Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
267/06.0TBCLB.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL FONSECA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
TRIBUNAL COMPETENTE
Data do Acordão: 01/28/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CELORICO DA BEIRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 2.º, N.º 1 E 3 DO DECRETO-LEI 48 051, DE 21/11/1967: ARTIGO 4º, Nº1, ALÍNEA H) DO ETAF; ARTIGO 66.º; 490.º, N.º 2 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1. No âmbito do regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e respectivos agentes, fixado pelo Decreto Lei 48 051, de 21/11/1967 (artigos 2º, nº 1 e 3º) e ponderando o disposto no art. 4º, nº1, alínea h) do ETAF, os tribunais comuns, cuja competência é residual (artigo 66º do C.P.C.), são materialmente incompetentes para processar e julgar acções que visem a condenação de um médico no pagamento de indemnização, por prejuízos causados por actuação ilícita na prestação dos cuidados de saúde ao lesado, quando esse médico agiu no exercício das respectivas funções, enquanto profissional de hospital inserido no Serviço Nacional de Saúde: a competência para apreciação desse pedido pertence aos Tribunais Administrativos.
2. Deduzindo-se ainda pedido de condenação solidária – até ao limite do capital seguro – contra uma entidade particular, por força de negócio (contrato de seguro) celebrado entre o médico e a sociedade, o Tribunal comum é materialmente competente para apreciar desse pedido, porquanto não tem cabimento interpretar extensivamente a alínea h) do art. 4º do citado diploma, o caso não se integra em nenhuma das demais alíneas desse preceito, e não pode qualificar-se a relação estabelecida entre o médico e a seguradora no âmbito de relação jurídico-administrativa.
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 1ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO
A......veio instaurar a presente acção, com forma de processo ordinário, contra B...... e contra a Companhia de Seguros C......, S.A., pedindo a condenação solidária dos réus a pagar-lhe a indemnização de €160.000,00, sendo a responsabilidade da segunda ré limitada ao montante seguro, se inferior, quantia esta acrescida dos juros legais desde a data da citação até integral pagamento.
Para fundamentar a sua pretensão alega, em síntese, que:
Em 10 de Outubro de 1994 a autora foi admitida nos serviços de urgência do Hospital D......, sito na Guarda, sendo o 1º réu o médico oftalmologista responsável que levou a efeito uma operação à autora, no dia 25 desse mês, nesse hospital. A autora continuou em consultas e tratamentos, emitindo o 1º réu os respectivos relatórios clínicos. No exercício das suas funções o 1º réu utilizou técnica médica inadequada e terapêutica incorrecta e lesiva da saúde da autora, actuando com imperícia, inconsideração e enorme falta de cuidado, causando à autora prejuízos de ordem patrimonial e não patrimonial. A 2ª ré é responsável em virtude do contrato de seguro que fez com o 1º réu, titulado pela apólice nº 8900703245.
A ré seguradora contestou, aceitando a factualidade alusiva ao contrato de seguro, pelo valor de €49.879,79 e impugnando o que demais é alegado na petição inicial.
O réu contestou, impugnando a factualidade vertida na petição inicial. Por excepção, invoca a sua ilegitimidade para ser demandado, argumentando que é médico especialista em Oftalmologia, no Hospital D......, na Guarda, aí tendo atendido a autora pelo que é a própria instituição que deve ser responsabilizada pelos actos levados a cabo pelos seus profissionais, no caso o autor e o Dr. E......, chefe do serviço de oftalmologia desse hospital.
Em reconvenção, pede a condenação da autora no pagamento da quantia de €10.000,00 a título de indemnização pelos prejuízos não patrimoniais causados ao réu/reconvinte.
A autora replicou e deduziu incidente de intervenção principal provocada do Hospital D...... e do Dr. E.......
Foi proferido despacho em que se julgou verificada a excepção de ilegitimidade dos réus e, por esse motivo, indeferiu-se a petição inicial.
No mesmo despacho, considerou-se sem efeito o pedido reconvencional, nos termos do art. 274º, nº6 do Código do Processo Civil.
A autora recorreu desta decisão.
