Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
242/19.5T8CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
ALCOOLEMIA
SEGURADORA
DIREITO DE REGRESSO
NEXO DE CAUSALIDADE
Data do Acordão: 07/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:
TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - C.BRANCO - JC CÍVEL - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 27 Nº1 C) DL Nº 291/2007 DE 21/8
Sumário: Para que exista direito de regresso da empresa de seguros contra o condutor do veículo, nos termos do artigo 27.º, n.º 1, alínea c) do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, não se exige a verificação de um nexo de causalidade entre o acidente e a presença de álcool no sangue do condutor.
Decisão Texto Integral:

*
Recorrente …………C (…),
Recorrido L (…)
*




I. Relatório

a) O presente recurso vem interposto da sentença que antecede, a qual condenou o réu, ora recorrente, a pagar à autora uma indemnização no  montante de €57.629,22, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos até pagamento, indemnização que corresponde à quantia que a autora pagou aos titulares dos respetivos direitos que emergiram de um acidente de viação em que interveio o réu, quando o mesmo conduzia o veículo de matrícula (...) -RF, seguro na autora/recorrente, do qual resultou a morte de um dos passageiros e ferimentos em outro, sucedendo que o réu conduzia, na altura, com uma taxa de álcool no sangue de 1,18 gramas/litro, pelo que a autora/recorrente fundamenta o pedido no direito de regresso que diz lhe assistir sobre o seu segurado, ora réu, por conduzir sob a influência de álcool no sangue nos termos previstos no artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto.

O réu contestou argumentando que não conduzia sob a influência de álcool e, por outro lado, o acidente ficou a dever-se apenas ao facto de ter tido necessidade de se desviar de um animal (javali) que atravessou de repente a estrada e motivou a perda do controlo do veículo que conduzia, que de seguida se despistou.

No final foi proferida sentença com este dispositivo:

«Em face do exposto, nos termos e com os fundamentos indicados, julgo a presente acção procedente e, em consequência, condeno o Réu C (…) a pagar à Autora a quantia de € 56.405,30 (cinquenta e seis mil, quatrocentos e cinco euros e trinta cêntimos), acrescida de juros de mora calculados à taxa legal de 4%, contados desde o dia 3 de Agosto de 2018 até integral pagamento.

Custas a cargo do Réu (cfr. artigo 527º, n.º 1 e 2, do CPC), sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido»

b) É desta decisão que vem interposto recurso por parte do réu, cujas conclusões são as seguintes:

«I. Por sentença proferida nos autos à margem referenciados, foi a presenta ação julgada totalmente procedente, sendo réu condenado no pagamento 56.405,30€ (cinquenta e seis mil quatrocentos e cinco euros e trinta cêntimos) acrescida de juros de mora calculados à taxa legal de 4% contados desde 03 de agosto de 2018, até integral pagamento.

II. Ao abrigo do disposto no artigo 640.º do NCPC, cabe à Recorrente enunciar os factos que considera incorretamente julgados.

III. Considerando os factos não provados, e bem assim os provados, desde já se impugna todo o entendimento do tribunal a quo, que andou mal ao tomar a decisão de que ora se recorre, com o devido respeito por entendimento contrário.

Se não vejamos,

IV. Apesar de toda a documentação trazida ao processo como prova do alegado ao longo das peças processuais apresentadas pelas Partes – Petição Inicial e Contestação – a matéria aqui em crise apenas poderia ser provada através dos depoimentos prestados pela testemunha e bem assim por declarações de parte do condutor.

V. No que concerne ao depoimento prestado pela testemunha da Autora, a mesma apenas refere inicialmente tratar-se de um despiste isolado, de que não resultou do auto de notícia qualquer realização de despiste a presença de substâncias no sangue do condutor (gravação digital efetuada na aplicação Habilus – módulo Habilus Media Studio - 20200131094729_1764718_2870661 ao minuto 01m54s – 02m23s).

VI. Mais, das declarações de parte do Réu, condutor do veículo no momento do acidente, resulta claro que o despiste ficou a dever-se exclusivamente à travessia de um animal de grande porte (javali) que o levou a perder o controlo do veículo, não tendo, além do mais, consumido qualquer bebida alcoólica naquele dia, a não ser um copo de vinho na hora de almoço. (Habilus – módulo Habilus Media Studio - 20200131100112_1764718_287661 –02min38seg a 12min 25seg).

VII. Andou mal o Tribunal a quo ao desconsiderar tudo quanto vem dito pelo réu.

VIII. Portanto, andou mal o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, devendo a sentença ser revista e ser dado como provado que o acidente ocorrido não se ficou a dever a qualquer falta de cuidado do condutor, não se encontrando aqui qualquer culpa face aos factos.

IX. E, tal vem explicitamente decidido no âmbito do processo crime que correu termos na Procuradoria do Juízo Local do Função – Secção de Inquéritos, sob processo n.º 93/16.9GTCTB, em que resultando o arquivamento de tal, vem explicito “Posto o que, da prova indiciária recolhida nos autos não se nos afigura possível imputar a morte de J (…) à conduta, de todo, dolosa do arguido, nem mesmo negligente, uma vez que não ficou demonstrado que o acidente se tenha ficado a dever à falta de cuidado por parte deste.”.

