Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | GONÇALVES FERREIRA | ||
Descritores: | INSOLVÊNCIA CULPA INABILITAÇÃO INCONSTITUCIONALIDADE | ||
Data do Acordão: | 03/24/2009 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | AVEIRO - 1º J CÍVEL | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PARCIALMENTE REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ALÍNEA B) DO N.º 2 DO ARTIGO 189.º DO CIRE E ARTIGO 26.º DA CRP | ||
Sumário: | 1) A falta de indicação dos concretos meios de prova constantes do processo que impunham decisão diversa da tomada pelo tribunal de 1.ª instância, nomeadamente, por referência aos depoimentos prestados, implica a rejeição do recurso sobre a matéria de facto. 2) A verificação, através dos correspondentes factos, das situações previstas no n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, determina a qualificação da insolvência como culposa, sem admissão de prova em contrário. 3) Já as situações do n.º 3 do mesmo artigo acarretam, tão-só, uma presunção “juris tantum” de culpa grave. 4) De qualquer forma, nestas hipóteses, a qualificação da insolvência como culposa depende da existência de um nexo de causalidade entre as situações previstas e a ocorrência da insolvência. 5) A norma da alínea b) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE é inconstitucional, por violação do direito à capacidade à capacidade civil, consagrado no artigo 26.º da CRP. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I. Relatório:
Por apenso à acção especial de declaração de insolvência intentada contra A... , vieram os requerentes da insolvência, B... e outros, defender, através da dedução do pertinente incidente, a qualificação da insolvência como culposa, alegando ter ficado provado na sentença que decretou a insolvência factualidade susceptível de integrar as hipóteses das alíneas h) do nº 2 e a) e b) do nº 3 do artigo 186º do CIRE.
1. Os A..., eram uma sociedade anónima que se encontrava matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Aveiro sob o número 00209/19401031 (A). 2. E tinha por objecto social a indústria de construção e reparação navais, caldeiraria e construção civil e mecânica (B). 3. A acção de insolvência nº 1421/06.0, à qual este incidente se encontra apenso, foi instaurada por 27 trabalhadores dos A... (C). 4. Na referida acção de insolvência foi deduzida oposição pelos A..., devidamente representada pelos seus administradores, os ora oponentes C...e D... (D). 5. No início da audiência de julgamento foram considerados assentes, sem ter sido apresentada qualquer reclamação, (além de outros) os seguintes factos: 1.º – Os Requerentes (do processo de insolvência), sob as ordens, direcção e fiscalização da Requerida (ora Insolvente), sempre exerceram com zelo e assiduidade a respectiva actividade profissional, prestando serviço no estabelecimento industrial de construção e reparação naval que a Requerida possuía e explorava sito em S. Jacinto (C). 3.º – Com base nas retribuições em atraso, por cartas registadas com aviso de recepção enviadas à Requerida a 04.08.03, 26.06.03, 26.06.03, 01.09.03, 08.09.03, 08.09.03, 27.03.03, 26.06.03, 13.07.03, 15.09.03, 15.05.03, 10.10.03, 09.02.04, 10.04.03, 15.07.03, 27.08.03, 01.09.03, 10.12.03, 03.04.03, 16.04.03, 01.07.03, 16.07.03, 11.04.03, 01.04.03, 12.08.03, 13.10.03 e 02.12.03 (e à semelhança do que sucedeu com a grande maioria dos trabalhadores da Requerida), os Requerentes suspenderam os respectivos contratos de trabalho nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 3º da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, com