de não provado, atenta a falta de meios probatórios bastantes (documentais, testemunhais ou outros) que suportassem julgamento diferente.

            2ª - De modo análogo, o Tribunal a quo, ao dar como provada, julgando correctamente, a matéria dos artigos 22°, da douta base instrutória, que se dá por reproduzida, nada mais deveria ter acrescentado, contrariamente ao que fez.

            3ª - A decisão do tribunal de 1a instância quanto à matéria de facto carece de fundamentação probatória suficiente para dar como adquiridos factos, que na dúvida deveriam ter sido considerados como não provados (artigos 1o, 2o, 5o e 11° da douta base Instrutória), e no caso em que correctamente deu como provada matéria alegada pelos réus, deveria ter-se abstido de outras considerações, que não se mostravam quesitadas (artigo 22º da douta base instrutória), padecendo de vício, tais juízos da matéria de facto, levados a efeito e acima criticados, que cumpre ser reparado.

            4ª - Da reparação do julgamento da matéria de facto, decorre um sequente novo enquadramento jurídico da questão, deixando o erro de ser relevante em termos de propiciar a invalidação, mesmo que parcial, ou reduzida, do negócio, sabido que nem todo o erro é relevante para tais efeitos.

            5ª - No caso subjudice nenhuma indicação se fez no negócio, formalizado pela escritura junta aos autos, acerca da medida da coisa vendida, pelo que afastada fica a hipótese de desconformidade desta em relação à realidade, afastando assim também a aplicação do artigo 888°, n°1 e 2, do C. Civil: "Coisas determinadas. Preço não fixado por unidade".

            6ª - Mas, mesmo que, por mera hipótese académica, houvesse que aplicar tal normativo, o direito à diferença do preço encontra-se, ou encontrar-se-ia, caducado, pelo decurso de prazo superior a um ano, após a entrega da coisa, que ocorreu com a celebração da escritura em 23/09/2003, tendo a propositura da acção unicamente acontecido em 10/03/2005 - art.° 890°, n° 1, do CC.

            7ª - O que houve no caso vertente é uma desconformidade - aliás, comum, nas zonas de matriz não cadastral, como é o caso - entre a área constante da matriz (e necessariamente, depois, do próprio registo, que também necessariamente teve de ser lavrado de harmonia com aquela matriz - artigo 28°, n° 2, do Cód. Reg. Predial), e a área real do prédio, não havendo, porquanto inexistiu, qualquer desconformidade entre o que autores e réus pretenderam negociar.

            8ª - Pelo que mesmo que se configurasse como erro, seria na modalidade de erro-obstáculo, ou erro na declaração, que se revela no próprio contexto da declaração ou das circunstâncias em que a declaração é feita, só podendo dar direito à rectificação - um declaratário normal, colocado na posição de contraparte, perante o próprio contexto da declaração negocial e das circunstâncias em que foi feita, concluiria (nessa hipótese) que a área do prédio negociado não seria a que constaria da matriz e da descrição, mas antes a que resulta da realidade do prédio, porque foi este que foi negociado.

            9ª - Por último, nos termos do artigo 236° do C. Civil, "sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida”, o que foi ajustado entre as partes foi a compra e venda daquele concreto terreno ou prédio, e independentemente da sua exacta área.

            10ª - O julgador não pode decidir contra as regras do ónus da prova por puras convicções pessoais.

            11ª - Pelo acima exposto, a sentença recorrida violou frontalmente, ou defraudou, designadamente as seguintes disposições legais: artigos 8o, n°2, 236°, 247°, 251°, 249°, 349°, 888°, nºs 1 e 2, e 890°, n°1, do Código Civil.

            Nas suas contra-alegações, os autores defendem que o presente recurso deve ser julgado improcedente e, em consequência, manter-se, integralmente, a sentença proferida, em primeira instância.

                                                     *

Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.

As questões a decidir, na presente apelação, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do Código de Processo Civil (CPC), são as seguintes:
I – A questão da alteração da decisão sobre a matéria de facto.
II – A questão da falta ou vício de vontade das partes.
III – A questão da caducidade do direito à diferença do preço.