X. Ao desconsiderar tudo quanto vem dito quer no sentido de despacho de arquivamento, quer por declarações de parte do Réu, formando a contrario a sua convicção em meros juízos de probabilidade, à luz de uma teoria infundada, com o devido respeito, não se vislumbra como pode o Tribunal a quo ter decido, como decidiu, julgando procedente a ação.

XI. Dado o que se impõe decisão diferente e, bem assim, formando-se convicção diferente da que se vê plasmada na sentença recorrida. Pelo que, deverá o Tribunal ad quem pugnar por decisão diferente, decidindo em conformidade com a prova produzida, revogando a decisão proferida pela 1.ª instância nos termos do preceituado no artigo 662.º do NCPC.

XII. Face a tudo quanto ficou exposto quanto à matéria de facto, entende-se que, em conformidade com a mesma, deverá a decisão que recaiu sobre a matéria de Direito ser também modificada, na medida em que impugnados que se encontram os factos dados como não provados, e bem assim os provados, os mesmos terão de se subsumir a decisão diferente quanto à matéria de Direito!

XIII. De acordo com o normativo legal de direito de regresso das seguradoras, pode ler-se que, nos termos e para os efeitos da alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º do Decreto Lei 291/2007, apenas aquele que tenha dado causa ao acidente e verifique taxa de alcoolemia superior ao legalmente admitido, poderá assumir o dever de reembolsar as seguradoras.

XIV. O condutor no dia e hora em causa encontrava-se a conduzir o veículo por se encontrar consciente e com todas as capacidades para a prática da atividade de condução.

XV. Não consumiu, naquele dia e hora, ou sequer horas anteriores, bebidas alcoólicas que justifiquem a alegada taxa de álcool apurada.

XVI. E, bem resulta que a causa do acidente é, de facto, alheia a uma conduta desvaliosa por parte do condutor. O que se verificou foi a travessia da faixa de rodagem por animal de grande porte, que levou a perda de controlo, pelo condutor, do veículo, culminando no despiste do mesmo.

XVII. Não é, nem pode ser exigido, a um condutor a previsão de uma conduta de um animal selvagem, previsão que o pudesse antecipar o comportamento daquele (que nem sequer é visível ou audível, no período da noite, apesar do seu porte) e assim desviar-se sem que se verificasse o despiste.

XVIII. Conforme resulta do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de

14/07/2008, referente ao processo 0834104, disponível em www.dgsi.pt, verifica-se que “II - Com efeito, o critério de culpa consagrado na nossa Lei é o da diligência de um homem médio, do bom pai de família, expresso no art., 487.º n.º 2 do C.P.C.. Não é o da diligência dum “Michael Schumacher !”.”

XIX. Sendo clara, objetiva e exigente quanto à verificação cumulativa daqueles dois critérios, a supra mencionada norma legal, não se verifica aqui possível a conclusão do douto Tribunal a quo, decidindo como fez.

XX. O certo é que o acidente não se ficou a dever a qualquer falta de cuidado por parte deste. Não foi este quem deu causa ao acidente.

XXI. Restringe-se, desta feita, o destinatário do exercício do direito de regresso ao condutor culpado na eclosão do acidente e este é um critério que se terá necessariamente de se encontrar preenchido para se poder exigir regresso de indemnizações liquidadas pela seguradora, o que não se verifica na presente situação.

XXII. O certo é que da prova produzida e recolhida não se verifica uma conduta, de todo, dolosa ou sequer negligente, uma vez que não ficou demonstrado que o acidente se tenha ficado a dever à falta de cuidado por parte deste.

XXIII. Não está presente o elemento essencial: a culpa do condutor!

XXIV. Não é, nem pode ser, ao condutor exigida qualquer quantia quando o mesmo não deu causa ao acidente, impondo-se, desta forma, a absolvição do Réu dos presentes autos!

XXV. Deste modo, face ao exposto, também esta parte da sentença deve ser revista e decisão diferente se impõe como V. Exas. doutamente suprirão.

Nestes termos e nos demais de direito aplicáveis requerem a

V/exas.se dignem dar provimento ao recurso e ser revogada a sentença proferida pelo tribunal a quo, substituindo-a por decisão, que reponha a verdade, nos termos anteriormente expressos, designadamente absolvendo-se o réu do pedido formulado, fazendo-se, assim, a costumada justiça!

c) Contra-alegou a Autora pugnado pela manutenção da sentença.

II. Objeto do recurso.

De acordo com a sequência lógica das matérias, cumpre começar pelas questões processuais, se as houver, prosseguindo depois com as questões relativas à matéria de facto e eventual repercussão destas na análise de exceções processuais e, por fim, com as atinentes ao mérito da causa.

Tendo em consideração que o âmbito objetivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as questões que este recurso coloca são as seguintes:

1 – A primeira questão colocada respeita à impugnação da matéria de facto.