Foi proferido acórdão pelo STJ, tendo-se entendido que os réus dispõem de legitimidade pelo que, dando provimento ao agravo, se determinou o prosseguimento da acção.
Proferiu-se o despacho que indeferiu o pedido de intervenção principal provocada do Hospital D...... (fls. 185-187) e admitiu-se a intervir nos autos, a título principal e na qualidade de réu, F.......
Citado, o interveniente deduziu contestação, excepcionando a incompetência material do tribunal – argumentando que é competente para processar a acção o Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco –, a ineptidão da petição inicial, a prescrição do direito da autora e a ilegitimidade do réu contestante. Impugna, ainda, a factualidade vertida na petição inicial.
Em reconvenção, pede a condenação da autora no pagamento da quantia de €10.000,00 a título de indemnização pelos prejuízos não patrimoniais causados ao réu/reconvinte.
A autora replicou.
Foi proferido o despacho de fls. 228 a 233, que conclui da seguinte forma:
“Em face de todo o exposto:
Julgo este Tribunal incompetente em razão da matéria para conhecer os pedidos formulados pela autora contra os réus e contra o chamado e, em consequência, absolvo os mesmos da instância.
Condeno a autora nas custas do processo.
Registe e notifique.
*
Após trânsito:
a) notifique a autora para, querendo e no prazo de dez (10) dias, requerer a remessa do processo ao tribunal competente;
b) notifique réus para, no mesmo prazo, dizerem se concordam com a remessa do processo, caso a mesma seja requerida pela autora.
Não se conformando, a autora recorreu, peticionando a revogação da decisão e a substituição por outra que “ordene o prosseguimento dos ulteriores termos dos autos”.
Formula as seguintes conclusões:
1-Conforme se alega na petição inicial, o l° Réu actuou para com a A., nomeadamente, com falta de cuidado e por forma gravemente negligente, na intervenção jurídica que levou a efeito, mas não dolosamente.
2- O chamado actuou da mesma forma que o 1° Réu.
3-Mesmo sendo médicos, profissionais no Hospital D......, na Guarda, a sua responsabilidade não está excluída pois deviam intervir com o cuidado e a atenção exigíveis para o acto, o que não fizeram.
4- Como tal são responsáveis pelo acto ilícito que cometeram, bem como a seguradora na medida em que para ela se transferiu, pelo menos em parte, a responsabilidade civil derivada da actuação profissional do 1° Réu.
5- É o tribunal comum o competente, em razão da matéria, para derimir o presente pleito.
6 - De certo modo, a Mma Juíza a quo reconheceu, a responsabilidade extra-contratual do 1° Réu, da Ré Seguradora e do chamado no seu despacho de 07-03-2008, transitado em julgado, ao não admitir a intervenção do Hospital D......, o que está em contradição com a decisão recorrida.
7 -A A. imputa ao Réu e ao chamado, ambos médicos que intervieram cirurgicamente, a omissão do zelo e cuidado exigíveis, dado não terem adoptado a técnica médica ou terapêutica adequadas a não se revelarem lesivas para a saúde da A., actuando negligentemente ao utilizarem uma terapia profissionalmente inadequada.
8- A Autora pretende efectivar a responsabilidade do 1° Réu e do chamado por actos por estes praticados na sua actividade enquanto médicos, imputando a estes o facto ilícito no exercício da sus função de médicos oftalmologistas e não é imputado ao Hospital onde trabalham qualquer facto ilícito, tendo a Ré, seguradora, responsabilidade na medida do contrato de seguro com o 1° Réu.
9-E os termos do pedido e da causa de pedir estão formulados neste sentido, devendo atender-se em primeira linha a esta situação para a determinação do Tribunal competente em razão da matéria.
10-A competência do tribunal para julgar uma acção de indemnização não depende da natureza do direito violado mas sim, exclusivamente, da veste com que a entidade pública actua; se agir munida do ius imperium, os tribunais administrativos serão os competentes, caso contrário, serão competentes os tribunais comuns.
11-No presente caso não pode haver dúvida que é o Tribunal comum o competente.
12-Ao julgar-se como se julgou na decisão recorrida, violou-se, nomeadamente, o disposto no art° 668°, n° 1-d) do Cód. Proc. Civil e arts 483°, 407°, 500° n°3, 798° e 799° todos do Cód. Civil”.
