Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
24484/16.6T8LSB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: INSOLVÊNCIA
MAIS VALIAS
IRS
DÍVIDAS DA MASSA
Data do Acordão: 02/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO COMÉRCIO DE ALCOBAÇA DO TRIBUNAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 51.º, 81.º DO CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESA (DL N.º 53/2004, DE 18 DE MARÇO).
Sumário: A despesa resultante da tributação em IRS, na categoria de mais valias devidas pela venda de um imóvel apreendido para a massa insolvente, é uma dívida da massa insolvente.
Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes da 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório

AA e mulher BB, contribuintes fiscais respetivamente nº ...49 e ...12, declarados insolventes nos autos de ação especial supra em referência, lançaram nos autos o seguinte requerimento:

“01.

Os Requerentes procederam à apresentação da sua Declaração de IRS, no cumprimento das suas obrigações legais, conforme Doc. 1 ora junto e aqui dado por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.

02.

Decorre da Nota de Liquidação respetiva, ora igualmente junta como Doc. 2 que, o casal formado pelos Requerentes tem a pagar a importância de 4.321,34€ (quatro mil trezentos e vinte e um euros e trinta e quatro cêntimos);

03.

Este montante é devido à venda do terreno situado em ..., apreendido para a massa insolvente na sua insolvência pessoal.

04.

Sem considerar tal venda, o casal aqui requerente, teria apenas a pagar a importância de 577,49€ (quinhentos e setenta e sete euros e quarenta e nove cêntimos), conforme simulação ora igualmente junta como Doc. 3 (sem o Anexo G, respeitante a mais valias);

05.

Ora, não tendo os Requerentes auferido o produto da venda do aludido terreno, afigura-se-nos injusto que hajam eles de suportar o encargo com o pagamento do imposto, que deverá ser suportado pela massa insolvente pois que, a massa sim, procedeu à venda e recebeu o respetivo preço e os Requerentes não têm meios nem possibilidade de procederem ao pagamento dessa quantia.

Considerando que, o imposto deve ser pago até 31 de Agosto, vêm os Requerentes solicitar respeitosamente a V. Exa a permissão para procederem ao depósito na massa insolvente apenas da quantia que deveriam pagar sem consideração da aludida venda (577,49€), por a diferença para o valor de 4.321,34€ (quatro mil trezentos e vinte e um euros e trinta e quatro cêntimos), dever no entender dos Requerentes, ser pago pela massa insolvente, pelas razões que ficaram expostas.

Pede a V. Exa respeitosamente Deferimento”.

Pelo Juízo de Comércio de Alcobaça, foi proferida a seguinte decisão:

“Ref. ...:

O imposto de IRS devido pelos rendimentos do trabalho auferidos pelos insolventes no ano de 2020 não configura uma despesa da massa insolvente pelo que o seu pagamento é, naturalmente, da responsabilidade dos sujeitos passivos do imposto, ou seja, os próprios insolventes, e não da massa insolvente.

Relativamente ao imposto de IRS sobre as mais-valias obtidas pela venda do imóvel apreendido a favor da massa insolvente importa esclarecer que o imóvel foi vendido pela massa insolvente e não pelos insolventes. Como tal, não cabia aos insolventes declarar rendimentos prediais resultantes da venda desse imóvel.

Pelo exposto, indefere-se o ora requerido pelos insolventes.

Notifique.

**

Proceda a Secção nos termos do art. 182.º, n.º 3 do CIRE.

..., d.s”.

AA E BB, não se conformando com tal decisão dela interpõem recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

(…)

2. Do objecto do recurso

São as conclusões que o apelante extrai da sua alegação, onde sintetiza os fundamentos do pedido, que recortam o “thema decidendum” - artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil - e, portanto, definem o âmbito objectivo do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso - sem prejuízo da apreciação de outras questões de conhecimento oficioso.

A despesa resultante da tributação em IRS, na categoria de mais valias, devidas pela venda de um imóvel apreendido para a massa insolvente, da qual o insolvente não tem a administração, nem teve intervenção na venda, não auferindo qualquer benefício económico com a mesma, é (ou não) uma dívida da massa insolvente, nos termos do disposto no art.º 51º, nº 1 al. c) do CIRE?

Primeira nota:

“A comunicação de ato de liquidação, efetivado em decorrência do facto (tributário) de terem sido auferidos rendimentos de mais-valias, em cédula de IRS, tem de ser dirigida aos sujeitos passivos do imposto respetivo/contribuintes, no cumprimento, entre outras, da regra inscrita no art. 36.º n.º 1 do CPPT. Tal ato é típico dos que, em matéria tributária, afetam os direitos e interesses legítimos dos contribuintes, pois, além do mais, impõe ao destinatário (sujeito passivo do tributo), no âmbito da relação jurídico-tributária, a obrigação (principal) de efetuar o pagamento da dívida exequenda. Outrossim, a versada notificação é imperiosa, como elemento capaz de permitir espoletar, atempadamente, as possíveis, legais, formas de reação, graciosas e/ou contenciosas, dos indivíduos notificados. A pessoa singular insolvente tem de ser notificada de qualquer ato de liquidação tributária, emitido, em seu nome, enquanto titular, por exemplo, de rendimento, mesmo depois da declaração, transitada em julgado, de insolvência.

