Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3871/05.0TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
CONSTITUIÇÃO
MENOR
PREJUÍZO
Data do Acordão: 05/10/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.1547, 1550, 1553 CC
Sumário: 1. O Código Civil não prevê o «alargamento» da servidão no sentido de ser alargada uma servidão existente.

2. Se houver em termos factuais um alargamento de uma servidão já existente, em termos jurídicos isso corresponde à constituição de uma nova servidão (independentemente da primitiva poder ou não continuar a subsistir). No denominado «alargamento» da servidão» há uma realidade nova a ponderar, mas não pode deixar de ficar sujeita aos mesmos requisitos legais da constituição de uma qualquer servidão.

3. - O titular do prédio encravado tem direito, nos termos do artigo 1550.º do Código Civil, a constituir uma servidão de passagem sobre os prédios limítrofes. Mas havendo mais que um prédio em condições de suportar a servidão, o titular do direito a constituir a servidão não pode escolher um prédio sem critério: deve observar a regra do artigo 1553.º do mesmo Código e pedir a constituição sobre o prédio onde a servidão causa “menor prejuízo”

4. A alegação da matéria que preenche o critério do “menor prejuízo” é constitutiva do direito de estabelecer a servidão sobre certo e determinado prédio, cujo ónus da alegação e prova compete ao autor ( art.342 nº1 CC ).

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2.ª secção cível):

*

Recorrentes/Réus….M (…) e esposa M (…) residentes (…) ....

Recorrida/Autora…..Z (…), residente (…) ....


*


I. Relatório.

a) A autora/recorrida Z (…) instaurou a presente acção declarativa, sob a forma de processo sumário, contra os réus ora recorrentes, pedindo a condenação dos mesmos a reconhecerem (1) que ela é legítima proprietária do prédio identificado no artigo 1.º da petição; (2) que o prédio dos recorrentes réus, referido no artigo 8.º da mesma peça processual, se encontra onerado com uma serventia de pé, de burro, bicicleta e mota a favor do prédio da autora; (3) que a aludida serventia tem cerca de 40 cm de largura e se desenrola a partir do prédio da autora, no sentido nascente/sudoeste, atravessando o prédio dos réus recorrentes numa extensão de cerca de 56 metros, indo desembocar na estrada que liga MR... ao G...; bem como (4) a manterem a aludida serventia livre e desobstruída, não impedindo por qualquer forma a passagem para o prédio da autora; (5) a absterem-se de praticar qualquer acto que limite o direito de passagem a favor do prédio da autora; e, finalmente, (6) a aceitarem o alargamento do leito da serventia de modo a que este leito passe a ter uma largura mínima de 4 metros, mediante o pagamento pela autora aos réus de uma indemnização que estimou em €500,00 euros.

Fundamenta estes pedidos, em síntese, referindo que é proprietária do prédio onde reside, o qual é encravado e beneficia de uma servidão de passagem a pé, pelo prédio dos réus, adquirida por usucapião, tratando-se de um carreiro em terra batida, com cerca de 40 centímetros de largura.

Sucede que os réus construíram um murete na estrema do prédio serviente, onde se inicia o trajecto, tendo aí deixado apenas a abertura correspondente ao carreiro, mas, com a intenção de dificultarem a passagem da autora, colocaram um monte de pedras e areia sobre a aludida abertura.

Alegou ainda que esta serventia é presentemente insuficiente, pois necessita de um acesso para a sua casa de habitação que permita passar com um veículo automóvel de modo a viabilizar o transporte de tudo o que é necessário para a sua vida quotidiana.

b) Os réus contestaram.

Referiram, em síntese, que a autora era arrendatária do prédio onde agora reside e que antes de o ter comprado ela tinha perfeito conhecimento de que não tinha acesso à via pública, devido ao facto do antigo acesso, a Norte, ter sido vedado com uma construção urbana, pelo que, após a aquisição do imóvel, a autora começou a passar abusivamente a pé pelo terreno dos recorrentes.

Da casa da autora até à estrada situada a poente medeia uma distância de cerca de 60 metros e da casa da autora até à estrada situada a nascente vai uma distância de cerca de 25 a 30 metros, sendo que o terreno situado a nascente do prédio da autora é de pinhal e de fácil acesso.

