Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
454/14.8T2OBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: OBRIGAÇÃO DE ALIMENTOS
INCIDENTE DE INCUMPRIMENTO
SUCESSIVOS INCUMPRIMENTOS
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
BOA-FÉ PROCESSUAL
Data do Acordão: 03/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE COIMBRA DO TRIBUNAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 48.º DO RGPTC E 933.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.
Sumário: I) A cobrança coerciva de alimentos estabelecidos por sentença que regule as responsabilidades parentais pode ser peticionada pelo mecanismo previsto no artigo 48.º do RGPTC ou pela execução especial por alimentos com previsão no artigo 933.º do CPC, cabendo ao credor caberá optar pelo meio processual que se lhe afigurar ser o mais conveniente.

II) Suscitado um incidente de incumprimento reportado a uma concreta situação incumprimento da obrigação de alimentos é nele que devem ser processadas as subsequentes situações de incumprimento que se registem, estando vedado suscitar por cada incumprimento subsequente um novo e autónomo incidente a processar em apenso autónomo.

III) O abuso de direito processual corresponde essencialmente ao exercício impróprio, no plano funcional, do direito à acção, distorcendo o direito fundamental a um processo justo e equitativo, na dimensão de garantia de acesso aos tribunais, mediante uma tutela judicial efectiva, o qual é conformado pela boa-fé processual objectiva.

Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes da 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

 I. Relatório

Veio, AA intentar contra BB, o presente incumprimento da regulação do exercício das responsabilidades parentais de CC, alegando que a requerida não contribuiu com a pensão de alimentos.

Dos autos apensos consta já decisão que afirmou o incumprimento no que toca à falta de pagamento da pensão de alimentos a que ficou obrigada.

Pelo Juízo de Família e Menores de Coimbra foi proferido o seguinte despacho:

“Face ao exposto, em face da falta de interesse processual, indefiro liminarmente o requerimento formulado.

Sem custas.

Valor da causa: € 30.000,01.

Registe e notifique”.

O requerente AA não se conformando com tal decisão, dela interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

(…)

2. Do objecto do recurso

Estando o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC - sem prejuízo das questões de que o tribunal deva conhecer oficiosamente e apenas estando adstrito a conhecer das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso -, a única questão a decidir é:

A decisão recorrida que, em face da falta de interesse processual, indeferiu liminarmente o requerimento formulado, violou os artigos 41.º, n.º 1  - Se, relativamente à situação da criança, um dos pais ou a terceira pessoa a quem aquela haja sido confiada não cumprir com o que tiver sido acordado ou decidido, pode o tribunal, oficiosamente, a requerimento do Ministério Público ou do outro progenitor, requerer, ao tribunal que no momento for territorialmente competente, as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa até vinte unidades de conta e, verificando-se os respetivos pressupostos, em indemnização a favor da criança, do progenitor requerente ou de ambos - do RGPTC e 2.º, n.º 1 do Código do Processo Civil?

A 1.ª instância decide assim:

“Da falta de interesse processual

Como afirmam ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA E SAMPAIO DA NORA in Manuel de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra Editora 1985, p. 179, o interesse processual, interesse em agir ou necessidade de tutela judiciária como lhe chamam respectivamente os autores italianos e germânicos, consiste na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a ação.

Continuam aqueles Autores que a necessidade de recorrer às vias judiciais não tem que ser uma necessidade absoluta, única ou a última via aberta para a realização da pretensão formulada. Contudo, não bastará para o efeito a necessidade de satisfazer um puro interesse subjectivo de obter uma pronúncia judicial. Exige-se pois uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a ação.

Encontra justificação o interesse processual ao evitar que as pessoas sejam precipitadamente forçadas a vir a juízo para organizarem a defesa dos seus interesses numa altura em que a situação da parte contrária o não justifica e ainda na necessidade de não sobrecarregar com acções desnecessárias a actividade dos tribunais, cujo tempo é escasso para acudir a todos os casos em que é realmente indispensável a intervenção jurisdicional.

Concluem ainda os Autores acima citados que se a falta de interesse processual é manifesta na própria petição, deve esta ser liminarmente indeferida com tal fundamento, levando à absolvição da instância. 

Revertendo para o caso concreto, verifica-se que foi já julgado o incumprimento da requerida no que toca à falta de pagamento da pensão de alimentos a que ficou obrigada, permitindo ao requerente o recurso quer ao disposto o artigo 48.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível quer ao Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores, como aliás já se encontra em curso.

De igual modo, e em alternativa ao incumprimento, poderá sempre o requerente recorrer à execução por alimentos porque munido de título executivo com a decisão que fixou os alimentos a prestar pela requerida, independentemente de qualquer decisão relativa ao incumprimento do pagamento da pensão de alimentos.

Julgado o incumprimento noutro apenso dos presentes autos, aberta está a porta para a possibilidade de recurso ao disposto o artigo 48.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível ou ao Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores, o que importa realizar em tal apenso, realizando-se diligências nesse sentido, retirando assim o efeito útil da decisão referente ao incumprimento.

Com o devido respeito, tendo em conta o já referido, tramitar e decidir subsequentes incumprimentos, para além de se afigurar como ato inútil e logo proibido por lei nos termos do disposto no artigo 130.º do Código de Processo Civil, poderia alcançar a situação impensável de todos os meses ser requerido o incumprimento do progenitor que não procede ao pagamento da pensão de alimentos, transformando os autos num interminável conjunto de apensos de incumprimento a processar autonomamente e em conflito entre si, em que a sua morosidade e a própria condenação em custas do progenitor incumpridor poderia findar em prejuízo para a criança ou jovem”.

Com todo o respeito pela alegação da apelante, o Juízo de Família e Menores de Coimbra proferiu a decisão acertada.

Senão vejamos.

A nossa Lei Fundamental, através do seu artigo 36.º, n.º 5 e no âmbito da família e filiação, confere aos pais um direito e dever constitucional de educação e manutenção dos filhos, sendo o primeiro dirigido ao Estado, e o segundo essencialmente em benefício dos filhos. A Convenção dos Direitos da Criança de 1989 (DR I, n.º 211, 12/09/1990), de acordo com o artigo 18.º, n.º 1, consagra igualmente que os pais têm a responsabilidade suprema e primacial de assegurar a educação e desenvolvimento dos seus filhos, afiançando os interesses destes. Tal só não sucederá se os pais não tiverem capacidade para o efeito.

Por sua vez, o Código Civil, mediante o artigo 1874.º, n.º 1 estipula que “Pais e filhos devem-se mutuamente respeito, auxílio e assistência”, acrescentando no n.º 2 que “O dever de assistência compreende a obrigação de prestar alimentos e a de contribuir, durante a vida em comum, de acordo com os recursos próprios, para os encargos da vida familiar”.

Este dever de assistência e de prestação de alimentos, não só existe quando pais e filhos mantêm uma vida em comum - artigos 1874.º, n.º 2; 1878.º, n.º 1 Código Civil-, mas também nas situações de vida em separado - artigo 1905.º Código Civil.

Assim e muito embora seja comum referenciar o dever e direito a alimentos como sendo estruturalmente obrigacional, o mesmo não deixa de representar uma dimensão essencial dos deveres e direitos constitucionais da filiação.

O titular desse direito a alimentos no âmbito das relações familiares entre os pais, por um lado, e os filhos menores, por outro lado, são estes últimos e não aqueles, como seja o progenitor a quem o menor está confiado.

No entanto, este último progenitor tem legitimidade para demandar o progenitor obrigado à prestação de alimentos. E essa legitimidade adjetiva ocorre igualmente no caso de incumprimento, tal como resulta do artigo 41.º, n.º 1 do RGPTC.