Esta obrigação de notificação decorre da condição (tributária) da(s) pessoa(s) singular(es) insolvente(s), bem como, é a que se adequa à circunstância de não existir (ao invés, das pessoas coletivas) qualquer normativo legal, expressamente, exigente e determinante, da realização dessa notificação na pessoa do administrador da insolvência.

O administrador da insolvência, além de assumir poderes de administração e representação (da massa insolvente e do insolvente), não passa, também, a substituir os insolventes no tratamento e resolução dos assuntos das suas esferas pessoais, individuais, nem a representação, para questões de cariz patrimonial, vai ao limite de ter de abranger a notificação de atos, como os de liquidação tributária, que, num momento inicial, se situam, a montante, da produção de concretos efeitos patrimoniais sobre a massa insolvente” – Acórdão do STA de 17.2.2021, pesquisável em www.dgsi.pt .

Ou seja, as massas insolventes são apenas partes separadas dos patrimónios das pessoas - singulares ou colectivas - a quem os bens pertencem.

O que acontece, quando há uma declaração de insolvência, é apenas, como resulta do art.º 81.º n.º 1 do CIRE, uma transferência dos poderes de administração e disposição relativamente aos bens integrantes da massa insolvente, do insolvente para o Administrador da Insolvência. Os bens continuam a ser do insolvente, apenas se dá uma transferência daqueles poderes sobre eles - que de outro modo continuariam no insolvente por os bens serem dele.

Por isso, a pessoa singular insolvente, por essa condição, não perde a personalidade tributária, detida até então, ou seja, mantém a susceptibilidade de ser sujeito de relações jurídicas tributárias, pelo que, como “in casu”, se, por qualquer via, não impedida pela declaração de insolvência, continuar a auferir rendimentos passíveis de IRS, terá de assumir, só por si, na sua pessoa, a condição de sujeito passivo, da correspondente relação tributária, continuando, portanto, vinculado ao cumprimento da competente prestação tributária, devendo ser notificado de qualquer ato de liquidação tributária, emitido, em seu nome, enquanto titular, por exemplo, de rendimento, mesmo depois da declaração, transitada em julgado, de insolvência. Só deste modo, por um lado, a autoridade tributária e aduaneira salvaguarda a sua posição de cobrança, obstando, além do mais, ao funcionamento de institutos como a caducidade do direito de liquidar e/ou a prescrição da prestação tributária e, por outro, o verdadeiro e efetivo, sujeito passivo pode reagir (ou promover a reação) da forma que lhe aprouver, prosseguindo os objetivos queridos.

Segunda nota:

Se, com a declaração de insolvência, o insolvente fica inibido de praticar actos de disposição e de administração sobre os bens apreendidos, que revertem para a massa insolvente, mas, até que sejam alienados, não deixa de ser o titular do direito de propriedade sobre eles, não poderemos deixar de considerar que sendo essa uma obrigação gerada pela tributação das mais valias - que nasce na esfera jurídica do insolvente porque este é o titular do bem e, logo, do acréscimo patrimonial decorrente da sua valorização -, deve ser qualificada como uma dívida da massa insolvente, por ter sido originada por um acto de liquidação de um bem integrante dessa massa.

Por isso, seguimos o decidido pelo Acórdão da Relação do Porto, de 10.02.2020 – pesquisável em www.dgsi.pt ”, quando afirma: 

“Continuando o insolvente a ser o titular do imóvel (perdendo, apenas, para o AI os poderes de administração e de disposição), também é o sujeito passivo da obrigação tributária de pagamento do imposto devido pela realização das mais-valias.

Mas, sendo essa uma obrigação, gerada pela tributação das mais-valias, que nasce na esfera jurídica do insolvente porque este é o titular do bem e, logo, do acréscimo patrimonial decorrente da sua valorização, deve ser qualificada como uma dívida da massa insolvente, por ter sido originada por um ato de liquidação de bens dessa massa.

O pagamento do imposto devido constitui um encargo da massa insolvente à luz do disposto no artigo 51.º, n.º 1, al. c), do CIRE (norma de incidência tributária enxertada neste compêndio normativo) por consubstanciar uma dívida resultante de um ato de liquidação, pelo administrador da insolvência, de um bem que integra a massa insolvente.

