Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4116/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. SERAFIM ALEXANDRE
Descritores: EXTENSÃO DO DOLO NO CRIME DE ADMINISTRAÇÃO DANOSA
Data do Acordão: 03/10/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: PORTO DE MÓS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIME
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Legislação Nacional: ART. 235º, DO C. PENAL
Sumário:

A punição prevista no artigo 235ºdo C. Penal exige a verificação da actuação dolosa não só relativamente aos factos mas também em relação às consequências.
Decisão Texto Integral:

Recurso n.º 4116/2003.
Comarca de Porto de Mós


Acordam na Secção Criminal da relação de Coimbra:

No tribunal da comarca de Porto de Mós, em Processo Comum Singular, foi julgado o arguido A, melhor identificado nos autos, vindo acusado pelo M.º Público da prática de um crime de administração danosa previsto e punido pelo art.º 235º, n.º 1, do C. Penal.
Após o julgamento, julgando-se a acusação improcedente, veio o arguido a ser absolvido.
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Entretanto, durante a audiência de julgamento que decorreu no dia 7-5-2003 (acta de folhas 631/632) foi proferido despacho em que se decidiu não se verificar a prescrição do procedimento criminal que havia sido invocada pelo arguido.
Deste despacho interpôs o arguido recurso (folhas 641) que veio a ser admitido (fols. 673) com subida nos autos, conjuntamente com o recurso da decisão que ponha termo à causa, com efeito devolutivo.
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Da decisão que absolveu o arguido apenas interpõe recurso o M.º Público, concluindo:
1- A douta sentença enferma dos vícios de contradição insanável da fundamentação e de erro notório na apreciação da prova.
2- Estes vícios resultam do texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
3- Ocorre contradição insanável da fundamentação sempre que do texto da decisão, e apenas deste conjugado com outros elementos de prova carreados para os autos, resulta uma contradição que não escapa ao observador comum.
4- Ao considerar provada matéria fáctica suficientemente indiciadora do dolo e considerar este elemento subjectivo do tipo como não provado, incorreu a decisão em contradição insanável da fundamentação.
5- Há erro notório na apreciação da prova, quando se verifica erro de tal forma evidente que não escapa à observação do homem de formação média.
6- Atento os factos provados referentes à conduta do arguido e a experiência comum, verifica-se que o arguido actuou dolosamente.
7- O arguido ao praticar os actos descritos como provados, sabia que a sua conduta era ilícita, porque na prossecução da mesma finalidade, representou-a como tal e conformou-se com essa realização
8- Ao decidir em sentido contrário, o Tribunal “a quo” cometeu o vício de erro notório na apreciação da prova.
9- Encontra-se, assim, violado o disposto nos art.º 14º e 235º, n.º 1, do Código Penal, e art.º 127º e 374º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
10- Assim, alterando-se a douta sentença, dando como verificados os vícios de contradição insanável da fundamentação e de erro notório na apreciação da prova e, em consequência, considerar provado o dolo no referente à conduta do arguido João Afonso Mano Ramos, condenando-o pela prática de um crime de administração danosa, ou então anular-se, nesta pane, o julgamento e reenviar-se o processo, nos termos do disposto no art.º 426º, do Código de Processo Penal para que se corrijam tais vícios, decidindo-se em conformidade, V. Excias., farão JUSTIÇA!
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Respondeu o arguido defendendo a improcedência do recurso.
Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emite douto parecer no sentido de que, pese embora o cuidado e o esforço do recorrente, o recurso deve improceder.
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Colhidos os vistos legais e efectuada a audiência, cumpre decidir:
E começa-se por lembrar que, apesar do referido recurso interposto na acta, a folhas 641, ele não faz parte do objecto deste recurso já que, tendo sido admitido como subindo com o interposto da decisão final, desta não foi interposto recurso pelo então recorrente, o arguido, nem manifestou interesse no seu conhecimento, como impõe o n.º 5 do art.º 412º do C. P. Penal.
