Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
245/09.8 GBACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: RECURSO
MOTIVAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CRIME DE AMEAÇA
Data do Acordão: 09/12/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ALCOBAÇA (2.º JUÍZO).
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 412º NºS 3, 4 E 6, 417º CPP E 153º CP
Sumário: 1.- O recurso da matéria de facto constitui um instrumento concebido para a correção de erros de julgamento e de procedimentos, devidamente discriminados pelas partes;
2.- O recorrente que queira impugnar a matéria de tem que dar cumprimento a um tríplice ónus, qual seja:
- Indicar, dos pontos de facto, os que considera incorretamente julgados – o que só se satisfaz com a indicação individualizada dos factos que constam da decisão, sendo inapta ao preenchimento do ónus a indicação genérica de todos os factos relativos a determinada ocorrência;
- Indicar, das provas, as que impõem decisão diversa, com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação – o que determina que se identifique qual o meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa, que decisão se impõe face a esse meio de prova e porque se impõe. Caso o meio de prova tenha sido gravado, a norma exige a indicação do início e termo da gravação e a indicação do ponto preciso da gravação onde se encontra o fundamento da impugnação (as concretas passagens a que se refere o n.º 4 do encimado art.º 412.º);
- Indicar que provas pretende que sejam renovadas, com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação.
3.- Não tendo sido questionada a matéria de facto através dos meios processuais adequados, a mesma não pode ser devidamente sindicada pelo Tribunal da Relação;
4.- No crime de ameaça, com a revisão de 1995 deixou de ser um crime de resultado passando a constituir um crime de mera ação e perigo concreto;
5.- O bem jurídico protegido é a liberdade pessoal, a tranquilidade e sossego individuais;
6.- Não se exige que tenha sido provocado, em concreto, o medo ou inquietação. Mas apenas que a ameaça seja adequada, em termos de juízo de causalidade adequada, a provocar medo ou inquietação no visado ou afetar a sua paz individual ou liberdade de determinação.
Decisão Texto Integral: I. Relatório.
1.1. O arguido A..., entretanto com os demais sinais nos autos, depois de submetido a julgamento, sob a aludida forma de processo comum singular, porquanto acusado pelo Ministério Público da prática de factos que o instituiriam como autor material, sob a forma consumada, de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos art.ºs 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, realizado o contraditório, viu-se condenado, além do mais por ora irrelevante, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de € 7,00, isto é, na multa global de € 700,00, e a que logo se fez corresponder a prisão subsidiária de 66 (sessenta e seis) dias.

1.2. Porque desavindo com o sancionamento imposto, recorre o dito arguido, extraindo da motivação através da qual minutou a discordância, esta ordem de conclusões:

1. Não foi feita prova de que o arguido tenha cometido os factos constantes da acusação, pelo que deveria ter sido absolvido.

2. O Tribunal a quo não considerou provados os factos constantes de documentos, designadamente a sua situação de desemprego, e o seu internamento hospitalar em Moçambique.

3. Não há anúncio de mal futuro se o agente diz à ofendida que lhe dava um tiro nos cornos.

4. Tal conduta não preenche o tipo objectivo do crime de ameaça agravada.

5. O mal ameaçado tem de ser futuro.

6. No caso dos autos, a ameaça proferida esgotou-se naquele momento.

7. Os factos dados como provados na sentença, conjugados com as regras da experiência comum, são insuficientes e até mesmo antagónicos para que se possa condenar o arguido pelo crime de ameaça agravada, donde a impor-se a sua absolvição, de harmonia com o principio in dúbio pro reo.

8. Acresce que a factualidade dada como provada para a determinação da medida da pena aplicada ao arguido não permitia ao Tribunal que pudesse fixar a taxa diária da pena de multa a aplicar, condenação em custas e pena subsidiária.

9. Donde não se compreender em que Factos ou provas o Tribunal a quo se sustentou para formular a sua convicção relativamente à condenação do ora recorrente.

10. O que tudo significa que a decisão recorrida padece do vício de insuficiência da matéria de facto provada, até porque o Tribunal a quo poderia socorrer-se de prova suplementar, o que não se verificou.

11. Decidindo pela forma em que o fez, a decisão recorrida preteriu ao disposto pelos art.ºs 40.º; 47.º; 70.º; 153.º e 155.º, todos do Código Penal.

Terminou pedindo que no provimento do recurso: a) seja ordenada a revogação da sentença proferida, substituindo-se por aresto que o exima da responsabilidade decretada; b), acaso assim se não entenda, seja então ordenada a anulação do julgamento realizado e sua repetição.

1.3. Acatado o estatuído pelo art.º 416.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, contra-alegou o Ministério Público, sustentando do improvimento do recurso interposto.