           I. DA ALTERAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO

Entendem os réus que o Tribunal «a quo» julgou, incorrectamente, a matéria dos pontos 1°, 2o, 5º e 11º, que deveriam ter sido declarados com “não provados”, e bem assim como a matéria do ponto nº 22, também da base instrutória, que deveria ter sido dada como “provada”, sem quaisquer aditamentos.

Assim, resulta da audição da prova objecto de gravação, que a testemunha E...., autor material do levantamento topográfico, disse que “existem dois muros no terreno, um do lado dos réus, outro do lado da JAE, enquanto que do lado do Centro de Saúde é a crista do terreno que o delimita, e do lado da estrada o lancil do passeio” e que “mediu até à crista do talude, o qual está incluído no terreno”.

A testemunha F.... , construtor civil, disse que “era para fazer a construção da obra, que lhe tinha sido adjudicada pelo autor, que tinha o projecto aprovado, mas este chegou à conclusão que o projecto não cabia no terreno, por causa dos afastamentos legais, tendo sido a Câmara que deu pela impossibilidade de o projecto caber no terreno porque tinha que ter determinados afastamentos”.

A testemunha G.... disse que “esteve para comprar o terreno” e que “sempre conheceu assim o terreno”.

A testemunha H... disse que “trabalha no escritório que tratou da legalização dos documentos para a escritura” e que “o alinhamento, do lado da Santa Casa da Misericórdia, é na sequência do muro já existente”.

Face ao registo probatório referente aos depoimentos das testemunhas, cujos extractos mais significativos se reproduziram, não se afigura justificada a pretendida alteração, porquanto as mesmas não demonstraram conhecimentos capazes de alterar o sentido das respectivas respostas, desde logo, porque, com excepção do ponto nº 22, não se pronunciaram sobre a factualidade correspondente.

Quanto ao ponto nº 22, onde se perguntava se “aliás, autores e réus negociaram um concreto lote de terreno destinado a construção situado a sul da residência dos réus que se encontra e encontrava aquando do acordo, demarcado a norte e sul com muros de alvenaria, a poente com estrada e a nascente com o talude do prédio da Santa Casa da Misericórdia da Pampilhosa da Serra, onde se encontra erigido o Centro de Saúde local, e parte do talude, esse, que ainda pertence ao prédio dos autores?”, o Tribunal «a quo» respondeu, afirmativamente, à respectiva materialidade, tendo-lhe acrescentado “estando os autores convencidos de que o terreno tinha 420 m2”, aditamento que os réus rejeitam.

Efectivamente, esta explicitação resulta da versão conjugada dos aludidos depoimentos, sendo uma decorrência natural das respostas aos pontos nºs 1 e 2.

Os analisados depoimentos, conjuntamente com o teor dos documentos existentes nos autos, designadamente, a folhas 10 a 17 e 124, o relatório pericial de folhas 94 a 98 e as regras de experiência do que é normal acontecer não consentiriam outro resultado, não tendo, por isso, o Tribunal «a quo» decidido contra as regras do ónus da prova, baseado em meras convicções pessoais.

Como assim, este Tribunal da Relação entende que se devem considerar como demonstrados os seguintes factos, a que se aditam dois novos, sob as alíneas D) e E):

            Por escritura pública de compra e venda, lavrada no Cartório Notarial da Pampilhosa da Serra, em 23 de Setembro de 2003, os ora réus declararam vender aos autores, pelo preço de €15.000,00 (quinze mil euros) que destes receberam, o prédio urbano composto de terreno destinado a construção urbana, sito na «Quinta de São Silvestre», freguesia e concelho da Pampilhosa da Serra, inscrito na respectiva matriz, sob o artigo 3.031, descrito na Conservatória do Registo Predial da Pampilhosa da Serra, sob o número 4.970 – A).

            Tal prédio urbano encontrava-se naquela data inscrito no registo, a favor dos réus, com a seguinte descrição: Prédio Urbano - Quinta de São Silvestre - Terreno que se destina a construção urbana – 420 m2 – Norte: J. G. M. F. - Sul: Junta Autónoma de Estradas; Nascente: Centro de Saúde de Pampilhosa da Serra; Poente: via pública – B).