Além disso, a constituição de uma servidão de pé e carro com 4 metros de largura inutilizaria por completo o terreno dos réus, que ficaria sem qualquer valor económico.

Concluíram pela improcedência da acção.

c) A autora respondeu à contestação tendo alegado que para aceder a sua casa pelo terreno situado a nascente tem de percorrer uma distância de cerca de 800 metros, sendo que o acesso através do aludido prédio é difícil.

Requereu a ampliação do pedido por forma a que subsidiariamente se considere o pedido de constituição de uma serventia sobre o prédio dos réus, com 4 metros de largura, no sentido nascente/sudoeste, ao longo de uma extensão de 56 metros, onerando assim o prédio dos réus, a favor do prédio da autora.

d) A ampliação do pedido foi admitida e seguiu-se, depois, o processado típico.

No final, os réus foram condenados nos seguintes termos:

Primeiro - A reconhecerem que a autora é legítima proprietária do prédio composto de casa rés-do-chão para habitação e logradouro, a confrontar do Norte com AM... e outro, do Sul com, MSR..., do Nascente com MR... da e do Poente com JM..., com a área coberta de 47m2 e descoberta de 100 m2 inscrito na matriz sob o artigo 0000...;

Segundo - A reconhecerem que o prédio dos réus, inscrito na matriz predial rústica da freguesia de MR... sob o n.º O1..., composto de pinhal e mato, a confrontar do com estrada, do Norte com o prédio referido em a) e lMF... a Nascente com MR... e a Ponte com Rua dos ..., se encontra onerado com uma serventia de pé, bicicleta e mota a favor do prédio da autora;

Terceiro - A reconhecerem que a aludida serventia, com 40 cm de largura, desenrola-se a partir do prédio da autora no sentido nascente/sudoeste, atravessa numa extensão de 55,80 metros o prédio dos réus e vai desembocar na estrada que liga MR... ao G....

Quarto - A manterem a aludida serventia livre e desobstruída, não impedindo por qualquer forma a passagem para o prédio da autora;

Quinto - A absterem-se de praticar qualquer acto que limite o direito de passagem a favor do prédio da autora;

Sexto - A aceitarem o alargamento do leito da serventia de modo a que este leito passe a ter uma largura de 3 (três) metros, mediante o pagamento pela autora, de uma indemnização a favor dos réus, em quantia que se apurar em sede de liquidação.

Quanto ao resto pedido, os Réus foram absolvidos.

e) Os Réus recorrem alegando que falta à posse da autora sobre o alegado caminho o requisito da posse pacífica, sem oposição, indispensável para a aquisição por usucapião e que a sentença contém várias contradições.

Concluíram desta forma (dada a sua brevidade, transcrevem-se as alegações):

«1) - A sentença deve ser revogada por sofrer de várias contradições e ter condenado os R.R. indevidamente a aceitarem o alargamento do leito da serventia de modo a que este leito passe a ter uma largura de 3 metros.

2) Não se trata de um alargamento mas da constituição de uma servidão pelo prédio dos RR.

3) Assim sendo o prejuízo que resulta dessa constituição é muito superior ao que sofria o prédio a nascente do da Autora, por onde deve ser constituída a servidão de passagem a favor do prédio da Autora.

4) A constituição da servidão conforme prescreve a lei deve ser constituída pelo prédio que sofra menos prejuízo e por onde se exerça mais facilmente.

5) A douta sentença devia ter decidido que a serventia de acesso ao prédio da Autora deve ser constituída em prédio que sofra menos prejuízo.

6 - A douta sentença violou, deste modo, as disposições dos artigos 1550 a 1556 do Código Civil, e as alíneas b), c), d) e e) do n.º 1 do artº 668 do Cód. Proc. Civil».

f) A Autora contra-alegou para dizer que a única questão que está colocada no recurso dos réus consiste no alargamento do leito da servidão, questão que os réus qualificam como de constituição de nova servidão sobre o seu prédio.

Porém, a autora pediu, como se vê pelo pedido formulado na petição inicial, o alargamento da servidão primitiva e só por cautela ampliou o pedido no sentido de se constituir uma servidão.