De qualquer modo, a questão suscitada, como causa extintiva do procedimento criminal, pode ser sempre apreciada oficiosamente.
E conhecendo-a, dir-se-á:
O arguido, fundamentando-se na noção de crime permanente e na de crime de efeitos permanentes, contraposta à de crime instantâneo, entendendo que o crime de administração danosa que lhe era imputado é um crime instantâneo, dadas as datas da prática dos factos (25-5-92 a 27-02-95) estes estariam prescritos, à excepção dos que respeitam ao contrato com a DSI-Finance- Corporation.
O tribunal entendeu que, tratando-se de um crime permanente, cujos últimos factos ocorreram até 22-12-95, este se consumou só nesta data pelo que, aplicando-se-lhes o novo C. Penal, não estavam prescritos.
Na altura desta decisão impugnada o que estava em causa eram os factos acusados. Agora estão em causa os factos provados mas deve esclarecer-se que os factos constantes da acusação, nomeadamente as suas datas, foram dados como provados pelo que a questão se mantém nos precisos termos.
Ora, como é evidente, não sendo necessário dissertar sobre tal questão, o crime de administração danosa é claramente um crime permanente. Não é um crime instantâneo uma vez que a violação jurídica realizada no momento da prática dos factos não se consume e extingue com ela. No crime de administração danosa perduram no tempo a consumação e a execução. O agente actua até ao aparecimento do evento e permanece até que cesse (se cessar) o estado antijurídico causado por tal actuação. Os efeitos de tal actuação não são meras consequências duma certa actuação que se esgotou com a prática dos factos. O próprio conceito de administração deixa claro a natureza permanente da actuação.
E como os factos permaneceram até Dezembro de 1995 (art.º 119º, n.º 2, al. a) sendo punidos com pena até cinco anos de prisão (art.º 235º) a prescrição é de dez anos (art.º 118º, n.º 1, al. b). Não estão prescritos.
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Como resulta das conclusões do recorrente, são objecto do recurso as seguintes questões:
A- A verificação do vício de contradição insanável da fundamentação; e
B- A verificação do vício erro notório na apreciação da prova.
Sendo assim, há que lembrar, antes de mais, os factos provados, aceites pelo recorrente:
Factos provados
Da acusação:
1)- A B da Batalha é uma sociedade cooperativa de responsabilidade limitada, pessoa colectiva n.º 500989010, matriculada na Conservatória do registo Comercial da Batalha e com sede no Largo Goa. Damãoo e Diu, 4, Apartado 27, Batalha, comarca de Porto de Mós;
2)- A partir da sua constituição, a B da Batalha teve como objecto social o exercício de funções de crédito agrícola, em favor dos seus associados e a prática dos demais actos inerentes à actividade bancária que sejam instrumentais em relação àquelas funções;
3)- A firma C, iniciou a sua actividade tendo como objecto social a construção de máquinas e coberturas metálicas;
4)- Esta sociedade era inicialmente constituída pelos sócios D e E vindo posteriormente a registar algumas alterações na sua estrutura, sendo, à data da prática dos factos, detida pelos sócios, D, E e por F;
5)- Em 15.11.96 viria a ser decretada a falência de C, por decisão transitada em julgado;
6)- Após o inicio das suas actividades, C, conheceu dificuldades no seu desenvolvimento, em resultado de um litígio de propriedade industrial com a empresa concorrente, a Blocotelha;
7)- C, necessitou de financiamento nos anos subsequentes à sua constituição, tendo a B da Batalha desempenhado, neste aspecto, um papel determinante;
8)- O arguido trabalhou na B da Batalha durante vários anos, tendo assumido as funções de presidente da Direcção no triénio 1992-1994;
9)- O arguido assumiu uma actuação relevante no financiamento de C, participando na concessão pela B da Batalha de crédito aos sócios daquela sociedade, o qual acabava por se destinar à referida C;
10)- O destino dos empréstimos concedidos aos sócios não era o que constava das propostas aprovadas pela direcção da B da Batalha, mas sim os cofres de C,...;