Não foram apresentadas contra alegações.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

2. FUNDAMENTOS DE DIREITO
1. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do C.P.C. – salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 664 do mesmo diploma.
Considerando a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, temos que a única questão a decidir no processo se resume a saber se o tribunal comum é competente, em razão da matéria, para conhecer de pedido de indemnização formulado contra o médico e respectiva seguradora, pela prática de acto médico no exercício das suas funções, em estabelecimento hospitalar inserido no Serviço Nacional de Saúde.

2. O nexo de competência [ Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1980, I, p. 646
] fixa-se no momento em que a acção é proposta, relevando os factores atributivos de competência e a lei vigente a essa data, aferindo-se esse pressuposto processual pelo pedido formulado e causa de pedir invocada. [ “A competência material pode ser influenciada ou pelo aspecto qualitativo (sujeitos, objecto e causa da lide), ou pelo aspecto quantitativo (valor), donde a distinção entre competência em razão da qualidade e competência em razão do valor”, Alberto dos Reis, Comentário, 2ª edição, Coimbra Editora, I, p.111.
]
No caso, e em síntese, na conformação que a autora deu à lide, a actividade jurisdicional dirige-se à averiguação dos pressupostos do direito de indemnização que a autora pretende fazer valer contra o médico B......e sociedade seguradora, na sequência de acto médico (intervenção cirúrgica) praticado em 25 de Outubro de 1994, com consultas, tratamentos e intervenções que se prolongaram até 23 de Janeiro de 2006, data em que o réu concluiu pela irreversibilidade das lesões sofridas pela autora, sendo que esses actos tiveram lugar no Hospital D......, sito na cidade da Guarda.
O tribunal ad quo respondeu negativamente à aludida questão, considerando que a competência para processar e julgar a acção é do Tribunal Administrativo e não do Tribunal comum, perspectivando a decisão à luz do regime fixado pelo Decreto Lei 48 051, de 21/11/1967 [ Não é aplicável aos autos, portanto, o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas aprovado pela Lei 67/2007 de 31/12.
] e ponderando o disposto no art. 4º, nº1, alínea h) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19-02, rectificado pelas Declarações de Rectificação nº 18/2002, de 12-04 14/2002, de 20-03, e alterado pela Lei nº 4-A/2003, de 19-02 e pela Lei nº 107-D/2003, de 31-12. [ As alterações introduzidas ao ETAF pela Lei nº 1/2008, de 14/01, Lei nº 2/2008, de 14/01, e Lei nº 26/2008, de 27/06 são já posteriores à entrada da acção.
]
Parece-nos que a argumentação exposta na decisão recorrida parte de uma análise correcta da posição da autora expressa no processo, e é conforme ao que, cremos que com unanimidade, a jurisprudência e a doutrina vêm entendendo.
Perante a petição inicial, podemos claramente concluir que a autora se posiciona no domínio da responsabilidade civil extracontratual [ Por contraposição à responsabilidade contratual (ou negocial), Antunes Varela, Das Obrigações, 4ª edição, Almedina, Vol. I, pág. 440, define-a como «resultante da violação de direitos absolutos ou da prática de certos actos que embora lícitos causam prejuízo a outrem».
] do réu B......e do interveniente E......, médicos do Hospital D......, estabelecimento de saúde onde foram praticados os actos médicos em questão.
Por outro lado, invocando o réu B......que é médico especialista em oftalmologia e que operou a autora “no decurso da sua normal actividade profissional” enquanto profissional e médico desse hospital – cfr. os arts. 1º e 2º da contestação –, verifica-se que a autora, na réplica, não impugnou essa factualidade que, configurando matéria de excepção, deve ter-se por assente, nos termos do art. 490º, nº2 do C.P.C., aplicável ex vi do disposto no art. 505º do mesmo diploma.