Diz ainda que os réus não se referiram nas suas conclusões à alegada falta de pacificidade da posse a que aludiram nas alegações, pelo que não pode o tribunal em sede de recurso analisar tal matéria, sendo certo, em qualquer caso, que não se trata no caso de uma posse violenta ou oculta.

Concluíram pela improcedência do recurso.

g) Face às conclusões das alegações dos réus que acabaram de ser transcritas as questões a resolver neste recurso, são as seguintes:

Em primeiro lugar, cumpre apreciar o valor da alegação dos réus acerca das contradições de que dizem padecer a sentença.

Em segundo lugar, será analisada a questão de saber se, como diz a autora, o tribunal não pode conhecer da alegada falta do requisito da pacificidade da posse quanto à servidão primitiva (carreiro), que os réus suscitaram no texto das suas alegações, na medida em que os réus, depois, nada pediram sobre essa questão nas conclusões do recurso.

Em terceiro lugar cumpre verificar se se tratou de um alargamento da primitiva servidão ou da constituição de uma servidão pelo prédio dos réus e respectiva relevância, bem como ponderar se os réus foram indevidamente condenados a aceitarem o alargamento do leito da serventia de modo a que este leito passe a ter uma largura de 3 metros.

Por fim, analisar-se-á a objecção dos réus no sentido de a servidão não ter sido constituída pelo prédio onde causa menor prejuízo (artigo 1553.º do Código Civil).

II. Fundamentação.

a) A matéria provada é esta:

1 – Encontra-se descrito em nome da autora, na 2.a Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º 0002..., o prédio composto de casa de rés-do-chão para habitação e logradouro, que confronta do Norte com AM... e outro, do Sul com MSR..., do Nascente com MR... e do Poente com JM..., com a área coberta de 47m2 e descoberta de 100 m2, estando inscrito na matriz sob o artigo 0000... – al. a).

2 – Por escritura pública outorgada no dia 14 de Fevereiro de 2000, no 2.º Cartório Notarial de ..., (…) declarou vender à autora, que declarou comprar, o prédio referido em a) – al. b).

3 – A Sul do prédio referido em a) situa-se o prédio inscrito na matriz predial rústica da freguesia de MR... sob o artigo O1..., composto de pinhal e mato, que confronta do Sul com estrada, do Norte com o prédio referido em a) e lMF... , a Nascente com MR... e a Ponte com Rua dos ... - al. c).

4 – Os réus, por si e antepossuidores, há mais de 20, 30 e 40 anos, semeiam e colhem os frutos do prédio referido em c), roçam o mato, cortam as árvores e pagam as respectivas contribuições, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, ininterruptamente e na convicção de serem seus proprietários – al. d).

5 – A autora, por si e antepossuidores, há mais de 20, 30 e 40 anos, utiliza a casa referida em a), habitando-a, fazendo obras de conservação e melhoramento, cuidando do logradouro, aí plantando e colhendo os respectivos frutos – quesito 1.º.

6 – Ininterruptamente, à vista de toda a gente, na convicção de exercer um direito próprio – quesitos 2.º e 3.º.

7 – O prédio referido em a) não confronta com qualquer via pública – quesito 4.º.

8 – Em consequência do facto referido em 7 (quesito 4.º), o acesso ao prédio referido em a) é feito através do prédio mencionado em c) – quesito 5.º – a pé, de bicicleta e de mota – quesito 6.º – por um caminho com 40 cm de largura – quesito 7.º.

9 – O caminho referido em 7 (quesito 4.º) inicia-se no prédio da autora, no sentido Nascente/Sudoeste – quesito 8.º – e atravessa o prédio mencionado em c) numa extensão de 55,80 metros – quesito 9.º – desembocando na estrada que liga MR... ao G... – quesito 10.º.

10 – O caminho referido em 7 tem o leito bem delimitado e bem decalcado da passagem de pessoas e dos veículos referidos em 6 – quesito 11.º.

11 – A autora por si e antepossuidores do prédio referido em a), transitaram a pé, de bicicleta e mota pelo caminho mencionado em 7 (quesito 4.º), para acesso ao seu prédio, há mais de 20,30 e 40 anos - quesito 12.º.

12 – A utilização do caminho nos termos referidos no quesito 12.º, sempre foi feita ininterruptamente, à vista de toda a gente, na convicção de estarem a exercer um direito próprio – quesito 13.º.