1.4. Proferido despacho admitindo-o, cumpridas as formalidades devidas, foram os autos remetidos a esta instância.

1.5. Aqui, no momento processual a que alude o art.º 416.º, do aludido diploma adjectivo penal, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu parecer conducente a idêntico improvimento do recurso.

1.6. Observado o subsequente art.º 417.º, n.º 2, responderam quer o recorrente, quer a recorrida B...R. Salgueiro, sustentando, respectivamente, do provimento e do improvimento da impugnação.

1.7. No exame preliminar a que se reporta o n.º 6 do mesmo inciso, consignou-se que nenhuma circunstância determinava a apreciação sumária do recurso, ou obstava ao seu conhecimento de meritis, donde que a dever o mesmo prosseguir seus termos, com a recolha dos vistos – o que sucedeu –, bem como submissão à conferência.

Urge, pois, apreciar e decidir.


*

II. Fundamentação de facto.

2.1. A sentença recorrida teve como provados os factos seguintes:

1. O arguido, no dia … de Outubro de 2009, cerca das … horas, deslocou-se a casa da mãe de B..., sua ex-esposa, sita na Rua … , área da comarca de Alcobaça, a fim de ir buscar os filhos de ambos.

2. Em tais circunstâncias de tempo e lugar, B... perguntou-lhe como pretendia resolver a situação dos veículos que ambos detinham enquanto casados.

3. Foi então que o arguido, o qual se manteve no interior do veículo automóvel, começou a cuspir para o chão dizendo que lhe dava um tiro nos cornos.

4. B... ficou com receio de que o arguido pudesse vir a cumprir aquela promessa.

5. O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, com a intenção concretizada de amedrontar B..., provocando-lhe o receio de poder vir a ser lesado na sua integridade física ou vida.

6. Sabia o arguido que tal conduta não era permitida e era punida por lei.

7. B..., após os factos descritos em 3 ficou nervosa e transtornada, tendo, por período não concretamente apurado de tempo, ficado com receio de sair à rua sozinha, passando a andar acompanhada da sua mãe.

8. B... deslocou-se à GNR de Pataias para apresentar queixa; aos serviços do Ministério Público de Alcobaça; deslocou-se ao escritório do respectivo advogado e às instalações do Tribunal Judicial de Alcobaça a fim de prestar depoimento em audiência de discussão e julgamento.

9. O arguido encontra-se emigrado em Angola há cerca de 4 anos, deslocando-se, para gozo de férias, ao nosso País.

10. É considerado pelos familiares como sendo um bom pai, uma pessoa paciente e pacata.

11. Dos autos não consta que o arguido tenha antecedentes criminais registados.

2.2. No que concerne a factos não provados, consignou-se na dita sentença, que:

Não se provou qualquer outro facto alegado na acusação ou alegado durante a discussão da causa, com pertinência para a decisão desta ou que se mostre em oposição com os dados como provados.

Nomeadamente, não se provou que B... tenha passado a viver em constante sobressalto, temor e inquietação, que não tenha conseguido dormir.

2.3. A motivação probatória inserta na aludida sentença determina que:

Para a formação da sua convicção fundamentou-se o Tribunal na análise critica e ponderada, à luz dos princípios que regem a matéria, dos meios de prova produzidos e examinados em sede de audiência de discussão e julgamento.

O arguido não compareceu em julgamento, por estar ausente do país, pelo que não se colheu a sua versão dos factos.

No que concerne especificamente à dinâmica dos factos e aos factos alegados no pedido de indemnização civil, a convicção do Tribunal formou-se com base nos depoimentos prestados por:

- B..., ex-mulher do arguido e queixosa nos autos, a qual depôs de forma emotiva e demonstrando alguma animosidade relativamente ao arguido. Apesar disso, o Tribunal não retirou credibilidade ao seu depoimento, pois que se criou a convicção de que existem algumas questões mal resolvidas decorrentes da dissolução do casamento, sem que tal tivesse levado a testemunha a faltar com a verdade, tendo apenas exagerado na descrição do temor e ansiedade provocados pela conduta do arguido.

Quanto aos factos relacionados com o pedido de indemnização civil, apesar de se ter inquirido a testemunha a esta matéria, a verdade é que não se pode valorar o seu depoimento nesta parte porquanto o mesmo assume a qualidade de depoimento de parte, já que os factos que alegou e se propôs provar não lhe são desfavoráveis, nem podem ser objecto de confissão. De todo o modo, o Tribunal permitiu a inquirição da demandante quanto a esta matéria apenas para conseguir demarcar e avaliar a credibilidade dos depoimentos das testemunhas que responderam a esta matéria.