            O terreno descrito, nas alíneas A) e B), foi vendido pelos réus aos autores, depois de os primeiros o terem anunciado e proposto em venda com a indicação de que teria a área de, aproximadamente, 420 m2 e, isso mesmo, terem feito constar em documento que, a 1 de Setembro de 2003, o ora réu marido epigrafou de «declaração de venda» e outorgou a favor dos autores e lhes entregou – C).

            O levantamento topográfico do terreno mandado elaborar pelos autores, a que se reporta a resposta ao ponto nº 9, foi realizado a 25 de Agosto de 2004 – Documento de folhas 16 e acordo das partes constante dos artigos 12º da petição inicial e 7º da tréplica – D).

            A presente acção deu entrada em juízo, a 10 de Março de 2005 – E).

            Os autores adquiriram o referido prédio urbano para nele construírem uma moradia, uma vez que necessitavam de um prédio com área nunca inferior a 400 m2, para nele implantarem uma casa com o respectivo logradouro – 1º.

            Os autores sempre tiveram a convicção, e fizeram depender desse facto a referida aquisição, de que o terreno dos réus teria a área noticiada por aqueles de 420 m2 – 2º.

            Área que, atendendo aos preços praticados na região para prédios semelhantes, se apresentava como, economicamente, adequada ao valor de €15.000,00 (quinze mil euros), que autores e réus tinham ajustado para ela – 3º.

            O que, no momento da compra, tornava credível para os autores e para o público, em geral, que o referido prédio tivesse a área de 420 m2, conforme o registo – 5º.

            Os autores mandaram elaborar, a suas próprias expensas, um levantamento topográfico do terreno que adquiriram aos réus, tendo sido constatado que a área real não era 420 m2, mas apenas de 338 m2 – 9º.

            No talhão de terreno que compraram aos réus, com a área e as características que, realmente, tem, os autores não poderão construir a moradia e logradouro que projectavam e era esperável que pudessem construir, podendo, no entanto, ali construir um prédio urbano com características e vantagens inferiores – 11º.

            Devido à situação de discrepância da área do prédio, acima identificado, os autores tiveram que mandar efectuar um levantamento topográfico do prédio que adquiriram aos réus – 13º.

             E efectuar despesas com todas as diligências tendentes à propositura da presente acção judicial, nomeadamente, com os honorários devidos ao mandatário e custas judiciais – 14º.

             Assim como efectuaram despesas com deslocações, quer ao escritório do seu mandatário, quer ao gabinete do topógrafo – 15º.

            Os factos dos quesitos 13, 14 e 15 originaram e originam despesas – 16º.

            Os autores sentiram angústia, por verificarem que o terreno não tinha a área que pensavam ter comprado – 17º.

            O réu marido, quando o autor lhe disse que o terreno tinha apenas cerca de 338 m2, disse-lhe que os 420 m2 estavam lá no lote – 21º.

            Os autores e réus negociaram um concreto lote de terreno destinado a construção, situado a Sul da residência dos réus, que se encontra e encontrava, aquando do acordo, demarcado a Norte e Sul, com muros de alvenaria, a Poente com estrada e a Nascente com o talude do prédio da Santa Casa da Misericórdia da Pampilhosa da Serra, onde se encontra erigido o Centro de Saúde local, e parte do talude, esse, que ainda pertence ao prédio dos autores, estando os autores convencidos de que o terreno tinha 420 m2 – 22º.

             Devendo aquela estrema nascente ser alinhada pelo muro que define a estrema nascente do prédio dos réus, conforme demarcação feita, em tempos, com o confinante – 23º.

                        II. DA FALTA OU VÍCIO DE VONTADE DAS PARTES

            Independentemente da não alteração da matéria de facto consagrada pelo Tribunal «a quo», no sentido propugnado pelos réus, afigura-se que estes, também, estendem o objecto da apelação à questão de direito, propriamente dita, em termos de controverterem a figura do eventual erro subjacente ao negócio jurídico celebrado.