13 – A autora antes da data referida em b), residiu na habitação como arrendatária – quesito 15.º.

14 – Enquanto arrendatária, a autora sempre utilizou o caminho referido em 7 (quesito 4.º), pela forma mencionada nos quesitos 12.º e 13.º - quesito 17.º.

 15 – Antes da entrada da petição inicial, os réus construíram um murete no topo sul da serventia – quesito 18.º – deixando no mesmo uma abertura – quesito 19.º  – onde colocaram um monte de pedras e areia – quesito 20.º.

16 – A autora necessita de aceder ao prédio referido em a) com um automóvel, por forma a transportar géneros alimentares, lenha e peças de mobiliário – quesito 24.º.

17 – A casa referida em a) do lado nascente confina com um pinhal – quesito 30.º.

18 – Aquando da aquisição referida em b), a autora sabia que o prédio mencionado em a) não tinha acesso à via pública – quesito 33.º.

19 – O terreno onde a casa referida em a) foi construída comunicava com a via pública a Norte – quesito 34.º.

20 – O acesso referido no quesito 34 foi vedado com uma construção urbana – quesito 35.º –, razão pela qual a casa mencionada em a) deixou de ter acesso – quesito 36.º.

21 – Após a aquisição referida em b), a autora fez obras de reparação na casa, passando a mesma a ter a actual composição – quesito 37.º.

22 – Após a aquisição referida em b), a autora começou a passar a pé e com veículo de duas rodas quer pelo prédio referido em c), quer pelo prédio do vizinho situado a Nascente - quesito 38.º.

23 - Do prédio referido em a) até à estrada situada a nascente medeia uma distância de cerca de 44,50 metros - quesito 41.

24 – O pinhal referido no quesito 30.º, que confronta pelo lado nascente com o da autora é de fácil acesso - quesito 43.º.

25 – O prédio referido em c) junto da estrada a Poente tem uma largura de 18 metros - quesito 45.º – diminuindo para nascente – quesito 46.º.

b) Passando à análise das questões colocadas.

(…)

3- Vejamos agora se a Autora pede o alargamento da primitiva servidão ou a constituição de uma nova servidão pelo prédio dos réus e eventual relevância desta diferenciação.

Esta questão não tem real relevância em si mesma, por se tratar de uma questão de palavras.

Afirma-se isto porque o Código Civil só prevê a constituição de servidões, a sua mudança e a respectiva extinção (artigos 1547.º a 1556.º, 1568.º e 1569.º e seguintes, todos do Código Civil).

Não prevê o alargamento, sendo, no entanto, facilmente conjecturável este tipo de situações na prática quotidiana.

Assenta-se, pois, em que o Código Civil não prevê o «alargamento» da servidão no sentido de ser alargada uma servidão existente continuando, porém, a tratar-se da mesma servidão.

Sendo assim, se houver em termos factuais um alargamento de uma servidão já existente, em termos jurídicos isso corresponde à constituição de uma nova servidão (independentemente da primitiva poder ou não continuar a subsistir).

No denominado «alargamento» da servidão» há uma realidade nova a ponderar, mas não pode deixar de ficar sujeita aos mesmos requisitos legais da constituição de uma qualquer servidão.

Daí afirmar-se que se trata de um mero jogo de palavras sem relevância.

Tudo se passa, pois, como se se tratasse da constituição de uma nova servidão.

Passando à questão seguinte.

4- Vejamos a objecção dos réus no sentido de a servidão não foi constituída pelo prédio onde causa menor prejuízo (artigo 1553.º do Código Civil).

Nesta parte afigura-se que os réus têm razão.

Com efeito, o artigo 1553.º do Código Civil é claro ao determinar que «A passagem deve ser concedida através do prédio ou prédios que sofram menor prejuízo, e pelo modo e lugar menos inconvenientes para os prédios onerados».

Analisados os factos verifica-se que os mesmos não permitem responder à questão de saber por que prédio a servidão causa menor prejuízo.

Provou-se, é certo, que a autora carece de uma servidão («A autora necessita de aceder ao prédio referido em a) com um automóvel, por forma a transportar géneros alimentares, lenha e peças de mobiliário – quesito 24.º»).