efeitos, respectivamente, a partir de: a) 15 de Agosto de 2003, a 1ª Requerente; b) 10 de Julho de 2003, o 2º Requerente; c) 10 de Julho de 2003, o 3º Requerente; d) 12 de Setembro de 2003, o 4º Requerente; e) 19 de Setembro de 2003, o 5º Requerente; f) 19 de Setembro de 2003, o 6º Requerente; g) 7 de Abril de 2003, o 7º Requerente; h) 10 de Julho de 2003, o 8º Requerente; i) 4 de Agosto de 2003, o 9º Requerente; j) 26 de Setembro de 2003, o 10º Requerente; l) 25 de Maio de 2003, o 11º Requerente; m) 23 de Outubro de 2003, o 12º Requerente; n) 20 de Fevereiro de 2004, o 13º Requerente; o) 24 de Abril de 2003, o 14º Requerente; p) 28 de Julho de 2003, o 15º Requerente; q) 8 de Setembro de 2003, o 16º Requerente; r) 15 de Setembro de 2003, o 17º Requerente; s) 24 de Dezembro de 2003, o 18º Requerente; t) 14 de Abril de 2003, o 19º Requerente; u) 27 de Abril de 2003, o 20º Requerente; v) 10 de Julho de 2003, o 21º Requerente; x) 26 de Julho de 2003, o 22º Requerente; z) 24 de Abril de 2003, o 23º Requerente; aa) 15 de Abril de 2003, o 24º Requerente; bb) 22 de Agosto de 2003, o 25º Requerente; cc) 23 de Outubro de 2003, a 26º Requerente; dd) 13 de Dezembro de 2003, o 27º Requerente (F). 6.º – A Requerida nada pagou aos Requerentes (alínea J). 7.º – Foi penhorada, no âmbito dos processos de execução fiscal números 0051199401004948 e nº 0051200401009982 e respectivos apensos que correm termos pelo 1º Serviço de Finanças de Aveiro, parte substancial do património da Requerida, designadamente: a) um batelão com 30 metros de cumprimento, 9,5 metros de largura, 1,5 metros de altura e 70 toneladas; b) uma ponte rolante, com capacidade de 10 toneladas, marca “Demag”; c) uma máquina de oxicorte, marca “Koike Sanso”, modelo IK.3000; d) uma máquina de oxicorte, marca “Koike Sanso”, modelo IK.1500; e) uma mandriladora, marca “Sverdlov-machine Bulding Association”, mod. 2622-B; f) um torno mecânico, marca “Small Apolo 25”; g) um torno mecânico “Clovin 28”; h) um torno mecânico, marca “SD-1768”; i) uma serra de fita, marca “Mida-SF”; j) uma tupia, marca “Pinheiro”; k) uma garlopa, marca “Mida-G5”; l) uma ponte rolante, com a capacidade para 3 toneladas, marca “Demag”; m) uma guilhotina, marca “Adira”, tipo OHV-1640-8082277, de 1979; n) uma quinadeira, marca “Adira”; o) uma prensa de 60 toneladas; p) uma grua, marca “Petrel”, mod. SWI, de 1,5 toneladas e 6,5 metros; q)uma grua, marca “Petrel”, de 2,5 toneladas e 8,30 metros; r) uma grua, marca “Petrel”, de duas toneladas e 8,5 metros; s)um barco pesqueiro, NORDICO, em construção, com 26 metros de comprimento, com casa das máquinas com as tubagens e bombas, caixa redutora, túnel de impulso de ré com hélice, linha de veios com quatro pás à ré, com convés inferior e superior; t) uma grua “Wolfe” de carris, com cerca de 25 metros de lança; u) um guindaste de quatro rodas de carris com motor nº 3; v)um bloco com três compartimentos mais três em ferro; w) um guindaste petrel, mod. 8183, série 990802, com cinco conjuntos de acessórios; x) um guincho de barco para envolver rede; y) um lote de chapas diversas de alumínio, tubos de aço inox, cantoneiras em alumínio, tubos, chapas inox, mais uma chapa já soldada; z) todo o material existente no armazém Norte, designadamente o sistema de frio e isolamento, cinco bombas de água, sete caixotes de contraplacado em lã de vidro, um guincho e outro material; aa) uma prensa sem marca; bb) uma grua; cc) uma calandra, marca “Bakker-260”; dd) uma serra de fila, marca “Mida-SF9”; ee) uma máquina de soldar serras, marca “Mida-S9”; ff) uma tupia; gg) uma plaina; hh) uma fresadora, marca “MF-C2, Mida 66”; ii) uma desengonçadeira G4, marca “Mida”; jj) uma plaina 62, marca “J-Insereos”; kk) um torno de 6 metros, marca “Smol-TA 25”; ll) um torno de 3 metros, marca “Smol-TA 25”; mm) um torno de 2 metros, marca “Smol-TA 25”; nn) um torno de 2,5 metros, marca “Smol-TA 25”; oo) um torno, marca “ossis-Porta”; pp) um limador, marca “Ramos & Irmão-30”; qq) uma radial de furar, marca “Romar-22”; rr) uma serra eléctrica, marca “Muiz”; ss) uma prensa de 200 toneladas, marca “Beker”; tt) uma quinadeira, marca “Colly”; uu) uma guilhotina, marca “Haco”; vv) uma máquina de cortar perfis, marca “Pedoinchaus”; ww) uma grua auto; xx) uma ponte rolante, marca “&Ton-Tegopi”, com todos os acessórios; yy) um lote composto por dois compressores, marca “Hyoro” Van-170”, rotativos, um moto-compressor com reservatório, marca “LD720-1438”, um compressor eléctrico e um torno para veios (alínea L). 8.º – Estes bens foram vendidos e adjudicados antes da entrada em juízo da acção de insolvência (alínea M). 9.º – O passivo da Requerida, sem contar com os créditos dos trabalhadores, ascendia em Março de 2002 a € 21.861.780,00 (alínea N). 10.º – A Requerida foi objecto de um Processo Especial de Recuperação de Empresa que correu termos pelo 3º Juízo Cível deste Tribunal sob o nº 661/2001 (alínea O). 11.º – No âmbito desse processo foi aprovada, como medida de recuperação da empresa, a gestão controlada pelo prazo de dois anos (alínea P). 12.º – Tendo sido igualmente aprovado um plano de pagamento aos credores que consistia, em relação aos credores privilegiados Segurança Social, Fazenda Nacional, Fundo de Garantia Salarial e Fundo de Acidentes de Trabalho, no pagamento das respectivas dívidas em 150 prestações mensais, iguais e sucessivas, a iniciar após a sentença homologatória da aprovação da medida, e, em relação à Caixa Geral de Depósitos e aos Credores Comuns, no pagamento das respectivas dívidas em prestações trimestrais, iguais e sucessivas, com início de liquidação na data de 7 de Março de 2005 (alínea Q). 13º – A medida de gestão controlada cessou em 12 de Junho de 2005 (alínea R). 6. Por sentença proferida a 26/05/2006, transitada em julgado, foi declarada a insolvência dos A... (F). 7. Os oponentes D... e C... foram nomeados administradores dos A... no âmbito do Processo de Recuperação de Empresas nº 661/01, do 3º Juízo Cível referido em E) – 10 (G). 8. As suas funções estavam definidas para o cumprimento do Plano de Recuperação de Empresas com gestão controlada, homologado por sentença judicial, transitada em julgado (H). 9. E... , instaurou uma acção ordinária, que corre termos pelo 3º Juízo Cível deste Tribunal sob o nº 2931/04.0TBAVR, contra os A... e na qual requerem a condenação dos A...: a) a ver reconhecido o direito de propriedade da ali autora sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o nº 00302/061294 da freguesia de São Jacinto, e onde se encontravam instalados os A...; b) a restituir à autora o identificado prédio; c) a pagar à autora, a título de indemnização pela ocupação do prédio, desde a propositura da acção e até à restituição, o valor mínimo de € 5.000,00 mensais (I). 10. Os Oponentes, em nome dos A..., contestaram esta acção e deduziram pedido reconvencional a reivindicar a posse e propriedade do referido terreno, para efeitos da sua aquisição por usucapião – fls. 307/322 do processo de insolvência (J). 11. Os relatórios de gestão dos anos 2002, 2003, 2004 e 2005, que incluem o Balanço, a Demonstração de Resultados e os respectivos anexos foram elaborados e entregues ao Senhor Administrador sem serem acompanhados pelo relatório do conselho fiscal nem pelo documento da certificação legal das contas de elaboração obrigatória pelo revisor oficial de contas (L). 