Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
13/11.7YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: EDUARDO MARTINS
Descritores: ESCUSA
FUNCIONÁRIO JUDICIAL
Data do Acordão: 02/02/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CONDEIXA – A -NOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: DEFERIDA
Legislação Nacional: ARTIGOS 43º A 47º DO CPP
Sumário: O relacionamento com funcionária judicial com quem convive socialmente, para lá do mero relacionamento institucional e profissional, pode e deve ser inserido no conceito de situações rígidas e bem definidas, tidas por sérias, graves e irrefutavelmente denunciadoras de que o julgador deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção, à luz de uma análise objectiva por quem está de fora do processo, nomeadamente, tendo em consideração que a acção de desenrola num meio populacional de reduzidas dimensões.
Decisão Texto Integral: A – Relatório:

A Exma. Senhora Drª. JS..., Juíza de Direito a exercer funções no Tribunal Judicial de Condeixa-A-Nova, Secção Única, veio, em 10/1/2011, ao abrigo do disposto nos artigos 43º a 47.º, do Código de Processo Penal, requerer que lhe seja concedida escusa de intervenção nos autos de processo comum (tribunal singular) nº 128/09.1TACDN, invocando os seguintes fundamentos:

Preparando-se para proferir despacho no processo comum singular n.º 128/09.1TACDN, nos termos do disposto nos artigos 311.º e 312.º, ambos do CPP, verifiquei que nesses autos figura como arguida ML..., escrivã auxiliar a desempenhar funções neste Tribunal Judicial de Condeixa-A-Nova, sendo-lhe imputada a prática de um crime de difamação agravada, p. e p. pelos artigos 180.º, n.º 1 e 184.º, ambos do CPP, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. l), do mesmo diploma legal.

Acontece que, enquanto juíza titular deste tribunal, o meu relacionamento com a Sra. ML... ultrapassa o mero relacionamento institucional e profissional.

Assim, por manter um contacto próximo com a referida funcionária, proporcionado pelas diversas diligências que, diariamente, realizamos neste tribunal e que contribuem para um estreitar de laços que ultrapassa o âmbito dessas diligências, devo admitir que a realização do julgamento propiciaria algum “desconforto” pessoal.

Ademais, e por força de um relacionamento pessoal próximo entre funcionários e magistrados neste Tribunal Judicial, são frequentes os convívios entre todos, incluindo, portanto, a minha pessoa e a Sra. ML..., sobretudo em ocasiões festivas, como aniversários, Natal, etc., quer no próprio tribunal, quer fora dele, nomeadamente em jantares que se realizam em restaurantes desta e de comarcas limítrofes.

Além do mais, o bom relacionamento que se descreveu é do conhecimento público, sobretudo num meio como o de Condeixa-A-Nova que é de reduzidas dimensões, pelo que toda a gente se conhece, rapidamente se disseminando pela população os acontecimentos ocorridos nesta vila.

É certo o meu total e completo desconhecimento quanto a quaisquer dos factos pelos quais a Sra. ML... foi pronunciada, excluindo, obviamente, o teor e objecto dos referidos autos.

Não obstante, todo o circunstancialismo descrito, que não é susceptível de pôr em crise os princípios da imparcialidade, justiça e busca da verdade material por que norteio o meu exercício da judicatura, pode pôr em crise a confiança na boa administração da justiça.

Face a todo o deixado exposto e por pugnar, em todos os momentos, pela transparência e pela eficácia da boa administração da justiça e pela confiança dos cidadãos naquele que, em meu entender, é o último reduto do Estado de Direito Democrático, mas ainda porque em nenhum momento quereria ver posta em crise a confiança de nenhum interveniente processual, nem mesmo de qualquer cidadão, no modo como exerço as funções em que estou investida, e considerando ainda que tal função exige não somente seriedade, mas também aparência de seriedade, e por forma a evitar um sentimento de desconfiança relativamente à minha imparcialidade, venho rogar a V. Exª. se digne, nos termos do preceituado no artigo 43.º, n.º 1, ex vi dos artigos 43.º, n.º 4, 44.º e 45.º, n.º 1, al. a), todos do CPP, escusar-me de intervir nos mencionados autos.”

Foi junta aos autos certidão dos autos de processo comum (tribunal singular) registados sob o n.º 128/09.1TACDN onde consta o respectivo despacho de pronúncia, proferido, em 16/11/2010, pelo TIC de Coimbra.

Nesta Relação, a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta, em 17/1/2011, limitou-se a apor visto nos autos.

O pedido de escusa mostra-se suficientemente instruído, pelo que não se revela necessária a produção de outras provas.

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         B – Fundamentação:

Foram colhidos os vistos legais.

Cumpre decidir.

Os factos relevantes para a decisão do presente incidente são os que ficaram referidos no relatório que antecede.

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O requerimento apresentado pela Meritíssima Juiz cumpre os requisitos formais de admissibilidade.