- … , irmão da queixosa e demandante cível, que relatou ter assistido aos factos e que confirmou a matéria que se deu como provada. Este depoimento revelou-se sério e empenhado em auxiliar na descoberta da verdade material. Não obstante a distância a que se encontrava do arguido, a testemunha esclareceu que o tom de voz que aquele usou quando se dirigiu à queixosa lhe permitiu ouvir o que era dito.

Apenas se ficou na dúvida se a testemunha realmente percepcionou o arguido a cuspir para o chão, porém, atendendo à descrição que efectuou quanto ao posicionamento do veiculo automóvel conduzido pelo arguido, acabou por se conferir credibilidade ao depoimento também nesta parte.

No que aos factos alegados no pedido de indemnização civil respeita, a testemunha esclareceu que a sua irmã ficou com receio do que pudesse acontecer e que quando saía a pé passou a fazer-se acompanhar da mãe, sendo que esclareceu que a demandante passou a tomar comprimidos para dormir. Para além disso, referiu que a demandante se deslocou à Guarda Nacional Republicana de Pataias para apresentar queixa e especificou que tal deslocação, por corresponder a 20 km, importa o gasto de € 5,00 em combustível. Nesta última parte, o depoimento da testemunha não convenceu o Tribunal, porquanto é manifestamente exagerado, mesmo se considerarmos o preço actual da gasolina (€ 1,74 por litro em postos de abastecimento em auto-estrada, como é do conhecimento pessoal da julgadora).

- … , pai da demandante, o qual apesar de ter revelado alguma animosidade em relação ao arguido, tal decorre dos factos em apreço nos autos, sendo que não se aferiu, em concreto, que tal o impedisse de falar com verdade. Como tal, conferiu-se-lhe credibilidade. Apesar do que fica dito, sempre é de referir expressamente que foi perceptível um problema auditivo, mas tendo em consideração o posicionamento do veículo conduzido pelo arguido e, bem assim o tom de voz que a testemunha referiu que foi usado pelo mesmo, o Tribunal não desvalorizou o depoimento, que foi descritivo da sucessão de factos.

Tal como a testemunha anterior, relatou deslocação à Guarda Nacional Republicana de Pataias para apresentação de queixa e ainda se referiu a outras deslocações a essa força policial, aos serviços do Ministério Público, ao escritório do causídico que patrocina a demandante e ao Tribunal, circunscrevendo que tais deslocações se fizeram de carro. Todavia não circunscreveu qualquer montante concreto que tenha sido despendido pela demandante, nem qualquer montante que tenha deixado de ser auferido pela mesma.

- … , mãe da demandante cível, a qual apesar de ter revelado alguma animosidade em relação ao arguido, tal decorre dos factos em apreço nos autos, sendo que não se aferiu, em concreto, que tal a impedisse de relatar os factos com isenção. Como tal, conferiu-se-lhe credibilidade. Apesar do que fica dito, sempre é de referir expressamente que foi perceptível um problema auditivo, mas tendo em consideração o posicionamento do veículo conduzido pelo arguido, a proximidade que com que a testemunha estava em relação ao arguido e bem assim o tom de voz que a testemunha referiu que foi usado pelo mesmo, o Tribunal não desvalorizou o depoimento, que foi descritivo da sucessão de factos.

Tal como a testemunha anterior, relatou deslocação à Guarda Nacional Republicana de Pataias para apresentação de queixa e ainda se referiu a outras deslocações a essa força policial, aos serviços do Ministério Público, ao escritório do causídico que patrocina a demandante e ao Tribunal, circunscrevendo que tais deslocações se fizeram de carro. Todavia não circunscreveu qualquer montante concreto que tenha sido despendido pela demandante, nem qualquer montante que tenha deixado de ser auferido pela mesma.

As testemunhas apresentadas à matéria alegada no pedido de indemnização civil circunscreveram que a demandante é pessoa nervosa e que os factos acabaram por influenciar o seu estado de espírito, e afectar a sua liberdade de acção (muito embora não tenham concretizado durante quanto tempo tal sucedeu, sendo certo que relativizam os períodos de tempo em que o arguido não se encontra em Portugal) e bem assim que a demandante chegou a pedir à sua mãe para dormir consigo em sua casa, sendo que nesta parte, o teor dos depoimentos foi ligeiramente desconsiderado em virtude da afirmação espontânea de C... no sentido de que tal já acontecia quando demandado e demandante eram casados entre si.

De referir que as testemunhas inquiridas em sede de audiência de discussão e julgamento mantiveram contradição em alguns pormenores, relacionados com o motivo da deslocação do arguido ao local, mas tal, atenta a dilação temporal entretanto decorrida não foi apto a descredibilizar os depoimentos.