Aliás, parece-nos que mesmo o circunstancialismo invocado na petição inicial evidencia que a autora colimou a acção nesse sentido. Efectivamente, referindo que a cirurgia ocorreu nesse estabelecimento hospitalar – que está integrado no Serviço Nacional de Saúde –, o mesmo acontecendo com consultas e tratamentos posteriores, que se estenderam por alguns anos, com os consequentes relatórios clínicos do médico, a que alude, dificilmente se conceberia que tudo isso se passasse à margem da entidade hospitalar, ou seja, que o médico agisse no exercício de medicina privada. E, se assim fosse, também incumbiria à autora invocar essa factualidade, o que não aconteceu, pressupondo-se que o recurso ao hospital ocorreu no âmbito de uma relação jurídica de utente do Serviço Nacional de Saúde.
Assentamos que a intervenção do réu B......– bem como a do interveniente E......, chefe do serviço de oftalmologia do mesmo hospital –, ocorreu no âmbito do exercício da respectiva actividade profissional, enquanto médico do Hospital D......, ao abrigo de uma relação contratual estabelecida com o Hospital e no cumprimento de dever emergente dessa relação.
Ora, a jurisprudência tem entendido que, no âmbito do regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e respectivos agentes, fixado pelo Decreto Lei 48051, de 21/11/1967 (arts. 2º, nº 1 e 3º) e ponderando o disposto no art. 4º, nº1, alínea h) do ETAF, os tribunais comuns, cuja competência é residual (art. 66º do C.P.C.), são materialmente incompetentes para processar e julgar acções que visem a condenação de um médico no pagamento de indemnização, por prejuízos causados por actuação ilícita na prestação dos cuidados de saúde ao lesado, quando esse médico agiu no exercício das respectivas funções, enquanto profissional de hospital inserido no Serviço Nacional de Saúde. [ Neste sentido, cfr. o Ac TRC de 26/09/2006, proferido no processo 1422/04.3 (Relator: Hélder Roque), Ac. TRL de 09/10/2008, proferido no processo nº 3871/2008-2 (Relator: Neto Neves) e Ac. STA de 02/10/2008, proferido no proc. 012/08 (Relator: Costa Reis), todos acessíveis in www.dgsi.pt. Salienta-se que, no âmbito da jurisdição administrativa, são inúmeros os acórdãos do STA em que se aprecia da responsabilidade (extracontratual) de médico ao serviço em hospital público ou centro de saúde, sem que nunca sequer aí se tenha suscitado questão alusiva a eventual incompetência material desse tribunal, pressuposto que se dá por adquirido.
]
Considera-se, fundamentalmente, que “a actividade médica nos estabelecimentos públicos de saúde se insere num enquadramento institucional de carácter público: ela constitui exercício de uma função pública, desenvolve-se sob a égide de normas de direito público, e condiciona os médicos em função de deveres e restrições especiais de carácter público”. [ Freitas do Amaral, Natureza da responsabilidade civil por actos médicos praticados em estabelecimentos públicos de saúde, in Direito da Saúde e Bioética,Lex Edições Jurídicas, 1991, p. 126.; No mesmo sentido, refere Ana Raquel Gonçalves Moniz (autora cujo raciocínio a decisão recorrida aderiu e que a Sra. Juiz cita), in Responsabilidade Civil Extracontratual por Danos Resultantes da Prestação de Cuidados de Saúde em Estabelecimentos Públicos: o Acesso à Justiça Administrativa, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Centro de Direito Biomédico, Coimbra Editora, 2003, pág. 42: “Se o exercício material da actividade médica não apresenta qualquer diferença quando exercido em estabelecimento público de saúde ou em clínica privada, já o conjunto de deveres (mesmo de carácter funcional) a cuja observância o médico enquanto (funcionário) se encontra adstrito introduz um elemento diferenciador na questão, a par do nexo de vínculos estabelecidos nas relações utente / Administração / funcionário que conduzem a qualificá-la como relação especial de Direito Administrativo”. Com interesse, veja-se, ainda, o Ac. RL de 24/10/2002, CJ, Ano XXVII, 2002, T. IV, p. 135-137, com voto de vencido do Des. Gomes da Silva, no sentido de que “a competência do tribunal administrativo parece inequívoca”, fazendo apelo a diversos diplomas legais (Estatuto do Médico, Lei de Gestão Hospitalar e Estatuto do Serviço Nacional de Saúde).

