Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
447/00.2TALRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALICE SANTOS
Descritores: DIFAMAÇÃO
PUBLICIDADE
DEPUTADO
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
Data do Acordão: 04/02/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA – 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 118º,120º E 183º ,2 DO CP , L. 7/93-1-3- ARTº 14º, Nº 1
Sumário: 1. O juiz só pode alterar a qualificação jurídica na pronúncia, caso tenha havido instrução e na sentença.
2. A conferência de imprensa não integra o conceito de meio de comunicação social pois poderá, quando muito, servir de instrumento a eventual divulgação pelos meios de comunicação social, não estando nas mãos do ofendido tal realização pelo que os factos nela divulgados não integram o disposto no art. 183º n° 2 do C.P.
3. Os deputados gozam de imunidade e prerrogativas que se vão reflectir no procedimento criminal e no processo penal.
4. A imunidade reflecte-se no processo através da exigência de verificação de uma condição processual – a autorização do parlamento. Esta autorização é condição do prosseguimento do processo. O processo não pode prosseguir enquanto não se verificar a condição imposta ou não cessarem os pressupostos que a determinaram.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

O assistente, H…, não se conformado com o despacho proferido a fls 643 vº que declarou prescrito o procedimento criminal, vem dele interpor recurso para este tribunal, sendo que na respectiva motivação formulou as seguintes conclusões:

1. Pelo Despacho de fls., o Tribunal promoveu a convolação dos factos criminais imputados ao arguido, enquadrando-os juridicamente como crimes de Difamação Simples punidos com pena de prisão até seis meses e declarando por extinto o procedimento criminal por esgotamento do prazo ordinário de dois anos prescrito no art. 118°/1, al. d) do Código de Processo Penal.

2. Mal andou o tribunal "a quo" ao ter enquadrado os factos descritos na Acusação como crimes de difamação simples, declarado o prazo de prescrição como decorrido e o procedimento criminal por extinto.

3. O arguido desempenhava, contemporaneamente ao início do processo criminal, as funções de Deputado à Assembleia da República.

4. Nos termos dos arts. 11 ° e 14°/1 do Estatuto dos Deputados, para que o arguido pudesse ser constituído arguido e lhe pudessem ser tomadas declarações era necessária autorização da Assembleia da República.

5. O Ministério Público, por Despacho de fls. 95 datado de 08.05.2000 requereu à Assembleia da República a sobredita autorização, para que os autos pudessem seguir seus termos, constituindo-se J……… como arguido e tomando-se-lhe declarações nessa qualidade, também pedido pelo Juiz de Instrução em 13.06.2000.

6. Em 13.02.2001, a Assembleia da República comunicou aos Autos a sua recusa, tendo negado autorização para que o arguido fosse constituído como tal e negando o seu consentimento para que prestasse declarações no Inquérito (cfr. fis. 259 dos Autos).

7. Desde essa data e até as eleições legislativas de Fevereiro de 2005, o arguido manteve-­se como deputado à Assembleia da República, tendo recusado este órgão, por uma segunda vez e na sequência de um segundo mandato para que foi eleito o arguido, autorização para que fosse este constituído arguido ou para que prestasse declarações nessa qualidade (cfr. Oficio de 04.06.2000 a fLs. 276).

8. Após as eleições de 20.02.2005 sem que o arguido tivesse sido reconduzido a novo mandato, o processo passou a estar em condições de prosseguir seus termos por cessação, em 21.02.2005, da necessidade de autorização do Parlamento Português para a tomada de declarações e constituição como arguido do denunciado, uma vez que não possui a, já, estatuto parlamentar.

9. Em 09.05.2005 o arguido vem a ser constituído arguido, prestando ainda Termo de Identidade e Residência e, em 11.10.2005, é notificado da Acusação contra si produzida pelos Serviços do Ministério Público.