11)- ...Tal sucedeu com os seguintes empréstimos:
a) empréstimo 25221/1 concedido em 25.5.92, para fundo de maneio, ao associado F, no montante de 41 mil contos, creditado em conta em 29.5.92 e logo debitado (parte) a qual foi levada a crédito da conta da C na mesma data;
b) empréstimo 26178/3 concedido ao associado F, datado de 28.12.92, para compra de propriedade no Casal Amieira, no montante de 65 mil contos e creditado em conta em 31.12.92;
c) empréstimo 26829/4 concedido a D, em 19.10.92, no montante de 50 mil contos, creditado em 22.10.92 e logo levantado e levado a crédito da conta da C;
d) empréstimo 26969/5, concedido a F, datado de 24.5.93, para compra de propriedade no Casal Amieira, no montante de 64 mil contos e creditado em conta em 31.5.93;
e) empréstimo 27632/2, concedido a F, datado de 27.9.93 para compra de propriedade no Casal Amieira, no montante de 64 mil contos e creditada em conta em 30.9.93;
f) empréstimo 28164/4, concedido a F, datado de 27.12.93 para fundo de maneio, no montante de Esc.: 15.922 contos e creditado em conta em 30.12.93;
g) empréstimo 28166/1, concedido a F, datado de 27.12.93 para fundo de maneio, no montante de Esc.: 53.291 contos e creditado em conta em 30.12.93;
12)- Os empréstimos referidos nas antecedentes alíneas a), b), d), e), f) e g) foram garantidos por livranças avalizados pelos sócios D e esposa e E e esposa;
13)- O empréstimo referido na alínea c) do facto provado 11) foi garantido por livrança avalizada pelo sócio E e esposa;
14)- A estratégia de financiamento da sociedade C, levada a efeito pelo arguido, passou, igualmente, pela concessão pela B da Batalha de crédito sob a forma de “descobertos” em conta de “depósito à ordem”;
15)- Em 30 de Dezembro de 1994, a conta de depósitos à ordem da referida sociedade na B da Batalha registava um saldo devedor no montante de 394 023 587$30 e em 7 de Novembro de 1995, no valor de 576 918 261$80;
16)- A referida prática era uma conduta habitualmente assumida pelo arguido, enquanto presidente da Direcção da B da Batalha, que utilizou sistematicamente a prática de descobertos em depósitos à ordem como método de concessão de crédito;
17)- O arguido não efectuou qualquer fiscalização ou acompanhamento do rédito concedido, não tendo sido efectuadas visitas directas, com tais fins, aos empreendimentos objecto de financiamento por parte da B da Batalha, nem elaborados quaisquer relatórios a fim de comprovarem a efectiva aplicação dos capitais mutuados;
18)- O arguido tinha conhecimento que o destino final dos empréstimos não era o que constava das respectivas propostas;
19)- Em 22 de dezembro de 1995, a C.C.A.M. da Batalha, representada pelo arguido, celebrou com a “DSI FINANCE CORPORATION”, com sede em Tortola, Skelton Building, Main Street, British Virgin, representada pelo respectivo mandatário, Paulo Reis, um contrato ao abrigo do qual cedeu os créditos e respectivas garantias detidas sobre a sociedade C e seus sócios, D, E, F e respectivas esposas, a saber:
a)- da sociedade - 556 614 346$80, resultantes de saques a descoberto na conta “D.O”, aberta naquela instituição, bem como de pagamentos feitos ao BCI e BIC de responsabilidade da referida C
b)- Ainda da sociedade - 34.268.460$00, resultante de letras sacadas pela C e com diversos aceitantes;
c)- dos sócios - 143.379.081$00 (D), 143.379.081$00 (E) e 136.312.084$00 (F);
20)- Acordaram ainda no referido contrato a cedência de todos os direitos acessórios nomeadamente os juros exigíveis, quer vencidos, quer vincendos, bem como as garantias recebidas no âmbito de processos judiciais em curso;
21)- Como contrapartida da “cessão dos créditos” acordaram a C.C.A.M. e a “DSI Finance” o preço de 800.000.000$00, pagáveis pela cessionária à cedente ao longo de vinte anos em prestações progressivas, à taxa zero, e com o seguinte escalonamento:
a) nos primeiros dez anos, vinte mil contos por ano, em duas prestações semestrais;
b) nos cinco anos subsequentes, trinta mil contos;
c) e nos últimos cinco anos, prestações no valor de noventa mil contos.