12. As últimas contas aprovadas em reunião de Assembleia-Geral dos A... reportam-se a 2002, não tendo as contas dos exercícios de 2003, 2004 e 2005 sido submetidas à discussão e aprovação em Assembleia-Geral (M). 13. Foi convocada, a 08/09/2005, uma Assembleia-Geral dos A..., com dois pontos de ordem de trabalho, sendo um deles, analisar, discutir e deliberar sobre a actual situação da administração e de fiscalização da sociedade (N). 14. A reunião realizou-se a 17 de Outubro de 2005 (O). 15. Q... , instaurou procedimento cautelar de suspensão de deliberação social, que correu termos no 1.º Juízo Cível deste Tribunal, com o nº 5832/05.0TBAVR-A, no qual requeria fossem declaradas suspensas as execuções das deliberações tomadas na Assembleia-Geral da ora Insolvente, de 17/10/2005, designadamente aquela que elege um novo Conselho de Administração, um novo Conselho Fiscal e uma nova mesa da Assembleia-Geral (P). 16. Esta providência cautelar foi julgada improcedente por decisão proferida a 17/03/2006, transitada em julgado (Q). 17. Durante o período em que esteve em vigor a providência de recuperação de gestão controlada, os A..., em vez de criarem mercado, viram a sua actividade resumir-se ao desmantelamento de barcos e a algumas pequenas reparações de barcos (1º). 18. O que originou problemas de pagamentos (2º). 19. E a consequente desconfiança por parte de habituais e potenciais clientes na capacidade de os A...conseguirem honrar compromissos de construção de novas embarcações (3º). 20. Os A...ficaram, por dívidas, sem as máquinas e outros equipamentos de produção e ferramentas que tinham valor económico de alguma relevância (4º). 21. E sem capacidade financeira para compra de matérias-primas (5º). 22. O balanço da insolvente, reportado ao ano de 2005, não reflectia a sua situação patrimonial (6º). 23. O esquema de pagamento geral da proposta aprovada no processo de recuperação de empresa referido em E)-10, 11 e 13 previa (além do mais) a reformulação da dívida mediante a redução de 60% dos créditos comuns e a isenção de juros vencidos e vincendos a abranger todos os credores comuns (7º). 24. Pelo que o passivo foi reduzido para 9.414.783.76 (8º). 25. O valor total do passivo era, à data da insolvência, superior a € 9.414.783,76 (10º). 26. O activo imobilizado incorpóreo dos A... era constituído por um conjunto de projectos de construção naval, património dos A...(12º). 27. Estes projectos podem ter alguma importância como suporte técnico de reparações de navios (13º). 28. Foi efectuado um aumento de capital no valor de € 797.594,00, mas ficticiamente, uma vez que houve entrada daquele montante no caixa e saída quase imediata do mesmo para entrega à entidade que o emprestou (14º e 15º). 29. Foi celebrado um “acordo de parceria” entre os A...e F... nos termos do qual a F...se comprometia a colocar nos A...algumas obras que tivesse em carteira, e a fornecer todos os materiais e equipamentos necessários às obras (17º). 30. No âmbito do acordo referido no quesito 17.º) foram celebrado entre a F...e os A...contratos de subempreitada para: a) Construção e montagem de pontões da Marina de Cascais com um encaixe financeiro de € 30,000,00; b) Reparação dos pontões flutuantes do terminal de passageiros de S. Jacinto e do Forte da Barra; c) Trabalhos e caldeiraria e soldadura num navio (Contrato n.º 215) (18º). 31. Foram também estabelecidas negociações com os G... para trabalhos de subempreitada (19º). 