O caminho que atravessa o prédio dos réus e por onde a autora tem passado e que veio a ser reconhecido na sentença como servidão de passagem adquirida por usucapião tem 55, 80 metros de comprimento («O caminho referido em 7 (quesito 4.º) inicia-se no prédio da autora, no sentido Nascente/Sudoeste – quesito 8.º – e atravessa o prédio mencionado em c) numa extensão de 55,80 metros – quesito 9.º – desembocando na estrada que liga MR... ao G... – quesito 10.º».

Mas o prédio da autora confina também a nascente com outro prédio («A casa referida em a) do lado nascente confina com um pinhal – quesito 30.º»).

E a autora também tem passado para a sua casa através deste outro prédio situado a nascente («Após a aquisição referida em b), a autora começou a passar a pé e com veículo de duas rodas quer pelo prédio referido em c), quer pelo prédio do vizinho situado a Nascente - quesito 38.º»), tratando-se de um percurso mais curto até encontrar uma estrada, que o feito através do prédio dos réus («Do prédio referido em a) até à estrada situada a nascente medeia uma distância de cerca de 44,50 metros - quesito 41»), e de fácil acesso ( «O pinhal referido no quesito 30.º, que confronta pelo lado nascente com o da autora é de fácil acesso - quesito 43.º»).

Verifica-se, pois, que a nascente do prédio da autora se situa um outro prédio através do qual se poderá também constituir uma servidão de fácil acesso à estrada situada desse lado, sendo até a distância 11 metros mais curta que a outra.

Claro que estes elementos são insuficientes para decidir qual dos prédios sofre menor prejuízo, pois não sabemos, por exemplo, qual a área do prédio situado a nascente.

Foi alegado pelos réus que essa área era de 4500 m2, mas a matéria foi julgada não provada.

No sentido do prédio dos réus sofrer prejuízo relevante milita o facto de ter uma frente de 18 metros junto à estrada, diminuindo esta largura à medida em que o prédio avança em direcção à casa da autora («O prédio referido em c) junto da estrada a Poente tem uma largura de 18 metros - quesito 45.º – diminuindo para nascente – quesito 46.º»).

No caso se ser possível a construção de uma casa nesse terreno não é indiferente à sua valorização a extensão da sua frente, pois é hábito as habitações terem a frente voltada para a estrada e possuírem ao lado da construção um espaço para permitir a entrada de veículos, pelo que numa frente de 18 metros suprimir 3 ou 4 é significativo em termos de desvalorização do prédio.

Além de que não se sabe, porque as partes não o esclareceram através da alegação dos factos, por onde passa, geograficamente falando, o caminho que foi reconhecido na sentença como sendo uma servidão de passagem a pé e com veículos de duas rodas.

Mas pode ocorrer que, apesar do exposto, a servidão ainda cause maior prejuízo no dito prédio situado a nascente devido a causas que se desconhecem por não terem sido alegados os factos respectivos.

Só a alegação dos factos pertinentes e eventual peritagem poderia dirimir esta questão.

Chegados aqui, ficamos face a um impasse acerca da questão de saber qual dos dois prédios, se outros não houver, sofre menor prejuízo com a constituição da servidão pretendida pela autora.

Coloca-se, por conseguinte, a questão de saber se os factos relativos a este menor prejuízo são constitutivos do direito da autora ou impeditivos do mesmo, ou seja, se tinham de ser alegados pela autora (constitutivos) ou pelos réus (impeditivos) e retirar da sua omissão as respectivas consequências, que são estas: se são constitutivos deviam ter sido alegados pela autora, pelo que a as consequências da sua falta recaem sobre ela; se são impeditivos a sua falta onera os réus que os deviam ter provado e não provaram.

À primeira vista os factos parecem ter natureza impeditiva.

Com efeito, se a acção for instaurada sem que o réu objecte alegando que o seu prédio sofre maior prejuízo com a constituição da servidão que sofrerá o prédio do seu vizinho, poderá defender-se que a acção procederá se preencher os demais requisitos.

Sendo assim, se a acção procede sem que seja necessário alegar e provar o mencionado menor prejuízo, então é porque a situação de facto pressuposta pela norma não é constitutiva do direito.