22)- Depois da assinatura do contrato, a C.C.A.M. da Batalha, sempre representada pelo arguido, transferiu as responsabilidades em dívida - 1.069.000.000$00 para a conta “270 Devedores”;
23)- Das perdas apuradas no valor de 269.000.000$00. foram utilizadas provisões para crédito e juros vencidos e riscos gerais de crédito no valor de 193.000.000$00, sendo a diferença (76.000.000$00) contabilizada como prejuízo;
24)- O arguido assumiu, enquanto presidente da Direcção da B da Batalha, a prática de conceder empréstimos para liquidação de outros anteriormente concedidos, sem qualquer reforço de garantias, e nalguns casos incluindo no montante do novo empréstimo para além do capital em dívida os respectivos juros...;
25)- Foi o que se verificou, entre outros, nos seguintes mútuos:
a) empréstimo n.º 28537/2, datado de 2(.2.94, concedido a F, no montante de 63.500 c. para liquidação do empréstimo n.º 27632/2;
b) empréstimo n.º 28536/4, datado de 28.2.94, concedido, igualmente a F, no montante de 53.000 c. para liquidação do empréstimo n.º 28166;
c) empréstimo n.º 28538/1, datado de 28.2.94, concedido a E, no montante de 53.000 c. para liquidação do empréstimo n.º 28165-2;
d) empréstimo n.º 28539/2, datado de 28.2.94, concedido, igualmente, E, no montante de 58.500 c. para liquidação do empréstimo n.º 27633/1;
e) empréstimo n.º 28534-8, datado de 28.2.94, concedido a D, no montante de 53.000 c. para liquidação do empréstimo n.º 28167-9;
f) empréstimo n.º 28535-6, datado de 28.2.94, concedido igualmente a D, no montante de 63.500 c. para liquidação do empréstimo n.º 27634-8;
26)- A prática de concessão de empréstimos para liquidação de outros sem reforços de garantias, mormente no que à firma C dizia respeito, evitava a constituição de moras que obrigariam ao reforço de provisões e à anulação de juros compensatórios;
27)- A B da Batalha também não relevou contabilisticamente nas respectivas contas extrapatrimoniais, durante o período de Dezembro de 1993 a Abril de 1994 as garantias bancárias por si prestadas a favor das seguintes entidades:
a) Caixa Económica Açoreana, no valor de 100.000.000$00;
b) Banco do Comércio e Indústria – 60.000.000$00;
c) Banco Internacional de Crédito – 165.000.000$00;
d) Construções Técnicas – 5.265.000$00;
e) Sociedade de Construções Severo de Carvalho — 15.364.676$00.