10. De 08.05.2000 a 21.02.2005 o processo não esteve em condições de prosseguir por falta de autorização legal da Assembleia da República, encontrando-se o prazo prescricional do procedimento criminal por suspenso nos termos do art. 120°/1, al. a) do Código de Processo Penal (cfr. Parecer da Procuradoria Geral da República 70/96.

11. Os factos descritos na Acusação e ocorridos a 24.02.2000 e 07.03.2000 consubstanciam dois crimes de Difamação Agravada nos termos do art. 183°/2 e 184°, ambos do Código Penal, e são punidos com três anos de prisão cada.

12. Quando assim não se entenda, sempre e em qualquer caso os factos descritos na Acusação e ocorridos a 24.02.2000 e 07.03.2000 consubstanciam dois crimes de Difamação Agravado nos termos do art. 183°/1, al. a) e 184°, ambos do Código Penal, e são punidos com um anos de prisão cada.

13. Os factos descritos na Acusação e ocorridos a 27.04.2000 consubstanciam um crime de Difamação Agravado nos termos do art. 183°/1, al a) e 184°, ambos do Código Penal, e são punidos com um ano de prisão.

14. Atento o que ora vai concluído, sempre e em qualquer caso, o prazo prescriciona1 dos crimes de que vem o arguido acusado é de CINCO ANOS ex vi art. 118°/1, al. c), pelo que, perante o período de suspensão que se veio de enquadrar juridicamente, o seu esgotamento ainda se não verificou.

15. Mal andou, atento a todo o exposto, o Tribunal "a quo" ao declarar por extinto o procedimento criminal por prescrição e ordenando o seu arquivamento, o que urge reparar na presente sede de Recurso.

Em obediência ao estatuído no arte 412º do Código de Processo Penal cumpre indicar:

a) As normas jurídicas violadas:

Art. 118°/1, als. c) e d), 120°/1, al. a), 180°, 183°/1, al. a), 183°/2 e 184° e 132°/2, al. j), todos do Código Penal

b) O sentido em que o Tribunal interpretou cada norma e o sentido com que, no entender do Recorrente, deveria ter sido aplicada:

Vide Conclusões 1. a 15. .

c) As normas que não foram aplicadas devendo tê-lo sido, no entender do Recorrente

Vide Conclusões 1. a 15. .

Nestes termos e nos melhores de Direito que v. Exa. doutamente suprirá, deve ser concedido provimento ao presente Recurso, revogando-se o Despacho recorrido e declarando-se que o prazo de prescrição dos crimes de que vem acusado o arguido se não esgotou, ordenando-se ainda que os Autos prossigam para Julgamento, nos termos e com os fundamentos alegados.

Por essa forma fazendo VV. Exas COSTUMADA JUSTIÇA!

Respondeu o digno Procurador-Adjunto, manifestando-se pela improcedência do recurso.

Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta no sentido da improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

É este o despacho recorrido:

Os factos reportam-se ao ano de 2000.

A acusação foi notificada por carta enviada a 11-10-2005.

O arguido foi constituído a 9-5-2005 (fls. 310).

Os factos constantes na acusação integram a prática de:

um crime de difamação agravado p. e p. nos arts. 180 n° 1, e 132º n° 2 j) e

183º n° 1 a) do C.P.; e, em concurso real,

um crime de difamação agravado p. e p. nos arts. 180 n° 1, e 132 n° 2 j) do

C.P..

Os factos não integram o disposto no art. 183º n° 2 do C.P., uma vez que não foi praticado por meio da comunicação social, isto é, não foi mediante escrito

(jornal), som e imagem (rádio e televisão). A conferência de imprensa não integra o conceito de meio de comunicação social pois poderá, quando muito, servir de instrumento a eventual divulgação pelos meios de comunicação social, não estando nas mãos do ofendido tal realização.

Os crimes assinalados têm molduras penais inferiores a 1 ano, o que importa a consideração de a prescrição ordinária ser de 2 anos.

Tal tempo mostra-se decorrido há muito (ano de 2002).

Termos em que se decide declarar prescrito o procedimento criminal.