No que respeita aos factos relativos às características de personalidade do arguido, o Tribunal fundamentou-se no teor dos depoimentos prestados por C… e D..., respectivamente, mãe e tia do arguido, que mantiveram um depoimento sério e isento.

É de colocar em relevo a discrepância na descrição que é feita do temperamento do arguido, pois que os familiares da demandante o descrevem como sendo uma pessoa agressiva e os seus familiares o descrevem como sendo bastante paciente e pacato. Pese embora esta disparidade, foi bastante relevante o depoimento de ..., que acabou por especificar que o arguido se tornou uma pessoa agressiva há cerca de três anos, o que acaba por coincidir com a data da ruptura conjugal. Assim sendo, e da conjugação da prova supra, dúvidas não restam de que a relação do dissolvido casal se tornou agreste e que o arguido perdeu a calma para se dirigir à queixosa nos termos que se deram como provados e que o fez ciente do que fazia, sendo possível inferir, com recurso a regras da experiência comum e da normalidade da vida e partindo dos factos objectivos, a intenção subjectiva do arguido, na medida em que se trata de presunção natural que quem:

- profere o tipo de expressões utilizadas pelo arguido, sabe que está a criar medo e inquietação nas outras pessoas e que estas ficam afectadas na sua liberdade de acção (é presunção natural do seu proferimento) e tem vontade de praticar tal facto.

Finalmente, para a prova dos antecedentes criminais do arguido o Tribunal fundou a sua convicção com base no teor do Certificado do Registo Criminal junto aos autos a fls. 197.


*

III. Fundamentação de Direito.

3.1. O objecto de um recurso penal é definido através das conclusões que o

recorrente extrai da respectiva motivação, mas isto sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso — art.ºs 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal.

Na realidade, de harmonia com o disposto no n.º 1, daquele art.º 412.º, e conforme jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ – Acs de 13.05.1998; de 25.06.1998 e de 03.02.1999, in, respectivamente, BMJ’s 477/263; 478/242 e 477/271], o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no art.º 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito [Acórdão do Plenário das Secções do STJ, de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995].

São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar — ditos art.ºs 403.º, n.º 1 e 412.º, n.ºs 1 e 2 [A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Volume III, 2.ª edição, 2000, fls. 335: “Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões.”].

Nesta perspectiva, no caso vertente, porque não intercede fundamento para qualquer intervenção oficiosa, vistas as conclusões do recorrente, importa então aquilatar – salvo eventual prejudicialidade de alguma delas relativamente às subsequentes –, das questões seguintes:

- Se o acervo factual acolhido como provado se mostra indevidamente apreciado pelo Tribunal a quo.

- Se, concedendo embora a respectiva manutenção, nunca integraria a previsão do crime de ameaça.

- Se ocorre insuficiência da matéria de facto para determinação do valor diário da pena de multa a arbitrar.

- Se a prisão subsidiária fixada na decisão recorrida é inadequada à matéria de facto acolhida pelo Tribunal sindicado.

Vejamos de todas elas salvo, naturalmente, interferência de prejudicialidade de alguma relativamente à (s) subsequente (s).

3.2. Como se mostra consabido, em recurso, a reapreciação da prova depende do cumprimento de requisitos de forma e conhece condicionantes e limites.

No que se refere a requisitos formais, o recorrente que queira ver reapreciados determinados pontos da matéria de facto tem que dar cumprimento a um tríplice ónus, qual seja:

- Indicar, dos pontos de facto, os que considera incorrectamente julgados – o que só se satisfaz com a indicação individualizada dos factos que constam da decisão, sendo inapta ao preenchimento do ónus a indicação genérica de todos os factos relativos a determinada ocorrência;

- Indicar, das provas, as que impõem decisão diversa, com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação – o que determina que se identifique qual o meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa, que decisão se impõe face a esse meio de prova e porque se impõe. Caso o meio de prova tenha sido gravado, a norma exige a indicação do início e termo da gravação e a indicação do ponto preciso da gravação onde se encontra o fundamento da impugnação (as concretas passagens a que se refere o n.º 4 do encimado art.º 412.º);

- Indicar que provas pretende que sejam renovadas, com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação.

O que se pretende é a delimitação objectiva do recurso, com a fundamentação da pretensão e o esclarecimento dos objectivos a que o recorrente se propõe. Impõe-se-lhe o dever de tomar posição clara, nas conclusões, sobre o objecto do recurso, especificando o que, no âmbito factual, pretende ver reponderado, assim como na hipótese de renovação, especificando as provas que devem ser renovadas [alínea c) do n.º 3 do mesmo art.º 412.º].