            Ficou provado que o prédio que os autores se propunham comprar aos réus estava inscrito no registo, com a área de 420 m2, tendo sido vendido pelos estes aos primeiros, depois de os réus o terem anunciado e posto em venda, com a indicação de que teria a área de, aproximadamente, 420 m2 e, isso mesmo, terem feito constar em documento que, a 1 de Setembro de 2003, o ora réu marido epigrafou de «declaração de venda», outorgou a favor dos autores e lhes entregou.

            Por outro lado, os autores adquiriram o referido prédio urbano para nele construírem uma moradia, uma vez que necessitavam de um prédio, com área nunca inferior a 400 m2, para nele implantarem uma casa com o respectivo logradouro, sendo certo que sempre tiveram a convicção, e fizeram depender desse facto a referida aquisição, de que o terreno dos réus apresentava a área noticiada de 420 m2.

            Porém, veio a constatar-se, na sequência de um levantamento topográfico efectuado pelos autores, que a área real do terreno era apenas de 338 m2, sendo certo, outrossim, que o réu marido, quando o autor lhe disse que o terreno tinha, tão-só, cerca de 338 m2, reafirmou-lhe que “os 420 m2 estavam lá no lote”, área essa na qual aqueles não poderão construir a moradia e logradouro que projectavam, mas, tão-só, um prédio urbano com características e vantagens inferiores.

            Valendo o negócio jurídico, no mundo do Direito, como manifestação da autonomia privada, de acordo com a vontade dos sujeitos, esta tem que ser exteriorizada, para poder produzir os efeitos pretendidos.

Por via de regra, os dois elementos por que é constituída a declaração de vontade, isto é, o elemento externo ou a vontade declarada, e o elemento interno ou a vontade real, coincidem.

Porém, excepcionalmente, pode haver divergência entre aqueles dois elementos, por falta ou desvio de algum dos componentes em que se desdobram, o que compreende as situações de falta e dos vícios da vontade.

Quando se fala em falta de vontade ou em vícios da declaração, trata-se de uma situação em que se verificam divergências intencionais ou não intencionais entre a vontade real e a vontade declarada.

Quando a divergência não é intencional, pode apresentar-se sob a forma de erro na declaração ou erro-obstáculo, que é a figura que os réus admitem poder verificar-se.

Dispõe o artigo 247º, do Código Civil (CC), que consagra a figura do erro na declaração ou erro obstáculo que “quando, em virtude de erro, a vontade declarada não corresponda à vontade real do autor, a declaração negocial é anulável, desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro”.

No erro-obstáculo, há uma divergência inconsciente entre a vontade e a declaração, mas existe um comportamento declarativo do errante[1], que tem consciência de efectuar uma declaração negocial, nas com um conteúdo diferente do pretendido, formando-se, sem erro, certa vontade, mas declarando-se outra[2].

No caso dos vícios da vontade, que agora, também, interessa considerar, por ter sido a modalidade consagrada pela sentença, trata-se de deficiências que afectam o processo gestativo da vontade negocial, que é determinada por motivos anómalos, que a desviam do modo julgado normal e são, e que o Direito valora como ilegítimos[3].

A vontade não viciada é a vontade esclarecida e livre, mas que pode deixar de o ser quando se determina por defeituoso conhecimento de causa, como acontece no caso do erro.

O erro é, assim, um dos mais importantes tipos de vícios da vontade, abrangendo, entre outros, o erro sobre os motivos determinantes da vontade, em relação ao objecto do negócio, a que alude o artigo 251º, e o erro sobre os motivos determinantes da vontade, em relação às circunstâncias que constituem a base do negócio, a que se reporta o artigo 252º, nº 2, ambos do CC.

Dispõe o artigo 251º, do CC, que “o erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira à pessoa do declaratário ou ao objecto do negócio, torna este anulável nos termos do artigo 247º”, isto é, “desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro”.