Muito embora o recorrente não tenha identificado os factos que impugna, recorrendo à indicação do número que lhe corresponde ou escrevendo-os integralmente ([1]), percebe-se que pretende que o tribunal adquira a convicção de que não era portador de álcool no sangue e que o acidente se ficou a dever ao facto dele réu ter perdido o controlo do veículo porque se desviou de um javali que se atravessou, de repente, à frente do veículo que conduzia.

Por conseguinte, pretende que os factos «não provados» n.º 3 e 4 sejam declarados «provados».

Têm esta redação:

«3. O Réu perdeu o controlo do veículo por causa de um animal de grande porte que atravessou a faixa de rodagem»;

«4. O Réu ingeriu apenas um ou dois copos de bebidas alcoólicas várias horas antes de ter ocorrido o acidente».

E pretende que os factos provados n.º 7 a 13 sejam declarados não provados, ou seja, no essencial os factos 7 e 9 com esta redação:

«7. Nas circunstâncias mencionadas, o Réu conduzia o veículo de matrícula (...) -RF com uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 1,03 gramas/litro»;

9. O Réu tinha ingerido bebidas alcoólicas que alteraram o seu estado físico e psíquico, sabendo que lhe estava vedada, por lei, a condução de veículos automóveis nessas condições».

2 – Em segundo lugar, coloca-se a questão de direito que resultará da alteração dos factos e que conduzirá à declaração e irresponsabilidade do Réu e sua absolvição do pedido.

III. Fundamentação

a) Impugnação da matéria de facto

O réu recorrente argumenta que «IV. Apesar de toda a documentação trazida ao processo como prova do alegado ao longo das peças processuais apresentadas pelas Partes – Petição Inicial e Contestação – a matéria aqui em crise apenas poderia ser provada através dos depoimentos prestados pela testemunha e bem assim por declarações de parte do condutor.

V. No que concerne ao depoimento prestado pela testemunha da Autora, a mesma apenas refere inicialmente tratar-se de um despiste isolado, de que não resultou do auto de notícia qualquer realização de despiste a presença de substâncias no sangue do condutor (…)

VI. Mais, das declarações de parte do Réu, condutor do veículo no momento do acidente, resulta claro que o despiste ficou a dever-se exclusivamente à travessia de um animal de grande porte (javali) que o levou a perder o controlo do veículo, não tendo, além do mais, consumido qualquer bebida alcoólica naquele dia, a não ser um copo de vinho na hora de almoço...».

De facto, apenas foram inquiridas estas duas pessoas, mas isso não implica que toda a prova se reduza a estes depoimentos ou que toda a outra prova se subordine a estes depoimentos e que a convicção do juiz se tenha de formar de harmonia com aquilo que foi dito através de tais depoimentos.

Com efeito, cada meio de prova tem o seu valor próprio, muito embora tal valor também dependa da sua confrontação com os restantes meios de prova que o fortalecerão ou degradarão em determinado sentido.

Ora, temos também nos autos a documentação relativa ao acidente a qual foi produzida pela entidade pública a quem a lei incumbe a documentação dos acidentes de trânsito, no caso a GNR, bem como a documentação relativa á perícia médico-legal, que o tribunal pode e deve valorar, de modo livre, para formar a convicção.

Vejamos então.

Quanto à matéria relativa à taxa de alcoolemia

Nada há a opor à convicção formada na 1.ª instância e ao modo como foi exposta e, por isso, se passa a transcrever:

«Relativamente ao facto a que alude o número 7. do elenco dos factos considerados provados o Tribunal valorou o teor do relatório pericial cuja cópia foi junta a fls. 14 -verso e 15 dos autos, o qual foi conjugado com o auto de participação de acidente de viação a que já se aludiu.

Na verdade, consta do mencionado auto de participação de acidente de viação a informação de que o condutor do veículo de matrícula (...) -RF “foi submetido ao teste de despistagem de álcool e psicotrópicos através de recolha de sangue no IML da ULS de x (...) através de contentor com selo n.º 44419 ficando o participante a aguardar resultado” (cfr. fls. 12-verso).

Ora, o relatório pericial documentado a fls. 14-verso e 15 contém também a indicação do selo n.º 044419, bem como a identificação do local da colheita como sendo o Hospital L (...) , em x (...) , e a indicação de que a colheita teve lugar no dia 11 de Dezembro de 2016, pelas 02h25.

Trata-se, como é bom de ver, de elementos coincidentes com os verificados no caso em apreço, razão pela qual não subsistem quaisquer dúvidas de que o exame pericial realizado pelo Instituto Nacional de Medicina Legal diz respeito à amostra de sangue colhida ao Réu cerca de três horas e vinte minutos após o momento em que ocorreu o acidente.

Analisado o teor do relatório pericial a que se tem vindo a aludir, verifica-se que a análise efectuada pelo Instituto Nacional de Medicina Legal conduziu à detecção de uma taxa de álcool no sangue de “1,18 +/- 0,15 g/l”.