Mas objectar-se-á que não, que a acção não pode proceder, mesmo que o réu não suscite essa questão, ressalvando o caso do réu não contestar a constituição da servidão, ou se se limitar a contestar o montante da indemnização ou o trajecto proposto para a servidão.

Com efeito, o artigo 1553.º do Código Civil visa compor um conflito de interesses entre o dono do prédio dominante e os proprietários dos prédios que o encravam, através dos quais há-de ser constituída a servidão.

Esta norma estabelece o critério que o legislador entendeu ser o que melhor realiza a justiça para que o encargo seja suportado por quem é menos prejudicado.

Mas não se trata de norma imperativa que tem de ser observada mesmo contra a vontade daquele que goza da protecção que ela lhe dispensa.

Ou seja, o dono de um prédio que sofre maior prejuízo do que outro ou outros prédios pode não desejar prevalecer-se desta norma e não a invoca a seu favor.

Isso acontece se não se opuser à constituição da servidão. Neste caso deve entender-se que não pretende prevalecer-se da norma do artigo 1553.º do Código Civil.

Mas se se opuser à constituição da servidão, mesmo que não invoque a norma do artigo 1553.º do Código Civil, directa ou indirectamente, o juiz deve entender que ele pretende prevalecer-se de quaisquer normas que tutelem a sua pretensão, pois a aplicação do direito incumbe ao tribunal.

Por conseguinte, este argumento da falta de invocação dos factos que preenchem a norma do artigo 1553.º do Código Civil não é suficiente para concluir que os factos têm natureza impeditiva.

Vejamos mais atentamente.

Como referiu o Prof. Antunes Varela, «Ao Autor cabe a prova dos factos que, segundo a norma substantiva aplicável servem de pressuposto ao efeito jurídico por ele pretendido. O Autor terá assim o ónus de provar os factos correspondentes à situação de facto (tatbestand) traçada na norma substantiva em que funda a sua pretensão. Ao Réu incumbirá, por sua vez, a prova dos factos correspondentes à previsão (abstracta) da norma substantiva em que se baseia a causa impeditiva, modificativa ou extintiva (do efeito jurídico pretendido pelo Autor) por ele (Réu) invocada» ([1]).

Num qualquer caso semelhante ao dos autos, o autor tem de provar a situação de facto prevista no n.º 1 do artigo 1550.º do Código Civil, ou seja, tem de provar que o seu prédio está encravado e havendo mais do que um proprietário confinante tem de dirigir a acção contra um deles.

Mas contra qual?

Pode fazê-lo de forma aleatória contra qualquer um?

Instintivamente dir-se-á que não, pois o direito raramente se confrontará com situações em que os direitos se exercem aleatoriamente contra um sujeito passivo.

Se o critério do menor prejuízo previsto no artigo 1553.º do Código Civil preencher um facto constitutivo é óbvio que o autor não pode dirigir a acção aleatoriamente contra qualquer um dos confinantes, pois, tendo de provar que está a pedir a constituição da servidão sobre o prédio que sofre menor prejuízo, tem de alegar os factos correspondentes e, sendo assim, tem de indicar qual é o prédio que deve ficar onerado, podendo, inclusive, demandar mais que um proprietário se tiver dúvidas sobre a identificação do prédio que sofrerá menor prejuízo; se a situação factual em questão revestir natureza impeditiva, então o autor pode dirigir o pedido aleatoriamente contra qualquer proprietário, ficando apenas sujeito a que lhe oponham o facto impeditivo, que provado implicará a perda da acção.

Ora, atendendo ao texto do artigo 1553.º do Código Civil, à sua intencionalidade, verifica-se que a norma estabelece uma obrigação, um dever: a passagem deve ser concedida através do prédio ou prédios que sofram menor prejuízo.

A quem se dirige tal dever?

Seguramente que, em primeiro lugar, este dever recai sobre aquele que pretende constituir a servidão, pois é ele quem tem de tomar a iniciativa de deduzir a pretensão, de efectuar o pedido e, claro está, deve fazê-lo de acordo com os comandos da lei que lhe impõem, claramente que o faça contra o dono do prédio que sofrer menor prejuízo.

Sendo assim, este menor prejuízo configura-se como condição de concretização do direito a constituir a servidão sobre certo prédio e não aleatoriamente sobre outro qualquer à escolha do titular do prédio dominante.