28)- Do conjunto dos financiamentos e operações que o arguido assumiu e que se encontram referidos de 9) a 23) dos Factos Provados, a B da Batalha foi lesada em montante não concretamente apurado, mas não inferior a 997.595,79 Euros (novecentos e noventa e sete mil, quinhentos e noventa e cinco euros, e setenta e nove cêntimos);
29)- O arguido tinha perfeito conhecimento que estava a ser concedido crédito de forma indevida a entidades não associadas, violando propositadamente o artigo 28º do D.L. 24/91 de 11.1;
30)- O arguido tinha perfeito conhecimento que estava a ser concedido crédito, sob a forma de descoberto em conta de depósito à ordem, a entidade não associada (C), violando de propósito o artigo 28º do D.L. 24/91 de 11.1;
31)- O arguido tinha perfeito conhecimento que não era fiscalizada e acompanhada a aplicação do crédito concedido, violando propositadamente o artigo 31º do D.L. 24/91 de 11.1;
Da contestação:
32)- Na ocasião da prática dos factos constantes na acusação, todas as decisões relativas ao crédito a conceder, designadamente a sua oportunidade e condições a estabelecer, eram tomadas à pluralidade de votos dos membros da direcção, entre os quais se contava o arguido;
33)- Em data posterior à entrada em vigor do DL 102/99, de 31 de Março, o Banco de Portugal autorizou a B da Batalha a realizar operações de crédito com não associados;
Mais se provou que:
34)- Em 6/03/1992, foi levado a registo, como sendo o objecto social da B da Batalha, o exercício de funções de crédito agrícola, em favor dos seus associados e a prática dos demais actos inerentes à actividade bancária nos termos da legislação aplicável e, ainda, o exercício de agente da Caixa Central nos termos previstos na lei e no contrato de agência que entre ambas venha a ser celebrado;
35)- A escritura de constituição de C, Lda., foi celebrada em 11/10/85, tendo a constituição da sociedade sido registada em 19/08/1987;
36)- O litígio de propriedade industrial com a empresa concorrente, Blocotelha, iniciou-se em Março de 1988;
37)- F faleceu em 1 de Novembro de 1999;
38)- O arguido contribuiu activamente para o desenvolvimento da B da Batalha, sendo membro efectivo da sua direcção pelo menos desde o triénio 1989-1991, em que exerceu as funções de secretário
39)- Após o triénio 1992- 1994, o arguido manteve o cargo de presidente da Direcção da B da Batalha, pelo menos, nos triénios de 1995/1997 e 1998/2000;
40)- O arguido nunca pretendeu que o património da B da Batalha fosse lesado, nem em momento algum se conformou com a possibilidade de tal vir a acontecer, sempre tendo confiado que, da sua actuação, não sobreviriam prejuízos para aquela instituição;
41)- O arguido possui o Curso Geral de Comércio, auferindo o vencimento decorrente das funções de gerência da B da Batalha que continua a desempenhar;
42)- É viúvo e vive sozinho em casa própria;
43) - O arguido não tem antecedentes criminais.
Factos não provados
I. foi exactamente em 13.1.92 que o arguido assumiu as funções de presidente da Direcção da C. C. A. M. da Batalha;
II. Foi em 1987 que “C”, iniciou a sua actividade;
III. O empréstimo 26829/4 foi garantido por livrança avalizada também por D e esposa,
IV. O empréstimo 28164/4 foi concedido para compra de propriedade no Casal Amieira;
V. O contrato celebrado com a “DSI FINANCE CORPORATION”, visava obstar a que o crédito concedido à C e aos seus sócios se reflectisse, em termos transparentes, na contabilidade da B da Batalha;
VI. Em 15.11.94, foi concedido empréstimo a “M…, Lda” no montante de 203.244.000$00., que se destinou à liquidação (parcial) de empréstimos no valor de 217.784.000$00 (incluindo capital e juros), sem qualquer reforço de garantias, tendo o montante em falta sido levado a descoberto em conta e, posteriormente, regularizado;
VII. Em 27.02.95, foi concedido empréstimo à associada n.º 3065 - “S… - Lda”, no montante de 178.500 c., destinado à regularização de créditos (capital e juros), sem qualquer reforço de garantias;
VIII. Em 23.02.94, foi concedido empréstimo à associada n.º 2893 - “R… & R…, Lda”, no montante de 140.000 c., destinado à regularização de descobertos e de empréstimos, estes incluindo capital e respectivos juros, sem qualquer reforço de garantias;
IX. O arguido tinha perfeito conhecimento de que não estava a ser relevada contabilisticamente a prestação de garantias, assumindo propositadamente a violação dos princípios contabilísticos vigentes e das instruções do Banco de Portugal relativamente a tais matérias;
X. As práticas referidas em 24), 25) e 27) dos Factos Provados determinaram perdas patrimoniais efectivas para a B da Batalha
XI. O arguido tinha perfeito conhecimento que, com a sua actuação, provocaria resultados deveras nefastos e desastrosos para a vida económica da B da Batalha, consubstanciada em avultados prejuízos na ordem de várias centenas de milhares de contos, agindo, no que a tal diz respeito, de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo não serem permitidas as condutas que assumiu.