Quer isto dizer que, de acordo com os métodos científicos utilizados pelo Instituto Nacional de Medicina Legal, o resultado obtido poderá apresentar uma variação de 0,15 gramas/litro quer acima, quer abaixo desse resultado.

Assim, impõe-se admitir que a taxa de álcool no sangue apresentada pelo Réu estaria fixada entre o limite mínimo de 1,03 gramas/litro e o limite máximo de 1,33 gramas/litro.

Nestes termos, não permitindo os métodos utilizados determinar, dentro dessa variação, qual era a concreta taxa de álcool no sangue apresentada pelo Réu, o Tribunal considerou demonstrado apenas que este apresentava uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 1,03 gramas/litro, por ser esse o valor que, com total segurança, resulta do exame pericial realizado».

É certo que o réu referiu que não tinha consumido bebidas alcoólicas, salvo um copo de vinho ao almoço, mas estas declarações não correspondem à realidade, porquanto a recolha e análise do seu sangue mostrou o contrário.

Ora, a convicção do tribunal não pode deixar de aderir à prova pericial em detrimento da prova por declarações de parte (ou testemunhal), mormente quando se trate de matéria factual não testemunhável, como é o teor de álcool no sangue, e sobre a qual existe pronunciamento pericial.

As perícias médico-legais estão reservadas exclusivamente para os peritos e, neste caso, preferencialmente para os peritos dos Institutos de Medicina Legal (artigo 467.º, n.º 3 e 4 do Código de Processo Civil).

Por conseguinte, o tribunal na formação da sua convicção, quando a factualidade tiver natureza pericial, basear-se-á essencialmente nos relatórios periciais e só deverá divergir deles em casos excecionais, devidamente fundamentados.

Improcede, pelo exposto, a impugnação da matéria de facto nesta parte.

Vejamos agora a parte relativa à alegação de que o despiste se ficou a dever ao súbito aparecimento de um javali que atravessou a estrada à frente do veículo.

Na sentença recorrida formou-se a convicção negativa quanto a esta factualidade, argumentando-se:

«Para além do mais, também no que concerne ao aparecimento, na faixa de rodagem, do animal identificado pelo Réu se afigura que tais declarações são inverosímeis.

É sabido que nalguns locais de características rurais situados nesta área geográfica são localizados, por vezes, animais da espécie indicada pelo Réu, em especial durante a noite.

No entanto, não é habitual tais animais aproximem-se de áreas urbanas, antes permanecendo nas áreas florestais.

Ora, resulta da visualização das fotografias juntas a fls. 20 e 21 que o local onde ocorreu o acidente fica situado nas proximidades de uma povoação, o que significa que seria pouco provável o aparecimento de um desses animais nesse local.

Mas, para além disso, não deixa de ser significativa a circunstância de o auto de participação de acidente de viação elaborado pela entidade policial competente conter a informação de que “o condutor, ao ser questionado como tinha ocorrido o acidente, o mesmo declarou verbalmente que não se recordava de nada” (cfr. fls. 12-verso).

Se, efectivamente, o Réu se tivesse deparado com um javali imediatamente antes de ter perdido o controlo do veículo não deixaria de comunicar esse facto à entidade policial que providenciou pela elaboração da participação referente ao acidente.

Deste modo, não tendo sido produzida qualquer prova objectiva e consistente que confirmasse o facto a que alude o número 3., foi o mesmo integrado no elenco dos factos considerados não provados».

Concorda-se em geral com esta fundamentação, em especial com o facto do réu não ter mencionado às autoridades policiais, na altura do acidente, o súbito aparecimento de um javali à frente do veículo.

 Se efetivamente o javali tivesse sido a causa do despiste o réu não podia ter deixado de mencionar tal facto e as autoridades policiais e se o réu tivesse declarado que se despistou ao desviar-se do javali as autoridades policiais tinham escrito isso mesmo no auto relativo ao acidente e não que «o condutor, ao ser questionado como tinha ocorrido o acidente, o mesmo declarou verbalmente que não se recordava de nada».

Apenas se acrescenta um pormenor que poderia corroborar a tese do réu, mas que perde verosimilhança perante o facto do réu não ter declarado na altura aos agentes da autoridade policial que tentou desviar-se de um animal (javali).

De facto, na representação gráfica do acidente (croquis), que se vê na participação policial do mesmo, constam rastos travagem relativos aos pneus traseiro e dianteiro do lado direito (só do lado direito), que se iniciam na faixa direita, considerando o sentido de marcha do veículo, e atravessam toda a via em direção à berma esquerda onde o veículo se imobilizou.

Ora, é certo que quando um condutor é surpreendido por um obstáculo que surge repentinamente à sua frente, cortando-lhe a trajetória, reage instintivamente, ou seja, sem pensar, sem refletir no que deverá fazer (não há tempo para isso).

Por ser assim, o instinto leva o condutor a desviar-se ou a travar bruscamente, podendo ocorrer os dois procedimentos ou apenas um deles, consoante as circunstâncias e perícia dos condutores.