No erro na declaração existe uma divergência entre o que a pessoa quer e o que declara, enquanto que, no erro-vício, a pessoa declara o que quer, mas não teria aceite o que, realmente, quis e declarou querer, se não fosse o erro que sofreu[4].
Regressando à factualidade que ficou demonstrada, importa reter que os autores apenas celebraram o contrato de compra e venda do aludido prédio urbano, por estarem convencidos de que este dispunha da área anunciada de 420 m2, indispensável à execução de um projecto de arquitectura, que compreendia a construção de uma moradia com logradouro, mas que se viria a revelar inviável, após a realização do respectivo levantamento topográfico.
Ora, a limitação resultante da diminuição da área real do terreno onera, sobremaneira, o prédio urbano adquirido, atendendo à destinação que os autores lhe pretendiam atribuir, com diminuição manifesta do seu valor, porquanto apresentava uma área real inferior à afirmada de 82 m2, o que constituía 19,52% da respectiva superfície total, desencadeando, por isso, um erro que bem se pode dizer que atinge os motivos determinantes da vontade, consoante decorre da previsão constante do artigo 251º, do CC.
A representação que os autores fizeram sobre a área real do prédio que se propunham comprar aos réus, reiteradamente, reafirmada por estes, foi, em absoluto, determinante para a formação da decisão de contratar, o que não teria, de todo, acontecido, se estivessem a par da referida alteração da sua superfície real.
Efectivamente, a obrigação de informar existe quando resulta das negociações a sua essencialidade para a formação da vontade negocial do declarante, como acontece, por exemplo, no caso de ele pretender condicionar a celebração do negócio a determinada afectação da coisa.
Ora, como já se referiu e resulta do quadro factual provado, os autores só celebraram o negócio, por estarem convencidos que o prédio permitiria a construção de uma moradia com logradouro, condição necessária da formação da sua vontade negocial, esclarecida e livre.
Na verdade, não tendo os réus informado os autores acerca da área real do terreno, devendo fazê-lo, e sendo convicção destes que o mesmo dispunha da superfície real anunciada, como condição necessária da formação da sua vontade negocial, o comportamento dos réus é, outrossim, causa de erro dos autores, qualificado por dolo[5].

O erro que incida sobre os motivos determinantes da vontade, quer se refira à pessoa do declaratário ou ao objecto do negócio, tem de ser sempre essencial, determinante, relevante, um erro que influencia a formação da vontade, e não um erro indiferente, por forma a que, sem ele, o declarante [errante] não teria querido o negócio, em termos absolutos, o que não acontece quando se admita estar disposto a celebrá-lo, embora em termos diferentes, afastando-se, assim, a ideia do erro, apenas, relativamente, essencial ou incidental.

O princípio da tutela da confiança do declaratário, com vista a evitar que seja traído na confiança depositada na declaração, por ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre o qual este veio a invocar o erro, obriga a que o declarante deva chamar à atenção do declaratário para essa essencialidade ou, pelo menos, a certificar-se que o declaratário se deu conta dela, pelo que se a este escapou essa essencialidade, o negócio deixa de poder ser anulado.
Efectivamente, como resulta da remissão operada pelo artigo 251º para os termos do artigo 247º, ambos do CC, não se exige, para a anulabilidade do negócio, nem a desculpabilidade do erro, o que significa que o enganado pode pedir a anulação do negócio, mesmo que o seu erro tenha sido culposo, indesculpável[6], desde que não provenha de uma extraordinária ignorância ou falta de sagacidade ou de diligência, de modo a que nele teria incorrido, dadas as circunstâncias, uma pessoa normal[7], nem o conhecimento ou sequer a recognoscibilidade deste, por parte do declaratário, mas apenas, com o fim de o proteger contra uma impugnação por erro, que este conhecesse ou não devesse ignorar [cognoscibilidade] a essencialidade para o declarante do elemento sobre que o mesmo incidiu[8], muito embora este conhecimento possa não ter suscitado ao declaratário qualquer suspeita ou dúvida acerca da correspondência entre a vontade real e a declarada[9].
Por outro lado, é manifesto, por tudo quanto se expôs, que os réus vendedores não podiam, nem deviam ignorar a essencialidade, para os autores compradores, do elemento sobre que incidiu o erro, porquanto tal implicava uma muito considerável diminuição do valor do prédio, desde logo, insusceptível de pode vir a ser utilizado para a finalidade proposta por estes.
Quer isto dizer que os réus não ignoravam a essencialidade, para os autores, da área real do prédio, reflexo da sua situação jurídica, resultante da inexistência das limitações verificadas, a que correspondia um determinado valor económico.
Está-se, por isso, perante um erro, absolutamente, essencial, causal ou determinante, que levou os autores a concluir o negócio, e não apenas nos temos em que foi celebrado[10].
De igual modo, se mostra preenchido o segundo requisito geral da relevância do erro, ou seja, a propriedade, porquanto a ignorância dos autores incidiu sobre uma circunstância que se não traduz na verificação de um elemento legal da validade do negócio jurídico[11].
Se o declaratário, sabendo que o declarante não teria querido celebrar o negócio, em termos diferentes, não aceita a vontade deste, a sua oposição é irrelevante, pois que o declarante tem assegurada a anulação do negócio ou a sua transformação, em negócio de tipo ou de conteúdo diferente, nos termos do disposto pelos artigos 292º e 293º, do CC.