]
Questão diferente é saber se pode ser assacada ao réu – e, mais ainda, ao réu, exclusivamente –, a responsabilidade pelos actos que praticou, nos moldes em que a autora configura a actuação do médico: actuação negligente, que se reconduz à violação de dever de cuidado, como expressamente decorre dos arts. 4º, 5º, 17º, 18º, 39º da petição inicial. Efectivamente, do disposto nos arts. 2º, nº1 e 3º, nºs 1 e 2 do Dec. Lei 48 051 resulta que o titular do órgão ou agente administrativo do Estado e demais pessoas colectivas públicas só responde, directamente, num de dois casos: a) se tiver agido excedendo os limites das suas funções; b) se, no desempenho das suas funções e por sua causa tiver procedido dolosamente, em qualquer das suas formas (dolo directo, necessário ou eventual), não se tratando, portanto, de hipótese de mera negligência de actuação. [ O Ac. do STA de 06/06/2007, proferido no processo 0295/05 (Relator: Costa Reis), acessível in www. dgsi.pt, pronunciou-se num caso em que a acção, proposta contra o hospital e dois médicos foi julgada (manifestamente) improcedente quanto a estes médicos, que foram absolvidos do pedido, porque se considerou, que estes só poderiam estar em juízo se, na petição inicial, tivesse sido alegado que haviam agido com dolo.
]
Como também não releva, para a análise ora em apreço, a articulação deste regime com o art. 22º da C.R.P. [ O Ac. do Tribunal Constitucional de 13/04/2004, proferido no processo nº92/03 (Relator: Cons. Artur Maurício), acessível in www.dgsi.pt, decidindo da questão de “saber se a Constituição impõe que o agente do Estado responda directamente perante o lesado por actos ilícitos praticados no exercício das suas funções, com negligência, devendo considerar-se caducado o regime definido pelos artigos 2º e 3º nºs 1 e 2 do Decreto-lei nº 48051 por afrontar aquela imposição” – refere-se ao art. 22º da CRP –, concluiu “não julgar supervenientemente inconstitucionais as normas dos artigos 2º e 3º nºs 1 e 2 do Decreto-Lei nº 48051, enquanto eximem de responsabilidade, no plano das relações externas, os titulares de órgãos, funcionários e agentes do Estado e demais entidades públicas por danos causados pela prática de actos ilícitos e culposos (culpa leve ou grave) no exercício das suas funções e por causa delas”.
]
São matérias que, a serem discutidas, [ Não pode deixar de salientar-se que o pedido de intervenção do Hospital, formulado pela autora, foi objecto de indeferimento, por despacho transitado, sendo que o Hospital em causa não teve, portanto, qualquer intervenção no processo o que, porventura, não será indiferente, por exemplo, em sede de prescrição de direitos, matéria que, no entanto, é à autora que incumbe gerir, tanto mais que está representada por técnico de direito.
] o devem ser no tribunal que tem competência material para o fazer, o Tribunal Administrativo e não o Tribunal Judicial de Celorico da Beira.
Conclui-se, pois, que o Tribunal de Celorico da Beira é incompetente, em razão da matéria, para conhecer do pedido formulado contra o réu B......e interveniente E.......

3. E que dizer relativamente ao pedido formulado contra a seguradora?
A Srª Juiz considerou, igualmente, que a jurisdição competente para conhecer desse pedido é a jurisdição administrativa, referindo:
“No que concerne à segunda ré – Companhia de Seguros C...... – a conclusão é a mesma. Vejamos porquê.
É certo que o artigo 4º, nº1, do ETAF não contém nenhuma alínea na qual se inclui de forma directa e literal a acção instaurada contra a seguradora.
A inclusão desta matéria na área de competência da jurisdição administrativa também não se justifica apenas pelo facto da seguradora ver coarctada a possibilidade de suscitar a intervenção acessória provocada do segurado, uma vez que se trata de uma faculdade, ou da circunstância da seguradora responder nos mesmos termos que o segurado, pois trata-se de uma questão de direito substantivo.