De facto, dispõe o artigo 43.º, n.º1, do Código de Processo Penal, que a intervenção de um Juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

Embora o Juiz não possa declarar-se voluntariamente suspeito, pode porém, pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem aquelas condições (n.º 4 do preceito).

O pedido de escusa é admissível até ao início da audiência, situação em que o processo se encontra – artigo 44.º, do Código de Processo Penal.

Não se verifica nos autos qualquer situação a enquadrar nos artigos 39.º e 40.º, do Código de Processo Penal, que obrigaria a uma declaração de impedimento, nem se verifica qualquer intervenção da Meritíssima Juiz noutro processo ou em fases diversas do mesmo processo, o que sempre poderia suscitar a invocação de fundamento para escusa.

Os factos invocados pela Meritíssima Juiz, constitutivos dos fundamentos do pedido de escusa, assentam, pois, no relacionamento existente com a Sra. ML..., na medida em que o mesmo “ultrapassa o mero relacionamento institucional e profissional”.

Está em causa a noção de imparcialidade do Tribunal e a Meritíssima Juiz entende que aquele relacionamento poderá fazer suspeitar inexistir ou gerar desconfiança sobre a sua existência, a partir do momento em que Condeixa-A-Nova é uma vila pequena, sendo certo que são frequentes os convívios sociais entre todos os que trabalham no Tribunal, em datas festivas.

Relembre-se, pois tal é essencial para compreender a solução a dar ao problema, que, já na Antiguidade, uma das quatro características de um juiz consistia em decidir com, imparcialidade paralelamente a ouvir com atenção, responder com sabedoria e pensar com prudência.

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Inexistindo normativo no ordenamento jurídico português que explicitamente defina tal conceito, dispõe o artigo 6.º, n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (Direito a um processo equitativo) [1] - a vigorar na ordem jurídica interna portuguesa com valor infra constitucional - que “qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, …”.

Este normativo estabelece garantias dos quais ressalta a “imparcialidade”, enquanto elemento “constitutivo e essencial” da noção de Tribunal.

O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem vindo a desenvolver jurisprudência concretizadora do conceito de “tribunal imparcial” que se impõe recordar:                                                                                       “XII. A imparcialidade do tribunal deve ser apreciada segundo uma dupla ordem de considerações; de uma perspectiva subjectiva, relativamente à convicção e ao pensamento do juiz numa dada situação concreta, não podendo o tribunal manifestar subjectivamente qualquer preconceito ou prejuízo pessoais, sendo que a imparcialidade pessoal do juiz se deve presumir até prova em contrário.                                                                     XIII. A perspectiva objectiva da imparcialidade exige que seja assegurado que o tribunal ofereça garantias suficientes para excluir, a este respeito, qualquer dúvida legítima.”

(Acórdão Lavents v. Letónia de 28-11-2002)

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Também o Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 124/90 (v. igualmente os acórdãos nº 935/96 e 186/98), vem a reconhecer aquelas vertentes do conceito “imparcialidade”, de Tribunal imparcial, na consagração constitucional do princípio do acusatório (artigo 32.º, n.º 5 da CRP) e do princípio do processo justo e equitativo (“a due process of law”) na consagração das garantias de defesa (artigo 32.º, n.º 1, da CRP):
«Ao consagrar o n.º 5 do artigo 32.º da Constituição uma tal garantia - a garantia do processo criminal de tipo acusatório - o que, pois, a Lei Fundamental pretende assegurar é ……….um julgamento independente e imparcial».
………………..
“Num Estado de direito, a solução jurídica dos conflitos há-de, com efeito, fazer-se sempre com observância de regras de independência e de imparcialidade, pois tal é uma exigência do direito de acesso aos tribunais, que a Constituição consagra no artigo 20º, nº 1 ………..”
“um julgamento independente e imparcial é, de resto, também uma dimensão - e dimensão importante - do princípio das garantias de defesa, consagrado no artigo 32º, nº 1, da Constituição, para o processo criminal, pois este tem que ser sempre a due process of law”.”
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São, pois, estes os parâmetros normativos que regem a noção de “imparcialidade” no ordenamento constitucional português.
A que devemos adicionar a própria previsão de necessidade de “independência” dos Juízes – artigo 203.º, da CRP – e que resulta como consequência pensada na estatuição de um regime de garantias e incompatibilidades – artigo 216.º, da CRP.
E acrescenta aquele Tribunal, no Acórdão nº 135/88 (Diário da República, II série, de 8 de Setembro de 1988):                                              “Assim, necessário é, inter alia, que o desempenho do cargo de juiz seja rodeado de cautelas legais destinadas a garantir a sua imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição.
É que, quando a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade é justificadamente posta em causa, o juiz não está em condições de "administrar justiça". Nesse caso, não deve poder intervir no processo, antes deve ser pela lei impedido de funcionar - deve, numa palavra, poder ser declarado iudex inhabilis.