Em resumo:

O titular do prédio encravado tem direito, nos termos do artigo 1550.º do Código Civil, a constituir uma servidão de passagem sobre os prédios limítrofes.

Mas havendo mais que um prédio em condições de suportar a servidão, o titular do direito a constituir a servidão não pode escolher um prédio e um réu sem critério: deve observar a regra do artigo 1553.º do mesmo Código e pedir a constituição sobre o prédio onde a servidão causa menor prejuízo.

Por conseguinte, a alegação da matéria que preenche o critério do menor prejuízo é constitutiva do direito de estabelecer a servidão sobre certo e determinado prédio.

No sentido de que os factos integradores da norma do artigo 1553.º do Código Civil são constitutivos deste direito, assinalam-se as seguintes decisões, por ordem cronológica:

«O menor prejuízo dos prédios confinantes, com a constituição da servidão de passagem, é facto integrante do direito a constituição da servidão (artigos 1550 n. 1 e 1553 do Código Civil), que incumbe aos autores provar (artigo 342 n. 1 do mesmo Código)» - acórdão do TRP de 28-05-1991, processo n.º 079824, número convencional JSTJ00010515 (em www.dgsi.pt).

«…como resulta dos citados artigos 1550º e 1553º do Código Civil, para se verificar o direito de constituição de uma servidão legal de passagem a favor do prédio dos RR/reconvintes sobre o prédio dos AA., aqueles tinham não só de alegar e provar factos donde resultasse que o prédio deles estava encravado mas também que era o prédio dos AA. aquele que sofreria menor prejuízo com a constituição da servidão» - acórdão do TRG de 29-01-2003, processo n.º 1638/02-2 (em www.dgsi.pt).

«O proprietário de prédio encravado que queira usar do direito potestativo que a lei lhe faculta – o de constituir uma servidão legal de passagem por um prédio vizinho – tem o ónus de alegar (e posteriormente provar) a factualidade tendente a permitir que o Tribunal possa concluir que é através desse prédio e pelo local escolhido que a passagem causa menos prejuízo e se torna menos inconveniente, não se podendo limitar, apenas, à mera alegação de um encrave e da confinância do seu prédio com o prédio encravante, por onde poderá aceder à via pública» - acórdão do TRL de 13-10-2005, processo n.º 6865/2005-2 (em www.dgsi.pt).

«É requisito constitutivo do direito potestativo à constituição de uma servidão de passagem a favor de prédio rústico encravado a alegação de factos concretos em relação aos prédios vizinhos – nomeadamente os relacionados com as características, utilização, produtividade, extensão e proximidade com a via pública – que permitam concluir que o prédio por onde se pretende efectivar a passagem é o que, de entre aqueles, o que menos prejuízo sofre com a constituição da servidão» - acórdão do STJ de 02-12-2010, processo n.º 5202/04.8TBLRA (em www.dgsi.pt).

Concluindo-se como se concluiu, a sentença não pode manter-se na parte em que decretou a constituição/alargamento da servidão com a largura de três metros, devido à circunstância de não existirem factos provados destinados a provar, para efeitos do disposto no artigo 1553.º do Código Civil, que o prédio dos réus é o prédio através do qual a constituição da servidão de passagem causa menor prejuízo.

Procede, pois, o recurso nesta parte.


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No que respeita às custas havendo vários pedidos e não se tendo individualizado o valor de cada um deles, nem sendo possível estabelecê-lo agora, afigura-se ajustado dividir as custas da acção e do recurso na proporção de metade por cada uma das partes.

III. Decisão.

Considerando o exposto:

a) Julga-se o recurso parcialmente procedente e revoga-se a sentença na parte em que condenou os réus a «f) aceitarem o alargamento do leito da serventia de modo a que este leito passe a ter uma largura de 3 (três) metros, mediante o pagamento pela autora, de uma indemnização a favor dos réus, em quantia que se apurar em sede de liquidação».

b) Julga-se o recurso improcedente na parte restante confirmando-se a sentença recorrida quanto ao resto [alienas a), b), c), d) e e) do dispositivo].

c) Custas da acção e do recurso na proporção de metade por autora e réus.


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Alberto Ruço ( Relator )
Judite Pires
Carlos Gil

[1] R.L.J., ano 117, pág. 30/31.