Contudo, é manifesto que a acção dirigida contra a seguradora vai implicar o conhecimento de actos médicos praticados num estabelecimento público de saúde, que por natureza, conforme acima se referiu, são actos de gestão pública e funcionais, nos termos supra explicitados. Actos cuja apreciação compete aos tribunais administrativos, sendo certo que a seguradora apenas poderá exercer o seu direito de regresso junto da jurisdição administrativa.
Assim sendo, considero, salvo melhor entendimento, que a responsabilidade da seguradora deve-se considerar incluída no art. 4º, nº1, al h), do ETAF, por interpretação extensiva, pelo que a jurisdição comum é igualmente incompetente, em termos materiais, para conhecer o pedido formulado, no caso concreto, contra a Companhia de Seguros C......”.
Não podemos concordar com esta argumentação.
Desde logo, não parece admissível interpretar extensivamente o referido art. 4º, nº1, al) h, nos moldes a que alude a decisão.
“A interpretação extensiva apenas se justifica quando o intérprete apura um resultado que revela ter a letra da lei ficado aquém do seu espírito, tornando-se necessário, em função disso, estendê-la, por forma a que uma dada situação da vida se submeta à disciplina nela prevista”.[ Ac. STJ de 28/10/2008, proferido no processo 08A3034 (Relator: Cons. Nuno Cameira), acessível in www.dgsi.pt.
]
No caso, nada permite concluir que o legislador tenha dito menos do que pretendia, parecendo-nos que a posição assumida pelo tribunal a quo ultrapassa o limite estabelecido no art. 9º, nº2 do Cód. Civil, nos termos do qual não pode “ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”.
Efectivamente, o que a 1ª instância faz é estabelecer um mecanismo de alargamento da competência do tribunal, em função da especial conexão referida na decisão, envolvendo a conveniência de uma apreciação unitária das relações em causa, mas não se vê que o art. 4º, nº 1, do ETAF, nas suas várias alíneas, o permita. E se o legislador assim quisesse alargar o âmbito de competências de um tribunal, atribuindo relevância a determinados elementos de conexão, podia e devia, expressamente, dizê-lo, como acontece, por exemplo, na jurisdição laboral.[ Efectivamente, em matéria cível, o Tribunal do Trabalho é competente para conhecer das questões referidas no art. 85.º da LOTJ (Lei n.º 3/99, de 13/1), nomeadamente, “das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o tribunal seja directamente competente” – alínea o). Ou seja, o Tribunal do Trabalho é competente para conhecer de determinados pedidos apenas em função da sua relação com outros para os quais seria tipicamente competente: competência por conexão.
]
E nem o facto de estarmos perante uma situação de litisconsórcio voluntário passivo altera o que se disse, não podendo avaliar-se a competência do tribunal em função de outro pressuposto processual, a legitimidade das partes. Como se referiu no acórdão da R.P. de 25.2.2002 «para responder a esta questão importa ter presente a pretensão formulada pela autora e os fundamentos em que a mesma se baseia, pois, como dizia Manuel de Andrade «Noções Elementares de Processo Civil», 1979, pág. 90-91, para decidir da competência do Tribunal deve olhar-se aos termos em que a acção foi posta, seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes). A competência não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção». [ CJ, Ano XXVII, 2002, T I, pág. 252.
]
É certo que no Ac. desta Relação de Coimbra de 21/10/2008, [ Proferido no processo 163/05.9 (Relator: Des. Gregório Silva Jesus), acessível in www.dgsi.pt,.
] se decidiu que num “quadro de litisconsórcio voluntário do lado passivo, o tribunal competente para conhecer do pedido formulado contra o recorrido Município não pode deixar de o ser também para conhecer do pedido formulado contra a sociedade comercial”. Mas, nesse processo, estava em causa a condenação solidária de um Município e de uma sociedade comercial, com quem o Município havia contratado, pretendendo o lesado/autor, nomeadamente, a condenação de ambos a retirarem o saneamento (público) implantado nos seus terrenos, repondo-o no seu estado anterior. Ou seja, como também expressamente se referiu nesse aresto, a competência do tribunal administrativo, relativamente ao pedido formulado contra a sociedade comercial, sempre derivaria, expressamente, do disposto na al) g do nº 1 do art. 4º da ETAF, sendo que a “razão de ser desta alínea é a de abranger as situações correntes de exercício por entidades privadas de actividades ou funções públicas, normalmente em regime de empreitadas, ainda que as mesmas não se traduzam em actos de autoridade como sucedeu com a execução das obras de saneamento pela ré C”.