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Perante estes factos, concluiu-se na sentença recorrida:
Afirmado que está o preenchimento objectivo do tipo legal do crime de administração danosa, interessa, agora, abordar a respectiva componente subjectiva.
A este propósito, existem na nossa jurisprudência decisões no sentido de que o tipo legal do crime de administração danosa admite o dolo directo, sustentando-se, com base na utilização da expressão “intencionalmente”, que o legislador “pretendeu excluir o dolo eventual, pois não se compreenderia que uma actuação que envolve permanentemente riscos de prejuízos e o assumir da possibilidade de prejuízos pudesse ser submetida ao n.º 3 do artigo 14º do Código Penal, sob pena de ser paralisada a vida económica” (Ac. STJ 24/02/94, BMJ 434, pg.369; cfr. tb. Ac. STJ 11/02/98, CJSTJ, 1, pg.199). Julga-se, porém, que, tal como explica M. Costa Andrade (op. cit., pg.552), somente em relação à violação “das normas de controlo ou regras económicas” se exige uma específica intenção, já que, em relação ao resultado típico, não existindo qualquer limitação, o dolo determinar-se-á segundo os critérios e os princípios gerais e, logo, é admissível o dolo em qualquer das suas formas - directo, necessário ou eventual (cfr. artigo 14º do Código Penal).
Ora, da prova produzida nos presentes autos, não resultou que, tal como se lhe imputava na acusação, o arguido João Ramos tivesse provocado prejuízos para a Bda Batalha de forma deliberada e consciente. É certo que ele sabia que, concedendo-se crédito a C, e sem se fiscalizar e acompanhar a aplicação das quantias mutuadas, estavam a ser violados os artigos 28º e 31º do regime anexo ao DL 231/82, de 17-06, tendo havido inequívoca intencionalidade do arguido quanto a essa violação. Todavia, relativamente ao resultado típico (ou seja, à causação de dano patrimonial importante), não se demonstrou que o arguido pretendesse lesar patrimonialmente a Ba cuja presidia, ou sequer que ele alguma vez tivesse agido conformando-se com a possibilidade de sobrevirem prejuízos patrimoniais para aquela instituição.
João Ramos terá violado intencionalmente regras prudenciais a que estava adstrito, cometendo erros de gestão notórios; mas, nesse percurso, sempre confiou que o património da Bnão seria lesado, por isso apenas lhe podendo ser imputados os prejuízos efectivamente verificados (ou seja, o resultado típico do crime de administração danosa) a título de negligência e já não a título de dolo. Ora, não se encontrando prevista, ao nível do tipo criminal, a punição das condutas negligentes, conforme resulta do disposto no art.º 13º do Código penal apenas poderá haver lugar ao sancionamento penal dos agentes que hajam praticado o facto com dolo, o que manifestamente não acontece no caso dos autos.
Deste modo, e dado que a conduta do arguido, não preenchendo os pressupostos do crime de administração danosa, também não se enquadra em qualquer outra figura criminal, terá que se decidir no sentido da absolvição do arguido”
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Contra isto contrapõe o recorrente que:
- o tribunal considerou provada matéria fáctica indiciadora do dolo mas considerou este elemento subjectivo como não provado, verificando-se contradição insanável da fundamentação; e que
- o arguido ao praticar os factos descritos como provados, sabia que a sua conduta era ilícita, porque na prossecução da mesma finalidade, representou como tal e conformou-se com essa realização, cometendo o vício de erro notório na apreciação da prova.