Importa, pois, que o juiz que julga o faça com independência. E importa, bem assim, que o seu julgamento surja aos olhos do público como um julgamento objectivo e imparcial.

Ou seja, o Tribunal Constitucional vem igualmente a consagrar as ditas vertentes objectiva e subjectiva do conceito de “imparcialidade”.

Essa imparcialidade poderia suscitar-se por intervenção nesse ou noutro processo ou por especial relação com os nele intervenientes, “que faça legitimamente suspeitar da sua imparcialidade”.


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Impõe-se, portanto, apurar se há algo nos factos alegados pela Meritíssima Juiz que impeça que o julgamento a realizar surja aos olhos do público como um julgamento objectivo e imparcial ou, de outra forma, se há uma especial relação estabelecida com os intervenientes no processo “que faça legitimamente suspeitar da sua imparcialidade”.

Na perspectiva subjectiva importa fazer apelo a um critério essencialmente social, a um ponto de vista comunitário, ao “homem médio” (“a reasonable person” do Supremo Tribunal canadiano), desapaixonado e plenamente consciente das circunstâncias do caso concreto,

O que importa é determinar se um cidadão médio, representativo da comunidade, pode, fundadamente, suspeitar que o juiz, influenciado pelo facto invocado, deixe de ser imparcial e, injustamente o prejudique”, no dizer do Tribunal Constitucional.

Além disso, para a procedência da escusa, não servem quaisquer razões, mesmo que penosas para o Juiz.

Aquela há-de assentar em razões fortes, a abalar aquela credibilidade de um ponto de vista da comunidade, “motivos, sérios e graves, adequados a gerar desconfiança sobre a imparcialidade dos juízes”. [2]

Ou, no dizer do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 5 de Abril de 2000 (in C.J. – Supremo Tribunal de Justiça – II, 244), “só deve ser deferida escusa ou recusado o juiz natural quando se verifiquem circunstâncias muito rígidas e bem definidas, tidas por sérias, graves e irrefutavelmente denunciadoras de que ele deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção”.

Daí que, também nas causas de escusa, se deve recorrer a uma exegese restritiva, como o fez o legislador na previsão de fundamentos para o impedimento.                                                                                       Naturalmente que não se deve atender ao convencimento da Meritíssima Juiz quanto, no caso, à sua capacidade para “vir a ser imparcial”.      Deve, ao invés, fazer-se apelo aos factos e circunstâncias objectivas invocadas. E estas, fazendo apelo ao homem médio inserido na comunidade em que a Meritíssima Juiz exerce a sua função são suficientes para a procedência da escusa.

É evidente que a intervenção futura da Meritíssima Juiz está, processualmente, rodeada de cautelas, o exercício da sua função não assenta no arbítrio e é sindicável.

Todavia, o relacionamento invocado pela exponente com a Sra. ML..., funcionária judicial com quem convive socialmente, para lá do mero relacionamento institucional e profissional, pode e deve ser inserido no conceito de situações rígidas e bem definidas, tidas por sérias, graves e irrefutavelmente denunciadoras de que o julgador deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção, à luz de uma análise objectiva por quem está de fora do processo, nomeadamente, tendo em consideração que a acção de desenrola num meio populacional de reduzidas dimensões.                       O homem médio, há que enfatizar, não veria com bons olhos uma tal situação de proximidade entre aquela que julga e aquela que é julgada. Tal é cristalino!...

 A Justiça é um dos pilares de um Estado de Direito. A imparcialidade dos juízes não pode ser colocada em causa, sob pena de nada ter sentido.

         Não há necessidade, em pleno século XXI, de colocar a Meritíssima Juiz numa situação de desconforto perante terceiros.                              Diga-se que, caso permanecesse nos autos, tudo faria para julgar com imparcialidade. Dúvidas não fiquem no ar quanto a tal assunto.

         Porém, esse esforço, em caso de eventual absolvição da arguida, seria inglório, pois sempre poderia ser alvo de suspeições graves, face à ligação acima referida. À mulher de César…

          Ocorre, pois, no caso concreto, legítimo fundamento para a escusa requerida nos termos do artigo 43.º, do CPP.


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C – Dispositivo:

Nestes termos, decidem os juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra deferir ao pedido de escusa requerido pela Exma. Senhora Drª. JS..., Juiz de Direito a exercer funções no Tribunal Judicial de Condeixa-A-Nova, Secção Única, no processo comum (tribunal singular) com o nº 128/09.1TACDN.

Sem custas.


José Eduardo Martins (Relator)
Isabel Valongo

[1]Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais”, de 4 de Novembro de 1950 (Roma), com entrada em vigor na ordem jurídica portuguesa a 9 de Novembro de 1978 - aprovada para ratificação pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro, publicada no Diário da República, I Série, n.º 236/78. Não houve reservas do Estado português relativamente ao citado artigo.
[2] - Prof. G. Marques da Silva, in Processo Penal, vol. I, p. 203, citando Costa Pimenta.