32. Em Abril de 2004, os A...tinham apenas quatro trabalhadores (23º). 33. Que exerciam a função de desmantelamento de navios (24º). 34. Em Junho de 2004 existiam treze trabalhadores (25º). 35. Foram efectuados vários contactos com o Reino de Marrocos, após conhecimento de que era sua pretensão criar uma frota pesqueira (27º). 36. E foram assinados os seguintes contratos: a) A 08/11/2002, entre os A...e a H... , empresa marroquina, (contrato n.º 223), para construção de um navio em aço, no valor de € 3.489.000,00; b) A 02/04/2003, entre os A...e a empresa marroquina I... , (contrato n.º 235), para construção de um navio no valor de € 2.125.000,00; c) A 10/12/2002, entre os A...e a empresa marroquina, J... , para construção de navio, no valor de 12.000.00,00 de Dihrams; d)A 02/03/2003, entre os A...e a empresa marroquina L... , para construção de um navio, (contrato n.º 238), no valor de € 2.125.000,00; e) A 07/10/2003, entre os A...e a empresa marroquina M... , (contrato n.º 222), para construção de um navio, no valor de € 1.940.000,00 (28º). 37. Os Oponentes propuseram a criação de um fundo internacional para renovação da frota de pesca de Marrocos, em que os barcos seriam construídos nos A..., financiados pelos recursos do governo português, norueguês e de uma instituição financeira internacional (29º). 38. Os A..., através dos oponentes, entraram em contacto com o ICEP, com o governo marroquino e com uma empresa financeira internacional, a N... , com o objectivo de concretização do Fundo Internacional (30º). 39. O projecto encontrava-se no ICEP aguardando aprovação quando os A... foram declarados insolventes (31º). 40. Após ter cessado a suspensão dos processos de execução existentes contra os A..., à data do processo de recuperação de empresa referido em E)-10, parte dos credores vieram reclamar o pagamento do valor em dívida nessas execuções, por os A...não terem pago as prestações que se iam vencendo de acordo com o estabelecido no plano de pagamento aos credores (33º). 41. Os credores exigiam os valores iniciais da dívida (34º). 42. A ora Insolvente embargou as respectivas execuções (35º). 43. A ora Insolvente procedeu ao pagamento de parte da dívida à Caixa Geral de Depósitos, no valor de € 3.750.000,00 (37º). 44. Dois dos membros efectivos do conselho fiscal – o ROC e a empresa O... , cessaram as suas funções (39º). 45. O Dr. P... , representante da O..., comunicou, por carta, que cessaria as suas funções (42º). 46. A interposição da providência cautelar referida em P) inviabilizou a tomada de posse dos órgãos sociais em Outubro de 2005 (44º). 47. Só após a decisão judicial referente à providência cautelar é que foi possível convocar uma Assembleia-Geral a realizar no dia 4 de Maio de 2006 (45º). 48. Nesta Assembleia-Geral foram aprovadas todas as contas referentes aos anos de 2002, 2003, 2004 e 2005 (46º). 49. A acta não foi transcrita no livro por, entretanto, ter sido decretada a insolvência da sociedade, e o mesmo ter sido entregue nos termos da lei ao senhor Administrador, encontrando-se na sua posse, tal como o Livro de Presenças (47º). 50. Toda a documentação solicitada pelo Administrador de Insolvência e por ordem do tribunal foi prontamente entregue e dentro dos prazos estabelecidos (50º). 51. Sempre existiu colaboração entre os Oponentes e o Administrador de Insolvência (51º). 52. Foram sempre dadas todas as informações solicitadas na inúmera correspondência trocada (52º). 53. A documentação foi entregue em duas fases, tendo a última entrega ocorrido a dia 7 de Agosto de 2006 por haver dificuldade em acondicionar toda a documentação (54º).