Importa, a propósito, fazer notar que, uma coisa, são as dívidas da insolvência (correspondentes aos créditos sobre o insolvente), que são, basicamente, as existentes à data da declaração da insolvência e que a lei designa como “créditos sobre a insolvência” e os respectivos titulares como “credores da insolvência”; outra coisa são as dívidas ou encargos da massa insolvente” (que têm como correlativos os “créditos sobre a massa insolvente”), que, grosso modo, são o(a)s constituído(a)s no decurso do processo (e vêm enunciado(a)s no n.º 1 do artigo 51.º do CIRE).

Não podendo considerar-se um contribuinte directo (aquele relativamente ao qual se verificam os pressupostos do facto tributário) a massa insolvente, representada pelo AI, assume-se como substituto tributário (sujeito passivo que, por imposição da lei, está obrigado a cumprir prestações materiais e formais da obrigação tributária em lugar do contribuinte). Pelo menos, há evidentes afinidades com essa figura jurídica.

A solução legal de pôr a cargo da massa insolvente o pagamento desse tributo está, aliás, em consonância com o facto de o insolvente não dispor de capacidade contributiva, pois que, como se aludiu, revertem, automaticamente, para a massa insolvente, não só os bens que constituem o património do insolvente à data da declaração de insolvência, mas também os bens e direitos que o insolvente for adquirindo na pendência do processo de insolvência.

Tendo sido, liminarmente, admitido o pedido de exoneração do passivo restante, o insolvente dispunha, apenas, do razoavelmente necessário para o seu sustento minimamente digno e por isso exigir-lhe que suportasse financeiramente o imposto resultante da mais-valia realizada com a alienação de um bem imóvel, de cujo valor de venda já não tem quaisquer poderes de disposição por este ter ingressado na massa insolvente, implicaria subtrair a esse rendimento mínimo indispensável uma parte substancial, se não a totalidade, colocando em perigo a sua própria subsistência. Uma tal solução jurídica conduziria, está bem de ver, a uma incongruência do próprio regime da exoneração do passivo restante, cujo escopo é a reabilitação económica (dito “fresh start”) das pessoas singulares insolventes”.

Conforme se escreve no Acórdão da Relação do Porto de 02.07.2015- www.dgsi.pt, “praticando o administrador actos de liquidação da massa insolvente, na forma de venda de bens integrantes desta massa, por um valor superior ao valor pelo qual ele foi adquirido, tal corresponde a um acréscimo do património do devedor, pessoa singular ou colectiva, e o imposto que esse acréscimo vai originar é um imposto do devedor mas pelo qual responde apenas o património separado naquela massa insolvente (…) Quando, no decurso da liquidação dos bens que integram a massa insolvente de uma pessoa singular, o administrador da insolvência procede à alienação de bens por valor superior àquele pelo qual tinham sido adquiridos pelo insolvente, o imposto devido pela mais-valia gerada por essa alienação (art. 10/1 a) do CIRS) é uma dívida da massa insolvente (art. 51/1c) do CIRE)”.

Neste preciso sentido, o Acórdão do STA de 10.05.2017- pesquisável em www.dgsi.pt. – “o art. 268º, nº1 do CIRE, prevê a isenção das mais-valias resultantes da dação em cumprimento ou cessão de bens do insolvente aos credores no âmbito do processo de insolvência, mas não prevê idêntica isenção no caso da venda.

Uma vez que a dívida fiscal resultou de acto de liquidação da massa insolvente, deverá ser considerada dívida da massa insolvente ( art. 51º, nº1, c) do CIRE), acrescida dos respectivos juros, sem prejuízo da quantia que vier a ser paga ser devolvida à massa em caso de procedência da acção tributária”.

Concluindo:

Dispondo a al. c) do n° 1 do art.º 51° do C.I.R.E., que, “salvo preceito expresso em contrário, são dívidas da massa insolvente, além de outras como tal qualificadas neste Código”, “as dívidas emergentes dos actos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente”, não temos dúvidas (com todo o respeito por opinião contrária) que o imposto de mais – valias, gerado pela alienação dum bem integrante da massa insolvente, levada a cabo pelo Administrador da Insolvência, por valor superior àquele pelo qual o mesmo bem tinha sido adquirido pelo insolvente, tem por única fonte um acto de liquidação da massa insolvente.

Por isso, o imposto sobre as mais-valias será, sempre, uma dívida da massa insolvente.

Razões pelas quais, nesse enquadramento fáctico e jurídico, se terá agora que revogar a decisão da 1ª instância, dando-se razão aos apelantes.

(…)

3. Decisão

Assim, na procedência da instância recursiva, revogamos a decisão proferida pelo Juízo de Comércio de Alcobaça – Juiz 1, devendo a dívida de IRS a título de mais-valias, acrescida dos respectivos juros, ser considerada dívida da massa insolvente.

Custas pela massa insolvente.

Coimbra, 15 de Fevereiro de 2022

(José Avelino Gonçalves - Relator)

(Paulo Brandão – 1.º adjunto)

(Arlindo Oliveira - 2.º adjunto)