Os rastos de travagem indiciam de facto que algo levou o condutor a travar, mas tal facto não implica necessariamente a presença de um animal na estrada, podendo ocorrer por outras razões, por razões que possam ter levado o condutor a sentir insegurança como, cruzamento de veículos, breve adormecimento, excesso de velocidade, distração, etc.

Por fim, o facto do réu ter declarado, mais tarde, que se despistou ao desviar-se de um javali, tal declaração é apenas uma afirmação sobre a realidade que carece de confirmação, no sentido de corresponder ou não corresponder a algo que efetivamente existiu no mundo.

As afirmações das partes ou das testemunhas carecem, pois, em regra, de corroboração, de receber apoio de outros meios de prova, das regras da experiência e, inclusive, da própria probabilidade prática de tais factos terem ocorrido dado o fundo factual mais vasto conhecido ou pressuposto pelas partes.

É esta conjugação de elementos que contribuirá para gerar a convicção de que as afirmações das partes e das testemunhas corresponderão, ou não, à realidade histórica.

Sendo assim, o depoimento em si mesmo, não tem, em regra, capacidade para convencer o juiz de que o mesmo corresponde à realidade.

Não se pode formar, pelo que fica exposto, a convicção de que o despiste ocorrer porque o réu se desviou de um javali

Cumpre manter a matéria de facto que foi impugnada tal como consta da sentença.

d) 1. Matéria de facto – Factos provados

1. No exercício da atividade de exploração dos diversos ramos de seguro a que se dedica, a Autora celebrou com J (…) um contrato de seguro do ramo automóvel titulado pela Apólice n.º (...) , relativo ao veículo ligeiro de passageiros de marca Opel, modelo Astra e matrícula (...) -RF.

2. Através do referido contrato de seguro o proprietário do veículo de matrícula (...) -RF transferiu para a Autora a responsabilidade civil pelos danos emergentes da circulação do mesmo, bem como os danos causados no próprio veículo seguro.

3. No dia 10 de dezembro de 2016, pelas 23h05, na Estrada Nacional n.º 233, ao Km 69,9, ocorreu um acidente de viação no qual foi interveniente o veículo de matrícula (...) -RF.

4. Nesse momento, o veículo de matrícula (...) -RF era conduzido pelo Réu C... .

5. O local onde ocorreu o acidente configura uma estrada reta em patamar, onde o limite de velocidade é de 50 Km/hora, por se situar dentro de uma localidade.

6. O veículo de matrícula (...) -RF circulava na Estrada Nacional n.º 233 quando, ao Km 69,90, o Réu perdeu o controlo do veículo, entrando em despiste para o lado esquerdo e invadindo a hemi-faixa contrária, após o que embateu com a parte lateral direita do veículo numa árvore de porte médio, ficando imobilizado junto da referida árvore.

7. Nas circunstâncias mencionadas, o Réu conduzia o veículo de matrícula (...) -RF com uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 1,03 gramas/litro.

8. A referida taxa de alcoolemia colocou o Réu num estado fisiologicamente debilitado.

9. O Réu tinha ingerido bebidas alcoólicas que alteraram o seu estado físico e psíquico, sabendo que lhe estava vedada, por lei, a condução de veículos automóveis nessas condições.

10. Ainda assim, o Réu não se absteve de conduzir nas circunstâncias mencionadas, desinteressando-se das consequências que poderiam resultar da sua conduta.

11. Por causa das bebidas alcoólicas que tinha ingerido, o Réu apresentava os seus reflexos e discernimento diminuídos.

12. Ao conduzir o veículo de matrícula (...) -RF num estado fisiologicamente debilitado, o Réu não logrou adotar as precauções necessárias para, em segurança, fazer circular o veículo de forma prudente.

13. Em consequência do estado fisiologicamente alterado em que se encontrava, o Réu não teve capacidade para reagir e controlar o veículo de forma a evitar o embate.

14. Em consequência do acidente, o proprietário do veículo, J (…)que circulava no banco da frente do lado direito, faleceu, tendo o óbito sido verificado no local pelo médico do INEM.

15. Em consequência do acidente, J (…), que circulava no banco traseiro do veículo, sofreu ferimentos graves.

16. A participação do acidente de viação a que se tem vindo a aludir deu origem à instauração do Inquérito n.º 93/16.9GTCTB, que correu termos na Procuradoria do Juízo Local do Fundão.

17. Mediante despacho proferido a 15 de março de 2018 foi determinado o arquivamento do mencionado Inquérito, com base nos seguintes fundamentos: “A factualidade descrita nos autos mostra-se, pois, suscetível de, em abstrato, integrar a prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo art. 137.º, n.º 1, do Código Penal.

Procedeu-se a inquérito, tendo sido realizadas as diligências tidas por úteis à descoberta da verdade dos factos, cuja documentação se encontra junta aos autos.