O que importa, pois, antes de mais, apreciar é se, como pretende o recorrente, o tribunal deu como provado o que se refere quanto ao elemento subjectivo do crime. O que a esses respeito se provou foi:
- facto 18: o arguido tinha conhecimento que o destino final dos empréstimos não era o que constava das respectivas propostas;
- facto 29: O arguido tinha perfeito conhecimento que estava a ser concedido crédito de forma indevida a entidades não associadas, violando propositadamente o art.º 28º do DL 24/91 de 11.1;
- facto 30: O arguido tinha perfeito conhecimento que estava a ser concedido crédito, sob a forma de descoberto em conta de depósito à ordem, a entidade não associada (C), violando de propósito o art.º 28º do DL 24/91 de 11.1:
- facto 31: O arguido tinha perfeito conhecimento que não era fiscalizada e acompanhada a aplicação do crédito, violando propositadamente o art.º 31º do DL 24/91 de 11.1;
- facto 40: O arguido nunca pretendeu que o património da Bda Batalha fosse lesado, nem em momento algum se conformou com a possibilidade de tal vir a acontecer, sempre tendo confiado que, da sua actuação, não sobreviriam prejuízos para aquela instituição;
E não se provou o que consta em IX e XI.
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Destes factos resulta que o tribunal distingui duas coisas: a intencionalidade dos factos praticados da intencionalidade das consequências desses mesmos factos.
E, como se diz na sentença e lembra o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, uma coisa é agir intencionalmente em relação aos actos, em si mesmo, outra é agir intencionalmente em relação aos efeitos lesivos desses mesmos actos. Uma coisa é saber que os actos que se praticam são indevidos, outra é actuar com intenção de, por eles, prejudicar alguém.
E também é perfeitamente aceitável que se actue sabendo o carácter indevido dos seus actos e não aceitar que as suas consequências sejam patrimonialmente lesivas.
Não há, assim, qualquer contradição insanável entre as duas proposições e não há qualquer erro notório ao decidir tendo isso em conta.
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Por outro lado, o actual art.º 235º do C. Penal, introduzido pelo D. Lei 48/95, der 15 de Março, corresponde, quanto aos elementos do crime, ao art.º 333º da versão originária do Código. E, quanto a este (a par dos restantes crimes contra o sector público ou cooperativo) lembra-se no respectivo preâmbulo: “...Daí que não seja punível o acto decisório que, pelo jogo combinado de circunstâncias aleatórias, provoca prejuízos, mas só aquelas condutas intencionais que levam à produção de resultados desastrosos. Conceber de modo diferente seria nefasto – as experiências estão feitas – e obstaria a que essas pessoas de melhores e reconhecidos méritos receassem assumir lugares de chefia naqueles sectores da vida económica nacional”
Fica assim claro que a intenção do legislador foi e é que tais crimes têm uma natureza essencialmente dolosa, não só quanto aos actos praticados, em si mesmos, mas também quanto às suas consequências. Ponderou-se e assumiu-se o chamado risco calculado. E o n.º 2, do referido artigo é explícito: a punição não tem lugar se o dano se verificar contra a expectativa fundada do agente.
Ora, dos factos provados resulta claro que o arguido não agiu dolosamente quanto às consequências patrimonialmente lesivas dos seus actos. Nem mesmo na forma de dolo eventual. (Quanto a esta há, como se diz na sentença, divergências, no que respeita ao resultado típico. Veja-se a este respeito, por um lado, o Ac. do S. T. J. de 24.1.94 (C. J. Ano II, Tomo I, pág. 234) e, por outro, a posição de M. Andrade (Comentário Conimbricence ao Código Penal).
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Improcedem, assim, os fundamentos do recurso.
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Nestes termos, julgando o recurso por não provido, se confirma a sentença recorrida.
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Sem tributação.
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Coimbra: