Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
637/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. SERRA BAPTISTA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Data do Acordão: 04/27/2004
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: TOMAR
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Legislação Nacional: ART. 713.º N.º 6 DO C.P.C.
Sumário:

1. A lei sanciona hoje, ao lado da diligência dolosa, a lide temerária, ou seja, a baseada na negligência grave.
2. Havendo que ter em conta que o acidente de viação se processa, em regra, em fracções de segundo, de forma usualmente bem rápida e necessariamente bem dinâmica, o que pode tolher a capacidade de apreensão dos seus intervenientes, quanto á exacta forma como o mesmo na realidade se verificou, poderá ainda não ser estranha à errada forma da sua compreensão a paixão e emoção que normalmente envolve os respectivos condutores.
3. Pelo que poderá nem sequer ter agido com negligência grave o A. condutor que demanda o R. imputando-lhe a responsabilidade exclusiva do sinistro, tendo ficado antes provados factos contrários à versão que deste deu.
4. Não devendo, assim, ser o mesmo condenado como litigante de má fé, sanção que nem sequer pelo R. foi pedida.
Decisão Texto Integral:
Apelação nº 637/04

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


BB veio intentar acção com processo sumário contra CC., pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de 686.521$00, acrescida de juros vencidos.
Alega, para tanto, e em suma:
No dia 28/3/98, cerca da 1H00, nas condições de lugar e modo que melhor descreve, ocorreu um acidente de viação entre o veículo automóvel, de matrícula XD, por si conduzido e sua pertença e o veículo automóvel, de matrícula AT, conduzido por DD, pertencente a EE, segurado da Ré.
O acidente ocorreu por culpa exclusiva do condutor do AT - sempre, aliás, se presumindo a sua culpa, por o conduzir sob a direcção e no interesse do seu proprietário, segurado da Ré.
Pois, o AT, tendo acabado de descrever uma curva de pouca visibilidade e em velocidade excessiva para o local, passou a circular na metade esquerda da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha, tendo provocado o inevitável embate com o XD, que então circulava em sentido contrário, em estrita obediência a todas as regras estradais.
Do acidente resultaram danos para o XD no montante peticionado.
Veio a Ré contestar, imputando, alem do mais, o sinistro à culpa exclusiva do A.
Foi proferido o despacho saneador, sem recurso, tendo sido fixados os factos tidos por assentes e organizada a base instrutória. Sem reclamação das partes.
No início do julgamento veio o senhor Juiz ordenar a ampliação da base instrutória, pela forma que do seu despacho de fls 100 consta.
Realizado o mesmo, foi decidida a matéria de facto da base instrutória, tal como também melhor consta no despacho de fls 114 e 115. Sem reclamação das partes.
Proferiu o senhor Juiz a sua sentença, na qual, julgando a acção improcedente, absolveu a Ré do pedido e condenou o A., como litigante de má fé, no pagamento de uma multa correspondente a 5 UC.
Inconformado, na parte desta condenação, veio o A. interpor o presente recurso de apelação, formulando, na sua alegação, as seguintes conclusões:
1ª - Na base da má fé está um requisito essencial "a cons-
ciência de não ter razão", como diz A. dos Reis, CPC Anotado, vol. 2º, p. 263;
2ª - requisito este que não se verifica, pois ainda hoje o A. está convicto que agiu com a devida diligência e que não teve culpa do sucedido;
3ª - O recorrente apenas apresentou uma versão dos acontecimentos que, a final, não se provou, provando-se antes a versão da parte contrária;
4ª - A demonstrar que não pretendia omitir nem deturpar os factos está o pedido feito pelo recorrente para apensação das duas acções que tinham por objecto apurar as responsabilidades no mesmo acidente e que corriam termos no mesmo tribunal, isto para poder confrontar as versões do acidente exercer o contraditório na prova trazida para os autos pelos diversos intervenientes;
5ª - O que só por si bem demonstra a falta de dolo e da negligência grave do recorrente ao litigar em juízo, pois caso fosse sua intenção "enganar" o tribunal, seria mais consentâneo manter-se "calado", "quieto" quanto á existência de outra acção a correr termos no mesmo tribunal para apreciar os mesmos factos;
6ª - A apensação não aconteceu por decisão do Tribunal a quo;
7ª - O julgamento ocorreu cerca de cinco anos após o acidente e quatro após a data da entrada da acção em juízo, o que dificultou em muito a prova da versão dos factos trazida a juízo pelo recorrente, aliada às circunstâncias em que o mesmo aconteceu e referidas nas conclusões 4ª a 6ª;
8ª - A condenação como litigante de má fé pressupõe a convicção de que o litigante agiu com dolo ou negligência grave, o que não resulta minimamente provado, antes pelo contrário, das circunstâncias inerentes ao presente caso.
Não houve contra-alegações.
Corridos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.

*

Por não ter sido impugnada a decisão da matéria de facto e por não haver lugar a alteração desta, remete-se aqui, nos termos e ao abrigo do preceituado no art. 713º, nº 6 do CPC, para a decisão da 1ª instância sobre tal matéria.
Transcrevendo-se apenas aquela que se julga mais relevante para a melhor compreensão da apreciação e decisão desta apelação.
E que é a seguinte:

No dia 28/3/98, pela 1H00, na estrada municipal nº 557, no lugar do Paço da Comenda, ocorreu um embate entre o veículo ligeiro de passageiros, marca Mazda, matrícula 06-51-OT, conduzido por Samuel da Piedade de Sousa e o veículo ligeiro de passageiros, marca Renault, matrícula XD, conduzido pelo A. - alíneas A) e C) dos factos assentes;
O veículo AT circulava no sentido Porto da Lage (Estação de Paialvo) - Paço da Comenda e o veículo XD em sentido inverso - al. B);
Na altura do embate o piso da estrada estava molhado, estando o tempo chuvoso - al. D);
Um pouco antes do local do embate, atento o sentido de marcha do XD, existe uma pequena ponte sobre um ribeiro e o embate entre os veículos deu-se numa curva fechada ou com pouca visibilidade, a descrever para a esquerda, atento o sentido de marcha do AT e já na parte final da mesma, considerando o mesmo sentido de marcha - als E) e F);
Próximo do local do embate, entronca uma outra estrada naquela estrada municipal, pelo lado esquerdo desta, atento o sentido de marcha do XD - al. H);
O veículo AT seguia na hemi-faixa direita, atento o seu sentido de marcha - resposta ao quesito 16º;
O XD, ao sair da ponte referida em E) invadiu súbita e inopinadamente a hemi-faixa esquerda, atento o seu sentido de marcha e quando o condutor do AT se apercebeu da presença do XD, desviou-se para o lado direito, não tendo, no entanto, conseguido evitar o embate - respostas aos quesitos 19º e 20º;
No local do sinistro são frequentes os embates de veículos devido à configuração da curva, com pouca visibilidade, para a esquerda, no sentido em que o AT seguia - resposta ao quesito 6º;
O que exige para os condutores dos veículos que aí circulam nesse sentido, especiais e redobrados cuidados, atenção e perícia - resposta ao quesito 7º;
O local do embate era bem conhecido do condutor do AT - resposta ao quesito 8º;
Tendo aí a faixa de rodagem 10 m. de largura.

Podendo, ainda, dar-se como assente:
A acção deu entrada em Juízo em 14 de Abril de 1999, tendo sido distribuída ao 1º Juízo do Tribunal Judicial de Tomar em 15 seguinte - carimbos apostos no rosto da p. i.;
A Ré contestou em 27 de Maio de 1999 - carimbo aposto no rosto da contestação;
Em 7 de Junho de 1999 o A. requereu a apensação da acção àquela que pendia no 2º Juízo do Tribunal Judicial de Tomar, pelo mesmo acidente, movida por EE contra Portugal Previdente - fls 44 e 45;
Por despacho de 2 de Maio de 2000 foi deferida a requerida apensação de acções - fls 55;
Em 16 de Setembro de 2002 - estando os autos conclusos desde 6 de Abril de 2001 - foi proferido despacho a dar sem efeito o anterior, por já ter sido proferida sentença naqueles autos aos quais estes deveriam ser apensados - fls 66;
Em 3 de Maio de 2003, com continuação e encerramento em 29 de Maio de 2003, teve lugar a audiência de discussão e julgamento - fls 99 e 111;
Com data de 28 de Julho de 2003 foi proferida sentença, tendo os autos sido remetidos para este Tribunal em 5 de Fevereiro de 2004.

*

Quanto à delimitação objectiva do recurso permite o art. 684º, nº 2 do CPC que, se a parte dispositiva da sentença contiver decisões distintas, é lícito ao recorrente restringir o recurso a qualquer delas, uma vez que especifique no requerimento a decisão de que recorre.
Assim sendo, e não obstante a causa não admitir, em princípio recurso ordinário, atendo o seu valor - art. 678º, nº 1 do mesmo diploma legal - delimitada que é a discordância do A. à parte de sentença que o condenou como litigante de má fé, sempre o seu recurso será admissível para esta Relação, face ao que dispõe o art. 456º, nº 3 do aludido CPC.

*

O presente recurso, como já vimos, circunscreve-se á condenação do A. em multa, como litigante de má fé.
Ora, vejamos:
Determina, a propósito, e com interesse, o art. 456º do CPC:
" 1. Tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização á parte contrária, se esta a pedir.
2. Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligên-
cia grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de colaboração;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Tendo ficado hoje claro que só o dolo ou a negligência grave relevam para o efeito da má fé.
Passando hoje a lei a sancionar, ao lado da litigância dolosa, a lide temerária, caracterizando agora a litigância de má fé, quer o dolo, quer a negligência grave, com o intuito de se atingir uma maior responsabilização das partes - preâmbulo do DL 320-A/95 e Lebre de Freitas, CPC Anotado, vol. 2º, p. 195.
Não sendo fácil traçar os limites da litigância de má fé, a verdade é que, em princípio, não bastará o mero erro, a lide apenas ousada ou errada para justificar a condenação.
Com efeito, a ordem jurídica põe a tutela jurisdicional á disposição de todos os titulares de direitos, gozando o litigante, quer tenha ou não razão, dos mesmos poderes processuais.
Todavia, o princípio da licitude do exercício dos meios processuais está limitado pela ordem jurídica, que impõe que a parte esteja convencida da justiça da sua pretensão - A. Reis, CPC Anotado, Vol. II, p. 261.
De facto, a parte tem o dever de não formular pedidos ilegais, não articular factos contrários á verdade, nem requerer diligências meramente dilatórias. São os chamados deveres de verdade e de probidade - ínsitos no dever de se proceder de boa fé - que a lei expressamente lhe impõe - art. 264º, nº 2 do CPC - M. Andrade, "Noções Elementares do Processo Civil", p. 355.
Assim, se a parte, intencionalmente ou por falta da diligência exigível a qualquer litigante, violar qualquer daqueles deveres, a lei pune tal conduta indevida, desde logo com multa - Rodrigues Bastos, "Notas ao CPC", vol. II, p. 221 e ss.
Ora, no caso em apreço, o senhor Juiz a quo condenou o agravante como litigante de má fé pelo facto dele, em seu entender, ter apresentado uma versão dos factos deturpada, em violação do dever de verdade, ínsito na al. b) do nº 2 do citado art. 456º.
Tendo o A., diz o mesmo julgador, alegado circunstanciona-
lismo que com toda a certeza não ignorava, "já que aquando do embate conduzia o veículo XD, interveniente no acidente de viação". Tendo alegado logo na p. i. que o AT passou a circular na metade esquerda da faixa de rodagem atento o seu sentido de marcha, sem ter nenhuma razão para penetrar na parte do reservada ao trânsito em sentido contrário e sem tomar as especiais cautelas, provocando o inevitável choque com o XD que circulava em sentido contrário, em velocidade moderada e em estrito cumprimento das demais regras estradais.
Quando ao invés, acrescenta ainda, se provou que o veículo AT seguia na hemi-faixa direita, atento o seu sentido de marcha, tendo sido o XD do A. que, ao sair de uma ponte ali existente, invadiu, súbita e inopinadamente a hemi-faixa esquerda, atento o seu sentido de marcha, ou seja, aquela onde circulava o AT, o qual, embora desviando-se para o lado direito, não conseguiu evitar o embate.