Cumpre decidir:

O Ministério Público proferiu acusação contra J…………… imputando-lhe a prática de:

- Dois crimes de difamação agravados, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts 132 nº 2 j), 180, nº 1, 183 nº 2 e 184 todos do CPenal;

- Um crime de difamação p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts 132 nº 2 j), 180, nº 1, 183 nº 1 al a) e 184 todos do CPenal;

A Sra Juiz no dia 3 de Julho de 2007 e após a abertura da audiência de discussão e julgamento proferiu o despacho acima referido. Ou seja, antes de ter efectuado o julgamento a Sra Juiz altera a qualificação jurídica e após, declara extinto, por prescrição, o procedimento criminal instaurado nos autos contra o arguido.

Ora, o juiz só pode alterar a qualificação jurídica na pronúncia, caso tenha havido instrução e na sentença mas sempre depois, de dar cumprimento ao estatuído no art 358 nº 3 e 1 do CPP.

A Sra Juiz não podia alterar a qualificação jurídica nos termos em que o fez.

Ao arguido é imputado a prática de dois crimes de difamação agravados, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts 132 nº 2 j), 180, nº 1, 183 nº 2 e 184 todos do CPenal, cuja moldura penal abstracta é de pena de prisão até dois anos ou com pena de multa não inferior a 120 dias. E, um crime de difamação p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts 132 nº 2 j), 180, nº 1, 183 nº 1 al a) e 184 todos do CPenal cuja moldura penal abstracta é de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias. Atento o disposto no art 184 estas penas são elevadas de metade nos seus limites mínimos e máximo.

De acordo com o disposto no art 118 nº 1 al c) e d) do CPenal o procedimento criminal extingue-se por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido 5 anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a 1 ano, mas inferior a 5 anos; 2 anos, nos casos restantes.

Por seu lado o art 120 nº 1 al a) estipula que a prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que o procedimento criminal não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal.

No caso vertente e após o queixoso ter apresentado queixa, o Mº Pº a 8/5/2000 (fls 95) e atenta a qualidade de deputado do denunciado, diligenciou junto da Assembleia da República para se pronunciar, concedendo ou denegando a necessária autorização para constituir o denunciado como arguido e tomar-lhe declarações, devendo o mesmo prestar termo de identidade e residência.

O Sr juiz de instrução a 13/6/2000 solicitou autorização ao parlamento para levantamento de imunidade parlamentar (pg 105).

A 13/2/2001 a Assembleia da República dá conhecimento nos autos de que foi deliberado não conceder a devida autorização para que o Sr deputado J………. seja ouvido e constituído como arguido no âmbito destes autos (fls 259).

Perante a não autorização o Mº Pº determina a suspensão dos termos do inquérito até ás próximas eleições para a Assembleia da República, com efeito desde 13/6/2000 (pg 260).

A 26/2/2002 e por ter sido dissolvida a Assembleia da República o Mº Pº declarou cessada a suspensão dos autos (fls 268).

A 19/3/2002 (fls 273) o Mº Pº chamou o denunciado para prestar declarações tendo este informado o Mº Pº que apesar de ser presidente da Assembleia Municipal de ..., continuava a manter o estatuto de deputado e, nessa medida vinculado à observância da decisão da Assembleia da república de não ser interrogado e constituído arguido no processo.

A 5/6/2002 a Assembleia da República dá a conhecer que se mantém a anterior decisão de recusar a autorização legal para que o denunciado fosse constituído arguido ou prestasse declarações neste processo.

Após as eleições de 20 de Fevereiro de 2005 e porque o denunciado não foi eleito deputado o mesmo foi constituído arguido em 9/5/2005 e, em 11/10/2005 foi notificado da acusação (pg 310 e 381).

Os deputados gozam de imunidade e prerrogativas que se vão reflectir no procedimento criminal e no processo penal.

A nossa Constituição estabelece nos arts 159 e 160 um regime de irresponsabilidade e de imunidade parlamentares.