«Esse imprescindível e indeclinável contributo do recorrente para a pedida reponderação da matéria de facto corresponde a um dever de colaboração por parte do recorrente e a sua responsabilização na demarcação da vinculação temática deste segmento da impugnação, constituindo tais formalidades factores ou meios de segurança, quer para as partes quer para o Tribunal.» [Cfr. Ac. do STJ, de 5 de Dezembro de 2007, no processo n.º 3460/07]

«O ónus conexiona-se com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.» [Cfr. Ac. do STJ, de 8 de Março de 2006, in processo n.º 185/06-3.ª]
«A delimitação precisa dos pontos de facto controvertidos constitui um elemento determinante definição do objecto do recurso em matéria de facto e para a consequente possibilidade de intervenção do tribunal de recurso.» [Cfr. Acs. do STJ, de 10 de Janeiro de 2007 e de 15 de Outubro de 2008, in, respectivamente, processos n.ºs 3518/06-3.ª 2894/08-3.ª]
Definamos, agora, quais as condições em que é permitida a alteração da matéria de facto, pelo Tribunal da Relação.

O recurso da matéria de facto vem concebido pela lei como remédio jurídico e não como instrumento de refinamento jurisprudencial [Cfr. Simas Santos e Leal Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, 7.ª edição, actualizada aumentada, 2008, pág. 105]. Dito de outro modo o recurso da matéria de facto não foi concebido como instrumento ao serviço da realização de novo julgamento, com reapreciação de toda a prova que fundamenta a decisão recorrida, como se o julgamento efectuado na primeira instância não tivesse existido. Trata-se, tão-somente, de um instrumento concebido para a correcção de erros de julgamento e de procedimentos, devidamente discriminados pelas partes [Cfr. Acs. do TC n.º 59/206, de 18 de Janeiro de 2006, no processo. 199/2005, acessível em www.tribunalconstitucional.pt, e do STJ, de 27 de Janeiro de 2009 e de 20 de Novembro de 2008, tirados respectivamente nos processos n.ºs 08P3978 e 08P3269, disponíveis em www.dgsi.pt, bem como de 17 de Maio de 2007, in CJ (Acs STJ), 2007, II, 197]. A intromissão da Relação no domínio factual cingir-se-á a uma intervenção “cirúrgica”, no sentido de delimitada, restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção, se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação.

«O tribunal superior procede então à reanálise dos meios de prova concretamente indicados (ou as questões cuja solução foi impugnada) para concluir pela verificação ou não do erro ou vício de apreciação da prova e daí pela alteração ou não da factualidade apurada (ou da solução dada a determinada questão de direito.» [Cfr. Ac. do TC. n.º 59/2006, de 18 de Janeiro de 2006, proferido no processo n.º 199/05, da 2.ª secção, publicado no DR, II.ª Série, de 13 de Abril de 2006].

Por força do princípio da livre valoração da prova, p. pelo art.º 127.º, do Código de Processo Penal, Salvo quando a lei dispuser de forma diferente, a prova é apreciada segundo as regras de experiência e livre convicção do julgador.

Regras de experiência são regras que se colhem, ao longo dos tempos, da sucessiva repetição de circunstâncias, factos e acontecimentos que se sedimentam no espírito do homem comum como juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade.

Livre convicção é um meio de descoberta da verdade, através da livre apreciação, subordinada à razão e à lógica, mas isenta de prescrições formais exteriores. Não se confunde com uma afirmação infundamentada da verdade, puramente impressionista ou emocional.

Na tarefa da valoração da prova exige-se ao julgador uma apreciação crítica e racional, fundada nas regras da experiência, nas da lógica e da ciência, sem descurar a percepção – que a imediação potencia – da personalidade do depoente.

A jurisprudência penal entende, unanimemente, que a reapreciação da prova na segunda instância, deverá limitar-se a controlar o processo da convicção decisória da primeira instância e da aplicação do princípio da livre apreciação da prova, tomando sempre como ponto de referência a motivação da decisão. Na apreciação do recurso da matéria de facto, o Tribunal de segundo grau não vai à procura de uma nova convicção, mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal recorrido tem suporte adequado naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si e, consequentemente, a Relação só pode alterar a decisão sobre a matéria de facto em casos excepcionais, de manifesto erro na apreciação da prova. O controlo da matéria de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode subverter ou aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída, dialecticamente, na base da imediação e da oralidade.

Assim, o ponto de partida para sindicar a observância do princípio da livre apreciação da prova, é a fundamentação da decisão de facto feita em primeira instância, nomeadamente os motivos de facto entendidos como «os elementos que em razão das regras de experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os meios de prova apresentados em audiência» [Cfr. Marques Ferreira, em «Jornadas de Direito Processual Penal / O novo Código de Processo Penal», 228 e ss.].