A fls. 34 a 37 dos autos mostra-se junto o relatório de autópsia médico-legal efetuada ao cadáver da vítima, do qual decorre, em sede de conclusões, que «A morte de J (…) foi devida às lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas e toraco-abdominais atrás descritas. Tais lesões traumáticas constituem causa adequada de morte. Estas e as restantes lesões traumáticas denotam haver sido produzidas por instrumento de natureza contundente ou atuando como tal, podendo ter sido devidas a acidente de viação, como consta da informação. As análises toxicológicas efetuadas revelaram a presença de etanol em amostra de sangue periférico na quantidade de 2,03 +/- 0,26 g/l».

O relatório final da investigação desencadeada pelo Núcleo de Investigação Criminal de Acidentes de Viação da GNR de x (...) está junto a fls. 255 a 259, tendo-se apurado que o veículo interveniente no acidente de viação estava em boas condições de circulação e funcionamento, bem assim a via onde se deu o mesmo acidente estava nas devidas condições de circulação, com bom piso e devidamente sinalizada, como as condições atmosféricas estavam boas, o piso seco e havia boa visibilidade. Pelo que necessariamente as causas do acidente ter-se-ão ficado a dever a falha humana do arguido.

Em sede de interrogatório, o arguido esclareceu as circunstâncias em que se deu o acidente, tendo referido que estava a conduzir o veículo a pedido da vítima J (…) por este estar embriagado e pretenderem deslocar-se da Aldeia de k.. para as q.

Depois de passar o cruzamento de w... teve necessidade de efetuar uma manobra evasiva para a esquerda, para se desviar de um animal que atravessou a estrada, que lhe pareceu ser um javali, daí resultando a perda de controlo sobre o veículo e o subsequente despiste.

Não foram inquiridas outras testemunhas que firmassem ou infirmassem a versão dos factos trazida aos autos pelo arguido.

Perante o apuramento de tais factos propôs-se ao arguido a suspensão provisória do processo, que o mesmo aceitou, mas que foi rejeitada pela Mm.ª JIC, com argumentos que rejeitámos em absoluto e cuja decisão impugnámos até ao limite admissível, sem sucesso.

Sucede que, se os factos apurados eram suficientes para responsabilizar criminalmente o arguido ao nível da suspensão provisória do processo, de exigência probatória menor relativamente a um julgamento, os mesmos factos já não são suficientes para sustentar uma acusação pública contra o arguido, sendo em julgamento a exigência probatória consideravelmente maior, sendo que dos autos apenas resulta a sua própria versão dos factos, que de resto é verosímil e que a confirmar-se em julgamento poderia até determinar a exclusão da sua culpa.

Neste momento, não se nos afiguram possíveis nem profícuas quaisquer outras diligências suscetíveis de produzir efeito útil que possam ser levadas a cabo para  um mais completo esclarecimento da factualidade participada.

Posto o que, da prova indiciária recolhida nos autos não se nos afigura possível imputar a morte de J (…) à conduta, de todo, dolosa do arguido, nem mesmo negligente, uma vez que não ficou demonstrado que o acidente se tenha ficado a dever à falta de cuidado por parte deste.

Pelo exposto, determino o arquivamento dos autos, ao abrigo do disposto no art. 277º, n.º 2, do Código de Processo Penal.”.

18. Após conhecimento de todos os factos relevantes, a Autora assumiu, perante os herdeiros da vítima mortal e perante o ferido grave, a responsabilidade pelo ressarcimento dos danos resultantes do acidente ocorrido no dia 10 de dezembro de 2016.

19. A Autora pagou à sociedade comercial N (…), Lda., a quantia de €1.147,00, a título de despesas relacionadas com o acordo de quitação e uma deslocação ao y... .

20. A Autora pagou a S (…), na qualidade de filha do falecido J (…) a quantia de €55.000,00, a título de indemnização pela morte do mesmo.

21. A Autora pagou à sociedade comercial denominada N (…)Lda., a quantia de € 61,50, referente a uma diligência realizada em Tribunal.

22. A Autora pagou à sociedade comercial denominada S (…), Lda. a quantia de € 196,80, referente à averiguação por esta realizada.

23. Mediante comunicação datada de 30 de Julho de 2018, a Autora comunicou ao Réu o seguinte:

“No momento da verificação do sinistro ocorrido a 10-12-2016, pelo qual foi considerado totalmente responsável, constatámos que conduzia sob influência de uma taxa de alcoolemia superior ao máximo permitido por lei. Este facto foi referido pelas autoridades que tomaram conta da ocorrência, nomeadamente a GNR – x (...) , no respetivo auto de infração.

Reembolso das despesas.  Deste modo, de acordo com a lei em vigor e com o descrito nas Condições Gerais da Apólice, assiste-nos o direito de regresso dos pagamentos efectuados com a regularização dos prejuízos do terceiro.

Com base nos comprovativos que anexamos, solicitamos o reembolso das despesas suportadas neste processo no montante de 56.405,30 €.

Forma de pagamento

Para o efeito poderá utilizar a forma que entender mais conveniente (cheque, vale de correio ou Transferência bancária).