Deste modo e no âmbito das relações jurídicas alimentares entre pais e filhos, enquanto o progenitor a quem o menor está confiado tem a devida legitimidade processual para demandar o outro progenitor, designadamente por incumprimento do dever de alimentos por parte deste, apenas o menor é titular desse direito a alimentos, o que lhe confere a legitimidade substantiva desse direito.

Como sabemos, a cobrança coerciva de alimentos estabelecidos por sentença que regule as responsabilidades parentais, pode ser acionada por via do mecanismo previsto no artigo 48º do RGPTC, ou da execução especial por alimentos, com previsão no artigo 933º do CPC. Ao credor caberá optar pelo meio que se lhe afigurar ser o mais conveniente.

Ora, da norma do artigo 48.º do RGPTC, resulta:

1 - “Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida nos 10 dias seguintes ao vencimento, observa-se o seguinte:

 (…)

2 - As quantias deduzidas abrangem também os alimentos que se forem vencendo e são diretamente entregues a quem deva recebê-las.

Diz o apelanteque tem interesse em suscitar judicialmente, tantos incidentes e incumprimentos quantos incumprimentos houver por parte do progenitor relapso, tanto mais quando também requer, cumulativamente, que seja arbitrada indemnização a seu favor e do menor a seu cargo, que é condenação que não pode obter por via da decisão que homologou o acordo”.

Ora, como escreve o ilustre magistrado do Ministério Público, o “primeiro incidente de incumprimento instaurado pelo Recorrente ainda está pendente.

Neste processo foi tentada a cobrança coerciva dos alimentos e, na sua impossibilidade, determinada a intervenção do FGADM, em substituição da progenitora.

A renovação da prova de que se mantém os pressupostos para intervenção do FGADM é feita anualmente.

A todo o tempo, caso venha a ser conhecido trabalho por conta de outrem, subsídio ou o recebimento de qualquer outra prestação à devedora, serão desencadeados os mecanismos de cobrança coerciva, nos termos do art. 48º do RGPTC, para cobrança dos alimentos vencidos e vincendos.

A instauração de novo incumprimento, no presente circunstancialismo, mostra-se desnecessária, bastando ao Recorrente dar conta dos outros montantes em divida no processo já pendente para tais verbas poderem ser consideradas logo que viável a cobrança coerciva.

Finalmente, instaurar novo incumprimento para requerer condenação em indemnização, quando flui do processo pendente que a devedora não trabalha, não recebe pensão nem subsídio, nem lhe são conhecidos bens ou rendimentos, não parece curial, perpassando até o abuso de direito”.

Nada mais acertado.

Apenas mais esta nota quanto ao abuso de direito, nomeadamente o adjectivo.

Estabelece a norma do artigo 334.º do Código Civil que “É ilegítimo o exercício do direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

O legislador optou por uma formulação objetiva do abuso de direito - comportamento manifestamente indevido-, afastando-se de uma formulação subjetiva – intencionalidade -, com base nos limites internos – exercício - dos direitos, assente na boa fé (a), nos bons costumes (b) ou então nas finalidades do direito em causa (c), os quais têm uma função limitadora ou moderadora no exercício de direitos.

A ilegitimidade ou inadmissibilidade do exercício de direitos assentam essencialmente em razões de justiça, mais precisamente da prevalência da justiça substantiva, decorrente, no nosso ordenamento jurídico, da ideia republicana de uma sociedade justa, do direito à igualdade, na sua dimensão substantiva, enquanto princípio e direito fundamental subjetivo, bem como da atribuição aos tribunais da função jurisdicional de administrar a justiça em nome do povo, enquanto diretiva constitucional – artigo 202.º n.º 1 da CRP.

Tudo isto aponta para que os tribunais se esforcem no sentido de dar prevalência à justiça material e em concreto, em detrimento de uma aparência de justiça, que seria em abstrato e meramente formal.

Assim e à partida, o que se pretende transmitir com o abuso de direito é que, por razões de justiça, nenhum direito tem um carácter absoluto, sendo antes relativo - é um instrumento de correção com uma vocação subsidiária e fragmentária, que só deve ser utilizado como uma última ratio e para situações de flagrante abuso.