Por outro lado, reapreciação só pode determinar alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão. Os condicionamentos ou imposições a observar no caso de recurso de facto, referidos nos n.ºs 3 e 4 do art.º 412.º constituem mera regulamentação, disciplina e adaptação aos objectivos do recurso, já que a Relação, como se referiu, não fará um segundo julgamento de facto, mas tão só o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento, que tenham sido referidos no recurso e às provas que imponham (e não apenas sugiram ou permitam outra) decisão diversa indicadas pelo recorrente.

Delimitado o campo de intervenção deste Tribunal, atenhamo-nos à singularidade do caso em apreço.

Como resulta, quer da motivação, quer das suas conclusões, o recorrente não deu cumprimento ao que a lei determina, pois se precisou o facto que pretende seja considerado não provado (ao invés do decidido) [No dia 27 de Outubro de 2009, pelas 08:30 horas, dirigindo-se à queixosa, começou a cuspir para o chão dizendo que lhe dava um tiro nos cornos], já não especificou as passagens dos depoimentos que levariam a essa conclusão, com a sua concreta localização nos suportes técnicos. Ao incumprimento deste último ónus não obsta o facto de não constar da acta o início e o termo da gravação de cada depoimento, porque as especificas passagens que fundamentariam a alteração, que são aquilo que releva para a reapreciação, não coincidem, obviamente, com a globalidade dos depoimentos.

Como a norma impõe e tem sido decido, não basta ao recorrente manifestar a sua divergência quanto à convicção que o Tribunal formou. É necessário que especifique de quais concretas decisões de que discorda e porque discorda, com reporte para as especificas provas e os trechos dessas provas que imporão a decisão contrária.

Como assim, não tendo sido questionada a matéria de facto através dos meios processuais adequados, a mesma não pode ser devidamente sindicada pelo Tribunal da Relação.

Que, ademais, não descortina qualquer preterição pela 1.ª instância, do princípio do in dúbio pro reo.

Numa breve síntese, meramente exemplificativa, quanto ao alcance que se deve atribuir a este princípio, tem o STJ expendido:

- O STJ só pode sindicar a aplicação do princípio in dúbio pro reo quando da decisão recorrida resulta que o Tribunal a quo ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido. Não se verificando esta hipótese, resta a aplicação do mesmo princípio enquanto regra de apreciação da prova no âmbito do dispositivo do art. 127.º do CPP que escapa ao poder de censura do STJ, enquanto tribunal de revista [Ac. de 19 de Outubro de 2000, in processos n.ºs 2728/00-5.ª e 1552/01-5.ª];

- O princípio in dúbio pro reo, constitui um princípio probatório, segundo o qual a dúvida em relação à prova da matéria de facto, tem de ser sempre valorada favoravelmente ao arguido, traduzindo o correspectivo do princípio da culpa em direito penal, a dimensão jurídico-processual do princípio jurídico-material da culpa concreta como suporte axiológico-normativo da pena [Ac. de 28 de Junho 2001, in processo n.º 1568/01-5.ª];

- Não resultando da decisão recorrida que o Tribunal recorrido ficou na dúvida quanto aos elementos que permitiram estabelecer a culpabilidade dos recorrentes, e que nesse estado de dúvida decidiu contra os arguidos, não pode o STJ sindicar o uso feito do princípio in dúbio pro reo. (2) Com efeito, não está então em causa uma regra de direito susceptível de ser sindicada em revista, pelo que resta a aplicação do mesmo princípio enquanto regra de apreciação da prova no âmbito do dispositivo do art. 127.º do CPP que escapa ao poder de censura do STJ enquanto tribunal de revista [Ac. de 8 de Novembro de 2001, in processo n.º 1924/01-5.ª];

- (9) Se não resulta da decisão recorrida que o Tribunal recorrido ficou na dúvida quanto aos elementos que permitiram estabelecer a culpabilidade dos recorrentes, e que nesse estado de dúvida decidiu contra os arguidos, não pode o STJ sindicar o uso feito do princípio in dúbio pro reo, por não estar em causa, então, uma regra de direito susceptível de ser sindicada em revista. (…) (12) Não resultando da decisão recorrida que o Tribunal recorrido ficou na dúvida quanto aos elementos que permitiram estabelecer a culpabilidade dos recorrentes, e que nesse estado de dúvida decidiu contra os arguidos, não pode o STJ sindicar o uso feito do princípio in dúbio pro reo. (13) - Com efeito, não está então em causa uma regra de direito susceptível de ser sindicada em revista, pelo que resta a aplicação do mesmo princípio enquanto regra de apreciação da prova no âmbito do dispositivo do art.º 127.º do CPP que escapa ao poder de censura do STJ enquanto tribunal de revista [Ac. de 24 de Janeiro de 2002, in processo n.º 3036/01].