III. O direito
a) A alteração da matéria de facto:
É muito difícil perceber o que pretendem os recorrentes, neste segmento, porque a sua alegação é, por um lado, obscura e, por outro, inconclusiva. Declaradamente, são dois os focos da discordância: os pontos 27 e 28 da matéria de facto dada por provada na sentença, que teriam sido mal julgados, o primeiro por defeito (na expressão dos recorrentes “não decidiu bem o tribunal a quo ao considerar somente como provado que os referidos projectos podem ter alguma importância como suporte técnico de reparações de navios”) e o segundo por excesso (o facto deveria, em sua opinião, ter sido ignorado, por falta de prova). A questão é que a divergência parece ser mais extensa, abrangendo, também, o ponto 22, uma vez que os recorrentes acabam por concluir que “o balanço da insolvente reportado ao ano de 2005 era o reflexo da realidade e do cumprimento das normas contabilísticas”, quando naquele número se diz precisamente o contrário, ou seja, que “o balanço da insolvente reportado ao ano de 2005 não reflectia a sua situação patrimonial”. O ponto 22 dos factos assentes emerge do artigo 6.º da base instrutória (“o balanço da insolvente reportado ao ano de 2005 não reflectia a sua situação patrimonial?”, que recebeu a resposta “provado”. O ponto 27 entronca no artigo 13.º da mesma base (“estes projectos são fundamentais como suporte técnico de reparações, ou inovações técnicas de navios?”), a que o tribunal respondeu pela forma que a matéria comprovada documenta: “provado, apenas, que estes projectos podem ter alguma importância como suporte técnico de reparação de navios”. O ponto 28, finalmente, advém dos quesitos 14.º (“foi efectuado um aumento de capital no valor de € 797.594,00?”) e 15.º (esse aumento de capital foi fictício?”), que receberam esta resposta conjunta: “provado, apenas, que foi efectuado um aumento do capital no valor de € 797.594,00, mas ficticiamente, uma vez que houve entrada daquele montante no caixa e saída quase imediata do mesmo para entrega à entidade que o emprestou”. Como se sabe, a decisão de facto só pode ser alterada pela Relação em três hipóteses: 1) se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690.º-A, a decisão com base neles proferida, 2) se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas; 3) se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou (artigo 712.º, n.º 1, na redacção anterior à introduzida pelo DL 303/07, de 24 de Agosto, que é a aqui aplicável). Em qualquer caso, a impugnação da matéria de facto passa, obrigatoriamente, pela especificação, sob pena de rejeição, dos concretos pontos de facto considerados incorrectamente julgados e dos meios probatórios que impunham decisão diversa, sendo que, quando se invocarem meios de prova gravados, cumpre indicar os depoimentos, por referência ao assinalado na acta, com indicação precisa e separada dos mesmos (artigos 690.º-A, n.ºs 1 e 2, e 522.º-C, ambos do CPC). Há que dizer, em primeiro lugar, que a metodologia utilizada pelos recorrentes, ao partirem da matéria de facto incorporada na sentença, não terá sido a mais adequada; em boa técnica processual, o ataque deveria ser dirigido às respostas dadas aos artigos da base instrutória, que não à sentença em si. Mas, abstraindo disso, o certo é que não cumpriram com as exigências legais de que depende a impugnação da matéria de facto, uma vez que não especificaram os meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida (alínea b) do n.º 1 do referido artigo 690.º-A). Quanto aos pontos 22 (cuja alteração, de resto, não foi expressamente requerida) e 27, limitaram-se a citar Normas Internacionais de Contabilidade sobre a definição de activos, que nada têm a ver com matéria de facto; o que importava era infirmar a fundamentação utilizada pelo Tribunal recorrido, através da indicação de provas que apontassem, e com superior grau de verosimilhança, para sentido oposto ao decidido, e não dissertar sobre conceitos. Acresce, relativamente ao ponto 27, que nem sequer esclarecem o que, no seu entender, deveria ter sido considerado provado; disseram que o Tribunal não decidiu bem ao considerar somente os factos ali elencados, mas não se deram a trabalho de dizer o que é que se provou a mais do que isso. No que tange ao ponto 28, a situação é muito idêntica, pois que os recorrentes não indicaram a prova em que se baseiam para contrariar a utilizada na fundamentação das respostas aos quesitos 14.