Assim sendo, trata-se de um erro que incidiu sobre as qualidades do prédio, as condições factuais e jurídicas que, pela sua natureza e duração, influem no valor ou no préstimo desse bem, sendo certo que essa circunstância não deixa de se enquadrar no conceito de qualidades do objecto, de que os autores não tiveram conhecimento, mas cuja influência, quer pela sua natureza, quer pelo montante envolvido na sua desvalorização, não pode, manifestamente, ser subestimada.

O erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira ao objecto do negócio, tem em vista a identidade do objecto, as suas qualidades, incluindo as suas qualidades jurídicas, o seu valor e o conteúdo do negócio, mas não o erro sobre a evolução futura do objecto.

Trata-se, assim, de qualidades substanciais e relevantes, dotadas de potencialidade anulatória do erro verificado sobre o objecto do negócio.
Assim sendo, enquanto erro sobre as qualidades do objecto, consiste num erro sobre o objecto e não sobre os motivos determinantes da vontade, relacionado com a base do negócio[12].
Porém, ainda que assim não fosse, a aceitar-se a existência de uma situação de erro sobre a base negocial, a sanção que lhe corresponderia era a da anulabilidade e não a da resolução do contrato.
Efectivamente, sendo, no caso em apreço, o vício da vontade, anterior ou contemporâneo à formação do negócio, o sentido da remissão efectuada pelo nº 2, do artigo 252º, para o “…disposto sobre a resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias vigentes no momento em que o negócio foi concluído”, contemplado pelo artigo 437º, ambos do CC, visa, tão-só, os requisitos específicos neste último consagrados, ou seja, “desde que a exigência das obrigações assumidas afecte gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato”, mas não a resolução, propriamente dita[13].
Por seu turno, a anulabilidade pode ser requerida pelas pessoas em cujo interesse a lei a estabelece, e dentro do ano subsequente à cessação do vício que lhe serve de fundamento, como decorre do preceituado pelo artigo 287º, nº 1, do CC, encontrando-se, assim, os autores dotados de legitimidade para o efeito e, em tempo para a propositura da acção, com este fundamento, porquanto o vício ainda não cessou, nem os réus, aliás, arguiram, neste particular, a sua intempestividade.

     III. DA CADUCIDADE DO DIREITO Á REDUÇÃO DO PREÇO

            Está provado que os réus venderam aos autores, pelo preço de €15.000,00, um prédio composto de terreno destinado a construção urbana, com a superfície de 420 m2, vindo-se, porém, a constatar que a sua área real era apenas de 338 m2.

            Por este facto, os autores vêm pedir a redução do preço do negócio para a quantia de €12071,43, proporcionalmente, à área de terreno apurada no respectivo levantamento topográfico.

            Estipula o artigo 888º, nº 1, do CC, que “se na venda de coisas determinadas o preço não for estabelecido à razão de tanto por unidade, o comprador deve o preço declarado, mesmo que no contrato se indique o número, peso ou medida das coisas vendidas e a indicação não corresponda à realidade”, acrescentando o respectivo nº 2 que “se, porém, a quantidade efectiva diferir da declarada em mais de um vigésimo desta, o preço sofrerá redução ou aumento proporcional”.

            Nesta modalidade de venda de coisas determinadas, em que o preço unitário não se encontra fixado ou de venda de coisas «ad corpus», a que corresponde a hipótese em análise, as partes formaram, essencialmente, a sua vontade sobre o preço global, sendo meramente incidental a referência à quantidade, peso ou medida das coisas vendidas.