A irresponsabilidade traduz-se em os deputados não responderem civil, criminal ou disciplinarmente pelos votos e opiniões que emitirem no exercício das sua funções.

A imunidade impõe a autorização da Assembleia da República para que o deputado seja detido ou preso (excepto por crime doloso a que corresponda pena de prisão superior a 3 anos e em flagrante delito), julgado caso tenha sido pronunciado (mediante suspensão para o efeito) ou possa ser jurado, perito ou testemunha.

A Lei nº 7/93, de 1 de Março (Estatuto dos Deputados) no seu art 14, nº 1 dispõe:

Os deputados não podem sem autorização da Assembleia da República, ser jurados, peritos ou testemunhas nem ser ouvidos como declarantes nem como arguidos, excepto, neste último caso, quando presos em flagrante delito ou quando suspeitos de crime a que corresponda pena superior a 3 anos.

Portanto a imunidade reflecte-se no processo através da exigência de verificação de uma condição processual – a autorização do parlamento. Esta autorização é condição do prosseguimento do processo. Portanto o processo não pode prosseguir enquanto não se verificar a condição imposta ou não cessarem os pressupostos que a determinaram.

A autorização prevista no art 14 nº 1 do Estatuto dos Deputados pode ser recusada pela Assembleia da República e tal, vai reflectir-se, necessariamente, sobre o andamento do processo.

É sabido que decorrido algum tempo sobre o facto já não pode ser desencadeada ou continuar a acção penal em razão da prescrição que constitui uma causa de extinção do procedimento criminal.

O art 118 do CPenal define os prazos de prescrição a contar da prática do crime, o art 119 o início dos referidos prazos e o art 120 estabelece que o decurso do prazo não é materialmente contínuo, mas sofre influências determinadas por actos ou condições processuais. Assim, este normativo prevê que a prescrição suspende-se enquanto o procedimento criminal não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal (120 nº 1 al a).

A prescrição volta a correr a partir do dia que cessar a causa da suspensão (nº 3 do art 120).

Tal como vem referido no Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República nº 77/96 “A autorização prevista no art 14º, nº 1, do Estatuto dos Deputados, com reflexos directos no processo penal, quando considerada e conceptualizada neste domínio, constitui uma condição subjectiva de procedibilidade, no sentido de circunstância que deve verificar-se num dado caso concreto para que possa ter lugar (iniciar-se ou continuar) o procedimento criminal.

Qualificada, como condição de procedibilidade prevista expressamente na lei, integra-se no conceito de autorização legal com reflexos no procedimento criminal, prevista no referido artigo 120, nº 1, al a) do CPenal: sem tal autorização o procedimento criminal não pode continuar, porque de tal pressuposto depende a determinação processual da qualidade de arguido e as declarações deste, actos que, no caso, e numa perspectiva processual - concreta, se revelam necessários”.

Portanto, a não verificação da condição ou pressuposto determina a suspensão da prescrição do procedimento criminal.

O momento a partir do qual se deve considerar suspensa a prescrição é a data do pedido de autorização formulado pela autoridade judiciária competente.

Assim temos:

Os factos imputados ao arguido ocorreram em 24/2/2000, 7/3/2000 e 27/4/2000.

O prazo prescricional esteve suspenso de 8/5/2000 a 21/2/2005 data em que recomeça a contar o prazo prescricional.

A 9/5/2000 foi o denunciado J… constituído arguido, data em que se interrompeu a o prazo prescricional (art 121 nº 1 al a)).

Assim desde a cessação da causa suspensiva e até à interrupção do prazo prescricional decorreram dois meses e quinze dias.

Não se encontra, pois, prescrito o procedimento criminal.

Na verdade, mesmo considerando o prazo de 2 anos, o mesmo ainda, não se encontra esgotado.

Do exposto concede-se provimento ao recurso e, consequentemente, revoga-se o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que designe dia para audiência de discussão e julgamento, devendo o processo seguir os seus trâmites normais.

Sem custas.