º e 15.º. Na sua versão, o tribunal retirou uma ilação “sem que houvesse prova testemunhal ou documental” e por aí se quedaram. Os meios que impunham decisão de sentido inverso foram completamente ignorados. Desrespeitado o ónus de especificação da prova necessária à reapreciação da matéria de facto, terá o recurso de ser rejeitado, nesta parte, ao abrigo do preceituado no n.º 1 do artigo 690.º-A do CPC. Não obstante, a matéria constante do ponto 28 – “foi efectuado um aumento de capital no valor de € 797.594,00, mas ficticiamente uma vez que houve entrada daquele montante no caixa e saída quase imediata do mesmo para entrega à entidade que o emprestou” – não pode manter-se, mas por razão diversa da sustentada pelos recorrentes. Tal matéria resultou, como acima se disse, da resposta conjunta aos artigos 14.º e 15.º da base instrutória, assim redigidos, respectivamente: “foi efectuado aumento de capital no valor de € 797.594,00?” e “esse aumento de capital foi fictício?”. Ora, a verdade é que o quesito 15.º nem sequer deveria ter sido formulado, por ser de natureza conclusiva (não contém factos concretos, mas um mero juízo de valor); mas tendo-o sido, mandavam as boas práticas que o julgador se abstivesse de lhe responder. Como tal não sucedeu, não resta alternativa a este Tribunal que não seja a de declarar não escrita a resposta, ao abrigo do disposto no artigo 646.º, n.º 4, do CPC. Eliminada a resposta ao quesito 15.º, subsistirá, tão só, a matéria de facto correspondente ao quesito 14.º, pelo que o ponto 28.º dos factos assentes passará a ser do seguinte teor: “foi efectuado um aumento um aumento de capital no valor de € 797.594,00”.
b) A qualificação da insolvência
Na sentença recorrida qualificou-se a insolvência de A... como culposa, com fundamento na verificação do circunstancialismo da alínea h) do n.º 2 e das alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), diploma de que serão os demais preceitos s citar sem indicação de origem. A posição dos apelantes é a de que a matéria de facto provada não permite tirar as ilações acolhidas na decisão. Vejamos se assim é. O artigo 185.º limita a qualificação da insolvência a duas formas: a culposa e a fortuita. O artigo 186.º, por sua vez, para além de definir o conceito de insolvência culposa – diz o n.º 1 que “a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência” –, estabelece um conjunto de factos típicos que conduzem, seja à consideração da insolvência como culposa (n.º 2), seja à presunção de culpa grave dos administradores do devedor que não seja uma pessoa singular (n.º 3). O n.º 2 estabelece, em termos objectivos (desde que comprovados os factos integrantes de cada uma das suas alíneas), uma presunção “juris et de jure” de insolvência culposa; o n.º 3 consagra, tão-só, uma presunção “juris tantum” de culpa grave dos administradores (cfr., neste sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, volume II, página 14, e Menezes Leitão, Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, página 175). Num caso (o do n.º 2), a verificação dos factos implica necessariamente a qualificação da insolvência como culposa; no outro (o do n.º 3), faz, apenas, presumir a culpa grave dos administradores, que podem ilidi-la através de prova em contrário (artigo 350.º, n.º 2, do CC). Mas, ainda que provada a culpa grave (nos casos do n.º 3, é claro), daí não deriva, sem mais, a qualificação da insolvência como culposa; para tanto, é necessário que se demonstre a existência de um nexo de causalidade entre a conduta incumpridora dos administradores e a situação de falência (vide, exemplificativamente, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 14.06.2006, CJ, Ano XXXI, Tomo III, página 288, e o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 20.10.2007, CJ, Ano XXXII, Tomo IV, página 189). Posto isto, voltemos ao caso que nos ocupa, analisando os fundamentos da qualificação da insolvência como culposa e a argumentação oposta pelos recorrentes, começando pela hipótese a que alude a alínea h) do n.