            E, se a quantidade efectiva diferir da declarada em mais de um vigésimo desta, e tal é a situação verificada, no caso concreto [420-338=82; 420:20=21; 82»21], o preço sofrerá redução proporcional[14].

            Porém, este direito dos autores à diferença do preço, por força da sua redução substancial, consagrado pelo artigo 888º, nº 2, do CC, caduca dentro do prazo de um ano, após a entrega da coisa imóvel, a menos que a diferença só se torne exigível, em momento posterior à entrega, hipótese em que o prazo só se conta a partir desse momento, nos termos do estipulado pelo artigo 890º, nº 1, do CC.

            Ora, tornando-se a diferença exigível, em momento posterior à entrega do imóvel que, por força do estipulado pelos artigos 408º, nº 1 e 879º, a), ambos do CC, coincidiu com a data da celebração da escritura pública, porquanto os autores só, posteriormente, à realização do levantamento topográfico do terreno, que ocorreu a partir 25 de Agosto de 2004, constataram que a sua área real era apenas de 338 m2, entre este último momento e a data da propositura da acção, em 10 de Março de 2005, ainda não havia decorrido o prazo de um ano, a que alude o já citado artigo 890º, nº 1, do CC.

            De todo o modo, competia aos réus o ónus da prova de que o respectivo prazo já havia sido ultrapassado, nos termos do disposto pelo artigo 343º, nº 2, do CC, o que não lograram realizar.

            Improcedem, pois, com o devido respeito, as conclusões constantes das alegações dos réus.

CONCLUSÕES:

I - No erro na declaração, existe uma divergência entre o que a pessoa quer e o que declara, enquanto que, no erro-vício, a pessoa declara o que quer, mas não teria aceite o que, realmente, quis e declarou querer, se não fosse o erro que sofreu.

II – Implicando a redução da área do terreno vendido uma muito considerável diminuição do valor do prédio, desde logo, insusceptível de poder vir a ser utilizado para a finalidade da construção proposta pelos autores, cuja essencialidade para estes os vendedores não podiam, nem deviam ignorar, trata-se de um erro que incidiu sobre o objecto e não sobre os motivos determinantes da vontade, relacionado com a base do negócio, e, muito menos, de um erro sobre a declaração ou erro-obstáculo.

III – Na venda de coisas «ad corpus», se a quantidade efectiva diferir da declarada, em mais de um vigésimo desta, o preço sofrerá redução proporcional.

                                                               *

DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar improcedente a apelação e, em consequência, em confirmar, inteiramente, a douta sentença recorrida.

                                                      *

 

Custas, a cargo dos réus-apelantes.

[1] Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, 2005, 492 e 493.
[2] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 1987, 232.
[3] Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 1966, 227 e 228; Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, 2005, 498 e 499.
[4] Antunes Varela, Família, 1980, 313.
[5] STJ, de 26-5-94, BMJ nº 437, 486.
[6] Vaz Serra, RLJ, Ano 107º, 230, 99º, 275, 112º, 268.
[7] Mário Brito, Código Civil Anotado, 1º, 299.
[8] Vaz Serra, RLJ, Ano 107º, 231.
[9] Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, 2005, 494.
[10] Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 1966, 237 e 238; Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, 2005, 507.
[11] Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 1966, 239; Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, 2005, 509.
[12] Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 1966, 250 e 251; Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, 2005, 512 a 517 e nota 711; Ferrer Correia e Almeno de Sá, Oferta Pública de Venda de Acções e Compra e Venda de Empresa, CJ, Ano XVIII, T4, 15.
[13] Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 1966, 247; Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, 2005, 514 e 515 e nota 702; Calvão da Silva, Compra e Venda de Empresas, CJ, Ano XVIII, T2, 9.
[14] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, 1997, 179 e 180; Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações (Parte Especial), Contratos, 2000, 70; STJ, de 22-1-98, CJ (STJ), Ano VI, T1, 33; RE, de 8-5-97, CJ, Ano XXII, T3, 260; RL, de 5-11-96, CJ, Ano XXI, T5, 79.