No caso de não obtermos resposta a esta carta nos próximos 10 dias, seremos forçados a encaminhar o assunto para os nossos serviços jurídicos. (…).”.

24. Mediante comunicação datada de 7 de setembro de 2018, o Ilustre Mandatário do Réu comunicou à Autora o seguinte:

“Fui incumbido pelo M/Constituinte de dar resposta à vossa missiva datada de 30 de Julho de 2018.

De acordo com o que nos remete, somos a referir que o M/Constituinte não tem

disponibilidade financeira para o pagamento da quantia peticionada, devido à carência económica atravessada pelo mesmo. (…).”.

25. Através de email remetido a 11 de Setembro de 2018, a Autora comunicou ao Ilustre Mandatário do Réu o seguinte:

“Em resposta à mesma, e como é do conhecimento de V. Exas., o Sr. (…) provocou um acidente de viação, quando conduzia a viatura de matrícula (...) -RF sob influência de uma taxa de alcoolemia superior ao permitido por lei, no caso em concreto, 1,18 g/l.

Pelo exposto, e como não poderemos compactuar com tais actos, não abdicamos do pedido inicial, contudo, estamos prontos a analisar uma proposta que nos queiram apresentar quanto ao pagamento da dívida em prestações mensais.

Na eventualidade de não nos ser apresentada qualquer proposta, vamos enviar o processo para os nossos serviços jurídicos. (…).”.

26. Mediante comunicação datada de 31 de Outubro de 2018, o Ilustre  Mandatário da Autora comunicou ao Réu o seguinte:

“Na qualidade de mandatário da L (…) S.A., serve a presente comunicação para solicitar o reembolso da quantia de € 56.405,30 () suportada na regularização dos danos decorrentes do sinistro ocorrido no dia 10 de Dezembro de 2016, conforme carta remetida a V. Exa. no dia 30 de Julho de 2018, remetida pela N/Constituinte.

A título excecional concedemos um prazo adicional de 10 dias para que procedam ao pagamento devido, estando disponíveis para um eventual acordo, sob pena de intentarmos de imediato a competente ação judicial para reclamação da quantia em causa.

O pagamento deverá ser efetuado, até ao próximo dia 12 de Novembro de 2018 para o seguinte IBAN: (…).

Deverá ser enviado o comprovativo da transferência para (…).

Em caso de acção judicial, ao valor referido acrescem juros, taxas de justiça e demais despesas e honorários. (…).”.

2. Matéria de facto – Factos não provados

1. O estado em que o Réu conduzia o veículo de matrícula (...) -RF encontrava-se agravado pela inexperiência de quem não está habilitado a conduzir veículos motorizados.

2. O Réu é pessoa que habitualmente não ingere bebidas alcoólicas, não se encontrando o seu organismo adaptado a tais substâncias.

3. O Réu perdeu o controlo do veículo por causa de um animal de grande porte que atravessou a faixa de rodagem.

4. O Réu ingeriu apenas um ou dois copos de bebidas alcoólicas várias horas antes de ter ocorrido o acidente.

c) Apreciação da restante questão objeto do recurso

A reanálise do aspeto jurídico da sentença estava dependente da procedência do recurso na parte relativa à impugnação da matéria de facto, o que não veio a ocorrer.

Apenas se deixa referido que se entende que o direito de regresso nos termos previstos no artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, não depende da prova, a fazer por quem invoca o direito, do nexo de causalidade entre a presença de álcool no sangue do condutor e o acidente.

Na vigência do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de dezembro, esse nexo era exigido e foi mesmo fixada jurisprudência obrigatória pelo Supremo Tribunal de Justiça nesse sentido:

«A alínea c) do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente» - Acórdão n.º 6/2002, de 28 de maio de 2002. Diário da República, I Série-A, de 18/07/2002.

A atual lei sobre a matéria está contida no artigo 27.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto (Direito de regresso da empresa de seguros), onde se estabelece, na parte que aqui interessa, o seguinte:

«1 - Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso: a)…; b)…;

c) Contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos;

d) Contra o condutor, se não estiver legalmente habilitado, ou quando haja abandonado o sinistrado; (…)».

Face a esta redação da norma, afigura-se claro que agora o referido nexo de causalidade não é exigido como pressuposto do direito de regresso, pois os pressupostos são apenas dois:

(I) Quando o condutor tenha dado causa ao acidente; e

(II) Conduza com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida (ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos).

Não se exige aqui qualquer nexo de causalidade.

Aliás esta não exigência de nexo de causalidade está em consonância com o disposto na alínea d) seguinte, que também não exige qualquer nexo de causalidade entre o acidente e o facto do condutor não se encontrar legalmente habilitado, ou quando haja abandonado o sinistrado, sendo certo que nesta última hipótese o nexo de causalidade só podia respeitar aos danos gerados pelo abandono, mas não ao acidente que é cronologicamente anterior ao abandono.