Na realidade, resulta da matéria de facto dada como provada em 1ª instância - tendo este Tribunal de a aceitar como exacta - uma versão dos factos, no essencial, completamente diferente daquela que é alegada pelo A. na sua p. i., no que tange ao juízo de culpa na produção do acidente.
Diz ele, próprio condutor do veículo XD, que circulava pela direita da faixa de rodagem que lhe pertencia, em obediência às demais regras estradais, sendo o veículo segurado na Ré que, ao invés, circulava, sem qualquer razão, no momento do acidente, na metade esquerda da sua faixa de rodagem.
Circulando os veículos em sentidos de marcha opostos.
Assim se dando o embate entre ambos, já que o segurado na Ré invade a sua faixa de rodagem.
Esta é a factualidade nuclear causal do acidente, determinante para se apurar da culpa dos condutores, a qual, na versão do A., caberia naturalmente ao condutor do veículo AT.
Mas o A., não só não consegue provar a sua tese - o que se poderia ter ficado a dever a causas diversas, nomeadamente, ao tempo que mediou entre o sinistro e a discussão e julgamento que veio a ter lugar nos autos - mas vê, ao invés, provada a adversa, ou seja, que aquele veículo AT seguia na sua faixa de rodagem direita, atento o seu sentido de marcha e que é antes o veículo XD, que ele próprio conduzia, que invade súbita e e inesperadamente a faixa esquerda de rodagem, considerando o seu sentido de trânsito, não tendo o condutor do veículo segurado na Ré, não obstante se ter desviado para a direita, conseguido evitar o embate.
Esta factualidade essencial, como já dito, não deveria, em princípio, deixar de ser conhecida do A.
Contudo, há que ter em conta que o acidente se processa numa fracção de segundos, de forma usualmente bem rápida e necessariamente bem dinâmica, o que pode tolher a capacidade de apreensão dos seus intervenientes, quanto à exacta forma como o o mesmo, na realidade se verificou.
O que significa que, apesar de o A. não ter logrado provar a sua tese, quanto aos falados factos essenciais e causais do sinistro - tendo, ao invés, ficado provada a tese alegada pela Ré seguradora - tal pode não revelar um comportamento doloso ou sequer temerário do ora apelante, no sentido de alterar a ver-
dade dos factos, tratando-se antes da sua compreensão, embora errada, destes, derivada da referida dinâmica do sinistro e da paixão e emoção que normalmente envolve os respectivos conduto-
res dos veículos.
Não se estando aqui, por exemplo, perante um caso seme-
lhante ao do investigado que nega ter mantido relações sexuais de cópula com a mãe do menor, as quais se vieram a provar na acção.
Tornando-se preferível, in casu, dar o benefício da dúvida à parte que ficou vencida na acção, a qual - irregularmente, diga-se - não teve sequer o ensejo de na 1ª instância se defen-
der da condenação por má fé, já que tal matéria jamais havia sido suscitada nos autos.
E o facto de ter requerido, por sua iniciativa, a apensação de processos e de a mesma acabar por não tido lugar por razões que a ele se mostram alheias, parece ajudar, como a mesma agora também alega, esta visão das coisas.
Pois, podendo embora tal requerimento fazer apenas parte de uma estratégia processual do ora apelante - e não está aqui em causa a eventual responsabilidade do seu mandatário nos actos pelos quais o senhor Juiz a quo julgou revelada a sua má fé - também se poderá pensar que o A. não terá receado um mais forte confronto de versões sobre a forma como ocorreu o acidente, havendo assim razões para crer que não tenha deliberada ou temerariamente pretendido alterar a verdade dos factos ou deduzir pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar.

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Face a todo o exposto, acorda-se nesta Relação em, julgando-se procedente a apelação, revogar a decisão recorrida na parte em que condenou o A. como litigante de má fé.
Sem custas.