Tónica relevante, pois, a de que, dizendo respeito à matéria de facto e sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, a sua preterição deve resultar do texto da decisão da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios. Ou seja, só ocorre quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente – de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido – pela prova em que assenta a convicção. Esta possibilidade de abordagem de eventual violação do princípio será balizada pelos parâmetros de cognoscibilidade presentes numa indagação dos vícios decisórios, por um lado, com o consequente alargamento de possibilidade de incursão de exame no domínio fáctico, mas simultaneamente, como ali ocorre, operando de uma forma mitigada, restrita, que se cinge ao texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum. O que significa que, tal como ocorre na análise e exame dos vícios, quando se perspectiva indagação de eventual violação do princípio in dúbio pro reo, há que não esquecer que se está sempre perante um poder de sindicância de matéria fáctica, que é limitado, restrito, parcial, mitigado, exercido de forma indirecta.

Ora, retomando o caso concreto, não se detectando na fundamentação dúvida razoável na formulação do juízo factual, a qual manifestamente não se colocou à julgadora – nem se vê que se devesse ter colocado – resultando, antes, residir o mesmo na análise das provas produzidas e analisadas em audiência de julgamento, sem atropelos aos princípios matriciais respeitantes à prova, com respeito pelo contraditório, só resta concluir por não ter ocorrido ofensa do referido princípio.

O que sucede é que a 1.ª instância fundamentou a sua convicção com cuidado, exactamente para resolver e afastar qualquer dúvida [cfr. Ac do STJ, de 27 de Novembro de 2007, in processo n.º 07P3872], embora, naturalmente, em sentido relativamente ao qual discorda o recorrente.

3.3. Tarefa subsequentemente cometida a de aquilatarmos se o acervo factual acolhido se mostra devidamente enquadrado de direito.

Invocação do recorrente, a propósito, a de que, face a tal matéria de facto provada, não se verifica, no caso, um dos elementos do tipo objectivo de crime, a saber, a ameaça com um “mal futuro”. Com o fundamento de que o mal ameaçado terá ocorrido eventualmente aquando da prática do facto, esgotando-se no próprio acto.

Nos termos previstos no art.º 153.º, n.º 1, do Código Penal [redacção introduzida pela reforma de 1995 – Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, mantida inalterada pela revisão de 2007 – Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro], pratica o crime de ameaça “Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.”

Com a revisão de 1995 este crime deixou de ser um crime de resultado passando a constituir um crime de mera acção e perigo concreto [Cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo 1, págs. 348/349].

O bem jurídico protegido com a incriminação em causa é a liberdade pessoal, a tranquilidade e sossego individuais.

Não se exige que tenha sido provocado, em concreto, o medo ou inquietação. Mas apenas que a ameaça seja adequada, em termos de juízo de causalidade adequada, a provocar medo ou inquietação no visado ou afectar a sua paz individual ou liberdade de determinação.

Nexo de causalidade adequada que deve “ser referido ao momento em que a acção se realiza, como se a produção do resultado não se tivesse ainda verificado, isto é de um juízo ex ante. Este juízo deve ser feito segundo as regras da experiência comum aplicadas às circunstâncias concretas da situação, segundo as regras da experiência normais e as circunstâncias concretas em geral conhecidas, não se devendo porém abstrair, para a sua determinação, das circunstâncias que o agente efectivamente conhecia” [Cfr. Eduardo Correia, Direito Criminal, I vol., p. 257].

O critério da relevância da ameaça pode assim ser qualificado de objectivo-individual; objectivo no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é produzida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar qualquer pessoa; individual no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada conhecidas do agente.

Daí falar-se de um critério objectivo-individual para determinar a adequação da ameaça: objectivo: na medida em que se deve considerar adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do “homem comum”); individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada.

Constituindo assim elementos do tipo (objectivo e subjectivo) do crime de ameaça previsto e punido no apontado art.º 153.º:

a) O anúncio de que o agente pretende infligir a outrem um mal que constitua crime, tanto podendo ser pessoal (v.g integridade física) como patrimonial (v.g destruição de um objecto);

b) O mal anunciado é futuro, ou seja, não pode ser iminente;

c) A ocorrência do mal tem que estar na dependência da vontade do agente, não bastando o simples aviso ou advertência para se considerar cometido o crime de ameaça;

d) A actuação dolosa do agente que se basta com a representação e conformação com a adequação da ameaça a provocar medo ou intranquilidade no ameaçado.

No caso dos autos, vista a matéria de facto provada, não resulta que o arguido tivesse tido, sequer, efectiva oportunidade de agredir a ofendida.