º 2 do artigo 186.º. Diz-se na sentença que se configura a situação ali delineada, por se ter provado que “o balanço da insolvente, reportado ao ano de 2005, não reflectia a sua situação patrimonial” e que “foi efectuado um aumento de capital no valor de € 797.594,00, mas ficticiamente, uma vez que houve entrada daquele montante no caixa e saída quase imediata do mesmo para entrega à entidade que o emprestou”. A posição dos apelantes é a de que a matéria de facto em questão não corresponde à realidade das coisas, por ter sido mal julgada; em seu entender, não se provou que o balanço reportado ao ano de 2005 não reflectisse a situação patrimonial da insolvente (o contrário é que se teria provado), nem que tivesse havido um aumento fictício do capital, pelo que não poderia ter sido dado por verificado o condicionalismo do mencionado normativo. Rigorosamente, não discordam do direito, enquanto aplicado aos factos dados por assentes; o que não aceitam são os factos a que o direito foi aplicado. É evidente que esta via lhes não permite alcançar os seus objectivos, no que tange ao primeiro segmento dos factos – “o balanço da insolvente, reportado ao ano de 2005, não reflectia a sua situação patrimonial” –, uma vez que o recurso da decisão de facto foi rejeitado, por incumprimento do disposto no n.º 1 do artigo 690.º-A do CPC. Inadmissível a alteração da matéria de facto fixada em primeira instância e não tendo sido questionada a subsunção jurídica efectuada à sombra da mesma, parece claro que o recurso está, neste segmento, votado ao insucesso. De qualquer jeito, sempre se dirá que aquela factualidade dá cobertura à alínea h) do n.º 1 do artigo 186.º, que considera culposa a insolvência sempre que os administradores da insolvente tenham incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor. O balanço anual, obrigatório para os comerciantes, conforme preceitua o artigo 62.º do Código Comercial, destina-se, essencialmente, a dar conta da situação económica e financeira das empresas, não só aos administradores e aos sócios, mas, também, a outros eventuais interessados (credores e candidatos à participação na vida da empresa, por exemplo). O balanço tem, por isso, de ser um documento claro, exacto, verdadeiro e rigoroso. O que, naturalmente, não sucede quando, como ficou assente, o mesmo não reflecte a situação patrimonial da empresa. Certo que a matéria em causa padece de alguma falta de concretização, por não explicitar os termos da divergência (o que é que no balanço estava errado em relação à verdadeira situação patrimonial dos A...); mas deixa perceber, pelo menos, a existência de erros nos movimentos efectuados no balanço, com a consequente deturpação dos resultados do exercício e, inevitavelmente, da situação económica global da empresa. Tenda o balanço apresentar a situação melhor ou pior do que, na realidade, o é, será sempre a verdade que está em causa, havendo, consequentemente, prejuízo para todos quantos estão interessados e têm o direito de conhecer o estado de saúde económico-financeiro da empresa. E a criação de uma situação patrimonial ilusória não pode deixar de cair na previsão da alínea h) do n.º 1 do artigo 186.º. Já a questão do aumento de capital não poderá ser atendida para efeitos de verificação do circunstancialismo da mesma alínea, dada a alteração oficiosa do ponto 28 dos factos provados; com efeito, a matéria que sobra – “foi efectuado um aumento de capital no valor de € 797.594,00” – é completamente inócua para assacar aos recorrentes qualquer prática contabilística lesiva da compreensão da situação económica e financeira da insolvente. A questão acaba, todavia, por não ter relevo prático, por sobrar matéria passível de corporizar a aludida alínea.
O segundo fundamento da qualificação assentou na previsão da alínea a) do n.º 3 do mesmo preceito, que presume a existência de culpa grave dos administradores do devedor que tenham incumprido o dever de requerer a declaração de insolvência. |