Dir-se-á que a própria ação de conduzir sob o efeito do álcool (ou sem habilitação legal) é o exercício de uma ação proibida por lei e, portanto, se a lei tivesse sido cumprida pelo condutor o acidente não teria ocorrido porque o condutor com toda a certeza não estaria «ali» no momento em que o acidente ocorreu.

Sem repetir a jurisprudência indicada na sentença recorrida, no sentido de não se exigir tal nexo de causalidade podem ver-se os seguintes acórdãos:

• Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de dezembro de 2012, no processo n.º 665/10.5TBVNO.C1 (Artur Dias):

«I – De acordo com o art. 27.º, n.º 1, al. c) do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21/08, “satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso … contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos”.

II - Das diferentes redacções da al. c) do art. 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85 e da al. c) do nº 1 do art. 27.º do Decreto-Lei n.º 291/2007 afigura-se-nos que o legislador não pretendeu dizer o mesmo por diferentes palavras.

III - Sabedor da controvérsia jurisprudencial passada e da prolação do Ac. Unif. Jur. do STJ n.º 6/2002, se fosse vontade do legislador manter a situação existente teria deixado inalterada a expressão “tiver agido sob influência do álcool”.

IV - Conscientes do melindre jurídico da questão, adoptamos o entendimento de que a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 291/2007, nomeadamente da al. c) do n.º 1 do art. 27.º, postergou a orientação que, na vigência da al. c) do artº 19º do Decreto-Lei nº 522/85, decorria do AUJ do STJ nº 6/2002 e, portanto, que nos acidentes a que seja já aplicável o regime do Decreto-Lei nº 291/2007, para ser reconhecido direito de regresso à seguradora que satisfez a indemnização basta ter sido alegado e provado que o condutor/segurado deu causa ao acidente e conduzia com uma taxa de alcoolemia superior à permitida por lei, dispensando-se a alegação e prova de nexo de causalidade».

• Acórdão do STJ de 28 de novembro de 2013 (Silva Gonçalves), Colectânea de Jurisprudência (Acórdãos do S.T.J.), ano XXI (2013), Tomo III, pág. 147: «O direito de regresso – do art. 27.º/1/c) do D.L. 291/2007, de 21-08, e decorrente da condução com uma taxa de alcoolemia superior ao mínimo legal – não exige a prova do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente».

•Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de abril de 2017, no processo n.º 1658/14.9TBVLG.P1. S1 (Lopes do Rego):

«A alteração legislativa corporizada na art. 27.º, n.º 1, alínea c) do DL 291/2007 (apagando a expressão agido sob influência do álcool e substituindo-a pelo – muito mais objectivado - segmento normativo conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida) teve como consequência dispensar a seguradora do ónus de demonstração de um concreto nexo causal entre o erro ou falta, cometido pelo condutor alcoolizado no exercício da condução, - e que despoletou o acidente - e a situação de alcoolemia, envolvendo a normal e provável diminuição dos reflexos e capacidade reactiva do condutor alcoolizado».

•Tribunal da Relação de Coimbra de 29-05-2012, no processo n.º 273/10.0T2AVR.C1 (Judite Pires): «No âmbito do artigo 27º, nº1, c) do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21/8, para que seja reconhecido à seguradora que satisfez a indemnização o direito de regresso basta que a mesma alegue e prove que foi o segurado que deu causa ao acidente e que na altura conduzia com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida, não carecendo de alegar e provar a existência de nexo de causalidade entre o estado de alcoolemia e a produção do acidente».

•Tribunal da Relação de Coimbra de 14-03-2017, no processo n.º 1160/15.1T8LRA.C1 (Vitor Amaral):

«... 6. Na nova lei (art.º 27.º, n.º 1, al.ª c) o direito de regresso basta-se, para além da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil subjetiva do condutor e do cumprimento da prestação indemnizatória pelo segurador, com uma TAS superior à legalmente permitida.

7. - Por isso, o direito de regresso prescinde agora da questão de saber se em concreto a TAS influenciou a condução, dispensando-se a demonstração do nexo de causalidade adequada entre o estado de alcoolemia e o acidente/danos».

•Tribunal da Relação de Coimbra de 14/01/2020, proc. n.º 1446/17.0T8VIS.C1 (Barateiro Martins):

«Não exige a lei (art. 27.º/1/c) do DL n.º 291/2007) a alegação e prova de qualquer relação (nexo causal) entre a alcoolemia e a produção do acidente, bastando a verificação objectiva da alcoolemia no sangue do condutor para, sendo este o responsável pelo acidente, fundamentar o “automático” direito de regresso da seguradora».

Cumpre, face ao exposto, manter a sentença recorrida.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e mantém-se a decisão recorrida. Custas pelo Recorrente.


*

Coimbra, 13 de julho de 2020

Alberto Ruço ( Relator )

Vitor Amaral

Luis Cravo



[1] Solicita-se que no futuro, noutros casos em que seja impugnada matéria de facto, se identifiquem os factos recorrendo à indicação do número de ordem que lhe corresponde na matéria de facto ou escrevendo-os integralmente. Este modo de proceder promove a clareza, a certeza e economiza tempo.