Muito menos – por consequência – qualquer acto de execução ou princípio de execução, de ofensa corporal que só não tivesse produzido o resultado por circunstância alheia à vontade do arguido.

Pelo contrário, o arguido não esteve na iminência, nem teve sequer oportunidade de agredir a ofendida. Porquanto no “diálogo” mantido com aquela se manteve sempre dentro do carro, ao passo que ela estava no seu exterior.

Daí que o recorrente sem a atingir (ou procurara atingir efectivamente), se tenha limitado a cuspir para o chão, afirmando que lhe dava um tiro nos cornos.

Não se verificou, pois, qualquer situação ou recorte de vida que se aproxime, sequer, da tentativa de ofensa física. Mas sim de uma verdadeira ameaça com mal futuro (dar um tiro), não ali, mas noutra oportunidade, necessariamente no futuro, pois que era essa a solução que o recorrente antevia para resolução da questão que a ofendida lhe colocava: do destino dos carros comuns do casal.

Naquele contexto, em termos de juízo de causalidade adequada, o arguido, não querendo agredir a ofendida, pois que o teria logrado se esse fosse o seu real intuito, deixou a resposta à questão colocada pela ofendida: dar-lhe um tiro, afirmação que, nas circunstâncias, apenas se podia reportar a momento ulterior.

Ameaça com foros de seriedade, pois que acompanhada de cuspidelas para o chão.

Conclusão, consequentemente, a de que não assiste também qualquer razão ao recorrente, neste ponto.

3.4. Pomo seguinte de discórdia do recorrente, o que contende com uma pretensa insuficiência da matéria de facto para determinação do valor diário da pena de multa que lhe foi arbitrada pela decisão recorrida.

No intuito de comprovar a emergência do vício aludido no art.º 410.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal, pretexta o recorrente que o Tribunal a quo não procedeu – como mister – à realização de diligências tendentes a recolher elementos que coadjuvassem à fundamentação do montante diário da pena de multa cujo pagamento se vê constrangido a fazer.

Mostra-se patente o infundado desta alegação.

Uma das marcas ideológicas previstas no actual diploma adjectivo penal é o de prever a possibilidade de uma césure na audiência de julgamento. Com efeito, ao passo que no seu art.º 369.º, n.º 1, prevê os casos nos quais a determinação da medida da sanção é feita somente com base na prova produzida no decurso da audiência, no registo criminal do arguido, no relatório da perícia sobre a sua personalidade e no relatório social, já no seu n.º 2 possibilita, para o mesmo efeito, a produção de prova suplementar, cuja efectivação se rege de acordo com o seguinte art.º 371.º.

Prova cuja realização, contudo, apenas pode ser determinada pelo Tribunal (sem prejuízo, obviamente, de os sujeitos processuais intervenientes impugnarem a reabertura ou as provas nela produzidas), excepcionalmente, e vinculado a um critério da sua necessidade.

No caso presente, no decurso da inquirição das testemunhas de defesa C...e Ema, respectivamente mãe e tia do arguido, a M.ma Juiz a quo tentou indagar da situação pessoal, mormente económica do recorrente; fê-lo, porém, sem ganho de causa, uma vez que ambas disseram desconhecer quais os seus rendimentos e encargos. Ademais apenas a segunda mencionou que à data o mesmo estaria desempregado. Ainda disseram que o arguido se encontra emigrado em Moçambique.

Nenhum elemento probatório juntou o arguido conducente a comprovar a sua situação económica actual.

À sua míngua, e perante o testemunho das duas testemunhas indicadas, não se descortina quais as diligências concretas que incumbia ao Tribunal ordenar.

Seja, pois, a conclusão de que nenhuma censura cabe fazer, não sendo caso de reabertura da audiência, como pretendido.

3.5. Uma última e singela referência à menção avançada pelo recorrente no sentido em que a prisão subsidiária fixada na decisão recorrida é inadequada à matéria de facto acolhida pelo Tribunal sindicado.

A decisão do tribunal a quo acobertou-se no regime instituído pelo art.º 49.º, n.º 1, do Código Penal, em cujos termos, Se a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços, ainda que o crime não fosse punível com prisão, não se aplicando, para o efeito, o limite mínimo dos dias de prisão constante do n.º 1 do artigo 41.º

Deste regime sobressai, consequentemente, tratar-se de uma correspondência meramente aritmética fixada entre os dias de multa e a prisão subsidiária. Cálculo que a decisão recorrida observou adequadamente, e sem reparo assim capaz de lhe ser feito.


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IV – Decisão.

Perante todo o exposto, decide-se, consequentemente, negar provimento ao recurso interposto.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 4 UCs


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Coimbra, 12 de Setembro de 2012