Ainda no mesmo sentido e em situação similar, se decidiu no Ac. STJ de 12/02/2007,[ Proferido no processo nº 07B238 8 (Relator: Cons. Salvador da Costa), acessível no mesmo loc.
] referindo que “a responsabilidade civil era imputada a situações materiais concorrentes de um ente público e de uma sociedade regida pelo direito privado, esta em execução de um contrato de empreitada de obras públicas”, com base no entendimento de que “o mero accionamento da recorrente com fundamento na responsabilidade civil extracontratual, conexionada com a execução da relação jurídica administrativa envolvida pelo referido contrato de empreitada de obras públicas, implica que a competência para dirimir o litígio em causa se inscreva nos tribunais da ordem administrativa (artigo 4º, nº 1, alínea g), do ETAF)”.
Ora, no caso dos autos, nenhum elemento do processo permite concluir que entre o médico B......e a seguradora se estabeleceu qualquer relação jurídica administrativa. Ao invés, a existência de um contrato de seguro, titulado pela apólice nº 8900703245, cuja validade nenhuma das partes põe em causa, indicia que entre os réus se desenvolveu uma relação jurídica típica do direito privado.
E nem se argumente com a dificuldade de termos uma apreciação jurisdicional dos mesmos factos, ou de um conjunto de questões com um núcleo comum, em diferentes tribunais, porquanto se trata de vicissitude que assume alguma normalidade no mundo do direito: basta pensarmos que, em determinadas circunstâncias, o pedido cível por indemnização pela prática de facto ilícito pode ser apreciado em acção de natureza civil, perante tribunal de competência especializada cível, podendo correr termos, em simultâneo, a respectiva acção penal, da competência de um tribunal criminal.
Conclui-se, pois, que, relativamente ao pedido formulado contra a ré seguradora, o tribunal goza de competência, em razão da matéria, para apreciar do pedido contra si formulado, impondo-se, nessa parte, a revogação da decisão.
*
Conclusões:
1. No âmbito do regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e respectivos agentes, fixado pelo Decreto Lei 48 051, de 21/11/1967 (arts. 2º, nº 1 e 3º) e ponderando o disposto no art. 4º, nº1, alínea h) do ETAF, os tribunais comuns, cuja competência é residual (art. 66º do C.P.C.), são materialmente incompetentes para processar e julgar acções que visem a condenação de um médico no pagamento de indemnização, por prejuízos causados por actuação ilícita na prestação dos cuidados de saúde ao lesado, quando esse médico agiu no exercício das respectivas funções, enquanto profissional de hospital inserido no Serviço Nacional de Saúde: a competência para apreciação desse pedido pertence aos Tribunais Administrativos.
2. Deduzindo-se ainda pedido de condenação solidária – até ao limite do capital seguro – contra uma entidade particular, por força de negócio (contrato de seguro) celebrado entre o médico e a sociedade, o Tribunal comum é materialmente competente para apreciar desse pedido, porquanto não tem cabimento interpretar extensivamente a alínea h) do art. 4º do citado diploma, o caso não se integra em nenhuma das demais alíneas desse preceito, e não pode qualificar-se a relação estabelecida entre o médico e a seguradora no âmbito de relação jurídico-administrativa.
*
Nestes termos, julga-se parcialmente procedente o agravo e, consequentemente:
a) mantém-se a decisão recorrida quanto ao pedido formulado contra o réu B...... e o interveniente E......;
b) revoga-se a decisão recorrida e, consequentemente, julga-se que o Tribunal Judicial de Celorico da Beira é materialmente competente para processar e julgar os autos quanto ao pedido formulado contra a Companhia de Seguros C...... SA.
Custas pela autora/agravante, na proporção de 50%, delas estando isenta a seguradora nos termos do art. 2º, nº1, alínea g) do C.C.J. .