Dito isto, não tendo as leis processuais uma norma que de modo expresso acautele o abuso de direito no âmbito do processo civil, sabendo nós que toda a construção legal e jurisprudencial do abuso de direito está dirigida para um direito subjetivo substantivo, não temos dúvidas de existe um fundamento normativo, tanto constitucional, como legal, para o abuso de direito processual.

A Constituição, como já referimos, está impregnada por uma ideia de justiça, mais precisamente da prevalência da justiça substantiva, o que não afasta uma ideia de justiça processual - artigo 2.º, 13.º da CRP -, como decorre expressamente do seu artigo 20.º, n.º 4, ao consagrar o direito fundamental a um processo justo.

Este compreende duas vertentes essenciais, que são o direito a um processo equitativo e a obtenção de uma decisão em prazo razoável, mas que se desdobra em outras dimensões, sendo uma delas o direito de acesso à justiça.

Mas essa garantia de acesso aos tribunais está, desde logo, conformada pelo princípio da boa-fé processual, uma vez que o CPC, através do seu artigo 8.º, consagra que “As partes devem agir de boa-fé e observar os deveres de cooperação resultantes do preceituado no artigo anterior”.

Como emanação deste dever de boa-fé processual temos desde logo a responsabilidade por má-fé, consagrada na norma do artigo 542.º, sendo que as posturas de parte de má fé, tanto por dolo, como mediante negligência grave, reconduzem-se a situações de má fé material ou má fé instrumental.

As primeiras compreendem a dedução de pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia de ignorar, a alteração consciente da verdade dos factos ou a omissão de factos essenciais. As segundas incluem a omissão grave do dever de cooperação, o uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais para se conseguir um fim ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

A boa-fé processual, na sua dimensão objetiva, corresponde a um padrão de comportamento procedimental, o qual desdobra-se, entre outros, através da lealdade, fidelidade, confiança, cooperação e informação. A boa-fé processual abrange todos os processos e em qualquer das suas fases, assim como todas as instâncias. Pode ler-se, no Acórdão do STJ de 04.11.08, pesquisável em www.dgsi.pt, que “O princípio da boa-fé não é exclusivo do direito substantivo, também pode ser violado numa perspectiva de actuação processual, mormente pelo recurso a juízo através de acções ou procedimentos cautelares abusivos”.

Assim, poderemos alinhavar e concluir:

O abuso de direito processual corresponde essencialmente ao exercício impróprio, no plano funcional, do direito à ação, distorcendo o direito fundamental a um processo justo e equitativo, na dimensão de garantia de acesso aos tribunais, mediante uma tutela judicial efectiva, o qual deve ser aferido a partir da noção de boa-fé processual objetiva.

Verifica-se a violação da boa-fé processual quando ocorre o exercício ilegítimo do direito de ação, em virtude do seu titular ao demandar outra pessoa e atenta a realidade que lhe está subjacente, acaba por exceder manifestamente os limites impostos por um standard de integridade e lealdade procedimental.

Por isso, se é verdade que a proteção jurídica através dos tribunais implica o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie a pretensão formulada em juízo, e que a todo o direito corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção, tal busca da Justiça só ocorrerá, se a pretensão for regularmente deduzida em juízo, a lei não determinar o contrário ou não existam impedimentos processuais.

Nesta conformidade, a decisão recorrida não merece nenhuma censura, antes pelo contrário, sendo de confirmar.

(…)

3. Decisão

Assim, na improcedência da instância recursiva, mantemos a decisão proferida pelo Juízo de Família e Menores de Coimbra - Juiz 3.

Custas pelo apelante – sem prejuízo do beneficio do apoio judiciário.

Coimbra, 8 de Março de 2022

(José Avelino Gonçalves - Relator)

(Paulo Brandão – 1.º adjunto)

(Arlindo Oliveira - 2.º adjunto)